PENA DE MULTA
MEDIDA DA PENA
Sumário


Tendo sido fixada a medida concreta da pena de multa correspondente ao crime de burla em ponto próximo dos dois terços da moldura penal abstrata, mas tendo em consideração os factos anteriormente cometidos e a gravidade dos factos em causa nestes autos, bem como todas as acentuadas necessidades de prevenção (geral e especial), mostra-se plenamente justificado o doseamento, naquela que poderá muito bem ser a derradeira situação em que a preferência por pena não privativa da liberdade se deve considerar ainda suficiente para atingir os fins das penas.
Efetivamente, ponderou o Tribunal recorrido todos os fatores relevantes (e não apenas aqueles a que a recorrente apela quando pretende a redução da punição), fazendo-o de forma adequada e equilibrada. Ponderados todos os contornos do caso concreto, não se surpreende qualquer razão válida para justificar uma reação penal mais branda perante os atos da recorrente.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
*

I – RELATÓRIO

1. No Juízo Local Criminal de …, a arguida AA, com os demais sinais dos autos, foi submetida a julgamento em processo comum, perante Tribunal singular, após acusação do Ministério Público, que lhe imputou a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, p. e p. pelos artigos 217º, nº 1, 10º, nº 1, 13º, 14º e 26º, todos do Código Penal.

2. Por sentença de 30 de setembro de 2024, foi decidido:

“Pelos fundamentos expostos, julgo a acusação procedente, por provada, e em consequência:

a) Condeno a arguida AA pela prática em 15/06/2021, em autoria material e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º, nº 1 do Código Penal na pena de 270 (DUZENTOS E SETENTA) DIAS DE MULTA À TAXA DIÁRIA DE 5,00 (CINCO) EUROS, o que perfaz a quantia de 1 350,00 (mil trezentos e cinquenta) euros;

b) Determino o pagamento pela arguida AA ao Estado da quantia de 2 250,00 euros (DOIS MIL DUZENTOS E CINQUENTA EUROS), nos termos do disposto no art 111º, nº 2, al. a) e nº 3 do C.P.P.

c) Mais condeno a arguida nas custas criminais, nestas se incluindo 2 UC de taxa de justiça, (cfr. artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais e artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).

Após trânsito em julgado:

- Comunique à D.S.I.C. (cfr. artigos 4.º, n.º 5 e 5.º, n.º 1, alínea a), 2, alínea a) e 3, da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto).

- Advirta-se a arguida que, se o entender, poderá requerer, no prazo de 15 dias, que a pena de multa a que foi condenada:

i. seja paga em prestações, nos termos do disposto no art. 489º do CPP;

OU

ii. seja total ou parcialmente substituída por trabalho nos termos do disposto no art. 48º do CP.

- Advirta-se a arguida que o não pagamento da pena de multa de mencionada em a) do dispositivo e a impossibilidade da sua cobrança coerciva implicam a conversão dessa pena de multa na correspondente prisão subsidiária.

Proceda, de imediato e nesta data, ao depósito da sentença, nos termos do art.º 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal.

Notifique, dê baixa e insira em marcador.”

3. Inconformada com a decisão final, dela interpôs recurso a arguida, pedindo a revogação da mesma e a sua substituição por outra que fixe a concreta medida da pena de multa em número de dias e quantitativo diário inferior à que foi determinada.

Extraiu a recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:

“1 - A fixação de uma pena de multa em 270 dias à razão diária de 5 dias mostra-se excessiva e desadequada considerando as circunstâncias em que os factos foram praticados.

2 - Nomeadamente, devia ter sido levado em linha de consideração o facto de ter intervindo na prática do crime uma terceira pessoa que não foi possível identificar e a realidade da Recorrente, que não aufere rendimentos.

3 - O mínimo existencial é constituído por um mínimo vital (alimentação, vestuário, abrigo, saúde) e por um mínimo de sobrevivência condigna (educação, trabalho, habitação, transporte, lazer, segurança, segurança social, cultura, proteção à maternidade e à infância), que o Estado não pode subtrair aos cidadãos.

4 - A escolha da pena de multa se mostra desproporcional, por excessiva e violadora do mínimo existencial necessário à dignidade da pessoa humana.

5 - Colocando a Recorrente numa situação em que terá de escolher entre sobreviver ou pagar a pena de multa, sendo que na primeira hipótese corre o risco de ver a multa convertida em prisão subsidiária.

