ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
LEI ESPECIAL
CONTRADIÇÃO DE JULGADOS
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
REVISTA EXCECIONAL
DUPLA CONFORME
DECISÃO SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário


I. A admissibilidade de recurso de revista ao abrigo do disposto no art. 14º do CIRE com fundamento na contradição de julgados encontra-se dependente da verificação dos pressupostos de que depende aquela contradição.
II. A contradição terá de se verificar entre acórdãos, como resulta da lei e porque nos tribunais superiores a apreciação se encontra deferida aos coletivos.
III. Não ocorre oposição entre acórdãos para efeitos de admissibilidade da revista ao abrigo do disposto no artigo 14.º, do CIRE, se não há identidade nos recortes factuais considerados e entre as questões de direito analisadas.
IV. Estabelecendo o art. l4º do CIRE um regime específico de admissibilidade do recurso de revista em matéria de insolvência, baseado na oposição de acórdãos, o mesmo afasta o regime geral da revista excecional, previsto no art. 672º do CPC.

Texto Integral


Acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Em 18.4.2024, AA e BB intentaram a presente ação requerendo a sua declaração de insolvência, com concessão de exoneração do passivo restante.

Foi proferido despacho pelo Juízo de Comércio de ... que indeferiu liminarmente o pedido de insolvência formulado pelos requerentes, por considerar verificada a exceção de caso julgado.

Não se conformando, apelaram os AA., tendo o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 25.10.2024 (refª ...47), julgado a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.

De novo inconformados, os apelantes interpuseram recurso de revista, formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem, no que ora releva:

1. O Tribunal da Relação de Évora ao julgar, no acórdão recorrido, verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, ao confirmar a decisão recorrida do Tribunal de Primeira Instância que tinha indeferido liminarmente a nova ação de insolvência apresentada pelos Recorrentes, interpretou e aplicou erradamente a Lei.

DA ADMISSIBILIDADE LIMINAR DO PRESENTE RECURSO

2. O acórdão recorrido está em oposição com outros acórdãos proferidos pelas relações, no domínio da mesma legislação, que decidiram de forma divergente as mesmas questões fundamentais de direito, não tendo sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência conforme ao acórdão recorrido (cfr. art.º 14.º, n.º 1 do CIRE).

3. O acórdão ora recorrido está, entre outros, em oposição com:

⎯ o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12/07/2017, no âmbito do processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1 (“acórdão fundamento”) – Doc. n.º 1;

⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Évora em 29/10/2021, no processo n.º 263/21.8T8OLH.E1Doc. n.º 2; e

⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 22/02/2024, no processo n.º 12394/23.5T8SNT.L1.

4. Contrariamente ao acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão fundamento, julgou que quem tenha sido declarado insolvente pode voltar a sê-lo desde que ocorram os factos conducentes a tal situação e independentemente de os créditos e os credores em ambos os processos serem essencialmente os mesmos (cfr. transcrição supra de excerto do acórdão fundamento).

5. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora julgou verificada a exceção de caso julgado tendo em conta a existência de uma decisão anterior de declaração de insolvência dos Recorrentes e, por conseguinte, indeferiu liminarmente o pedido de insolvência apresentado.

6. Por sua vez, os autos subjacentes ao acórdão fundamento correspondem, pelo menos, a uma segunda ação especial de insolvência no âmbito da qual foi proferida uma segunda sentença de declaração de insolvência do devedor, uma vez que o devedor também já tinha sido declarado insolvente no âmbito de uma ação especial de insolvência anterior.

7. Pois bem, no mencionado acórdão fundamento, o Tribunal da Relação de Coimbra refere expressamente que “os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos” (sublinhado e negrito nossos), sendo que esta identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir – consignada no acórdão fundamento – não impediu a nova declaração de insolvência do devedor (cfr. excerto do acórdão fundamento acima transcrito).

8. Da referida contradição entre acórdão recorrido e acórdão fundamento decorre a admissibilidade da revista por via do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do CIRE e, subsidiariamente, da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.

9. Mais se diga que, estando em causa a insolvência e a exoneração do passivo restante dos Recorrentes, sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica (capaz de influir na decisão da causa), seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, donde decorreria, subsidiariamente, a admissibilidade da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.


O tribunal recorrido admitiu o recurso de revista excecional.

A convite da relatora, os Recorrentes juntaram cópia do acórdão-fundamento, com nota de trânsito em julgado.

