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PROCESSO DE INVENTÁRIO
DECISÃO SURPRESA
CASO JULGADO FORMAL
JUROS DE MORA
Sumário
I – O ónus de impugnação especificada respeita apenas aos factos e não ao direito, porquanto a aplicação deste compete ao tribunal. II – Os créditos emergentes do pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges com bens próprios de um deles só se tornam exigíveis no momento da partilha, pelo que não são devidos juros de mora sobre os correspondentes montantes a contar da data em que se constituíram.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO:
Inconformada com o despacho que, a requerimento do cabeça-de-casal, determinou que o crédito por si reclamado, emergente do pagamento com os seus bens próprios de dívidas comuns do casal, entretanto dissolvido por divórcio, que formou com aquele, posteriormente à data da cessação das relações patrimoniais entre ambos, devia ser relacionado em singelo e não, como pretendia, acrescido de juros moratórios, a interessada AA interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
“A. Vem o presente Recurso interposto do Despacho com a ref. ...47, proferido em 18/09/2024 nos autos do processo supra referenciado, com o qual não se conforma a Recorrente, na parte em que a Mmª Juiz a quo decidiu que “deve o cabeça de casal proceder ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões e despesas bancárias e despesas com o condomínio, tendo por referência a data de 01.04.2013, em singelo”, ou seja, tanto quanto se alcança, sem levar em consideração o valor dos juros calculados à taxa de 4% ao ano peticionados na Reclamação à Relação de Bens e aditamento à mesma de 27/01/2022, e subsequentes retificações constantes do Requerimento de 09/10/2023.
B. Salvo o devido respeito, a Decisão supra transcrita objeto do presente Recurso, constitui uma decisão surpresa, desde logo porque os juros à taxa de 4% ao ano peticionados pela Reclamante não foram impugnados pelo cabeça de casal no momento processualmente oportuno, rectius Resposta à Reclamação à Relação de Bens, nem constitui matéria superveniente de que o douto Tribunal a quo devesse conhecer depois de proferido douto Despacho Saneador, o douto Despacho exarado na Ata da Audiência Prévia de 12/10/2023 e o douto Despacho de 20/11/2023 que, em conjunto, decidiram o Incidente da Relação à Relação de Bens.
C. O segmento da fundamentação do douto Despacho Recorrido consistente em “Questão diversa é a suscitada no sentido de se relacionar crédito como “juros de mora” calculados sobre aquele crédito de compensação, os quais, ressalvando o devido respeito, não constituem qualquer despesa por si incorrida com a satisfação de dívidas comuns do ex-casal“ assenta no pressuposto de que à Reclamante não assiste o direito de ser ressarcida/compensada pelo património comum em virtude de, subsequentemente à data da propositura da Ação de divórcio haver cumprido obrigações pecuniárias inadiáveis da responsabilidade do extinto casal.
D. A sufragar-se tal entendimento, o que com todo o respeito não se concede, locupletar-se-ia o cabeça de casal à custa da Requerida/Reclamante, porquanto esta se viu obrigada a substituir-se àquele no pagamento na proporção de metade do valor das sobreditas prestações decorrentes do mútuo hipotecário para compra de habitação, dos prémios de seguro, comissões e despesas bancárias, e despesas com o condomínio.
E. Não obstante o cabeça de casal não haver, pelo menos até 09/04/2024 (Requerimento ref. ...92) impugnado ou de outra forma sindicado o direito invocado pela Reclamante a haver do património comum o valor dos juros calculados à taxa de 4% ao ano incidente sobre as quantias pela mesma efetivamente despendidas para fazer face ao pagamento das prestações mensais do mútuo hipotecário para compra de habitação, despesas do condomínio, prémios de seguro e demais encargos e despesas atinentes àquele património, tal questão apenas foi pelo mesmo inovatória e extemporaneamente suscitada vários meses após a Decisão da Reclamação à Relação de Bens consubstanciada nos supracitados doutos Despachos de 21/09/2023, de 12/10/2023 e de 20/11/2023, tendo aí ficado definitivamente assente o que haveria de ser relacionado e inscrito na Relação de Bens a juntar aos autos na sequência dos acordos celebrados em sede da predita Audiência Prévia.
F. No citado Requerimento do cabeça de casal de 09/04/2024, e relativamente à questão dos juros de 4% ao ano peticionados pela Reclamante em sede de Reclamação à Relação de Bens e aditamento à mesma de 27/01/2022, persistindo aquele na não impugnação (que, s.m.o., caso então fosse deduzida sempre haveria de ser julgada extemporânea) limitou-se a dizer que:
“Ora, quanto aos juros calculados pela requerida à taxa de 4% ao ano, acredita-se, atento o douto despacho de 21/09/2023, que não foi ordenada a sua inclusão na relação de bens:
“1. Julga parcialmente procedente a reclamação quanto ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões bancárias e despesas de condomínio, tendo por referência a data de 01/04/2013;”
G. Atenta a tramitação do Processo de Inventário de acordo com o regime estabelecido pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, que em tudo a aproxima da tramitação de uma Ação de Processo Comum, e atentos os princípios da concentração, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes, a omissão de impugnação em sede de Resposta à Reclamação à Relação de Bens da petição de juros à taxa de 4% ao ano sobre os montantes despedidos pela Reclamante para pagamento de dívidas, encargos e despesas inadiáveis atinentes ao património comum do extinto casal, acarreta a aceitação por parte do cabeça de casal de tal pretensão (art. 574º, nº 2, do CPC).