6 - Devendo a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada, e substituída por outra que fixe a concreta medida, em número de dias e quantitativo diário inferior à que foi determinada.

7 - Mostra-se violado o disposto nos artigos 40º, 70º, 71º e 73ºdo Código Penal e 18º do CPP”.

4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.

5. O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela sua improcedência. Formulou as seguintes conclusões:

“1. O crime de burla é punível com pena de prisão até três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias;

2. Na escolha e determinação da medida da pena, o julgador deverá ter em consideração a culpa do agente, bem como todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o arguido (cfr.º art.ºs 40.º, n.º 2, 70.º e 71.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal).

3. Ora, in casu, a douta sentença proferida põe em evidência um conjunto de circunstâncias que militam desfavoravelmente contra o arguido, demonstrando as necessidades particulares de prevenção especial que o caso e a arguida suscitam.

4. Designadamente, evidencia a sentença que a quantia de que a arguida se apossou é significativa, que se aproveitou do arguido, pessoa simples e crédula, que não reparou o prejuízo provocado, que não se apresentou em julgamento, mostrando ausência de autocrítica e indiferença em relação à censurabilidade da sua conduta, que tinha já antecedentes criminais por crime de idêntica natureza e que não colaborou com a DGRSP para a realização de relatório social.

5. Factores positivos, não conseguiu o tribunal descortinar nenhum, não podendo concluir pela integração familiar ou profissional da arguida ou pelo seu arrependimento, porquanto a mesma, ausente do julgamento e das convocatórias da DGRSP, nada demonstrou nesse sentido.

6. Não podemos concordar com a recorrente quando apresenta como factor favorável na análise da sua conduta o facto de ter agido em colaboração com um terceiro.

7. Tal não divide, exclui ou diminui a culpa ou a censurabilidade da conduta.

8. Nem a arguida veio alegar que tivesse sido levada a agir da forma que o fez pelo aludido terceiro, fosse por que meio fosse, designadamente, coacção, erro ou mera sedução.

9. Nem veio ajudar na realização da justiça, indicando a identificação do terceiro, remetendo-se ao silêncio, assim demonstrando não ter verdadeiramente interiorizado o desvalor da sua conduta.

10. Pelo exposto, e considerando que a moldura penal da pena de multa vai até 360 dias, fez o tribunal correcta, adequada, justa e proporcional aplicação do direito ao determinar uma pena de multa (excluindo desde logo a pena de prisão) de 270 dias, apenas ligeiramente acima do meio da moldura penal.

11. Do mesmo passo, fez o tribunal correcta, adequada, justa e proporcional aplicação do direito ao ponderar as circunstâncias económicas concretas da arguida, aplicando um quantitativo diário igual ao mínimo legalmente admissível (art.º 47.º, n.º 2, do Código Penal).

12. Ainda assim, admite-se que o valor que dessa forma se alcança, é um valor objectivamente elevado.

13. No entanto, para estas situações, criou o legislador a possibilidade de requerer o pagamento diferido da multa, o seu pagamento em prestações, ou a sua substituição por trabalho (cfr. art.ºs 47.º, n.º 3 e 48.º, n.º 1, ambos do Código Penal).

14. Mecanismos a que a arguida pode recorrer e que ainda não fez como forma de assegurar o seu mínimo de subsistência condigno que defende no seu recurso.

15. O mínimo de subsistência da arguida não está, assim, posto em causa.

16. Mostrando-se a decisão tomada pelo tribunal a quo correcta, adequada, justa e proporcional.”.

6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer no sentido da improcedência do recurso.

7. Notificada do parecer, a arguida/recorrente veio responder, mantendo todas as conclusões do seu recurso.

8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

*

II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a sentença final proferida nos autos –, a questão a examinar e decidir prende-se com a determinação da medida concreta da pena.

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III – TRANSCRIÇÃO DOS SEGMENTOS DA DECISÃO RECORRIDA RELEVANTES PARA

APRECIAÇÃO DO RECURSO INTERPOSTO.

Da decisão recorrida, com interesse para as questões em apreciação em sede de recurso, consta o seguinte:

“(…)

Produzida a prova e discutida a causa resultaram os seguintes:

A. Factos Provados:

1. Em dia não concretamente apurado, mas anterior ou contemporâneo à data de 15/06/2021, a arguida e individuo não concretamente apurado, de comum acordo e em execução de um plano previamente traçado por ambos, com vista à obtenção e divisão, de forma não concretamente apurada, entre ambos de elevadas vantagens patrimoniais, colocaram um anúncio da internet, no site www.olx.pt, de venda de uma máquina giratória … 1.7, pelo preço de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), indicando para contacto o cartão SIM n.º ….

