NULIDADE
NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
TRADUÇÃO DE NOTIFICAÇÕES
NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


Tendo o arguido, de nacionalidade estrangeira, depois da acusação mas antes da remessa do processo para tribunal, apresentado um requerimento em que invocou a existência de nulidade processual por falta de nomeação de intérprete e de tradução das notificações feitas pelo órgão de polícia criminal, e tendo levantado a mesma questão no julgamento, quer nas exposições introdutórias quer nas alegações orais, o tribunal tinha de apreciar essa questão incidental na sentença.
Ao omitir essa apreciação, o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, o que determina a nulidade da sentença, prevista no artigo 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Acórdão decidido em audiência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Sentença proferida em 20mai2024, em que foi condenado o arguido AA, por um crime de condução em estado de embriaguez, previsto no artigo 292º nº 1 do CP, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,10, e na pena acessória de 4 meses e 20 dias de proibição de conduzir.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O arguido recorreu, invocando os seguintes fundamentos:

- A pena de multa é excessiva, considerando que as necessidades de prevenção geral se afiguram pouco elevadas, atenta a ausência de quaisquer danos corporais e de pedido cível, e no que concerne à prevenção especial de socialização, são de considerar a ausência de antecedentes criminais, relevando favoravelmente ao mesmo a circunstância de se encontrar socialmente inserido e a demonstração de arrependimento e consciência do desvalor da sua conduta;

- Com vista a garantir a satisfação das finalidades preventivas, a pena deverá situar-se no quarto da moldura, sendo adequada e proporcionada a condenação do arguido em 30 dias de multa, a € 5 por dia.

- A pena acessória de inibição de conduzir implica para o arguido a inibição de trabalhar, pois depende da carta para trabalhar, pelo que a pena deverá situar-se no mínimo e a cumprir aos fins de semana e férias, sob pena de ser inconstitucional, por violação do direito ao trabalho, previsto no artigo 58 nº 1 da CRP, e dos limites das penas e medidas de segurança, previstos no artigo 30 nº 4 e 5 da CRP;

- O arguido é de nacionalidade ucraniana e não domina a língua portuguesa, razão pela qual não compreendeu os procedimentos policiais e judiciais a 100%;

- Cabia aos OPC traduzir todas notificações e procedimentos nos termos do artigo 92º do CPP;

- O arguido não foi advertido de uma forma compreensível da possibilidade de pedir a realização de contraprova e de que podia fazer uma análise sanguínea;

- O arguido beneficia das garantias dadas pela Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em concreto no seu artigo 6 nº 3 alíneas a) e e), que incluem o direito a ser informado em língua que o arguido perceba;

- Existiu uma irregularidade, suscetível de causar a nulidade no processo, pois o tribunal devia ter notificado devidamente o arguido de todos os despachos na sua língua para este se poder defender.

1.2.2. O Ministério Público respondeu, defendendo a improcedência do recurso, com os seguintes argumentos:

- A atuação do arguido foi muito censurável, considerando a elevada taxa de álcool no sangue com que conduziu na via pública;

- Como decidido na sentença. as necessidades de prevenção geral são elevadas, tendo em conta os elevados níveis de sinistralidade rodoviária associados à condução sob o efeito de álcool, a ilicitude é de nível mediano a elevado, o dolo é direto e os motivos determinantes do crime – conduzir para ir comprar tabaco – graves;

- A medida da pena acessória foi determinada em função da culpa e das exigências de prevenção e considerou o valor da taxa de álcool no sangue, o dolo, a ilicitude, a culpa e a inserção familiar, social e profissional;

- Pelo que as penas são adequadas, proporcionais e equilibradas;

- O artigo 69º do CP não é inconstitucional porque o direito ao trabalho pode ser restringido para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como sejam a segurança rodoviária, tendo-se já o Tribunal Constitucional pronunciado no sentido da constitucionalidade daquela norma, quando interpretada no sentido de não admitir a substituição da pena acessória nem o seu cumprimento descontínuo;

- No que respeita à falta de tradução do expediente processado pelo órgão de polícia criminal, o arguido está em Portugal há 12 anos, tem nacionalidade portuguesa, compreende a língua portuguesa e foi advertido da possibilidade de requerer contraprova, notificação que assinou e compreendeu.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo para a resposta do Ministério Público no tribunal recorrido.