H. No item nº 1 da Decisão constante de fls. 17 e 18 do douto Despacho Saneador de 21/09/2023 a Mmª Juiz a quo decidiu “Julgar parcialmente procedente a reclamação quanto ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões e despesas com o condomínio, tendo por referência a data de 01.04.2013“ sem que haja emitido qualquer pronúncia desfavorável sobre a pretensão da Reclamante de ser compensada pelo valor dos juros à taxa de 4% ao ano calculados desde a data em que, com recursos próprios (ou disponibilizados por terceiro, nomeadamente empréstimos bancários), se viu obrigada a satisfazer dívidas vencidas atinentes ao património comum a partilhar.
I. A não satisfação atempada das supracitadas obrigações faria incorrer ambos os elementos do extinto casal em incumprimento, com as inerentes consequências, designadamente o vencimento de todas as prestações devidas no âmbito do contrato e mútuo para compra de habitação, exigibilidade de pagamento ao condomínio das penas pecuniárias previstas no art. 1434º do Código Civil e a eventual execução das demais dívidas do extinto casal ao condomínio.
J. Destarte, e sem prejuízo da operada aceitação pelo cabeça de casal da pretensão da Reclamante de recebimento de juros à taxa de 4% ao ano formulada em sede de Reclamação à Relação de Bens e no aditamento à mesma de 27/01/2022, para além de a Decisão ora recorrida consubstanciar uma Decisão-surpresa proferida depois de decidida a Reclamação à relação de Bens, é também ela nula por mor da ofensa do denominado caso julgado formal.
K. Caso julgado formal que emana dos citados doutos Despachos de 21/09/2023 (Despacho Saneador), 12/10/2023 (exarado na Ata da Audiência Prévia) e 20/11/2023.
L. Sobre as despesas satisfeitas pela Requerida/Reclamante ao condomínio, decidiu o Tribunal a quo a fls. 13 do douto Despacho Saneador onde consignou que:
“Nesta categoria estão as despesas supra enunciadas e peticionadas.
Trata-se de encargos que recaem sobre a propriedade – imóvel – cujos sujeitos passivos são os seus titulares do direito de propriedade, sendo aqueles devidos independentemente do uso e fruição dos imóveis e de quem os usou (salvo estipulação expressa e válida em contrário, que in casu não se verifica, posto que apenas se consignou que a casa de morada de família ficaria atribuída à ali autora até à partilha).
Procede, por isso, nesta parte a reclamação contra a relação de bens.
Nessa perspetiva determina-se relacionação da verba indicada, tendo por referência, não a alegada data de separação (2012) mas a data supra, ou seja, 01.04.2013, devendo a reclamante proceder a reformulação do crédito invocado em conformidade.” (Negrito e sublinhado nossos).
M. A fls. 11 do referido douto Despacho Saneador, a Mmª Juiz a quo consignou:
“Apreciando:
- Valores a aditar:
Considerando que o cabeça de casal aceitou as prestações do contrato de mútuo, dos prémios de seguros e comissões bancárias, devem aqueles constar a respectiva relação de bens, salvaguardando, porém, a data acima consignada, ou seja, 01.04.2013 (e não a alegada data de 12.10.2012).
Para tal deverá a reclamante refazer os respectivos cálculos, em consonância com o acima decidido.”
N. Através do Requerimento com a ref. citius 46738500, de 09/10/2023, a Reclamante prestou esclarecimento de que deverá manter-se inalterado o valor de € 4.158,81 referente ao item A-d) da Reclamação à Relação de Bens que havia sido objeto de aditamento/retificação pelo Requerimento de 27/01/2022. [Cfr. alínea B), maxime item nº 10 do citado Requerimento].
O. Tudo o alegado pela Reclamante nos itens 6. a 11. do citado Requerimento de 09/10/2023 não foi objeto de impugnação pelo cabeça de casal, nem sobre o mesmo se pronunciou desfavoravelmente o douto Tribunal a quo nos Despachos subsequentemente proferidos.
P. Em 11/12/2023 o cabeça de casal enviou aos autos o Requerimento com a ref. Citius 47377135, no qual, sem emitir qualquer pronúncia sobre os juros de 4% ao ano constantes do Requerimento da Reclamante de 09/10/2023, apresentou nova Relação de Bens, ainda assim desconforme com o conjunto de Decisões proferidas no Despacho Saneador, no Despacho exarado na Ata da Audiência Prévia e no Despacho de 20/11/2023.