2. A arguida e individuo não concretamente apurado, foi contactada, através da plataforma WhatsApp, no referido contacto …, por BB que, após ter visualizado o aludido anúncio e acreditando no seu conteúdo, mostrou interesse na aquisição do referido bem.

3. No dia 15/06/2021, a arguida e individuo não concretamente apurado, iniciou, assim, a troca de diversas mensagens, através daquela aplicação, por forma a concretizar o aludido negócio.

4. Na sequência de tais conversações, BB aceitou comprar da referida máquina giratória, pelo preço de €4.500,00.

5. Ficou ainda acordado que BB procedia ao pagamento inicial de €2.250,00 e os restantes €2.250,00€ seriam liquidados com a entrega da máquina.

6. No dia 17/06/2021, BB, na sua residência, sita no ,,,, n.º …, …, recorrendo à aplicação eletrónica do Banco onde se encontra domiciliada a conta bancária conjunta com a sua mulher e com o IBAN …, deu ordem de transferência do montante de €2.250,00 para a conta bancária com o IBAN …, domiciliada junto da …e unicamente titulada pela arguida.

7. O montante de €2.250,00 foi recebido pela arguida na sua conta bancária, com o IBAN indicado em 7), fazendo-o seu, gastando-o como bem entendeu.

8. A arguida e individuo não concretamente apurado, nunca entregou a máquina giratória que se comprometeu a entregar e, quando interpelada para devolver a quantia que lhe havia sido paga por conta do referido bem, não o fez, tendo bloqueado o contacto de BB.

9. A arguida e individuo não concretamente apurado, nunca pretendeu vender a aludida máquina giratória, tendo publicado aquele anúncio com o propósito concretizado de obter uma vantagem patrimonial que sabia não ter direito, o que conseguiu.

10. A arguida e individuo não concretamente apurado, nunca tive intenção de cumprir com o acordado.

11. A arguida e individuo não concretamente apurado, utilizando a internet como meio de contacto e beneficiando do facto de o negócio não ser efetuado presencialmente, aliciou potenciais interessados com a venda de uma máquina giratória, fazendo crer o ofendido na validade da proposta de venda, que sabia ser falsa.

12. Com a conduta acima descrita, a arguida e individuo não concretamente apurado, quis apoderar-se daquela quantia monetária, o que conseguiu, enriquecendo o seu património no montante total de €2.250,00, à custa do empobrecimento patrimonial de BB, contra a sua vontade, causando-lhe a perda do valor que transferiu.

13. A arguida e individuo não concretamente apurado, agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

DA CONTESTAÇÃO

14. A arguida a queixa crime que originou o processo nº 50/24.1….

DAS CONDIÇÕES PESSOAIS, FAMILIARES, ECONÓMICAS E SOCIAIS DA ARGUIDA

15. A arguida não aufere quaisquer rendimentos.

16. As suas condições pessoais, familiares e sociais não foram apuradas por falta de colaboração da arguida.

DOS ANTECEDENTES CRIMINAIS

17. Por sentença de 18.03.2024 e transitada em 23.05.2024, a arguida foi condenada, por factos reportados a 29.01.2021, pela prática de um crime de burla, na pena de 250 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, o que perfaz a quantia de 1 500,00.

B. Factos Não Provados

Não foram apurados quaisquer factos com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente:

a) Em 18/05/2023 a Arguida contactou a … dando nota de que não conseguia aceder à APP da conta bancária nem gerir a conta.

b) Tendo solicitado o extrato da conta via email.

c) Já em 2021 a Arguida havia enfrentado restrições no acesso à conta …, o que foi reportado à entidade bancária.

d) Em 21 de Maio de 2023 a Arguida teve conhecimento de que existia um impedimento à realização de movimentos, abrangido pelo dever de sigilo

e) A Arguida reportou tais situações à instituição bancária, tentando perceber o que se passava, tendo sido bloqueada a conta.

f) A Instituição Bancária aconselhou a Arguida a aguardar por posterior contacto, o que nunca chegou a acontecer.

g)A Arguida não tirou partido de qualquer valor, sendo que a sua pretensão sempre foi devolver qualquer quantia que se confirmasse ter entrado na sua conta, o que não havia acontecido nas transferências anteriores, nas quais nenhum valor deu entrada nas contas que figuravam como o destino.

h) A arguida não teve participação na prática de qualquer crime, tendo sido apenas um mero instrumento involuntário, na medida em que alguém utilizava a sua conta para receber valores e depois conseguia retirá-los e “eliminar” o registo de entrada, o que aconteceu no caso dos processos 603/20.7… e 644/20.4…, mas já não terá sido possível no caso dos presentes autos.