Por entender não ser o recurso de revista (com fundamento na contradição de julgados), e o recurso de revista excecional (com fundamento na relevância jurídica da matéria em análise), admissíveis, a relatora proferiu despacho nos termos do disposto no art. 655º, nº 1, do CPC, tendo-se os Recorrentes pronunciado no sentido da admissibilidade do recurso de revista, e subsidiariamente, do recurso de revista excecional.

Em 17.2.2025, a relatora proferiu despacho a julgar findos os recursos de revista e de revista excecional interpostos pelos Recorrentes, não conhecendo do seu objeto.

Os Recorrentes reclamaram para a conferência, pedindo que seja revogada a decisão singular e proferido acórdão que aprecie o objeto do recurso de revista apresentado pelos Reclamantes.

Na reclamação, concluem nos seguintes termos:

1. O acórdão objeto do recurso de revista interposto pelos Reclamantes está em oposição com outros acórdãos proferidos pelas relações, no domínio da mesma legislação, que decidiram de forma divergente as mesmas questões fundamentais de direito, não tendo sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência conforme ao acórdão recorrido (cfr. art.º 14.º, n.º 1 do CIRE).

2. Contrariamente ao que foi decidido na decisão singular objeto da presente reclamação, o acórdão objeto do recurso de revista está, entre outros, em oposição com:

⎯ o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12/07/2017, no âmbito do processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1 (“acórdão fundamento”) – Doc. n.º 1, que acompanhou as alegações de recurso de revista;

⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Évora em 29/10/2021, no processo n.º 263/21.8T8OLH.E1Doc. n.º 2, que acompanhou as alegações de recurso de revista; e

⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 22/02/2024, no processo n.º 12394/23.5T8SNT.L1Doc. n.º 3, que acompanhou as alegações de recurso de revista.

3. Contrariamente ao acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão fundamento, julgou que quem tenha sido declarado insolvente pode voltar a sê-lo desde que ocorram os factos conducentes a tal situação e independentemente de os créditos e os credores em ambos os processos serem essencialmente os mesmos (cfr. transcrição supra de excerto do acórdão fundamento).

4. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Évora julgou verificada a exceção de caso julgado tendo em conta a existência de uma decisão anterior de declaração de insolvência dos Reclamantes e, por conseguinte, indeferiu liminarmente o pedido de insolvência apresentado.

5. Por sua vez, os autos subjacentes ao acórdão fundamento correspondem, pelo menos, a uma segunda ação especial de insolvência no âmbito da qual foi proferida uma segunda sentença de declaração de insolvência do devedor, uma vez que o devedor também já tinha sido declarado insolvente no âmbito de uma ação especial de insolvência anterior.

6. No mencionado acórdão fundamento, o Tribunal da Relação de Coimbra refere expressamente que “os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos” (sublinhado e negrito nossos), sendo que esta identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir – consignada no acórdão fundamento – não impediu a nova declaração de insolvência do devedor (cfr. excerto do acórdão fundamento acima transcrito).

7. Ainda que, como refere a Exma. senhora Juíza Conselheira Relatora na decisão singular ora reclamada, o acórdão fundamento se tenha debruçado sobre a questão da exoneração do passivo restante, esta questão pressupõe naturalmente que, no mesmo caso, se tenha previamente decidido que não havia caso julgado quanto à questão da declaração de insolvência, ao contrário daquilo que foi decidido no caso “sub judice”.

8. A questão tratada no acórdão fundamento pressupõe a decisão de inexistência de caso julgado quanto à declaração de insolvência, caso contrário, não se colocaria a questão da exoneração do passivo restante.

9. Estando o pedido de declaração de insolvência acompanhado do pedido de exoneração do passivo restante, as duas questões estão correlacionadas, desde logo, porque sem o deferimento do primeiro, não pode prosseguir o segundo.

10. Além do mais, no caso subjacente ao acórdão fundamento, foi consignado que a factualidade subjacente a ambas as decisões de insolvência era a mesma, e essa similitude não impediu o deferimento do pedido da segunda declaração de insolvência, ao contrário daquilo que foi decidido no acórdão recorrido.

11. Da referida contradição entre acórdão recorrido e acórdão fundamento decorre a admissibilidade da revista por via do disposto no artigo 14.º, n.º 1 do CIRE e, subsidiariamente, da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.

12. E, por fim, estando em causa a insolvência e a exoneração do passivo restante dos Reclamantes, sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica (capaz de influir na decisão da causa), seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, donde decorreria, subsidiariamente, a admissibilidade da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

*

II. A fundamentação da decisão singular para não conhecer do objeto do recurso foi a seguinte:

“…

2. Vejamos, começando por referir que a decisão do tribunal recorrido que admitiu o recurso não vincula este tribunal (art. 641º, nº 5, do CPC).