Q. A fls. 13 do douto Despacho Saneador, a Mmª Juiz a quo consignou, além do mais:
“Trata-se de encargos que recaem sobre a propriedade – imóvel – cujos sujeitos passivos são os seus titulares do direito de propriedade, sendo aqueles devidos independentemente do uso e fruição dos imóveis e de quem os usou (salvo estipulação expressa e válida em contrário, que in casu não se verifica, posto que apenas se consignou que a casa de morada de família ficaria atribuída à ali autora até à partilha).
Procede, por isso, nesta parte a reclamação contra a relação de bens.
Nessa perspetiva determina-se relacionação da verba indicada, tendo por referência, não a alegada data de separação (2012) mas a data supra, ou seja, 01.04.2013, devendo a reclamante proceder a reformulação do crédito.”
R. Os supra transcritos segmentos do douto Despacho Saneador inculcam a ideia de que, não tendo o cabeça de casal impugnado os supracitados juros de 4% ao ano peticionados na Reclamação à Relação de Bens e no aditamento a esta de 27/01/2022 conjuntamente com a petição de relacionação no passivo do valor do respetivo capital, tal foi deferido (“Considerando que o cabeça de casal aceitou as prestações do contrato de mútuo, dos prémios de seguros e comissões bancárias, devem aqueles constar da respectiva relação de bens, salvaguardando, porém, a data acima consignada, ou seja, 01.04.2013“) devendo, porém, ser reformulados os cálculos apresentados pela Reclamante reportados ao período iniciado em 01/04/2013, por ser a data da propositura da Ação de divórcio, e não ao ano de 2012 (data da separação do casal).
S. Em cumprimento do ordenado no douto Despacho Saneador, em 09/10/2023 a Reclamante enviou aos autos o citado Requerimento com a ref. ...00 no qual, tomando por base o período iniciado com a propositura da Ação de divórcio em 01/04/2013 reformulou os cálculos que constavam da Reclamação à Relação de Bens e aditamento de 27/01/2022.
T. Devida e regularmente notificado do teor integral do citado Requerimento, o cabeça de casal silenciou-se, nada tendo impugnado ou requerido nos autos.
U. Até 09/04/2024, em nenhum dos Requerimentos enviados aos autos pelo cabeça de casal em 11/10/2023, 25/10/2023, 14/11/2023 e 11/12/2023, o mesmo contraditou o referido Requerimento ref. ...00, de 09/10/2023, nomeadamente no concernente ao apuramento do montante dos juros sub iudicio à taxa de 4% ao ano.
V. Em 20/11/2023 foi proferido o douto Despacho com a ref. citius 187738346 no qual a Mmª Juiz a quo, ordenou “Notifique-se o cabeça de casal para diligenciar pela junção de nova relação de bens corrigida de acordo com o decidido em resultado de incidente de reclamação à relação de bens”.
W. Através do Requerimento com a ref. citius 47377135, de 11/12/2023, o cabeça de casal, extemporaneamente (art. 149º, nº 1, do CPC) exerceu o contraditório sobre parte do Requerimento da Reclamante de 09/10/2023, com a ref. citius 46738500 e procedeu à junção aos autos de nova Relação de Bens que, apesar de excluir os bens móveis adjudicados à Requerida, o veículo automóvel e a quantia de € 7.000,00, conforme acordado na Audiência Prévia de 12/10/2023, alterou também a primitiva Relação de Bens e, no que tange ao Passivo, apenas inscreveu as verbas e os montantes que entendeu, ao arrepio quer do douto Despacho Saneador, quer da Reclamação à Relação de Bens (em cuja resposta não impugnou, designadamente, o invocado direito da Reclamante aos juros vencidos e vincendos sobre as diferentes parcelas de capital aí indicadas) e do aditamento à mesma através do Requerimento de 27/01/2022 (que igualmente não impugnou).
X. Ao predito Requerimento do cabeça de casal de 11/12/2023, respondeu a Requerida/Reclamante através do Requerimento com a ref. citius 47571916, de 05/01/2024, tendo aí i) invocado a absoluta extemporaneidade daquele Requerimento na parte atinente ao exercício do contraditório sobre o Requerimento da Reclamante de 09/10/2023; ii) impugnado a matéria inovatoriamente carreada para os autos pelo cabeça de casal dois anos após o oferecimento da Reclamação à Relação de Bens; e iii) impugnado a nova Relação de Bens, desde logo por desconforme com a Decisão vertida a fls. 17 do douto Despacho Saneador.