(…)

C. Fundamentação da Matéria de Facto

(…)

IV ENQUADRAMENTO JURIDICO-PENAL

(…)

Verifica-se assim que tanto a tipicidade objetiva como a subjetiva do crime de burla previsto no art 217º, nº 1 do CP resultaram preenchidas pela conduta da arguida.

Inexistem causas que excluam a ilicitude ou a culpa do agente.

(…)

DETERMINAÇÃO E MEDIDA DA PENA

Constata-se, desta forma que a arguida cometeu o crime de burla, p. e p. pelo artigo p. e p. no art. 217.º, nº1 do Código Penal.

A determinação da medida da pena obedece a três fases que consistem na determinação da moldura legal ou abstrata, na escolha e na determinação concreta da medida da pena.

A moldura abstratamente cabida ao crime de burla simples, é de pena de prisão até um mês a três anos ou pena de multa de 10 dias até 360 dias cfr. artigos 43º. nº 1, 47.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1, todos do CP.

Como o crime prevê a punição em pena de prisão ou em pena de multa, cumpre proceder à escolha da pena nos termos do artigo 70º do Código Penal.

Dispõe este preceito legal que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Com efeito, como refere Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, Consequências ..., Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág.359) “as penas curtas de prisão ... transportam consigo o risco sério de dessocializar fortemente o condenado, ao pô-lo em contacto, durante um período curto, com o ambiente deletério da prisão; curto, mas suficientemente longo para prejudicar seriamente a integração social do condenado, maxime, ao nível familiar e profissional”.

A escolha da pena deve por isso obedecer, nos termos do artigo 40º do Código Penal, a finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, enquanto proteção de bens jurídicos, e a finalidades de prevenção especial de socialização referidas à reintegração do agente na comunidade.

No caso dos autos, a arguida não compareceu a julgamento, alheando-se do processo judicial que impendia sobre si, revelando desprezo pelo próprio sistema judicial bem como pela justiça, não compareceu à entrevista com a DGRSP a fim de se apurar as suas condições pessoais, familiares, económicas e sociais, um antecedente criminal da mesma natureza por facto praticado anterior ao dos presentes autos.

Acresce que no caso sub judice, as exigências de prevenção geral revelam-se medianamente elevadas, atento o facto de o índice de violação da norma ser bastante expressivo no país e, em particular, na área deste juízo local, em face da frequência com que é cometido este tipo de crime – também, na modalidade em causa, não sendo despiciendo o número de cidadãos que, diariamente, se vêm privados de partes significativas do seu património mediante o “sábio” poder de persuasão e convencimento, quase anestesiante, levando as pessoas a praticar atos prejudicais para si próprios.

Já no que concerne às necessidades de prevenção especial, afigura-se-nos que as mesmas já se revelam tão prementes, como supra se aludiu.

Todas estas circunstâncias, revelam que a arguida possui uma personalidade desconforme ao direito, contudo, ainda entendemos que uma pena não privativa da liberdade se afigura adequada às circunstâncias do caso pelo que, em face dos critérios legais aplicáveis, se opta pela pena de multa.

Feita a opção pela pena de multa, há que determinar agora a sua medida concreta, relativamente ao ilícito praticado pela arguida, dentro dos limites estabelecidos pela moldura penal aplicável em causa e nos termos estabelecidos pelo art. 71.º do Código Penal.

Nos termos do n.º 1 da disposição legal acabada de mencionar, a medida da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos pela lei.

Tal artigo consagra, assim, o princípio que representa a pedra de toque do Direito Penal português, o princípio da culpa. Com efeito, segundo tal princípio, toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, princípio que encontra desde logo consagração no art. 13.º do Código Penal, que apenas prevê a punibilidade do facto praticado a título de dolo, ou em casos especialmente previstos na lei, a título negligente.