1.2.4. O arguido respondeu ao parecer, assinalando que o arguido percebe português, mas não percebe o português jurídico-legal, próprio do expediente processual.

3. Questões a decidir no recurso

Sem prejuízo das matérias que podem ser analisadas oficiosamente, as questões suscitadas no recurso são, pela ordem correta de análise, as seguintes:

- Invalidade processual relativa à falta de tradução de expediente processual e de comunicação de direitos em língua entendida pelo recorrente;

- Determinação da medida da pena principal e da pena acessória;

- Inconstitucionalidade da norma que prevê a aplicação da pena acessória sem ser aos fins de semana e férias.

4. Fundamentação

4.1. Matéria de facto da sentença

1. No dia 01/10/2023, cerca das 01h22, o arguido conduzia o veículo automóvel de matrícula …, na Rua …, em ….

2. Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,46 g/l, que deduzido o erro máximo admissível corresponde a uma TAS de 2,337 g/l.

3. O arguido sabia que a qualidade e a quantidade de bebidas alcoólicas que ingeriu até momentos antes de iniciar a condução determinar-lhe-iam uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente permitida, mas, ainda assim, não se absteve de conduzir tal veículo em via pública.

4. Agiu o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

5. O arguido não tem antecedentes criminais registados.

6. O arguido aufere um rendimento mensal entre os € 800,00 e € 900,00.

7. Reside com a mãe e com a namorada, sendo que nenhuma delas exerce actividade remunerada, recebendo a namorada um apoio de refugiada, no valor de € 230,00.

8. Residem em casa arrendada, onde pagam uma renda de € 400,00, e tem despesas de água entre €40,00/€50,00 e de eletricidade de €30,00/€40,00.

9. Encontra-se a pagar um crédito, com uma prestação mensal de € 300,00.

10. Envia para o filho, residente na Ucrânia um valor mensal de cerca de €100,00/€150,00.

11. Utilizam apoios sociais referentes à alimentação.

4.2. A questão da invalidade processual relativa à tradução do expediente

De acordo com o disposto no artigo 61º nº 1 al. j) do CPP (aditado pela Lei 52/2023, de 28ago), o arguido que não conheça ou domine a língua portuguesa goza, em especial, em qualquer fase do processo, do direito de tradução e interpretação do conteúdo de atos processuais, nos seguintes termos:

- Nomeação de intérprete idóneo quando houver de intervir no processo (artigo 92º nº 2 do CPP);

- Tradução escrita (no que aqui releva) da acusação, despacho que designa dia para julgamento, sentença e outros atos processuais que a entidade responsável julgue essenciais para o exercício do direito de defesa, a qual pode, excecionalmente, ser substituída por tradução oral ou resumo dela, desde que tal não ponha em causa a equidade do processo (artigo 92º nºs 3 e 5 do CPP).

Para além disso, de acordo com o disposto no artigo 58º nº 6 do CPP (igualmente aditado por aquela Lei 52/2023), o arguido que não conheça ou domine a língua portuguesa tem direito a que o documento de que constem a identificação do processo e do defensor, se este tiver sido nomeado, e os direitos e deveres processuais referidos naquele artigo 61º lhe seja facultado em língua que compreenda, ou, ao menos, se tal documento não estiver disponível, a que tal informação lhe seja transmitida oralmente, se necessário com intervenção de intérprete.

Resulta, por fim, do artigo 64º nº 1 al. d) do CPP que é obrigatória a assistência por defensor “em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido, sempre que o arguido for (…) desconhecedor da língua portuguesa (…)”.