2.1. O recurso é interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou a decisão do tribunal de 1ª instância que indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência dos AA.

Dispõe o nº 1 do art. 14º do CIRE, na redação introduzida pelo DL nº 79/2017, de 30.06, que “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”.

Do preceito em causa resulta que no processo de insolvência, nos incidentes neste processados e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência (com interesse cfr. o AUJ nº 13/2023, publicado no DR nº 255, Iª série, de 21.11.2023), não é, em regra, admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

Só será admissível o 2º grau de recurso se o recorrente demonstrar que o acórdão recorrido está em oposição com outro (acórdão) proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.

A admissibilidade do presente recurso com fundamento na contradição de julgados encontra-se dependente da verificação dos pressupostos de que depende aquela contradição.

Como se afirmou no despacho de 6.1.2025 (refª ...22), “…, a revista apenas é admissível nos termos do disposto no nº 1 do art. 14º do CIRE, se o recorrente demonstrar que o acórdão recorrido está em oposição com outro (e não com outros) acórdão (e não decisão singular, uma vez que nos tribunais superiores a apreciação se encontra deferida aos coletivos) de alguma das relações ou do Supremo Tribunal de Justiça [1]. Nesta conformidade, apenas releva para apreciar da alegada oposição o invocado acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12.07.2017, no âmbito do processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1, aliás identificado como “acórdão-fundamento” (cfr. art. 672º, nº 2, al. c), do CPC).”, irrelevando qualquer alegada contradição com as decisões singulares indicadas no recurso.

Invocam os Recorrentes que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o referido acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.7.2017, proferido no âmbito do processo nº 8657/16.4T8CBR.C1, quanto à questão de saber a possibilidade de que quem tenha sido declarado insolvente o poder voltar a ser desde que verificados os factos constitutivos da situação de insolvência.

A verificação de uma situação de contradição de acórdãos depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) identidade do quadro factual, (ii) identidade da questão de direito expressamente resolvida, (iii) identidade das normas aplicadas, (iv) carácter determinante da resolução daquela questão para a decisão final, (v) oposição concreta de decisões e (vi) que o acórdão recorrido não tenha acatado a solução adotada em sede de acórdão de uniformização de jurisprudência – neste sentido, cfr. Acs. do STJ de 28.9.2022, P. nº 164/17.4T8BGC-A.G1.S1-B (Ana Paula Boularot), de 2.2.2023, P. nº 32/22.8T8BRG-A.G1.S1-A (Oliveira Abreu), em www.dgsi.pt.

Como se sumariou no Ac. do STJ de 19.12.2023, P. 2297/22.6T8STR.E1.S1 (Ana Resende), em www.dgsi.pt, “I- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias. …”.

No caso em apreço, afigura-se-nos que não se mostra verificada a invocada contradição de julgados.

Não só o quadro fáctico considerado é distinto, como inexiste qualquer identidade das questões fundamentais de direito analisadas nos arestos em confronto.

Afirmam os Recorrentes que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento “decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, a saber a possibilidade de que quem tenha sido declarado insolvente o poder voltar a ser desde que verificados os factos constitutivos da situação de insolvência.”.

Não sufragamos tal entendimento.

No âmbito do acórdão-fundamento estava em causa a eventual verificação da exceção de caso julgado a determinar a não admissibilidade do requerimento de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente, ou seja, estava em causa a admissibilidade, ou não, de um pedido de exoneração do passivo restante apreciado na sequência de (nova) declaração de insolvência da requerente.

Já no âmbito dos presentes autos, está em discussão a possível verificação da exceção de caso julgado a impossibilitar nova declaração de insolvência dos Requerentes.

É, assim, manifesta a inexistência de qualquer identidade entre os quadros factuais considerados nos arestos em confronto, já que a apreciação da verificação da exceção de caso julgado assenta, manifestamente, em pressupostos fácticos distintos.

Da ausência de identidade nos recortes factuais considerados resulta, in casu, a inexistência de qualquer identidade entre as questões de direito analisadas.

Assim, se no âmbito do acórdão-fundamento se discutiu a verificação da exceção de caso julgado para rejeitar liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante no âmbito de nova declaração de insolvência da requerente, já no âmbito destes autos está em causa a verificação da exceção de caso julgado para rejeitar o pedido de (nova) declaração de insolvência formulado pelos requerentes.