Na verdade, não só não há pena sem culpa, como é também a culpa que decide a medida da pena - arts. 40.º, 2 e 71.º, 1, do Código Penal.

Quanto à prevenção, a pena tem dois tipos de finalidades: por um lado, uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, visando a defesa da ordem jurídico-penal tal como é interiorizada pela consciência coletiva (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/10/1997, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt) e, por outro lado, a prevenção especial positiva ou de socialização, a qual pressupõe que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá, no futuro, outro crime (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01/07/1998, cujo sumário se encontra igualmente disponível em www.dgsi.pt).

Culpa e prevenção ocupam, assim, papéis primordiais na determinação da medida da pena.

Conforme acima se disse, as exigências de prevenção geral positiva fazem-se sentir, no caso, de forma elevada.

Porém, na determinação concreta da pena, o Tribunal atende também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente os critérios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do art. 71.º do Código Penal.

Assim, importa assinalar, em primeiro lugar, que, no que tange ao crime de burla, o grau de ilicitude afigura-se considerável atento que que a arguida se apossou da quantia de 2 250,00 euros, considerando as circunstâncias em que a arguida se apropriou da quantia – aproveitando que o ofendido eera uma pessoa simples e crédula acreditando que o aludido anúncio de venda era verídico.

Há que atender a que a quantia que lhe foi entregue não foi devolvida ao ofendido e desconhecendo-se quando e se a mesma será devolvida uma vez que a arguida não tem quaisquer rendimentos declarados.

Por outro lado, o dolo é direto e reveste intensidade elevada, revelando mesmo premeditação, considerando que a arguida em conluio com um terceiro se fez passar por vendedora junto do ofendido, tomando-lhe a confiança que depois, de forma censurável, violou.

Importa considerar o facto de a arguida não ter comparecido a julgamento, tal suscita dúvidas de que tenha interiorizado a gravidade da conduta que assumiu e de que se tenha consciencializado da necessidade de pautar a sua futura atuação pelas regras de convivência social e pelo respeito pelo próximo.

Releva, ainda, sopesar que que já tem um antecedente criminal por crime de igual natureza por factos praticados antes dos factos objeto destes autos, o que faz acreditar que não se tratou de um episódio único da sua vida (facto 17) o que patenteiam acrescidas exigências no plano da prevenção especial. Acresce que a arguida não se encontra laboralmente ativa, não permitiu conhecer a sua condição pessoal, pois não colaborou com a DGRSP na elaboração do relatório social necessário para a escola da pena e respetiva medida.

Nada milita a favor, atenta a personalidade da mesma respaldada no total alheamento sobre o processo que impende sobre si.

Atentos os fatores que se deixaram evidenciados, o Tribunal considera adequada a aplicação, à arguida uma pena de 270 (duzentos e setenta) dias, pela prática do crime de burla.

De harmonia com o disposto no art. 47º, 2, do Código Penal, o quantitativo diário de cada dia de multa é fixado em função da capacidade económica e financeira do agente e dos seus encargos pessoais, podendo situar-se tal quantitativo entre € 5,00 (cinco euros) e € 500,00 (quinhentos euros).

O montante da multa deve ser determinado de modo a assegurar as finalidades da pena, o que pressupõe necessariamente um real sacrifício para o condenado; porém, não pode o mesmo fazer perigar a que lhe sejam asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e respetivo agregado familiar.

Nos presentes autos, tendo em vista sua situação económica apurada (não tem rendimentos declarados), julgo adequado fixar o montante da taxa diária da pena de multa aplicada em € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 1 350,00 (mil, trezentos e cinquenta) euros de multa.

(…)”.

*

IV – FUNDAMENTAÇÃO.

Como aliás resulta da sua motivação de recurso, não pretendeu a arguida colocar em questão a factualidade dada como provada, a motivação apresentada pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão nessa matéria, bem como a subsunção dos seus comportamentos na autoria material do crime em causa.

O recurso visa apenas a modificação da decisão condenatória para que a pena aplicada possa ser outra (reduzida), manifestando o entendimento de que seria adequada a aplicação de pena de multa mais próxima do mínimo legal abstratamente previsto.

Vejamos.

Sendo o recurso restrito à matéria de direito e não havendo nulidades a conhecer nem resultando do texto da sentença recorrida qualquer dos vícios enumerados no art. 410º do

Código de Processo Penal, inexistem quaisquer razões para alterar o juízo probatório constante da mesma, mantendo-se, em consequência, toda a matéria de facto nela dada como provada.

