I - Na pendência de casamento sujeito ao regime de comunhão de adquiridos, apurada a livre administração pelo cônjuge marido de contas bancárias que constituem bens comuns do casal, já que provenientes do rendimentos do seu trabalho, o mesmo pode movimentar e dispor singularmente das quantias monetárias daí decorrentes, incluindo autorizar terceiros a movimentá-las, sem prejuízo de, uma vez dissolvido o casamento, na partilha, comprovada que estivesse uma utilização daqueles valores que não teve em vista a vida em comum do casal, os mesmos terem de ser contabilizados como crédito da assistente (ex-mulher) para efeitos de formação da meação de cada um dos ex-cônjuges.
II - A questão, enquanto perdurar a comunhão conjugal, é de natureza cível e não criminal.
III - Com este pressuposto, e com o assumido consentimento do cônjuge marido ao seu irmão, arguido nos autos, para a prática dos actos descritos na acusação relativamente à movimentação das contas ali indicadas, falece totalmente a imputada intenção do arguido de apropriação para si ou para terceiro, assim como não tem sentido a invocação do carácter alheio da coisa, posto que a conduta do arguido teve a prévia autorização do legítimo proprietário do dinheiro e seu administrador.
IV - Mas tal não significa uma total desresponsabilização penal do agente após a partilha, caso se venha a demonstrar que dissipou intencionalmente património do ex-cônjuge.
V - Neste caso, sendo seguro que tais quantias deviam ser creditadas na meação da ex-mulher, o ex-cônjuge marido, e por via dele o aqui arguido, cometia, não um crime de furto, pois o património sempre esteve ao seu dispor, mas um crime de abuso de confiança, dando-se a inversão do título de posse relativamente a bens da meação da ex-mulher com a dissolução do casamento e sequente partilha de bens.
VI - No caso dos autos, o ex-casal celebrou acordo de partilha, onde a assistente declarou mostrar-se ressarcida dos valores integrantes da sua meação, tendo ainda ambos os ex-cônjuges apresentado pedido de levantamento do arrolamento mencionado na acusação por terem celebrado acordo para partilha dos bens comuns e se mostrar inútil a manutenção da providência.
VII - Fica assim por demonstrar que o ex-marido, e por via dele o aqui arguido, se apropriaram de quantias que deveriam compor a meação da assistente com a partilha dos bens após a dissolução do casamento, mostrando-se correcta a decisão de não pronúncia.
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 210/17.1T9AMT, a correr termos no DIAP – Secção de ..., foi deduzida acusação, em Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo, contra AA, a quem foi imputada a prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 14.º, 26.º e 204.º, n.º 2, al. a), do CPenal, sendo ainda requerida a perda de vantagens dos factos ilícitos típicos a favor do Estado.
Irresignado, o arguido AA requereu a abertura da instrução, que foi admitida, tendo sido realizadas diligências de prova e debate instrutório, tendo, a final, sido proferido despacho de não pronúncia.
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que pronuncie o arguido nos termos da acusação deduzida.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. O presente recurso tem como objeto a decisão instrutória proferida nos presentes autos que não pronunciou o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo art. 204º, nº 2, al. a), por referencia aos artigos 202º, al. b), 203º, nº 1, 14º e 26º, todos do Código Penal.
2. Com efeito, o Meritíssimo Juiz o quo baseou a decisão de não pronúncia em, resumidamente, três ordens de razão, a saber: 1ª) Por entender inexistir “prova forte” que indicie os elementos do tipo objetivo e do tipo subjetivo exigidos para o preenchimento do tipo de ilícito penal em causa, ou, nas palavras do Mm.º JIC, “por inexistir prova indiciaria forte de que os valores movimentados pelo arguido pertenciam à ofendida, e muito menos existe de que este agiu tendo efetivo conhecimento desse facto e que não o poderia fazer, pois sempre acreditou que os valores das contas em causa eram seus e do seu irmão”, estando assim em causa o elemento do caracter alheio da coisa e a intenção dolosa de apropriação; 2º) Por entender que “a ter-se imputado o crime de furto qualificado ao arguido AA, então o seu irmão, BB, também deveria ter sido acusado pelo mesmo ilícito criminal, em coautoria, pois toda a atuação do arguido foi motivada, orientada e decidida em decorrência da ação do seu próprio irmão, BB, como resultou dos depoimentos recolhidos na instrução e não é contrariada pela prova decorrente do inquérito.” e, finalmente, 3º) Por a movimentação das contas em causa ter sido realizada pelo arguido, tal como o foi pela ofendida, CC, em relação a outras contas, pelo que, no fundo, a ofendida, teria cometido a mesma conduta que imputa ao arguido, pelo que também aquela deveria ter sido acusada pelo mesmo crime, “pela movimentação das contas à posteriori, pois apesar de pedir o arrolamento das mesmas, movimentou-as”, e não o foi; razões estas que levaram o Mmº JIC a concluir que a prova indiciária recolhida nos autos, não poderá, em sede de julgamento, sustentar a condenação do arguido AA.
3. A questão nuclear suscitada com a interposição do presente recurso, prende-se com a circunstância de, no nosso entender, e salvo o devido respeito, que é muito, a decisão recorrida não ter feito justiça porque não atendeu à significação social da conduta do arguido no contexto em que a mesma foi praticada, não valorando de forma correta os elementos de prova objetivos carreados para os autos, nomeadamente a prova documental concatenada com as próprias declarações do arguido e do seu irmão BB, prestadas em sede de Instrução, e analisadas à luz das regras da experiência comum, antes aceitou de forma acrítica e em violação das normas legais e das regras da experiência comum, a tese trazida pelo arguido e pelo seu irmão, de que teriam agido não com a intenção de subtraírem aquelas quantias mas a fim de ”se acautelarem” e convictos de quais quantias pertenciam em exclusivo, desconsiderando o Mm.º JIC a restante e abundante prova documental mencionada na acusação pública e as normas legais de valoração da prova (art. 516º e 1724º do CC e 127º do CPP), que impunham conclusão diversa, tendo, ao invés, o Mm.º JIC concluído, erradamente a nosso ver, de que não existem indícios suficientes de que o arguido tenha praticado o crime de que vinha acusado porquanto não agiu com intenção de subtração e com conhecimento de que a coisa subtraída pertencia à ofendida.
4. Ao decidir assim o despacho de não pronúncia de que ora se recorre incorreu, a nosso ver, em erro notório na apreciação da prova e erro na apreciação da matéria de facto e de direito ao concluir pela não indiciação de parte dos factos que foram imputados pelo Ministério Público ao arguido na acusação pública, antes devendo dar como indiciados todos os factos constantes da acusação pública (art. 1º a 52º), factos esses que, por sua vez, integram o crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 204º, nº 2, al. a), por referência à al. b) do art. 202º, todos do Código Penal,
5. Com efeito, resulta suficientemente indiciada toda a factualidade que o Mm.º JIC deu como não indiciada, bem como resultou suficientemente indiciado o dolo, a intenção de subtrair as quantias mencionadas na acusação à assistente e, bem assim, o caracter alheio daquelas quantias de que o arguido se apropriou, tendo o arguido agido sempre em proveito do irmão, mancomunado com este, a pedido e com o consentimento deste, como ambos reconheceram na Instrução, apesar de o arguido bem saber que aquelas quantias pertenciam, pelo menos em parte, à ofendida e que esta tinha direito a elas, pelo que a decisão instrutória de que ora se recorre, ao não pronunciar o arguido pela prática deste crime, violou o disposto nos arts. 204º, nº 2, al. a), por referência aos arts. 203º, nº 1 e 202º, b) do Código Penal e 308º, n.º 1 do Código de Processo Penal, devendo por isso, a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que pronuncie o arguido AA pelos factos e incriminação jurídica constantes da acusação pública.