Ao contrário do que os Recorrentes afirmam, no acórdão-fundamento não se discutiu “a possibilidade de que quem tenha sido declarado insolvente o poder voltar a ser desde que verificados os factos constitutivos da situação de insolvência”, uma vez que a requerente tinha sido, novamente, declarada insolvente, e o que estava em causa era saber se a rejeição do pedido de exoneração do passivo restante em processo de insolvência anterior fazia caso julgado no novo processo de insolvência.

De facto, no âmbito do acórdão-fundamento conclui-se que “… No caso em apreço, o pedido de exoneração foi rejeitado (liminarmente), não por ocorrência de algumas das causas previstas no art. 238º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas justificativas do indeferimento liminar, mas por conclui existir caso julgado quanto a tal matéria. … No caso em apreço resulta o que foi apreciado para efeitos de admissibilidade do pedido de exoneração do passivo restante foram as circunstâncias impeditivas à admissibilidade liminar do pedido em função da conduta da insolvente, tendo em conta as causas que conduziram à sua declaração da insolvência, a que aludem os art.º 238, nº 1 e) e 186º do CIRE 1. No processo atual a conduta da insolvente tem de ser valorada em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência, pelo que o objeto do processo é diferente (cfr. neste sentido Ac. da Rel. de Évora de 6 de Abril de 2017 …). É certo que os créditos e os credores em ambos os processos são essencialmente os mesmos, mas também é certo que a devedora foi declarada novamente insolvente e o pedido de exoneração reporta-se à nova declaração de insolvência. Ora, como se escreve no citado Ac. da Rel. de Évora, que seguimos de perto “se a lei permite que quem tenha sido declarada insolvente o possa voltar a ser, posto que ocorram os factos conducentes a tal situação, como agora sucedeu, também a insolvente, que assim, voltou a ser declarada há-de poder dispor de todos os mecanismos processuais atinentes ao seu estado, como sejam o de requerer a exoneração do passivo restante outra vez, atenta a sua nova situação. Embora não diga diretamente respeito à questão do caso julgado, afigura-se-nos incongruente face à lei vedar ao insolvente o pedido de exoneração do passivo restante, quando, caso tivesse beneficiado da exoneração, poderia voltar a formular esse pedido ao fim de 10 anos, como decorre da alínea a) do nº 1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” (negritos e sublinhados nossos).

Repete-se que o acórdão-fundamento não se pronunciou sobre “a possibilidade de que quem tenha sido declarado insolvente o poder voltar a ser desde que verificados os factos constitutivos da situação de insolvência”, porquanto tal questão nem sequer se colocava tendo a requerente sido já declarada (novamente) insolvente, apenas estando em causa o pedido de exoneração do passivo restante.

Já no âmbito deste autos, a questão que se colocava era a de saber se se verificava a exceção de caso julgado que determinou o indeferimento liminar do pedido de insolvência formulado pelos requeridos.