Por disposição expressa da lei, tais direitos são atribuídos aos arguidos que não conheçam ou dominem a língua portuguesa. Não é decisivo que tenham nacionalidade portuguesa, na medida em que o conhecimento e domínio da língua portuguesa não é requisito de concessão da nacionalidade, nem originária nem por naturalização. Uma pessoa pode ser portuguesa de origem, por ter nascido em território português e ser filha de mãe ou pai português, e mesmo assim não dominar a língua. Mesmo nos casos em que a aquisição da nacionalidade depende de uma manifestação de vontade e implica um processo de verificação de requisitos, aquilo que a lei exige é apenas o “conhecimento suficiente” da língua portuguesa e não o seu domínio (ver, por exemplo, o disposto no artigo 1º nº 1 al. d) e artigo 6º nº 1 al. c) da Lei da Nacionalidade).

O conhecimento e domínio da língua portuguesa que a lei exige para dispensar a necessidade de tradução e interpretação das peças processuais relevantes para o exercício dos direitos de defesa, há de ser tal que permita ao arguido compreender o essencial da comunicação e adotar os comportamentos processuais que ao caso couberem devidamente esclarecido. Não é necessário, para esse fim, que o domínio da língua vá ao ponto de incluir o conhecimento exato do significado de expressões com conteúdo normativo que só os juristas entendem, mas também não basta, se a sua língua de origem for estrangeira, que o arguido tenha um conhecimento da língua portuguesa limitado às palavras da comunicação básica do dia-a-dia. O que importa, na substância, é que a comunicação em causa seja inteligível para o destinatário e respeite de maneira efetiva o princípio do processo justo e equitativo.

Este direito à interpretação e tradução de atos processuais para pessoas – especialmente arguidos – que não falam ou compreendem a língua do processo está consagrado no artigo 6º da CEDH, tal como interpretado pelo TEDH, e na União Europeia foi regulamentado pela Diretiva 2010/64/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20out2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, transposta para a lei interna portuguesa, nomeadamente na acima referida Lei 52/2023.

Aquela Diretiva refere-se à necessidade de existir um procedimento que permita apurar se a pessoa suspeita ou acusada fala e compreende a língua do processo e se necessita de interpretação. Como o nosso código de processo penal não regulamenta essa matéria, no que ao caso em apreço importa, competirá à autoridade que executa o ato – o órgão de polícia criminal, nomeadamente – certificar-se, através da primeira comunicação estabelecida, que a pessoa compreende de forma efetiva o essencial da comunicação que tenha de ser feita.

A violação destas regras tem consequências processuais:

- A falta de assistência por defensor, nos casos em que for obrigatória, integra a nulidade insanável prevista no artigo 119º al. c) do CPP.

- A falta de nomeação de intérprete, nos casos em a lei a considerar obrigatória, face ao disposto no artigo nº 2 al. c) e nº 3 al. d) do CPP, constitui nulidade processual que, nas formas de processo especiais, como é o caso deste abreviado, tem de ser arguida logo no início da audiência.

- Já a violação das outras regras acima referidas, relativas à tradução de atos processuais ou tradução oral dos mesmos (artigos 92º nºs 3 e 5 e 58º nº 6 do CPP), gera uma mera irregularidade processual, sujeita à disciplina do artigo 123º do CPP.

Exposto o enquadramento normativo relevante, vejamos então o caso em apreço.

Consta do auto de notícia que o arguido, depois de submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, “foi de imediato notificado do resultado do teste, das sanções legais dele decorrentes e de que podia requerer a realização de contraprova nos termos da notificação que se junta” e que “não requereu contraprova”. O arguido assinou um documento de notificação onde está escrito ter sido informado “que pode requerer de imediato a realização de contraprova, podendo fazê-la recorrendo a novo teste por ar expirado ou através de análise sanguínea”, que “o resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial” e que “o presente documento foi integralmente lido e revisto por todos os signatários que declaram ter ficado cientes de todo o seu conteúdo e recebido cópia no ato”.