Y. No apontado Requerimento com a ref. citius 48551192 enviado pelo cabeça de casal aos autos em 09/04/2024, o mesmo tentou suprir a falta de impugnação da Reclamação à Relação de Bens conforme avulta do seu Requerimento ref. ...43, de 24/01/2023, aí suscitando pela primeira vez após a citada Reclamação à Relação de Bens, a questão do direito invocado pela Reclamante a receber do património comum o valor dos juros de 4% ao ano sobre as quantias pela mesma efetivamente pagas após 01/04/2013 para cumprimento inadiável de obrigações vencidas atinentes àquele património.
Z. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, manifesto é que o momento próprio para o cabeça de casal se pronunciar sobre os juros à taxa de 4% que a Reclamante inscreveu na Reclamação à Relação de Bens de 29/12/2021 e aditamento de 27/01/2022, e subsequentes retificações conforme Requerimento de 09/10/2023, era o do oferecimento da Resposta à Reclamação, pelo mesmo realizada em 24/01/2023.
AA. Sempre com o devido respeito, encontrando-se decidida, com trânsito em julgado, a matéria da Reclamação à Relação de Bens, designadamente na parte referente ao crédito da Reclamante sobre o património comum do casal atinente aos montantes pela mesma suportados para efeitos de cumprimento do plano prestacional do crédito à habitação, pagamento das despesas do condomínio e pagamento dos prémios de seguro, manifesto é que, nessa parte, sempre o Despacho proferido em 05/03/2024 haveria de ser considerado nulo por violação da autoridade do caso julgado formal.
BB. No citado douto Despacho de 05/03/2024 a Mmª Juiz a quo ordenou tão-só a notificação do cabeça de casal para:
“No mais, considerando o estado dos autos e tendo em vista a celeridade processual, antes de mais, convida-se o cabeça de casal a pronunciar-se quanto aquelas (despesas de condomínio, prémios de seguro e comissões bancárias), considerando os cálculos juntos pela interessada/requerida no requerimento que antecede.” (Negrito e sublinhado nossos).
CC. Afigura-se, pois, de meridiana clareza que, a Mmª Juiz a quo apenas ordenou a notificação do cabeça de casal para se pronunciar sobre a exatidão ou não dos montantes referentes a despesas de condomínio, prémios de seguro e comissões bancárias apresentados pela Requerida/Reclamante no seu Requerimento (“que antecede”), com a ref. citius 47571916, de 05/01/2024, enviado aos autos no exercício do direito ao contraditório sobre o Requerimento com a ref. citius 47377135, junto aos autos pelo cabeça de casal em 11/12/2023, contendo uma nova Relação de Bens.
DD. De onde decorre que, ressalvado sempre o devido respeito por diverso entendimento, não pode o cabeça de casal, atento, além do mais, os princípios concentração, da preclusão e da auto-responsabilidade das partes, prevalecer-se da citada notificação para vir agora tentar remediar as consequências da sua inércia (admissão, nos termos do art. 574º, nº 2, do CPC, da factualidade vertida na Reclamação à Relação de Bens) por não haver no momento processualmente oportuno (oferecimento da Resposta à Reclamação) impugnado, designadamente, o direito da Reclamante a haver do património comum o valor dos apontados juros de 4% ao ano.
EE. Ademais, caso hipoteticamente se entendesse que na parte final do douto Despacho proferido em 05/03/2024 estaria implícito o convite do cabeça de casal a pronunciar-se também sobre os supracitados juros à taxa de 4% ao ano, sempre haveria de ter-se tal Despacho, nessa parte, em contradição com os anteriormente proferidos e, nessa medida, haveria de ceder perante estes (art. 625º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da sua nulidade por ofensa do caso julgado formal.
FF. Decorre do douto Despacho de 24/05/2024 a obrigação do cabeça casal juntar aos autos “nova relação de bens corrigida em conformidade com o decidido nos autos“ e, nesse sentido, haverá de incluir os montantes peticionados a título de compensação de juros compensatórios de 4% ao ano.
GG. Em face da Lei e da Jurisprudência dominante, ainda que, hipoteticamente, o douto Despacho recorrido não se encontrasse ferido de nulidade por constituir uma Decisão-surpresa e violar a autoridade do caso julgado formal, sempre haveria de ser considerada errada a Decisão nele vertida consistente em “Nessa sequência, em consonância com o decidido “deve o cabeça de casal proceder ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões bancárias e despesas com condomínio, tendo por referência a data de 01.04.2013, em singelo.“ (Negrito nosso).
HH. Outrossim, em face do disposto nos arts. 1689º e 1697º, nº 1, ambos do Código Civil, e atenta a estrutura do processo de Inventário aprovado pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, é no Processo de Inventário que deve operar-se a compensação do crédito da Reclamante sobre o património comum, inexistindo in casu razão alguma para a eventual instauração de Ação de Processo Comum com vista ao ressarcimento do crédito da Reclamante na parte atinente aos peticionados juros de 4% ao ano. (Por todos, douto Ac. do TRL de 04/04/2024, Proc. nº 1583/23.2T8PDL.L1-6 e douto Ac. do TRP de 24/03/2022, proc. nº 1232/20.0T8PNF.P1).