E analisando os pressupostos da referida exceção, escreveu-se no acórdão recorrido: “… Atentas as inadmissíveis consequências da tese dos recorrentes, terá de ser outro o critério de aferição da identidade de sujeitos, que atenda às especificidades do processo de insolvência. Para encontrarmos esse critério, teremos de distinguir duas fases no processo de insolvência. A primeira fase tem natureza declarativa, destinando-se a verificar se existe a situação de insolvência invocada e, quando exista, a declará-la. A segunda fase consiste numa execução universal do património do insolvente. Portanto, na fase inicial do processo de insolvência, os credores não são partes, com a única exceção daquele que, eventualmente, tenha requerido a declaração de insolvência do devedor. Ora, para conseguirmos obter um conceito operativo de identidade de sujeitos para o efeito de delimitar as exceções de litispendência e caso julgado, é precisamente na fase inicial do processo de insolvência que teremos de nos concentrar. Haverá identidade de sujeitos sempre que o devedor e, se for o caso, o credor requerente, forem os mesmos nos dois processos. … Sendo assim, verifica-se o pressuposto da identidade de sujeitos. Quer este processo de insolvência, quer o anterior, foram requeridos pelos ora recorrentes, visando a declaração da sua própria insolvência. … O n.º 1 do artigo 3.º do CIRE estabelece que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. É esta a causa de pedir no processo de insolvência: uma determinada situação de insolvência em que o devedor se encontra. Essa situação consubstancia-se num complexo de factos: vinculação do devedor a um determinado conjunto de dívidas vencidas que, atenta a composição e o valor do seu ativo (quando exista), se encontra impossibilitado de cumprir. … Sendo esta a causa de pedir no processo de insolvência, verificar-se-á uma situação de identidade de causas de pedir se, em processos distintos, a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for a mesma, ainda que o valor e a composição do passivo e do ativo (quando haja) apresente, como é quase inevitável, alguma diferença. Já estaremos perante causas de pedir distintas se a situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas pelo devedor for diversa. Isso acontecerá se a primeira situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas tiver sido sanada, nomeadamente com recurso ao mecanismo da exoneração do passivo restante, e, posteriormente, o devedor, mercê da assunção de novo passivo que não consegue cumprir na época do seu vencimento, cair numa nova situação de impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas. … Os recorrentes argumentam que «se encontram em situação de insolvência (na medida em que se encontram impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas), e não estão na mesma situação de há 12 anos atrás quando se apresentaram, pela primeira vez, à insolvência» (conclusão 23). Mais uma vez, não têm razão. A situação de impossibilidade de cumprimento das suas dívidas vencidas por parte dos recorrentes é a mesma que se verificava aquando da sua primeira apresentação à insolvência, em 2012, ainda que a sua situação patrimonial não tenha exatamente os mesmos contornos, o que, por aquilo que acima afirmámos acerca do carácter essencialmente dinâmico daquela, seria, senão impossível, pelo menos extremamente improvável. Ao longo do primeiro processo de insolvência, que apenas foi encerrado em 15.03.2024, nunca os recorrentes deixaram de estar impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas e era nessa mesma situação de insolvência que eles se encontravam quando, em 18.04.2024 (ou seja, apenas um mês e três dias depois), se apresentaram novamente à insolvência. Concluímos, assim, que também se verifica uma identidade das causas de pedir do anterior processo de insolvência e do atual. 2.3. Sendo os sujeitos, o pedido e a causa de pedir deste processo de insolvência idênticos aos do anterior, concluímos, como o tribunal a quo, que se verifica a exceção de caso julgado.” (sublinhados nossos).

É, assim, manifesta a inexistência de identidade entre as questões de direito apreciadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, pelo que não ocorre contradição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade do recurso nos termos do art. 14º, nº 1, do CIRE – cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17.9.2024, P. 62/23.2T8AMT.P1.S1 (Graça Amaral), de 1.10.2024, P. 1415/21.6T8STR-E.E1.S1 (Leonel Serôdio), e de 12.11.2024, P. nº 16969/23.4T8LSB-C.L1.S1 (Rosário Gonçalves), em www.dgsi.pt.

Tendo em consideração que não se mostra verificada a invocada contradição de julgados, não pode o presente recurso ser admitido com base nesse fundamento, ficando prejudicada a análise da verificação da exceção de caso julgado.

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2.2. Por outro lado, o recurso de revista excecional (“por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE”), não é admissível.

Recorde-se que o art. 14º, nº 1, do CIRE, estatui que “No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686º e 687º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.”.

Conforme resulta do preceito transcrito, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos mencionados processos apenas é de admitir quando seja invocada e demonstrada uma contradição entre o acórdão recorrido e outro das Relações ou do Supremo que tenha resolvido a questão essencial de direito de modo diverso, e sem que tal corresponda a jurisprudência uniformizada do Supremo (neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed. atualizada, 2022, pág. 673).

Catarina Serra, em Lições de Direito da Insolvência, 2ª ed., 2021, pág. 97, explica que “A norma do art. 14º, nº 1, limita o direito ao recurso, estabelecendo a regra do duplo grau de jurisdição. O acesso ao terceiro grau de jurisdição não fica completamente vedado mas torna-se mais difícil do que nas situações comuns, o que se deverá, decerto, ao caráter urgente do processo e, mais precisamente, à necessidade de assegurar a rápida estabilização das decisões judiciais”. E na pág. 100, concretiza “Como se viu, a admissibilidade da revista nos casos regulados no art. 14º, nº 1, depende em exclusivo da existência de um conflito entre acórdãos. Uma vez interposta a revista com base neste fundamento específico, ele sobrepõe-se a quaisquer outros, tornando irrelevante a ocorrência prevista no art. 671º, nº 3, do CPC e, por isso, também inútil o instrumento de revista excecional. Quer dizer. Independentemente da dupla conforme, a revista é admissível quando aquele fundamento específico se verifique e inadmissível no caso contrário.”.