Assinou, também, o termo de constituição de arguido, onde consta o elenco dos direitos e deveres processuais previstos no artigo 61º nº 1 do CPP. Contudo, certamente por desatualização do formulário usado pelo órgão de polícia criminal, esse documento não inclui qualquer referência ao direito a obter tradução e interpretação dos atos processuais, da al. j), aditada cerca de dois meses antes dos factos pela Lei 52/2023.

Esta omissão é relevante, na medida em que se trata da comunicação do direito a ser informado dos termos processuais essenciais em língua que o arguido entenda, que é precisamente a questão que suscitou no processo e no recurso.

E assinou, ainda, o “termo de identidade e residência” e outro documento com o título “direitos do detido”.

O arguido não esteve assistido por defensor até ao momento da acusação. No documento “direitos do detido”, que assinou, consta que ficou ciente do direito de “solicitar que lhe seja nomeado um advogado que o defenda” “em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido”, se for “desconhecedor da língua portuguesa”.

O despacho de acusação do arguido foi proferido em 4out2023 e notificado ao defensor nomeado por carta expedida em 7mar2024.

Porém, em 13mar2024, o arguido passou a ser assistido por mandatário constituído. Na mesma data, apresentou um requerimento a arguir uma nulidade processual, alegando que não fala português a 100% e tem dificuldades e compreender o teor dos documentos que assinou, que não compreendeu as notificações que assinou a 100% e que não obteve, como devia, tradução dos despachos e notificações.

Por despacho do Ministério Público – o processo estava ainda na fase do inquérito – o requerimento a arguir a nulidade foi desatendido, com fundamento no arguido ter nacionalidade portuguesa, ter juntado uma procuração escrita em português que assinou e ter dirigido ao processo um requerimento por si escrito em português.

No início da audiência de julgamento, o mandatário do arguido usou do direito de apresentar uma exposição introdutória em que se referiu a três questões: (i) prova da certificação do aparelho de pesquisa de álcool no sangue, (ii) não domina a língua portuguesa e por isso, não tendo sido nomeado intérprete, não lhe foi assegurado o direito a requerer contraprova nem a ser informado dos seus direitos em língua que entendesse e (iii) suspensão provisória do processo.

Seguidamente, o tribunal dirigiu-se ao mandatário do arguido e perguntou-lhe: “Mas não tem nenhum requerimento?”, ao que o mesmo respondeu: “Não. Quer dizer, quanto à prova tenho. Posso fazer… quer que dite?”. De seguida formulou um requerimento de prova.

O tribunal deu a palavra ao Ministério Público para o contraditório, que respondeu a todas as questões levantadas na exposição introdutória. No que respeita à nulidade por falta de nomeação de intérprete, repetiu o essencial do que já tinha decidido no despacho acima referido.

Nessa altura o tribunal, sem distinguir a que se referia e sem excluir qualquer das questões levantadas pela defesa do arguido, informou que se pronunciaria a final.

Durante o interrogatório do arguido e a inquirição da testemunha BB (militar da GNR que teve intervenção no processo), um dos assuntos debatidos foi precisamente o de saber se o arguido tinha entendido ou não as notificações que lhe foram feitas em português, nomeadamente a de requerer a contraprova. O arguido disse que não – sobre a forma como disse isso e o significado dela para a questão de saber se domina suficientemente a língua portuguesa, que está documentada no registo áudio, não nos pronunciamos nesta fase. A testemunha disse que sim.

Finda a produção de prova oral, o tribunal proferiu o seguinte despacho:

“O tribunal considera que este requerimento teria uma finalidade meramente dilatória, pelo que, ao abrigo do artigo 340º nº 4 al. d) não se admite o requerimento probatório.