Uma vez que, em face dessa factualidade, não se suscitam dúvidas sobre ter-se a arguida constituído autora material do crime de burla pelo qual foi condenada, importa, então, apreciar se, relativamente à pena, a determinação da medida concreta da mesma efetuada pelo Tribunal a quo se mostra acertada ou se deverá ser corrigida por decisão deste Tribunal de recurso.

*

A recorrente impugna a determinação concreta da medida da pena, argumentando que o Tribunal a quo não atendeu à circunstância “de ter intervindo na prática do crime uma terceira pessoa que não foi possível identificar” e, bem assim, às condições económicas da arguida “que não aufere rendimentos”. Considera que a pena aplicada é violadora do “mínimo existencial necessário à dignidade da pessoa humana”.

O Tribunal a quo entendeu fixar em 270 (duzentos e setenta) os dias de multa a aplicar, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 1 350,00 (mil, trezentos e cinquenta) euros.

No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser moderada e seguir a jurisprudência enunciada, quanto à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão daquele Tribunal Superior de 27/05/20091, no qual se considerou: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).

Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta.

Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.

De tal resulta que, se as penas fixadas na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelarem proporcionadas e se mostrarem determinadas no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverão ser objecto de qualquer correcção por parte do tribunal de recurso.

Na apreciação da decisão do Tribunal a quo, importará atentar na circunstância de o Tribunal a quo ter atentado de forma adequada no grau de ilicitude dos factos (“Assim, importa assinalar, em primeiro lugar, que, no que tange ao crime de burla, o grau de ilicitude afigura-se considerável atento que que a arguida se apossou da quantia de 2 250,00 euros, considerando as circunstâncias em que a arguida se apropriou da quantia – aproveitando que o ofendido eera uma pessoa simples e crédula acreditando que o aludido anúncio de venda era verídico”).

Por outro lado, mostra-se igualmente isenta de reparos a ponderação do grau de culpa da arguida (“…o dolo é direto e reveste intensidade elevada, revelando mesmo premeditação, considerando que a arguida em conluio com um terceiro se fez passar por vendedora junto do ofendido, tomando-lhe a confiança que depois, de forma censurável, violou.”)

Tendo em devida conta estas considerações, que subscrevemos e fazemos nossas, não podemos secundar o entendimento da defesa. A circunstância de a arguida ter agido mancomunada com um terceiro, ao contrário do que entende a defesa, em nada reduz as necessidades de punição – a conduta criminosa comparticipada não é menos grave, não é menos perniciosa e revela, isso sim, capacidade da arguida para se associar a terceiros no cometimento de factos delituosos, o que acentua a perigosidade das suas condutas.

De resto, como bem assinalou o Ministério Público, da circunstância de ter agido com a colaboração de uma terceira pessoa, não decorre a necessidade de se repartir a sanção pelos vários comparticipantes, reduzindo a pena aplicada a cada um deles.

Por outro lado, o Tribunal sopesou adequadamente o comportamento da arguida anterior e posterior aos factos, designadamente, o seu comportamento processual e os seus antecedentes criminais (“Importa considerar o facto de a arguida não ter comparecido a julgamento, tal suscita dúvidas de que tenha interiorizado a gravidade da conduta que assumiu e de que se tenha consciencializado da necessidade de pautar a sua futura atuação pelas regras de convivência social e pelo respeito pelo próximo. Releva, ainda, sopesar que que já tem um antecedente criminal por crime de igual natureza por factos praticados antes dos factos objeto destes autos, o que faz acreditar que não se tratou de um episódio único da sua vida (facto 17) o que patenteiam acrescidas exigências no plano da prevenção especial. Acresce que a arguida não se encontra laboralmente ativa, não permitiu conhecer a sua condição pessoal, pois não colaborou com a DGRSP na elaboração do relatório social necessário para a escolha da pena e respetiva medida.).

Nenhuma razão tem a defesa quando argumenta que o Tribunal a quo não apreciou corretamente as circunstâncias pessoais da arguido.

O Tribunal a quo não considerou contra a arguida qualquer circunstância do passado que não se tivesse verificado à data da prática dos factos. O Tribunal considerou que a arguida praticou os factos deste processo em junho de 2021, depois de em 29.01.2021 ter cometido os factos que, mais tarde determinariam a sua condenação pela prática de um outro crime de burla.