6. Nos termos do art.º 203.º n.º 1 do Código Penal “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”, sendo que o artigo 204º, nº 2, al. b), prevê a qualificação do crime de furto quando a “coisa móvel ou animal for “de valor elevado”.
7. A subtração consiste na violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceira pessoa, sendo que “(…) o elemento “subtracção” caracteriza-se sobretudo pela finalidade prosseguida, a qual consiste “…no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que as detinha” (sendo absolutamente irrelevantes as modalidades e os meios de realização da conduta, considerando-se que o “desapontamento” e consequente “apossamento” possa ser feito sem apreensão manual.” (negrito nosso), ou, dito de outro modo, consiste "(...)no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha" e implica a aquisição de um poder de facto de disposição sobre a coisa alheia, com a concomitante cessação ou ablação (a ablatio) desse poder de facto pelo seu legítimo possuidor ou detentor”. Resumindo, “a subtração não se esgota com a mera apreensão da coisa alheia, e pode mesmo não haver apreensão; essencial é que o agente a subtraia da posse alheia e a coloque à sua disposição ou à disposição de terceiro; não é necessário que a coisa seja mudada de um lugar para outro, nem tão pouco que chegue a ser usada pelo agente ou terceiro; tão pouco é necessário o «lucri faciendi», exigido pelos romanos” (cfr. GONÇALVES, MAIA, Código Penal Português, 7.ª ed., 636.)
8. Resulta da prova documental indicada na acusação pública que o arguido efetivamente retirou do poder de disposição da assistente as quantias mencionadas na acusação pública que consistiam nos saldos bancários que integravam os bens comuns do casal (pertencentes à ofendida e ao irmão do arguido), e cujas contas bancárias a ofendida era cotitular e transferiu parte dessas quantias para outras contas bancárias pessoais do arguido, exclusivas deste, às quais a ofendida não tinha como aceder, muito menos qualquer poder de facto, inviabilizando assim o arrolamento dessas quantias, e fê-lo precisamente movido pelo propósito de “ajudar” ou “auxiliar” o seu irmão, BB, a fugir com os bens comuns do casal à sua ex-mulher (cunhada do arguido).
9. A circunstância de a ofendida ter apresentado queixa e se ter constituído assistente nos presentes autos é sinal de que a mesma se considerou lesada e prejudicada pela conduta do aqui arguido, sendo certo que tal é uma decorrência natural das regras da experiência comum e do bom senso porquanto se não fosse a conduta do arguido os saldos bancários teriam sido arrolados e os bens comuns do casal ficariam “acautelados”/”assegurados” para ambas as partes, cuja finalidade se destina precisamente aquela providência cautelar – a de assegurar que nenhum dos donos dos saldos os dissipe ou os faça desaparecer, pelo que é notório que se a intenção do arguido (e do irmão) fosse realmente a de “acautelar” as bens, não teria o arguido levantado a totalidade dos ditos saldos e/ou os transferido para contas pessoais, exclusivamente suas, tanto mais que é o próprio quem refere que aquelas quantias não lhe pertenciam na totalidade, sendo também do irmão, em proporção de metade. Ao colocar essas quantias em contas não acessíveis à ofendida nem ao marido desta, o arguido logrou efetivamente causar prejuízo patrimonial à ofendida equivalente ao valor das quantias que lhe subtraiu, porquanto a ofendida deixou de poder aceder às mesmas, quer diretamente, enquanto titular da conta, quer por via da quota parte a que tinha direito relativamente à metade do marido, enquanto bem comum do casal, por ser bem integrante do património conjugal, como sucederia no caso de as quantias serem transferidas para outra conta em que fosse cotitular o seu marido.
10. O facto de o arrolamento não permitir que a ofendida dispusesse das quantias que o arguido subtraiu não significa que a subtração daqueles montantes não tenha efetivamente lesado e prejudicado a ofendida, porquanto o que o arrolamento visa é precisamente evitar que qualquer dos titulares das contas que integram o património conjugal dissipe esses bens, os oculte ou os faça desaparecer do acesso do outro, tendo sido essa a preocupação da ofendida, que recorreu aos meios judiciais para fazer valer os seus direitos por via legal, pretendendo apenas e tão só proteger o património conjugal existente à data da instauração da providência cautelar a fim de o mesmo ser depois alvo de partilhas. Inversamente, o arguido, ao subtrair aquelas quantias inviabilizou a utilização daquela providência cautelar cível, retirando das contas praticamente quase toda a totalidade das quantias aí existentes de modo a que a ofendida a elas não tivesse acesso, não sendo as mesmas abarcadas pelo arrolamento, pelo que é inequívoco o prejuízo daí resultante para a ofendida, a qual apenas em 2022 logrou chegar a acordo de partilhas com o seu ex-marido.
11. De igual modo, não podemos concordar com a sentença recorrida quando conclui não resultar dos autos suficientemente indiciado o elemento do tipo objetivo o carater alheio da coisa subtraída e o elemento do tipo subjetivo a ilegítima intenção de apropriação porquanto, conforme ensina o Professor Faria Costa é alheia “toda a coisa que esteja ligada, por uma relação de interesse, a uma pessoa diferente daquela que pratica a infracção” e, parafraseando Miguel, “essa outra pessoa pode ser um comproprietário ou algum dos herdeiros; daí que possa uma coisa ser ainda “alheia”, mesmo que o agente seja seu proprietário, desde que o não seja sozinho, mas com outro ou outros” (cfr. “O Direito Penal Passo a Passo, Volume II, 2011, pág. 43.
12. Acresce que por força do disposto no art. 516.º do CC, presume-se que os credores solidários comparticipam em partes iguais no crédito. Esta presunção estabelecida no citado normativo legal de que os credores solidários comparticipam em montantes iguais no crédito é uma presunção ilidível, bem podendo acontecer que sejam distintos os montantes dos respetivos créditos ou até exclusivo de um só dos titulares da conta. Se, designadamente, se provar que o dinheiro do depósito tem origem na propriedade exclusiva de um dos titulares da conta, ilidida fica, necessariamente, a presunção de comparticipação igualitária no crédito consubstanciado no depósito, estabelecida no referido art. 516.º do Código Civil, o que não sucedeu no caso concreto porquanto nenhuma prova foi feita pelo arguido que ilidisse a dita presunção legal.
13. Na verdade, resulta da prova documental junta na acusação que o arguido é detentor de participações sociais conjuntamente com o seu irmão, BB, em várias sociedades comerciais, nas quais aquele seu irmão é o detentor da maior parte do capital social na razão de 2/3, assumindo uma posição hegemónica em relação ao arguido, o qual detém apenas 1/3 do capital, não sendo, portanto, o dono da totalidade das quantias ali depositadas, o que o arguido bem sabia.