Relativamente à suspensão provisória do processo, o tribunal já se havia pronunciado. De qualquer das formas, não havia aqui concordância do Ministério Público.

Portanto, ficam as exposições introdutórias aqui resolvidas.

Mais alguma coisa a requerer?”

Na sequência, o mandatário do arguido respondeu:

“Da minha parte, nada também”.

Na fase das alegações orais, o mandatário do arguido, para além de se pronunciar quanto aos factos e à pena, voltou a referir-se à necessidade de tradução dos atos processuais, repetindo que o arguido não entendeu as notificações. Concluiu dizendo: “levanto esta questão que acho que é pertinente”.

Na sentença recorrida, o tribunal, na parte do saneamento, afirmou que não havia nulidades, exceções ou questões prévias de que cumprisse conhecer e que obstassem à apreciação do mérito, mantendo-se os pressupostos de validade e regularidade da instância.

Mais adiante, na motivação da matéria de facto, escreveu o seguinte:

«Os factos 1 e 2 resultaram das declarações do militar da GNR e aqui testemunha, BB, que apresentou um discurso espontâneo, sereno e, assim credível, tendo explicado que o arguido apresentava uma condução desequilibrada, pelo que foi fiscalizado e submetido ao respetivo teste, tendo avisado o arguido que poderia efectuar a contraprova, ao que este respondeu que não a queria fazer e que só queria “despachar” – não se atribuindo credibilidade ao arguido quando refere que não foi avisado, uma vez que a testemunha o descreveu, tal como a resposta do arguido, de forma espontânea (resposta esta de onde é perceptível igualmente que o mesmo percebeu o teor do que lhe foi explicado)»

E em nota de rodapé, escreveu ainda o seguinte:

«Sendo que também em sede de audiência de julgamento foi perceptível que o arguido se encontra em Portugal já 12 anos e percebe grande parte do que lhe é transmitido em português, tendo sido necessário pontualmente o apoio da intérprete, mais se verificando que o mesmo tem nacionalidade portuguesa (pelo que terá efectuado exames nesta língua), assinou uma procuração a conferir poderes ao seu defensor em língua portuguesa, bem como remeteu aos autos requerimento escrito em língua portuguesa.»

Assinala-se, por fim, que o tribunal nomeou intérprete para assistir o arguido na audiência de julgamento.

Dito isto, a questão que se nos coloca agora, que é de conhecimento oficioso, é a de saber se foi arguida uma nulidade processual que o tribunal devesse ter apreciado e decidido na sentença. A ser esse o caso, a sentença é nula por omissão de pronúncia, como dispõe o artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.

Vejamos então.

As exposições introdutórias destinam-se à indicação sumária dos factos que cada um dos sujeitos processuais que quiser usar da palavra se propõe provar em julgamento, podendo o tribunal disciplinar o seu conteúdo e forma, designadamente quando se afastem daquele objeto (artigo 339º nºs 2 e 3 do CPP).

Como vimos, o mandatário do arguido, que podia arguir nulidades no início da audiência, usou a oportunidade das exposições introdutórias para fim diverso, pois suscitou três questões incidentais que não tinham a ver com a indicação dos factos que se propunha provar. Porém, ao contrário do que podia ter feito, o tribunal não só não impediu isso como o incentivou, ao tornar claro que entendia aquele momento processual como adequado para a introdução de questões incidentais a decidir. Por isso deu a palavra ao Ministério Público para lhes responder, acabou por anunciar que anunciaria a sua decisão no final – sem dizer se seria no final do julgamento ou na sentença – e conduziu a produção de prova para o apuramento dos factos relevantes para decidir uma daquelas questões. O facto de a certo momento o tribunal ter perguntado ao advogado se pretendia fazer algum requerimento e de este, em relação à matéria da alegada invalidade processual, ter respondido negativamente, não pode significar que prescindiu de ver decidida aquela questão que tinha suscitado. Se fosse assim, o tribunal não teria permitido ao Ministério Público que se pronunciasse sobre ela nem teria dito, sem distinguir, que decidiria no final. E se alguma dúvida houvesse, ela dissipar-se-ia no momento em que, nas alegações orais finais, o advogado do arguido voltou a suscitar a mesma questão repetindo que a achava pertinente – pertinente para o objeto do processo e para a decisão, claro.