Daí concluiu pela impossibilidade de se olhar a conduta destes autos como episódio único e isolado no percurso da arguida.

Os factos praticados revelam, aliás, uma personalidade muito apartada do Direito e das regras de convivência em sociedade. Como se escreveu na sentença recorrida:

“(…) a arguida era a única titular da conta bancária para a qual foi transferida a quantia por parte (…) de terceiro (CC) por instruções do ofendido, tendo a arguida efetuado no próprio dia e nos dias imediatamente seguintes compras e levantamentos. Ou seja, a ficha de identificação de cliente e respetivo extrato bancário, conclui-se que foi a arguida quem se apossou da quantia em causa, nunca a tendo devolvido ao ofendido, ficando com a mesma (…). Esta documentação deita por terra a versão da arguida constante na contestação, porquanto, à data da transferência a arguida apenas tinha um saldo de 0,79 cêntimos e que, após a transferência dos 2 250,00 euros, a arguida gastou tal quantia em compras e executou levantamentos, pelo que concluiu o Tribunal que os documentos respeitantes a queixas crimes apresentadas pela arguida não são mais que uma manobra diversão para tentar, sem sucesso, escamotear a sua responsabilidade. Ora se a arguida sabe que tem a conta aprovisionada em 0,79 cêntimos e após a transferência e no mesmo dia executa compras e levantamentos, efetuando apostas na …, como não tinha noção ou desconhecia da proveniência de tal quantia? Um cidadão cauteloso, verificando que recebeu dinheiro na sua conta sem justificação, não o gasta em compras, levantamentos ou procede a apostas no …. Mas outrossim, pede ao seu banco para devolver tal quantia à conta origem. Portanto, as queixas crimes só revelaram a atitude interna da arguida e que a mesma possui uma personalidade desfasada dos ditames ao direito.

(…)”.

Ao contrário do que afirma a defesa, não ignorou o Tribunal a quo a situação económica da arguida. Com a recusa de colaboração da arguida (que, apesar de convocada, não comparecer perante os serviços de reinserção social, para prestar esclarecimentos quanto à sua situação pessoal e económica), não foi possível apurar mais do que consta da sentença recorrida – sabe-se que a arguida não aufere rendimentos declarados à Segurança Social, sabendo-se ainda que integrou no seu património os proventos obtidos com a prática do crime.

Isso mesmo considerou o Tribunal a quo, na fixação do quantitativo diário da pena de multa, optando pelo mínimo legal (tal quantitativo é fixado entre 5,00€ e 500,00€).

Perante todas as considerações tecidas, não pode deixar de concluir-se que a Recorrente não tem razão ao acusar o Tribunal a quo de não ter tomado em devida conta as circunstâncias relevantes a que faz apelo. Tomou essas circunstâncias em adequada conta, tal como as demais relevantes.

A pena de multa foi adequadamente fixada, não tendo o Tribunal a quo deixado de considerar qualquer circunstância atenuante de relevo no caso concreto. Foi fixada a medida concreta da pena de multa correspondente ao crime de burla em ponto próximo dos dois terços da moldura penal abstrata, é certo. Mas tendo em consideração os factos anteriormente cometidos e a gravidade dos factos em causa nestes autos, bem como todas as acentuadas necessidades de prevenção (geral e especial), mostra-se plenamente justificado o doseamento, naquela que poderá muito bem ser a derradeira situação em que a preferência por pena não privativa da liberdade se deve considerar ainda suficiente para atingir os fins das penas.

Efetivamente, ponderou o Tribunal recorrido todos os fatores relevantes (e não apenas aqueles a que a recorrente apela quando pretende a redução da punição), fazendo-o de forma adequada e equilibrada. Ponderados todos os contornos do caso concreto, não se surpreende qualquer razão válida para justificar uma reação penal mais branda perante os atos da recorrente.

Concluímos, pois, pela improcedência do recurso.

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V. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, em confirmar a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.

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Tributação.

Condena-se a arguida no pagamento da taxa de justiça de 3 (três) UC.

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D.N.

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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 25 de março de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Artur Vargues (1º Adjunto)

Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta)

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1 Cfr. Ac. Do STJ de 27 de maio de 2009 – Relator: Conselheiro Raúl Borges; acessível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e11c50996991c5df802575f20052ae77?OpenDocument