14. Por seu turno, a ofendida casou em regime de comunhão de adquiridos com o irmão do arguido, BB, em 1982, do qual se divorciou em 2015, pelo que tinha direito a metade de todos os bens adquiridos pelo casal na constância do casamento, do que o arguido tinha total e perfeito conhecimento, bem como, de resto, de toda a vivência e litigiosidade vivida entre a sua ex-cunhada e o seu irmão subjacente ao divórcio e, em particular, às questões de partilha de bem, como o próprio arguido reconheceu nas declarações que prestou em sede de Instrução.
15. Ora, os factos descritos na acusação pública, sustentada na prova documental carreada nos autos (e a que a prova realizada em sede de Instrução veio corroborar e não infirmar), demonstram abundantemente que mais de metade dos depósitos existentes nas indicadas contas bancárias não pertenciam, nem podiam pertencer por inteiro, ao arguido, erigindo-se ainda contra essa tese a presunção legal extraída do art. 516.º do Código Civil, que tem como consequência dispensar a ofendida de provar que era comproprietária das quantias depositadas, face ao preceituado no n.º 1 do art. 350º do Código Civil conjugado com o n.º 1 do art. 344º do mesmo diploma, existindo já uma decisão do Tribunal da Relação do Porto, junta aos autos, que se pronunciou no sentido de que os saldos existentes nas contas bancárias em questão pertencem à ofendida e ao seu ex-marido, constituindo bens comuns do casal – documentos de fls. 28 a 44 – pelo que o arguido apropriou-se da totalidade dos saldos bancários mencionados na acusação, subtraindo dessas contas bancárias, o quinhão pertencente aos outros dois outros cotitulares, os quais faziam (esses sim) parte de um regime de bens em comunhão fruto do casamento em comunhão de adquiridos.
16. Pelo que mal andou o Mm.º JIC ao dar como não indiciados a factualidade constante dos art. 1º a 52º da acusação pública, sendo que prova constante dos autos impunha decisão diversa da recorrida, nomeadamente a prova documental (o auto de denúncia de fls. 2 a 17; Assento de casamento de fls. 19; Certidões de nascimento do arguido e do seu irmão BB; os Documentos de fls. 20 a 64; 90 a 101 verso; 102 a 110; 115-T a 116-T; 130 a 142; 144 a 146 verso; 149 a 150; 228 a 231; 413 a 416; 452 a 455; 456; 480 a 485; 486 a 612; 625; 769 a 785 verso; 795; 800 a 814; 816 a 820; 822 a 824; as Certidões de fls. 22 a 65 e de fls. 250 a 370; 655; e 667 a 684 e 685 a 730; os Relatórios de fls. 82 a 84; 113 a 118; 154 a 160; e 831 a 838; e as Certidões permanentes de fls. 632 a 638, 639 a 644; 645 a 648; 649 a 654 verso), bem como a prova testemunhal produzida em Instrução, nomeadamente, as declarações prestadas pela testemunha BB, irmão do arguido (e beneficiário direto da conduta daquele), porquanto, é certo que esta testemunha tentou convencer o Tribunal de que as quantias depositadas naquelas contas bancárias pertenciam apenas aos dois irmãos, isto é, à testemunha e ao arguido, e que a ofendida apenas constava como titular das contas por sugestão do gerente do Banco, asseverando que para além do dinheiro ser apenas seu e do seu irmão, a proporção desse dinheiro era de metade para cada um, todavia, tais declarações estão em manifesta contradição com a demais prova carreada nos autos, mais concretamente, com os elementos documentais que constam dos autos, dos quais resulta que as proporções das participações, dos lucros e dos negócios que tinham nunca foi em iguais proporções, mas sempre de 2/3 para BB e de 1/3 para o arguido, mas também com as próprias declarações que os próprios (testemunha e arguido) foram prestando ao longo do seu depoimento/interrogatório na Instrução, e bem assim, em violação das regras de valoração e ónus da prova estabelecidas nos arts. 516º e 1724º do CC e art. 127º do CPP.
17. A própria testemunha BB, quando questionado sobre de quem foi a ideia de proceder aos levantamentos destas quantias, referiu que o arguido, seu irmão, “não fez nada sem o seu consentimento”, o que corrobora inteiramente a tese do Ministério Público, que na acusação pública alega que o arguido agiu mancomunado com aquele BB, por o arguido saber que aquele seu irmão estava em processo de divórcio com a ofendida, e sendo além de seu irmão, seu confidente, sabia bem de todos os problemas pessoais e patrimoniais que aquele BB travava com a ofendida, tendo o arguido agido, a pedido e em conluio com aquele BB, na medida em que a intenção do arguido nunca foi furtar ou prejudicar o seu irmão, mas sim ajudá-lo a salvaguardar o máximo de património comum do casal possível das partilhas que aquele teria de efetuar por conta do processo de divórcio e de partilha que aquele seu irmão atravessava nos Tribunais contra a ofendida, tendo o arguido levantado todas as quantias (praticamente a totalidade dos saldos existentes nessas contas, “limpando-as”), e não apenas a quota-parte que supostamente lhe pertencia, precisamente por pretender assim subtrair aquelas quantias à ofendida, o que conseguiu (v. Depoimento prestado no dia 15.05.2024, com início às 14h26m58s e termo às 14h 56m14s, em especial, as declarações prestadas entre os 03:00m e os 10m15s da gravação)
18. Com efeito, é o próprio tipo legal que prevê que o agente atue “com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa”, como foi o caso, já que atuou com a referida intenção de apropriação para si e para o seu irmão, querendo assim subtrair a quota parte que pertencia à ofendida por força da quota parte (de 1/3) que lhe cabia por força da presunção previsto no artigo 516º do Código Civil enquanto cotitular da conta, e da meação na quota parte (de 2/3) a que tinha direito por força da comunhão conjugal que estava para ser partilhada e que era bem comum do casal, motivo pelo qual o arguido não se limitou a levantar as quantias correspondentes à quota parte que lhe pertencia, antes levantou a totalidade dessas quantias.
19. Também as declarações prestadas pelo ARGUIDO AA, cujo depoimento foi prestado no dia 15.05.2024, com início às 14h56m30s e termo às 15h15m53s, corroboram a factualidade da acusação, impondo conclusão diversa a que chegou o Mm.º JIC, que as valorou incorretamente incorrendo em erro de apreciação da prova.
20. Assim, tentou o arguido convencer o Tribunal dizendo que os saldos ou o dinheiro dessas contas, apesar de estar em contas cotituladas pelos três (arguido, ofendida e marido desta), apenas pertencia ao arguido e ao seu irmão, por ser proveniente de lucros, prémios e ações que obtiveram do exercício profissional. Mas, para além de nenhuma prova concreta ter apresentado que corroborasse as suas declarações a fim de afastar a presunção prevista no art. 516º do Código Civil, o arguido e o seu irmão limitaram- se a dizer que o dinheiro era só deles, o que, diga-se, nada prova nem tão pouco ilide a presunção legal de comparticipação igualitária no crédito consubstanciado no depósito, estabelecida no referido normativo legal, não sendo, de resto, expectável que viessem alegar coisa diferente dada a responsabilidade penal que daí resultaria para o arguido.