É, pois, incontestável que a defesa do arguido arguiu uma invalidade processual relacionada com o alegado desconhecimento pelo arguido da língua portuguesa e a falta de nomeação de intérprete e tradução de atos processuais. Já o tinha feito antes da remessa do processo para julgamento, voltou a fazê-lo no início do julgamento e repetiu-o nas alegações orais finais.

Daqui resulta que foi arguida uma nulidade processual, a qual, como questão incidental que é, passou a integrar o objeto da causa e a ter de ser decidida pelo tribunal até à sentença, por aplicação das normas dos artigos 339º nº 4 e 368º nº 1 do CPP. Outra interpretação sobre a vontade da defesa do arguido e sobre o tratamento que o tribunal deu a esta questão levantada no início da audiência, que fosse ao ponto de levar a entender que não foi arguida a nulidade ou que o arguido desistiu dessa arguição ou de admitir que o tribunal pudesse não a decidir, depois de informar que decidiria no final, sem qualquer distinção, violaria as garantias da defesa efetiva, inerentes ao princípio do processo justo e equitativo, com o alcance consagrado nos artigos 32º nºs 1 e 5 e 20º nº 4 da CRP, no artigo 6º nº 3 da CEDH e nos artigos 47º e 48º nº 2 da CDFUE.

Ora, de acordo com o disposto no referido artigo 368º nº 1, o tribunal tinha de decidir na sentença a arguição de nulidade, que se tratava de uma questão incidental sobre a qual não tinha ainda recaído decisão. A referência, lateral, que consta na sentença, a propósito da motivação da matéria de facto, não substitui a necessidade de uma decisão autónoma sobre a questão em causa.

Ao omitir a decisão, o tribunal deixou de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, o que acarreta a nulidade da sentença, prevista no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.

A possibilidade de suprimento da nulidade em recurso, conferida pelo artigo 379º nº 2 do CPP, não é aplicável numa situação como esta. A decisão da nulidade está dependente da interpretação das provas produzidas em julgamento. É preciso apurar com rigor como foram feitas as notificações e se o conhecimento da língua portuguesa pelo arguido vai ao ponto de se poder concluir que entendeu o seu sentido, com o alcance que a lei exige. Tanto mais que, como vimos, uma dessas notificações omitiu a comunicação do direito à nomeação de intérprete, que era importante para o caso. E também porque o tribunal acabou por ser contraditório, na medida em que, se entendeu que o arguido domina a língua portuguesa suficientemente para entender as notificações que lhe terão sido comunicadas pelo órgão de polícia criminal, não se percebe a razão porque acabou por lhe nomear um intérprete no julgamento.

É certo que esta matéria foi objeto de alguma discussão no julgamento e produção de prova. Simplesmente, trata-se ainda do apuramento da matéria de facto, competindo ao tribunal recorrido verificar se é suficiente para o efeito ou se é necessário reabrir a audiência para o completar.

Concluímos, assim, que a sentença é nula e precisa de ser corrigida.

Fica prejudicada a possibilidade de apreciar as demais questões trazidas no recurso.

5. Decisão

Pelo exposto, acordamos em anular a sentença recorrida e determinar a sua substituição por outra que conheça da questão incidental suscitada pelo arguido relativa ao conhecimento e domínio da língua portuguesa e respetivas consequências processuais.

Sem custas.

Évora, 28jan2025

Manuel Soares (relator)

Laura Maurício (adjunta)

Carla Oliveira (adjunta)

João Amaro (presidente)