II. Com o proferimento do douto Despacho de 24/09/2024, na parte ora recorrida, o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente, inter alia, as seguintes normas legais:
c) Do Código Civil:
Art. 1689º, 1697º, nº 1, e 473º
d) Do Código de Processo Civil:
Arts. 574º, nrs. 1 e 2; 588º, nº 1 a contrario, 1104º, nrs. 1, alínea e) e 2; e 1106º,
nº 1.
JJ. A correta interpretação e aplicação das supracitadas normas legais impunha que o Tribunal a quo houvesse rejeitado o Requerimento junto aos autos pelo cabeça de casal em 17/06/2024 ou considerado não escrito tudo o que nele se contém e, além disso, mantivesse incólume o decidido a fls. 17 do douto Despacho Saneador e nos doutos Despachos de 12/10/2023, 20/11/2023 e 24/05/2024, todos transitados em julgado”.
Pugna, com conformidade, pela revogação da decisão recorrida na parte em que ordenou que o crédito por si reclamado sobre o património comum, emergente do pagamento com os seus bens próprios de dívidas comuns, devia ser relacionado pelo cabeça-de-casal em singelo e a sua substituição por outra que determine que tal crédito deve ser acrescido dos juros, calculados à taxa de 4% ao ano, desde a data em que foi efetuado cada um dos pagamentos que o integram, tomando por referência a data da propositura da acção de divórcio.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por despacho do relator, o recurso foi julgado improcedente.
Novamente irresignada, a recorrente reclamou para a conferência, formulando as seguintes conclusões:
“Pelas razões supra invocadas, não se conforma a Recorrente com a Decisão Sumária proferida em 31/01/2025.
O Processo de Inventário subsequente ao divórcio, regulado pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, é a sede própria para a liquidação de todas as responsabilidades de pendor creditício entre os ex-cônjuges, tal como emana das normas dos arts. 1689º, nº 3 e 1697º, nº 1, ambos do Código Civil.
Sendo a tramitação processual do Processo de Inventário instituído pela Lei nº 117/2019, de 13 de setembro, muito próxima e em quase tudo equivalente ao da Ação de Processo Comum, atentos os princípios da concentração, da auto-responsabilidade das partes e da preclusão, a sede própria para contraditar/impugnar a Reclamação à Relação de Bens é a Resposta prevista no art. 1105º, nrs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, a oferecer no prazo de 30 dias.
O Requerimento que o cabeça de casal enviou aos autos em 17/06/2024 é manifestamente extemporâneo e, como tal, sobre o mesmo deveria ter recaído Despacho de rejeição/desentranhamento.
Extemporâneo foi, também, o Requerimento que o cabeça de casal, com 41 dias de atraso para além do prazo de que dispunha (art. 149º, nº 1, do CPC) enviou aos autos em 11/12/2023, na parte em que se pronunciou sobre a Reclamação (retificada) à Relação de Bens.
A questão dos juros peticionados pela Requerida Recorrente em sede de Reclamação à Relação de Bens e subsequente aperfeiçoamento conforme ordenado no douto Despacho Saneador, não foi tempestivamente objeto de impugnação pelo cabeça de casal (sobre tal matéria, o extemporâneo Requerimento do cabeça de casal de 11/12/2023 é totalmente omisso).
A norma do art. 1697º, nº 1, não deve ser interpretada no sentido de que do Processo de Inventário subsequente ao divórcio deva estar arredado o acerto de contas entre os ex-cônjuges, designadamente na parte em que o património comum a dividir é responsável pelo ressarcimento de juros compensatórios ao ex-cônjuge que com bens próprios ou obtidos de empréstimo, nomeadamente dinheiro, pagou dívidas comuns vencidas e de satisfação inadiável”.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias são as seguintes:
- Se a decisão recorrida constitui uma “decisão surpresa”, violadora do princípio do contraditório, e se tal produz nulidade processual atendível;
- Se a decisão recorrida é contraditória com anteriores decisões proferidas no processo, devendo ceder perante estas nos termos do artigo 625º do Código de Processo Civil, sem prejuízo da sua nulidade por ofensa do caso julgado formal;
- Se, por não o ter impugnado na resposta à reclamação contra a relação de bens, ficou precludida a possibilidade de o cabeça-de-casal questionar ulteriormente o crédito de juros que a recorrente ali invocou;
- Se a decisão recorrida fez errada aplicação do direito, nomeadamente por ser no processo de inventário que “deve operar-se a compensação do crédito da reclamante sobre o património comum”, inexistindo fundamento para a remeter para os meios comuns na parte atinente aos peticionados juros de 4% ao ano.