21. Ao atribuir credibilidade às declarações do arguido e ao considerar que “não existem indícios suficientes de que o arguido ao ordenar ou movimentar as contas bancárias em causa o fez, sabendo que tais valores pertenciam à ofendida…, apropriando-se ilicitamente deles e fazendo-as suas. Desde logo, o arguido sempre agiu no consentimento de que tais montantes eram seus e do seu irmão, BB, tanto mais que este sempre assim o afirmou e foi defendendo essa tese, durante anos, ao longo dos autos de divorcio e partilha”, o Mm.o JIC fez tábua rasa da prova documental junta aos autos (e para a qual chamamos a atenção, sobretudo para os documentos que provam que o arguido transferiu parte desses saldos para contas exclusivamente tituladas por si, o que contradiz claramente a versão do arguido porquanto se o dinheiro era seu e do irmão, o natural seria o arguido transferir tais quantias para contas tituladas por ambos), ao contexto circunstancial e cronológico em que os factos foram praticados por cada um dos intervenientes, ao conhecimento concreto e à situação de proximidade familiar, profissional e sentimental que existia entre o arguido e o seu irmão, a favor de quem o arguido aturou, aos elementos documentais que comprovam a desproporção das participações sociais que o arguido e o seu irmãos detinham nas sociedades comerciais de que eram sócios, à intencionalidade subjacente a este tipo de condutas quando existem quezílias entre pessoas familiares que nos são próximas que se encontram em processo de divórcio e partilhas e às regras da experiência comum, às próprias declarações de BB e do arguido na parte que em corroboraram a intencionalidade subjacente à atuação do arguido, decidindo assim o Mm.º JIC contrariamente às regras da experiências comum e em violação das regras da valoração e de ónus da prova, incorrendo assim em erro notório na apreciação e valoração da prova indiciária e violou o disposto no art. 127º do CPP e nos artigos 516º e 1724 do Código Civil (v. declarações do arguido prestadas no dia 15.05.2024, com início às 14h26m58s e termo às 14h 56m14s).
22. Analisadas as declarações prestadas pelo arguido, conjugadas com toda a prova documental carreada nos autos, as declarações prestadas pelo seu irmão BB, e analisado o comportamento global do arguido e o circunstancialismo em que os factos foram praticados, tudo apreciado em conjunto e na sua globalidade, somos de entender que o Mm.º JIC incorreu em erro de valoração da prova ao valorar as provas apresentadas pelo arguido em sede de Instrução da forma como o fez, atribuindo-lhe uma maior credibilidade, aceitando-as de forma acrítica, e em violação das regras da experiência comum e das normas legais de valoração da prova que impunham conclusão diversa, tal como o art. 127º do CPP e da presunção legal prevista no artigo 516º Código Civil, que apesar de ilidível, não foi ilidida, como de resto resulta do teor da decisão recorrida, e no disposto no artigo 1724º, do mesmo Código.
23. Outro dos argumentos servidos para justificar a conduta do arguido e o alegado receio de que a ofendida dissipasse os saldos bancários de que era cotitular, que foi invocado pelo arguido, foi o de que a assistente havia, ela própria, efetuado idêntica conduta, pela qual foi acusada e pronunciada por um crime de desobediência, por ter, já após o arrolamento decretado, movimentado saldos de contas bancárias nos mesmos termos, ou seja, em que a conta era titulada pela ofendida, marido e irmão (aqui arguido). Argumento este que foi acolhido pelo Mm.º JIC na fundamentação da decisão de não pronúncia do arguido.
24. Sucede que quanto a este aspeto, ao acolher este argumento trazido pelo arguido e o seu irmão, o Mm.º JIC desconsiderou um pormenor de importante relevo para a apreciação global dos factos, que é o facto de a ofendida tê-lo feito muito tempo depois, cerca de três anos depois de o arguido, mancomunado com o ex- marido da ofendida, terem procedido à movimentação e transferência das quantias mencionadas na acusação pública, e já depois, note-se, de ter sido a ofendida quem tomou a iniciativa de recorrer aos meios judiciais lançando mão da providencia cautelar civil de arrolamento a fim de velar pelos seus direitos, a qual se afigurou infrutífera devido a um lapso que não lhe era imputável, mas sim ao Tribunal de Amarante. Ou seja, a ação da ofendida, além de ter sido muito posterior à do arguido, cerca de três anos depois e pelas razões que aquela explicou em Instrução, foram uma reação à conduta do arguido e depois de um lapso na concretização do arrolamento imputável ao Tribunal.
25. Não menos despiciendo é salientar que por essa mesma conduta da ofendida, foi esta acusada e pronunciada pela prática de um crime, ainda que de diferente natureza – crime de desobediência, atendendo a que a ofendida se encontrava vinculada à decisão de arrolamento, ao contrário do aqui arguido AA tendo aquela tendo sido julgada, ao invés do aqui arguido, que até ao momento tem vivido num pleno clima de impunidade, quer porque nada lhe aconteceu, a não ser a instauração do presente processo crime, tendo esse sentimento de impunidade ficado ainda mais vincado e reforçado com a decisão de não pronúncia de que ora se recorre, tanto mais que apenas bastou ao arguido alegar estar convencido de que o dinheiro era somente dele e do seu irmão (beneficiário direto da conduta do arguido, note-se), cuja testemunha apresentou a fim de corroborar tal versão, sem que nenhuma outra prova tenha apresentado que infirmasse a prova indiciária já recolhida em sede de Inquérito, assente em prova essencialmente documental.
26. Ora, estamos em crer que não basta que o arguido alegue que estava convicto ou de que, no seu entender, aquele dinheiro era só dele e do irmão, tendo antes tais declarações de ter o mínimo de correspondência com a realidade aparente e com a prova carreada (o que não sucedeu), a que acresce ainda a circunstância de tais declarações estarem em total contradição com as regras da experiência comum e com a prova documental coligida nos autos.
27. Na verdade, é o próprio arguido que reconhece que, tal como o seu irmão, está casado no regime de bens de comunhão de adquiridos e que tudo o que tem, isto é, tudo o que é seu, metade é da sua mulher, assim como reconheceu ser sabedor de todo o processo que antecedeu o divórcio e, em particular, da litigiosidade subjacente às partilhas desses bens comuns do ex-casal (do seu irmão e da assistente).
28. Aqui chegados e vistas as declarações do arguido e o factualismo que lhe era imputado na acusação pública, diverge este, fundamentalmente, quanto ao conhecimento do carácter alheio das quantias que subtraiu, o qual ainda hoje não reconhece, e à intenção que lhe é assacada de apropriação dos montantes transferidos.
29. Nesta parte, porém, a versão alternativa apresentada pelo arguido e pelo seu irmão, quanto aos aspetos em dissídio, são incoerentes, inverosímeis e contrárias às regras da lógica e da experiência, não nos merecendo, por conseguinte e salvo melhor entendimento, credibilidade.