Estabelecendo o art. l4º do CIRE um regime específico de admissibilidade do recurso de revista em matéria de insolvência, baseado na oposição de acórdãos, o mesmo

afasta o regime geral da revista excecional, previsto no art. 672º do CPC.

Como se escreveu no Ac. do STJ de 13.9.2023, P. 1998/22.3T8SNT.L1.S1 (Luís Espírito Santo), consultável em www.dgsi.pt, “Dir-se-á ainda que a revista excecional se encontra desde logo afastada pelo regime especialíssimo previsto no artigo 14º, nº 1, do CIRE. Esta disposição legal é totalmente clara e inequívoca ao estabelecer como regra geral, quanto aos processos de insolvência, que “não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação”. O que significa, sem a menor sombra de dúvida, que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação é, em princípio, definitiva e insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujo acesso se encontra dessa forma legalmente vedado. Este modelo consagrado pelo legislador nacional em matéria insolvencial, que se compreende atendendo à necessidade de consolidar com a maior brevidade possível a definitividade do decidido, não permitindo o arrastamento e incerteza dessas decisões, com prejuízo para a segurança e interesse dos diretamente envolvidos, revela o propósito deliberado de tornar fortemente restritivo o regime da admissibilidade de revista e, através dele, do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Por isso mesmo, neste contexto especialíssimo, não faria qualquer sentido, nem reveste lógica, a admissibilidade da revista excecional. Ou seja, sendo a revista excecional uma modalidade da revista normal (e que tem a ver com a limitação em que consiste a dupla conforme nos termos gerais do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil) e encontrando-se vedada a possibilidade de interposição de revista normal (independentemente da constituição da dupla conforme) tal implica inevitavelmente que não seja permitida a interposição da revista excecional, o que, a aceitar-se, afrontaria claramente o equilíbrio deste regime. Na situação sub judice, a recorrente exerceu o seu direito ao recurso nos termos legalmente permitidos, isto é, para o Tribunal da Relação de Guimarães que conheceu o seu recurso de apelação. Tal aresto é, por todos os motivos indicados, definitivo.”.

Neste sentido podem ver-se, além dos acórdãos elencados no acórdão referido (na parte em que reproduz a decisão singular do relator), os acórdãos da 6ª secção do STJ de 9.11.2022, P. nº 13509/20.0T8SNT-D.L1.S1 (Maria Olinda Garcia), de 28.06.2023, P. nº 232/21.8T8RMZ-C.E1.S1 (Maria Olinda Garcia), e de 19.12.2023, P. nº 12494/22.9T8SNT-D.L1.S1 (Barateiro Martins), todos publicados em dgsi.pt, e de 12.12.2023, P. 5656/22.0T8SNT.L1.S1 (Graça Amaral), e de 12.12.2023, P. nº 1458/15.9T8STR-J.E1.S1 (Amélia Alves Ribeiro), não publicados.

Nesta conformidade, o recurso de revista excecional com fundamento no disposto no art. 672º, nº 1, al. a) do CPC (por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito) não é admissível.

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Em face do que se deixa escrito, o recurso de revista (normal) com fundamento na contradição de julgados (entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, em 12.07.2017, proferido no âmbito do processo nº 8657/16.4T8CBR.C1), e o recurso de revista excecional com fundamento na relevância jurídica da matéria em análise, não são admissíveis.”.

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III. Apreciada pelo coletivo a fundamentação constante do despacho singular, subscreve-se a mesma na íntegra.

Os Reclamantes limitam-se a repristinar os argumentos invocados quando foram ouvidos ao abrigo do disposto no art. 655º do CPC, que foram apreciados na decisão singular em termos que se subscrevem, nada de novo aduzindo que ponha em causa a fundamentação adiantada.

Sublinha-se, de novo, que não releva qualquer alegada contradição com as decisões singulares indicadas no recurso – neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, pág. 61, e nota 96.

III. Pelo exposto, acordam em conferência os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª secção) em indeferir a reclamação apresentada pelos Recorrentes, mantendo-se o despacho singular que julgou findos os recursos de revista e de revista excecional interpostos pelos Recorrentes.

Custas do incidente pelos reclamantes - art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

Notifique.

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Lisboa, 2025.03.25

Cristina Coelho (Relatora)

Graça Amaral

Teresa Albuquerque

SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):

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1. Manifestamente que o tribunal recorrido se reporta ao anterior processo de insolvência, não obstante escreva “No caso em apreço”, como resulta do segmento seguinte em que alude ao “processo atual”, por contraposição.