*
III. FUNDAMENTOS
Os factos
As incidências fáctico-processuais com relevo para a apreciação do recurso mostram-se devidamente explicitadas no despacho recorrido, proferido na sequência de um requerimento do cabeça-de-casal, de que a ora recorrente foi devidamente notificada e a que oportunamente respondeu.
Eis o seu teor: “Requerimento de 17.06.2024: Por requerimento junto aos autos, o cabeça de casal, tendo em vista acautelar a apresentação de uma relação de bens que venha a suscitar nova reclamação da Interessada/Requerida, veio solicitar que o Tribunal se pronuncie quanto à inclusão dos juros nas verbas a inscrever no passivo da relação de bens, posto que a questão que afasta as partes prende-se, sobretudo, com a inclusão dos valores das verbas relativas ao passivo (prestações bancárias, prémios de seguros, despesas bancárias e condomínio) em singelo (tal como defende o cabeça de casal) ou integrando nesses valores a soma dos juros (conforme pugna a Requerida). Por despacho de 21.09.2023 foi decidido “Julgar parcialmente procedente a reclamação quanto ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões bancárias e despesas com condomínio, tendo por referência a data de 01.04.2013”. O que dizer? Tal qual resulta dos autos, mormente do despacho de 21.09.2023, o objeto do inventário (e consequente partilha) é composto por todo o património comum, ativo e passivo, dos ex-cônjuges, incluindo, pois, as dívidas comuns/comunicáveis. Por outras palavras: deve relacionar-se o passivo que onere o património comum, ou seja, o que seja da responsabilidade de ambos os ex-cônjuges (cf. artigos 1691.º, n.ºs 1 e 2 e 1695.º n.º 1, ambos do CC). Ora, conforme assumido e decidido nos autos, os encargos e despesas com o património comum – p.e. prestações de amortização de empréstimos, IMI e seguros, comissões bancárias relativas a imóveis comuns, despesas de condomínios, entre outros - constituem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges. Sendo uma dessas dívidas paga apenas por um dos cônjuges após a cessação das relações pessoais e patrimoniais entre eles, o que a solveu torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, sendo este crédito exigível no momento da partilha dos bens do casal e, consequentemente, pago pela meação do cônjuge devedor no património comum, nos termos dos artigos 1697.º, n.º 1 e 1689.º, n.º 3, ambos do CC. Isto é, sufraga-se o entendimento de que o pagamento de dívidas comuns do casal por um dos cônjuges, com recurso a bens próprios seus, posteriormente à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, dá origem a um crédito do cônjuge pagador sobre o outro cônjuge, que deve ser relacionado no processo de inventário instaurado em consequência do divórcio (neste sentido, Ac. do TRL, de 14-01-2020, Processo n.º 1120/09.1TMLSB-C.L2-1, disponível em www.dgsi.pt). Questão diversa é a suscitada no sentido de se relacionar crédito como “juros de mora” calculados sobre aquele crédito de compensação, os quais, ressalvando o devido respeito, não constituem qualquer despesa por si incorrida com a satisfação de dívidas comuns do ex-casal. Veja-se entre outros, seguido de perto, acórdão da Relação de Lisboa de 09.05.2024, proferido no proc. nº 424/17.4T8AMD-A.L1-2, relator: Inês Moura, disponível e, www.dgsi.pt. Atente-se que, entendimento diverso importaria relacionar um passivo em que não incorreu, muito menos por conta de qualquer dívida de responsabilidade de ambos os ex-cônjuges. O inventário e consequente partilha dos bens comuns visa salvaguardar e repor um certo equilíbrio patrimonial posteriormente à dissolução do casamento, não devendo ser visto como um mecanismo de enriquecimento. Visa partilhar e repartir passivo que já existe e não gerar novas dívidas, corrigindo-se os desequilíbrios entre os patrimónios dos ex-cônjuges decorrentes da satisfação, por apenas um deles, após o divórcio, de dívidas que são (e deveriam ser) encargos de ambos, em partes iguais. Conforme estabelece o n.º 1 do artigo 1697.º do CC o cônjuge “torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer”, devendo tal crédito ser relacionado nessa exata medida (o que, como se compreende, não inclui juros de mora). Nessa sequência, em consonância com o decidido “deve o cabeça de casal proceder ao aditamento de crédito da reclamante sobre o património comum, quanto às prestações decorrentes do mútuo, dos prémios de seguro, comissões bancárias e despesas com condomínio, tendo por referência a data de 01.04.2013”, em singelo. Notifique. D.N. (…)” O direito
Inconformada com a decisão sumária proferida pelo relator, a recorrente, na reclamação para a conferência entretanto deduzida, enfatiza que o cabeça-de-casal não impugnou, na resposta à reclamação contra a relação de bens, os juros compensatórios por si peticionados sobre os montantes que, com os seus bens próprios, despendeu na satisfação de dívidas comuns, pelo que ficou precludida a possibilidade de o fazer ulteriormente, como fez no requerimento sobre que incidiu a decisão recorrida, e bem assim que o artigo 1697º, n.º 1 do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de excluir o direito àqueles juros.