30. Na verdade, face à negação da intencionalidade pressuposta pela acusação, foi então o arguido questionado pelo Digno Procurador da República colocado junto do Juízo de Instrução Criminal de ... sobre se aquele tinha ou não consciência de que com a sua conduta impedia a que a ofendida tivesse acesso àquelas quantias, na sua totalidade (já que o arguido as levantou ou transferiu na totalidade), ao que aquele logo admitiu que sim, que “isso tinha” (sic).
31. Nesta parte, começou por afirmar que apenas agiu, com o conhecimento e a autorização do seu irmão, para se “acautelarem” (sic), isto é, para impedirem que a ofendida acedesse a tais quantias a fim de proteger a parte que lhes cabia e no interesse do seu irmão, garantindo a integralidade daqueles saldos bancários. E quando questionado por que razão não admitia que parte desses saldos seria da ofendida, tanto mais que esta era casada em regime de comunhão de adquiridos com o seu irmão, o arguido nunca apresentou uma razão plausível para esse “seu entendimento”, tanto mais que acabou por dizer, a instâncias do Mm.º JIC, que dizia sempre à sua mulher que aquilo que era dele, isto é, que da quota parte que lhe cabia a ele (arguido), metade era da sua mulher, e que quando fizesse contas com o irmão, metade do que era do arguido seria dela (da mulher do arguido), não se compreendo esta dualidade de interpretações e de critérios do arguido pois que se a sua quota parte pertencia, no seu entender e bem, a si e à sua mulher, em partes iguais, então tal raciocínio se deveria aplicar, por maioria de razão, à sua cunhada, a ofendida, que além de ser casada com o irmão do arguido, era também ela própria cotitular da conta.
32. Ademais, a razão invocada pelo arguido é, ela própria, contrária à presunção legal e à proporção de todos os bens, quotas, participações sociais e divisão de lucros praticados pelo arguido e o seu irmão nos negócios que têm em comum e nas sociedades em que são sócios, sendo a testemunha BB o titular da maior parte do capital social das sociedades comerciais (66%), detendo uma posição hegemónica, enquanto o arguido detém apenas 33%.
33. Nas suas declarações o arguido laborou, pois, em completo contra senso e em desacordo com as regras da experiência comum, sendo aquelas incoerentes nos seus próprios termos e, como tal, deveriam ter sido desconsideradas nessa parte, resultando, pois, a nosso ver, das suas próprias declarações, a afirmação da sua intencionalidade, no sentido preconizado pela acusação, da objetividade dos factos que lhe são imputados. Na verdade, e desde logo, há que atentar no timing das condutas do arguido, a primeira realizada apenas uns dias após a decisão que decretou o arrolamento, a qual foi indevidamente notificada aos Bancos pela Secção do Tribunal de Amarante, inviabilizando assim o seu cumprimento e a oportunidade para o arguido praticar os factos que lhe são imputados e que lhe permitiu, como o próprio bem sabe, movimentar a totalidade dos saldos das contas cotituladas por si, pelo seu irmão e pela ofendida.
34. Ora, uma vez que não foram juntas quaisquer provas que ilidissem a presunção da comparticipação igualitária no crédito consubstanciado nos depósitos bancários estabelecida no artigo 516º do Código Civil, sempre teria de presumir-se que 1/3 daqueles saldos pertencia à ofendida, nos termos do art. 516º do Código Civil que estatui que: “Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito.”
35. Por outro lado, mesmo que vingasse a tese do arguido, isto é, mesmo a aceitar-se o pressuposto de quer os saldos bancários pertenciam em partes iguais ao arguido e seu irmão, 50% do arguido e 50% de BB, ainda assim, nos termos do disposto no artigo 1724º do Código Civil, a quota-parte daquele BB (de 50%, na tese do arguido) seria bem comum do casal e, por isso, pertenceria em parte à ofendida (na proporção de metade=, constituindo assim coisa alheia para o arguido.
36. E ao contrário do que alega o Mm.º JIC na sentença recorrida, a circunstância de o arguido ter agido com a autorização e o conhecimento do seu irmão BB não o desresponsabiliza da sua conduta criminosa porquanto não invalida que o mesmo tenha atuado sem a autorização e contra a vontade da ofendida, também ela legítima dona daqueles bens comuns, tendo sido, aliás precisamente esse o propósito criminoso com que o arguido agiu, que mancomunado com o seu irmão, visou subtrair os bens comuns do casal à ofendida a fim de favorecer o seu irmão, em prejuízo daquela, privando a ofendida de aceder e usufruir dos bens comuns e de assegurar o seu arrolamento com vista à posterior partilha de bens comuns no processo próprio, ao coloca-las ou transferi-las para uma conta pessoal sua, exclusivamente titulada por si – cfr. documentos de fls. 97, 99, 108 130 e ss e 140 a 141 – e não titulada por ele e pelo seu irmão, como seria de esperar no caso de as quantias serem de ambos. E depositou-as numa conta só sua precisamente para que a ofendida não lograsse aceder àqueles fundos porque se o nome do seu irmão constasse da conta a ofendida continua a ter direito a metade da quota parte do seu marido por via da comunhão conjugal, por se tratar de um bem comum.
37. É o que resulta precisamente do art. 1724º, do Código Civil, que prevê que: “Fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges;n b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.
38. Dito de outro modo, a afirmada intencionalidade sai ainda reforçada pelo facto de o arguido não se ter limitado a levantar a sua quota parte e a quota parte que cabia ao seu irmão, antes tendo “limpado” todos os saldos das contas bancárias em que o arguido e o seu irmão e também a ofendida eram titulares, bem como, pela conduta posteriormente adotada já que, em momento algum, e contrariamente ao que faria sentido fazer se fosse legítima a sua intenção, devolveu qualquer valor à ofendida, antes manteve as quantias transferidas e subtraídas ao longo de todos estes anos, sem nunca ter devolvido qualquer quantia à ofendida, nem mesmo após ter sido confrontado com os presentes autos e neles ter sido constituído arguido e nessa qualidade interrogado.
39. Quanto ao conhecimento da proibição e punição das suas condutas, é do conhecimento geral que a apropriação de bens alheios (e realça-se que para ser alheia a coisa basta que a mesma seja, em parte, de outra pessoa) é cominada na lei penal como crime, conhecimento de que o arguido comungava, conforme a generalidade das pessoas sabem, não obstante o arguido ter tentado negá-lo em Instrução, procurando, inclusivamente, fazer crer que não sabia que as quantias que levantou eram alheias e negar aquela sua intencionalidade, consciente das consequências que da sua confissão e demonstração lhe poderiam advir.
40. Resumindo, resulta evidente que o arguido sabia, direta e indiretamente, que os 2/3 (dois terços) dos depósitos e aplicações depositados naquelas contas bancárias não lhe pertenciam porquanto integravam o património conjugal do seu irmão e da ofendida, os quais se encontravam em litigio judicial, em processo de divórcio e de partilha de bens. E tudo isto resulta de acordo com as regras da experiência comum e da prova documental carreada nos autos, do contexto temporal e circunstancial em que a subtração ocorreu, e das próprias declarações que o arguido prestou em Instrução.
41. Por conseguinte, o arguido quis movimentar os montantes integrantes dos bens comuns pertença da ofendida e do seu ex-marido, mancomunado com este último como se refere na acusação pública (e conforme o arguido e a testemunha BB admitem ao referirem que foi tudo feito com o prévio conhecimento deste último), retirando- os das referidas contas onde aqueles eram cotitulares, transferindo-os para outras suas contas bancárias (exclusivamente tituladas pelo arguido), assim se apropriando deles e fazendo deles seus, privando a ofendida de assim aceder àqueles fundos, pelo será imperioso concluir, salvo devido respeito por melhor entendimento, que o elemento subjetivo do tipo legal de crime está totalmente preenchido e mais do que suficientemente indiciado.
42. Já no que concerne ao argumento do Mm.º JIC ao defender que também a ofendida, CC, teria cometido o mesmo tipo de condutas em relação a outras contas, e que tal deveria levar a que a mesma também tivesse sido acusada pelo mesmo crime, isto é, pela movimentação das contas à posteriori, pois apesar de pedir o arrolamento das mesmas, movimentou-as (o que não sucedeu), somos de entender que tal argumento olvida dois aspetos essenciais ter em conta na consideração global dos factos ora em análise, a saber: 1) o primeiro é que as movimentações realizadas pela ofendida ocorreram em 2014, conforme bem menciona a decisão instrutória, ou seja, três anos depois das movimentações realizadas pelo arguido, o que significa que a conduta da ofendida nunca poderia servir para fundamentar o receio do arguido e do seu irmão, como faz o Mm.º JIC, para justificar a conduta do arguido desresponsabilizando-o, porquanto quando o arguido realiza as movimentações descritas na acusação pública a ofendida não tinha ainda praticado os factos pelos quais veio a ser acusada e pronunciada (e posteriormente absolvida); e 2) o segundo e o mais significativo é que a acusar-se a ofendida por tais factos estar-se-ia a violar o principio da proibição do “ne bis in idem” porquanto a ofendida, ao contrário do que parece resultar da decisão instrutória, foi acusada e pronunciada no âmbito do Processo nº ..., ainda que por um crime de diferente natureza – um crime de desobediência, atenta a circunstância de a ofendida se encontrar vinculada a respeitar a ordem judicial de arrolamento, que efetivamente desrespeitou, pelos motivos que expressou e explicou em Instrução perante o Mm.º JIC e na sequência cronológica e todo o contexto a que já aludimos supra, isto é, em que a ofendida toma a iniciativa de recorrer aos meios judiciais para fazer valer os seus direitos patrimoniais na sequência do divórcio.
43. Tal argumentação desconsidera por completo o princípio do ne bis in idem, o qual tem consagração expressa no art.º 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual prevê que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, o qual encontra-se aí consagrado por razões de segurança e paz jurídicas, pois que “assume também uma garantia fundamental do cidadão que se traduz na certeza, que se lhe assegura, de não poder voltar a ser incomodado pela prática do mesmo facto” (vide FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância em Processo Penal, p. 218 e 226). O caso julgado pressupõe que seja apreciada “efectivamente a mesma questão, com os mesmos fundamentos ou que os mesmos fundamentos sejam submetidos à sua apreciação tendo em vista o mesmo efeito público.” (v. Ac. TRC de 06.02.2013, relator: Belmiro Andrade, in www.dgsi.pt.). Por outro lado, o referido princípio pressupõe que os elementos sobre os quais o Tribunal é chamado a pronunciar-se sejam idênticos quanto aos sujeitos, aos factos e aos fundamentos do processo já decidido. Verifica- se por isso, a nosso ver, que os factos praticados pela ofendida nunca poderiam ser alvo de investigação ou de julgamento nestes autos por já se encontrarem abrangidos pelo caso julgado do processo em que a ofendida viu tais factos apreciados, com o nº ....
44. Este princípio, estruturante em qualquer Estado de Direito, destina-se a preservar a segurança jurídica (obstando a que uma mesma causa venha a ser julgada mais do que uma vez, com os consequentes riscos de contradição entre decisões) e a proteger os cidadãos contra o arbítrio punitivo do Estado (assim se evitando uma constante perseguição criminal e inexistência de paz jurídica), sendo certo que para se aferir da violação deste princípio é necessário saber quando se está perante o mesmo idem, isto é, o mesmo objeto do processo, pois o caso julgado (para além de efeitos que se prendem com o contraditório e a litispendência) obstaculiza a tramitação de um processo cujo objeto já foi alvo de decisão transitada em julgado, pelo que, nunca poderia a ofendida figurar como arguida nos presentes autos pelas movimentações dos saldos das contas arroladas que a própria efetuou, no ano de 2014, porquanto a mesma foi já julgada por esses factos, contrariamente ao aqui arguido, sendo irrelevante, a nossa ver, a data em que a mesma apresentou queixa contra o aqui arguido, bem como, quem é que diligenciou pela instauração daquele processo crime contra a ofendida, e anda, a data em que a ofendida apresentou a queixa que deu origem aos presentes autos, sendo sim relevante, a nosso ver, a data em que cada uma das movimentações foi realizada (as do aqui arguido, e as da ofendida) para efeitos de perceção do comportamento global de cada um dos intervenientes e a sucessão e desencadeamento de acontecimentos que esses comportamentos motivaram para aferir da intencionalidade subjacente a cada um desses comportamentos, não havendo dúvidas de que foi o arguido quem, primeiramente, e beneficiando de um lapso praticado pelo Tribunal de Amarante, imediatamente após ter sido decretada a decisão que determinou o arrolamento dos bens que integravam o património do casal, subtraiu a totalidade das quantias existentes naquelas contas bancárias “limpando-as”, de forma a que a ofendida a elas não acedesse nem lograsse o seu arrolamento.
45. Finalmente, quanto ao argumento constante da decisão instrutório de que “a ter- se imputado o crime de furto qualificado ao arguido AA, então o seu irmão, BB, também deveria ter sido acusado pelo mesmo ilícito criminal, em coautoria, pois toda a atuação do arguido foi motivada, orientada e decidida em decorrência da ação do seu próprio irmão, BB, como resultou dos depoimentos recolhidos na instrução e não é contrariada pela prova decorrente do inquérito”, diremos apenas que concordamos efetivamente com o raciocínio jurídico argumentativo do Mm.º JIC (sendo aliás, o único ponto em que convergimos com a decisão recorrida) quando aí se refere que também o irmão do arguido, BB, deveria figurar nos autos como arguido e ter sido acusado pela prática do mesmo crime que o arguido AA (furto qualificado). Sucede, porém, que por razões jurídico-formais tal não é possível em virtude de relativamente ao agente BB o procedimento criminal se encontrar prescrito desde novembro de 2021, em virtude de até essa data o dito BB nunca ter sido constituído arguido, tendo já decorrido mais de 10 anos desde a prática dos factos.
46. Consequentemente, e por tudo o exposto, o Mm.º JIC deveria ter pronunciado o arguido AA, pela prática, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 204, nº 2, al. a), por referência ao art. 202º, b), 203º, nº 1, 14º e 26º, todos do Código Penal por assim o impor a prova indiciária recolhida nos autos e em conjugação com a prova produzida em sede de Instrução e com as regras da experiência comum e as regras de valoração e do ónus da pra, as quais evidenciam que estão preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e do tipo subjetivo do ilícito criminal em causa nos autos, tal como descrito na acusação pública.»