Vejamos.
Muito embora a reclamação não abranja todas as questões suscitadas no recurso, entendemos que não podemos deixar de as apreciar, até porque não se mostra expressamente aceite a decisão singular proferida relativamente a qualquer uma delas.
Sustenta a recorrente que a decisão recorrida constitui uma “decisão surpresa”, o que produz nulidade processual, que expressamente argui.
Prescreve o artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil (doravante CPC) que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Consagra-se, assim, a proibição das “decisões surpresa”, o que, como sublinha Abílio Neto[1] , “constitui uma garantia cuja manifestação predominante se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão”.
No entanto, como se advertiu, entre muitos outos, no acórdão da Relação do Porto de 02/12/2019 (processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1), relatado por Eugénia Cunha e disponível, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt, “O dever de audiência prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de virem a integrar a base da decisão (…)”.
Tem-se igualmente por líquido que a preterição do contraditório, quando exigível, é susceptível de produzir nulidade processual ao abrigo do disposto no artigo 195º do CPC, por poder influir no exame ou na decisão da causa.
Por outro lado, não obstante a máxima tradicional “das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se”, de acordo com a qual só podem ser conhecidas em recurso nulidades processuais cobertas por despacho que sobre elas se tenha pronunciado, a não ser que sejam do conhecimento oficioso, não pode olvidar-se que, como já alertava o Professor Alberto dos Reis[2] a propósito dos casos em que “por trás da irregularidade cometida está um despacho, mas este não contêm uma pronúncia expressa sobre a irregularidade”, deve ter-se em atenção que, “além do julgamento expresso, há o julgamento implícito”, ou seja, a “decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos”.
Quando assim suceda, a nulidade corporiza-se na decisão e só se manifesta com a notificação desta. Por isso, a impugnação da decisão é incindível da arguição da nulidade, devendo considerar-se tempestiva a arguição desta nas alegações de recurso – decidiu-se nesse sentido nos acórdãos desta Relação de 23/06/2016 (relator António Beça Pereira) e de 16/02/2017 (relatora Isabel Silva) e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/12/2016 (relator Luís Cravo).
Ora, no caso vertente, resulta das peças processuais que instruem o recurso que a recorrente foi devidamente notificada do requerimento do cabeça-de-casal que esteve na origem da decisão sob censura, junto aos autos no dia 17/06/2024, e que exerceu quanto a ele o competente contraditório por requerimento apresentado no dia seguinte, pelo que, manifestamente, não existe qualquer “decisão surpresa”.
Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.
E igual sorte merece o segundo.
Com efeito, compulsada a sucessão de despachos proferidos pela Senhora Juiz a quo na sequência da reclamação contra a relação de bens e dos múltiplos requerimentos que a esse propósito a reclamante, ora recorrente, apresentou no processo, não se extrai de nenhum deles, expressa ou implicitamente, que tivesse sido reconhecido a esta o direito de exigir do seu ex-cônjuge, aquando da partilha do património comum do casal, juros de mora sobre os montantes despendidos no pagamento de dívidas comuns posteriormente à cessação das relações patrimoniais entre ambos.
De resto, a própria recorrente admite que em momento algum o tribunal fez qualquer referência ao “cômputo dos juros” por si reclamados, nomeadamente no despacho saneador, muito embora sustente que alguns “segmentos” desse despacho, a par da tramitação subsequente, “inculcam a ideia de que (…) tal foi deferido”, o que, salvo o devido respeito, constitui uma extrapolação ilegítima.
Sendo assim, não existe qualquer ofensa do caso julgado, em nenhuma das suas acepções (artigos 619º e 620º)[3], sendo certo que a disciplina contida no artigo 625º sempre seria inaplicável ao caso, porquanto regula as situações em que, no âmbito de um processo, coexistem duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão (n.º1) ou sobre a mesma questão concreta da relação processual (n.º 2), ambas transitadas em julgado.
É, outrossim, de salientar, já a propósito da terceira questão suscitada, que o cabeça-de-casal nunca relacionou os ditos juros e que a ausência de pronúncia a esse respeito não tinha efeitos cominatórios, por se tratar de matéria de direito, nem precludia a possibilidade de suscitar ulteriormente a questão, por não ter sido apreciada no momento oportuno.
Com efeito, o ónus de impugnação especificada restringe-se aos factos e não ao direito, já que, como sublinhava o Professor Anselmo de Castro[4], a aplicação do direito é “tarefa do tribunal, não adstrito às alegações das partes”.
Resta o erro de direito que a recorrente imputa à decisão.
Mais uma vez sem razão.
Desde logo, porque, lida e relida tal decisão, não se vislumbra que a recorrente, como sustenta, tenha sido remetida para os meios comuns na parte atinente aos juros de mora reclamados sobre as quantias despendidas no pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, mas, tão só, que o crédito da recorrente sobre o património comum, emergente do pagamento de tais dívidas, devia e deve ser relacionado em singelo para efeitos da compensação a efectuar no âmbito do presente inventário.
Depois, porque se fez adequada aplicação do direito.
Explicitando.
Como é sabido, na constância do casamento vigora o regime da inexigibilidade dos créditos do património comum sobre qualquer um dos cônjuges e destes sobre o património comum e entre si.
Por outro lado, a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, coincidente, por regra, com a dissolução do vínculo conjugal, não determina a extinção do património comum, que persiste até à liquidação e partilha.
E é precisamente por isso que, salvo se vigorar o regime de separação – caso em que, obviamente, não existe património comum –, só no momento da partilha se tornam exigíveis os créditos emergentes do pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges com recurso a bens próprios de um deles, como prescreve expressamente a parte final do n.º 1 do artigo 1697º do Código Civil[5][6].
Como observam Pires de Lima e Antunes Varela em comentário a esse preceito[7], citando o Professor Braga da Cruz, “Há toda a vantagem (…) em adiar para o momento da partilha do casal, sempre que tal seja possível, a exigibilidade das dívidas entre os cônjuges, que pode ser fonte de dissenções ou desentendimentos conjugais, quando admitida antes disso. Em segundo lugar, a atribuição de imediata exigibilidade a estas dívidas entre os cônjuges equivaleria a atribuir-lhes uma exigibilidade a todo o tempo, já que, entre cônjuges, não pode correr a prescrição, nem aquisitiva nem negativa (…) e dessa maneira, colocar-se-ia nas mãos do cônjuge credor um meio fácil – a ameaça de cobrança imediata da quantia em dívida – de tutelar economicamente a actividade do cônjuge devedor”.
Não sendo exigíveis anteriormente, nomeadamente no decurso do inventário instaurado para pôr termo à indivisão, os aludidos créditos devem ser relacionados em singelo[8], inexistindo qualquer fundamento legal para, como pretende a recorrente, contabilizar juros de mora desde a data em que se constituíram – nesse sentido acórdão da Relação de Lisboa de 09/05/2024 (processo n.º 424/17.4T8AMD-A.L1-2), relatado por Inês Moura, aliás citado na decisão recorrida, em cujo sumário se escreveu que “Não há um crédito de juros compensatórios, no correspondente ao valor dos juros de mora à taxa legal, do cônjuge que fez o pagamento de dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges num momento em que já cessaram as relações patrimoniais entre eles, na medida em que o legislador não o veio prever, como o faz noutras circunstâncias, antes regulando expressamente no art.º 1697.º do C.Civil os termos em que deve ocorrer a compensação ao cônjuge que com o seu património suportou os encargos ou dívidas comuns”.
Face ao exposto, entendemos que é de manter a decisão anteriormente proferida pelo relator.
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IV. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam, em conferência, os juízes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Guimarães em desatender a reclamação apresentada e, em consequência, manter a decisão singular anteriormente proferida pelo relator.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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Guimarães, 20 de Março de 2025
João Peres Coelho
Relator
Maria João Marques Pinto Matos
1ª Adjunta
Susana Raquel Sousa Pereira
2ª Adjunta
[1] “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª edição, página 18. [2] “Comentário ao Código de Processo Civil”, volume 2, página 509 e seguintes. [3] Sendo certo que nunca estaria em causa a figura do caso julgado formal, decorrente, como salientava o Professor Antunes Varela em “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, página 307, da “repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo”, mas antes a figura do caso julgado material, decorrente de anterior decisão sobre a “relação material ou substantiva litigada”. [4] Em “Direito Processual Civil Declaratório”, volume III, página 209. [5]Solução que também é aplicável à hipótese inversa, regulada no n.º 2 do mesmo inciso legal, ou seja, a de por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges terem respondido bens comuns. [6]Sendo de realçar que no caso que nos ocupa está em causa o pagamento de dívidas comuns do casal (prestações de amortização de empréstimos, impostos municipais sobre imóveis, seguros, comissões bancárias e despesas de condomínio relativas a imóveis comuns) por parte da recorrente, com recurso aos seus bens próprios, posteriormente à data da cessação dos efeitos patrimoniais do casamento, e não o pagamento de dívidas que, embora atinentes aos bens comuns do casal, tenham sido voluntariamente contraídas pela recorrente após aquela data, e, como tal, sujeito a um regime diferente. [7] Em “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª edição, página 354. [8] Poderia, quando muito, equacionar-se a actualização dos montantes correspondentes em função da depreciação monetária, como defende Cristina Dias, em “Responsabilidade por Dívidas e Compensação Entre Patrimónios”, estudo publicado na Revista Electrónica de Direito, Junho de 2020, n.º 2 (vol.22), página 30.