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se se mostra incorrecta a decisão de não pronúncia do arguido, por existir prova indiciária recolhida que evidencia que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime imputado na acusação.
A análise da prova recolhida nos autos e a sua relevância na decisão respeitante à potencial responsabilização criminal do arguido não prescinde da apreciação da dinâmica dos acontecimentos e da sua relevância penal na perspectiva da posição de BB, irmão do arguido, e ex-marido da assistente, o que nunca foi feito, pelo menos tomando este facto como contexto fundamental para a avaliação que se impunha realizar.
Na verdade, à data dos factos, ocorridos em 2011, e até 27-11-2015, data da dissolução do casamento por divórcio, a assistente e BB, irmão do arguido, eram casados em regime de comunhão de adquiridos.
No âmbito deste regime, havendo dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns. É uma presunção de comunicabilidade que é estabelecida no art. 1725.º do CCivil.
A assistente nunca invocou que os valores integrados nas contas em causa representassem bens próprios, assumindo desde logo na denúncia que 1/3 pusesse pertencer ao arguido.
Porque a efectiva propriedade dos valores nunca foi verdadeiramente demonstrada nestes autos, vamos colocar a hipótese mais extrema, em benefício da assistente, de que todos os valores das contas eram bens comuns do casal CC e BB, por serem valores resultantes do trabalho – nos termos do disposto no art. 1724.º, al. a), do CCivil, faz parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges.
E depois vamos perguntar: podia ou não BB movimentar a totalidade dos valores depositados nessas contas bancárias? A resposta só pode ser sim.
E se BB o podia fazer também podia autorizar, consentir, que o seu irmão, o arguido AA o fizesse.
Aliás, estando em causa contas bancárias de carácter solidário, como foram caracterizadas nos autos, importa atentar nos ensinamentos de Menezes Cordeiro, in Direito Bancário, 5.º Edição, Almedina, pág. 594, segundo o qual uma conta é solidária «quando qualquer dos titulares possa movimentar sozinho e livremente a conta, exonerando-se o banqueiro pela entrega da totalidade do saldo a quem o pedir». Esta solidariedade «é uma categoria tipicamente bancária: não corresponde, de modo linear, à solidariedade das obrigações, antes traduzindo o regime da movimentação e dos créditos em conta, livremente adotado pelas partes aquando da celebração do contrato de abertura de conta».
Nessa perspectiva, qualquer dos titulares podia ter movimentado a totalidade dos valores depositados.
A questão que se coloca de seguida é se podia BB dispor livremente dos valores movimentados?
E aqui entram em ponderação as regras do casamento com o referido regime de bens quanto à alienação ou oneração de imóveis.
A este propósito determina o art. 1682.º do CCivil que:
«1. A alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece do consentimento de ambos, salvo se se tratar de acto de administração ordinária.
2. Cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes.
3. Carece do consentimento de ambos os cônjuges a alienação ou oneração:
a) De móveis utilizados conjuntamente por ambos os cônjuges na vida do lar ou como instrumento comum de trabalho;
b) De móveis pertencentes exclusivamente ao cônjuge que os não administra, salvo tratando-se de acto de administração ordinária.
4. Quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais.»
A assistente não põe em causa que o dinheiro das contas respeitava a proventos do trabalho do marido, designadamente das empresas de que era proprietário e que administrava, tanto mais que resulta dos autos que foi fixada uma pensão de alimentos à assistente, dando-se como provado nessa acção que a mesma nunca exerceu qualquer actividade profissional ao longo do casamento.
Ora, de acordo com o disposto no art. 1678.º, n.º 2, al. a), do CCivil, sob a epígrafe, “Administração dos bens do casal”, cada um dos cônjuges tem a administração dos proventos que receba pelo seu trabalho.
Daqui resulta que BB podia movimentar livremente as contas em questão e até utilizar a totalidade dos valores ali depositados, com uma ressalva: o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados será levado em conta na sua meação.
Ora, as contas à meação são realizadas com a partilha.
Aliás, o art. 1697.º, n.º 2, do CCivil, determina que sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.
Ou seja, enquanto vigorou o casamento, o que em concreto ocorreu até 27-11-2015, o referido BB tinha a livre administração dos rendimentos do seu trabalho, podendo movimentar e dispor singularmente das quantias monetárias daí decorrentes, depositadas nas contas bancárias em causa, incluindo autorizar terceiros a movimentá-las, sem prejuízo de, uma vez dissolvido o casamento, na partilha, comprovada que estivesse uma utilização daqueles valores que não teve em vista a vida em comum do casal, os mesmos teriam de ser contabilizados como crédito da assistente para efeitos de formação da meação de cada um dos ex-cônjuges.
O regime de bens do casamento não equivale ao de compropriedade, contrariamente ao que se quis fazer crer, tendo regras muito específicas.
Veja-se, por exemplo o disposto no art. 1687.º do CCivil, que, sob a epígrafe “Sanções”, prevê no seu n.º 1 que os actos praticados contra o disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 1682.º, nos artigos 1682.º-A e 1682.º-B e no n.º 2 do artigo 1683.º são anuláveis a requerimento do cônjuge que não deu o consentimento ou dos seus herdeiros, ressalvado o disposto nos n.os 3 e 4 deste artigo[2].
Não se prevê, por isso, a anulabilidade dos actos praticados contra o disposto no n.º 2 do art. 1682.º do CCivil, segundo o qual cada um dos cônjuges tem legitimidade para alienar ou onerar, por acto entre vivos, os móveis próprios ou comuns de que tenha a administração, nos termos do n.º 1 do artigo 1678.º e das alíneas a) a f) do n.º 2 do mesmo artigo, ressalvado o disposto nos números seguintes[3].
Aliás, é particularmente relevante nesta análise perceber o regime de dívidas dos cônjuges, com realidades que se cruzam com os acontecimentos destes autos, e cuja solução não passa pela criminalização das condutas.
Assim, veja-se que qualquer dos cônjuges tem legitimidade para contrair dívidas sem o consentimento do outro (art. 1690.º, n.º1, do CCivil), sendo que estas responsabilizam ambos os cônjuges, independentemente de qual deles a contraiu a dívida, desde que sejam para acorrer aos encargos normais da vida familiar ou em proveito comum do casal e nos limites dos poderes de administração (art. 1691.º, n.º 1, als. b) e c), do CCivil).
E as dívidas que não respeitam os objectivos apontados – encargos normais da vida familiar ou proveito comum do casal – acabam por ser da responsabilidade exclusiva do cônjuge que as contraiu (art. 1692.º, al. a), do CCivil), constituindo-se o outro como credor do património comum no momento da partilha, como já se referiu (art. 1697.º, n.º 2, do CCivil) [4].
As regras expostas nenhuma semelhança encontram, por exemplo, com o regime estabelecido no art. 1408.º do CCivil para a disposição e oneração da quota do comproprietário, onde expressamente se prevê (n.º 2) que a disposição ou oneração de parte especificada sem consentimento dos consortes é havida como disposição ou oneração de coisa alheia.
Salvo o devido respeito, o Ministério Público errou ao impulsionar uma acusação sem atender ao específico regime de bens do casal à data dos factos, que ocorreram na constância do matrimónio, estando em causa – nesta versão que aqui construímos o mais favorável possível à assistente – bens comuns do casal, mas livremente administrados pelo cônjuge marido, BB.
Com este pressuposto, e com o assumido consentimento do marido para a prática dos actos descritos na acusação relativamente à movimentação das contas ali descritas, falece totalmente a intenção do arguido de apropriação para si ou para terceiro, assim como não tem sentido a invocação do carácter alheio da coisa, posto que a conduta do arguido teve a prévia autorização do legítimo proprietário do dinheiro e seu administrador.
Neste sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 18-09-2018, relatado por Luís Gominho no âmbito do Proc. n.º 1910/17.1T9SNT.L1-5[5], aceitando como regra as razões do arquivamento dos autos, segundo o qual «o património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial que, atenta a sua especial afectação, a lei concede um certo grau de autonomia, embora limitada, que pertence a ambos os cônjuges em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela. Os bens comuns dos cônjuges constituem objecto de uma propriedade colectiva ou de mão comum: cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum. Trata-se de um direito à meação, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar. Dos deveres patrimoniais dos cônjuges destacam-se os que respeitam ao exercício dos poderes de administração e de alienação dos bens de cada um ou de ambos os cônjuges, nos termos dos artigos 1678.º e 1683.º do Código Civil. A má administração de bens próprios do cônjuge não administrador ou de bens do casal constitui uma violação desses deveres patrimoniais, nos termos do 1678.º, n.os 1, 2 e 3, Ia parte, do Código Civil. O cônjuge administrador dos bens comuns ou próprios do outro está, em regra, isento da obrigação de prestar contas, face à letra do artigo 1681.º, n.º 1 do Código Civil. Contudo, responde pelos danos causados pelos actos praticados com dolo e em prejuízo do património comum do casal ou do outro cônjuge, nos termos do citado artigo 1681.º, n.º 1, in fine, do Código Civil. A dissolução do casamento determina a cessação da generalidade das relações patrimoniais entre os (ex-) cônjuges, nos termos do artigo 1688.º do Código Civil. Tal implica a partilha dos bens do casal, na qual, em princípio, cada um deles receberá os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns, se os houver, nos termos do artigo 1689.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Na fase da liquidação da comunhão, cada um dos cônjuges deverá conferir ao património comum tudo o que lhe deve: o cônjuge devedor (o que utilizou os bens ou valores comuns) deverá, no momento da partilha, compensar o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum. No caso em apreço, o procedimento criminal terá de forçosamente soçobrar por falta de um dos elementos típicos objectivos que constituem a materialidade do crime de infidelidade: a falta do carácter alheio do bem rectius, o veículo com a matrícula 34... ) administrado pela arguida E."».[6]
No mesmo sentido, vejam-se também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-07-1996, relatado por Andrade Saraiva no âmbito do Proc. n.º 96P003J[7], onde se decidiu que «[n]o património comum conjugal, enquanto a comunhão persistir, as coisas móveis que dela fazem parte não têm a natureza de coisa alheia relativamente a qualquer dos cônjuges, pelo que a retirada de qualquer dela, por um deles, do lugar onde se encontram, sem consentimento do outro, não preenche o tipo legal do crime de furto.»
E também os acórdãos[8] do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-10-2003, relatado por Francisco Marcolino e do Tribunal da Relação do Porto de 16-03-2005, relatado por Élia São Pedro, onde se concluiu pela natureza não alheia de bens integrados no património comum do casal.
A questão, enquanto perdurar a comunhão conjugal, como bem se define no indicado acórdão da Relação de Guimarães, é de natureza cível e não criminal.
Mas tal não significa uma total desresponsabilização penal do agente após a partilha, caso se venha a demonstrar que dissipou intencionalmente património do ex-cônjuge.
Tomemos como exemplo a situação dos autos.
Imaginemos, agora, que no decurso da partilha, após o divórcio, necessariamente, tinha fica demonstrado que o cônjuge marido, BB, havia promovido na pendência do casamento, e para proveito próprio ou de terceiro, que não a mulher, a dissipação dos montantes das contas bancárias identificados na acusação e não as devolvia após instado a fazê-lo.
Neste caso, sendo seguro que tais quantias deviam ser creditadas na meação da ex-mulher, o ex-cônjuge marido, e por via dele o aqui arguido, cometia, não um crime de furto, pois o património sempre esteve ao seu dispor, mas um crime de abuso de confiança, dando-se a inversão do título de posse relativamente a bens da meação da ex-mulher com a dissolução do casamento e sequente partilha de bens.
Este cenário poderia ter ocorrido no caso dos autos, e a ter sido assim o aqui arguido seria responsável na mesma medida em o seria o ex-cônjuge, BB.
Porém, como bem se refere na decisão recorrida, o ex-casal celebrou em 2022 acordo de partilha, onde a assistente declarou mostrar-se ressarcida dos valores integrantes da sua meação, tendo ainda ambos os ex-cônjuges apresentado pedido de levantamento do arrolamento mencionado na acusação por terem celebrado acordo para partilha dos bens comuns e se mostrar inútil a manutenção da providência.
Ou seja, apesar de o ex-casal muito discutir a natureza própria ou comum dos montantes depositados nas contas identificadas na acusação, a verdade é que, com a celebração do acordo de partilha onde a aqui assistente se declarou totalmente ressarcida das quantias que lhe eram devidas, fica por demonstrar que o ex-marido, e por via dele o aqui arguido, se apropriaram de quantias que deveriam compor a meação da assistente com a partilha dos bens após a dissolução do casamento.
Assim, mesmo configurando o cenário mais favorável à assistente quanto à natureza da totalidade dos valores constantes das contas bancárias identificadas na acusação, considerando os poderes de administração do ex-marido BB, o consentimento que prestou à actuação do arguido e o desfecho da partilha após dissolução do casamento, a decisão a proferir em sede de instrução só poderia ser a de não pronúncia.
Improcede, pois, o recurso apresentado.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso do Ministério Público e, em consequência, manter nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).
Notifique.
Porto, 26 de Março de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Nuno Pires Salpico
Amélia Catarino
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Realces a negrito da relatora.
[3] Realce com sublinhado da relatora.
[4] Realce a negrito da relatora.
[5] Acessível in https://jurisprudencia.csm.org.ptlecli/ECLI:PT:TRL:2018:1910.17.1T9SNT.L1.5.9B.
[6] As excepções que se encontram a este entendimento respeitam normalmente ao crime de dano, por destruição de bem que integra a comunhão patrimonial do casal. Mas também aqui não vemos razões para alterar o paradigma enunciado. Por exemplo, destruir voluntariamente um bem comum ou desbaratá-lo numa aposta perdida (a que não se costuma associar qualquer responsabilização criminal) tem exactamente o mesmo efeito sobre o património comum, estando o outro cônjuge habilitado em qualquer dos casos a reclamar o crédito respectivo sobre o restante património comum em caso de partilha.
[7] Acessível in www.dgsi.pt.
[8] Ambos acessíveis in www.dgsi.pt.