LEI Nº38-A/2023
DE 2 DE AGOSTO
ARTIGO 7º
N.º 1
D)
II)
CONSTITUCIONALIDADE DA NORMA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

O princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da “diferença” de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação
No domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objetivamente iguais. O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais.” [negrito nosso].
Foi o que sucedeu precisamente com a formulação da norma ínsita ao art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, tendo o legislador procedido a uma exclusão do âmbito de aplicação do perdão de penas e da amnistia de infrações de um catálogo de crimes não condizente com a própria natureza do evento que lhe deu origem (Jornada Mundial da Juventude), de natureza cristã católica e promotora da uma sadia convivência comunitária do seu público alvo, em idade formativa da sua personalidade.
Pretendendo ser um vetor de valores comunitários comuns, compreende-se assim a opção legislativa, razoável, criteriosa e proporcional de não estender o perdão e a amnistia de penas ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal.
Conclui-se assim que a delimitação do catálogo de exclusões em apreço, aplicada de forma geral e abstrata a todos os arguidos infratores, sem qualquer acompanhamento de regras que diferenciem situações objetivamente iguais (nenhum agente do crime de condução em estado de embriaguez beneficiará de qualquer perdão de pena ou amnistia do ilícito), não encerra em si qualquer violação do princípio da igualdade previsto pelo art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.
Consequentemente, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez é insuscetível de ser amnistiado nos termos do art.º 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se verificando inconstitucionalidade material da norma resultante do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, por violação do princípio da igualdade.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Competência Genérica de …, precedendo acusação deduzida pelo Ministério Público, foi, proferida sentença em 19 de setembro de 2024 na qual se decidiu (transcrição):

“Nestes termos, e pelo exposto, o Tribunal decide:

a) Condenar a arguida AA pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 26.º e 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, com desconto de 1 (um) dia de detenção ao abrigo dos presentes autos, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, no total de 69 (sessenta e nove) dias de multa à taxa diária de € 6,50 (s eis euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o total de € 448,50 (quatrocentos e quarenta e oito euros e cinquenta cêntimos);

b) Condenar a arguida AA, nos termos do art.º 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias;

c) Condenar a arguida AA nas custas criminais, fixando se a taxa em 3UC, e demais encargos processuais, nos termos dos artigos 51 3.º, n.ºs 1 e 3, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa a este diploma legal, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário existente;

d) Ordenar, após trânsito em julgado da sentença:

i. A remessa de boletins aos Serviços de Identificação Criminal, nos termos dos artigos 5.º, 6.º, n.º 1, alínea a), 7.º, n.º 2, da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio;

ii. Comunicação da presente decisão à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (art.º 500.º, n.º 1, do Código de Processo

*

Declaram se extinta(s) a(s) medida(s) de coação aplicada(s) à arguida nos presentes autos, com exceção do termo de identidade e residência, que apenas se extinguirá com a extinção da pena (art.º 214.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal).

*

Deve a arguida, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, entregar o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido nos autos, podendo fazê-lo na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, sob pena de a mesma lhe poder vir a ser apreendida (artigos 69.º, n.º 3, do Código Penal e 500.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal), e vir a incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e pu nível pelo art.º 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.

*

Deverá ainda a arguida ficar ciente de que se for surpreendida a conduzir veículo a motor durante o período de proibição acima fixado praticará um crime de violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punível pelo art.º 353.º do Código Penal.

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Deposite (art.º 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).”.

*

Inconformada com a decisão final, a arguida interpôs recurso, pugnando pela declaração de inconstitucionalidade material da norma resultante do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, e peticionando que seja “julgada a amnistia da infração imputada à recorrente” e “Determinado o arquivamento dos autos”.

Extraiu da respetiva motivação a seguinte conclusão:

“Quando numa dimensão normativa concreta, se prever que, a norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, impede a amnistia das infrações nelas previstas, em conflito positivo com o disposto no artigo 4º, do mesmo diploma, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, porquanto trata de modo desigual, ilícitos, com a mesma moldura da pena, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

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O recurso foi admitido e fixado regime de subida e efeito.

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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, sufragando na íntegra a posição tomada na sentença condenatória, que se apresenta sustentada no citado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 232/2003, de 2003/05/13, que se debruçou sobre a pretensão e argumentos subjacentes esgrimidos pela arguida, concluindo que o recurso deverá ser julgado totalmente improcedente, “porquanto não se encontra violado o princípio da igualdade, constitucionalmente protegido, ou sequer qualquer outro”.

*

No Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos:

“A questão colocada à alta apreciação de Vossas Excelências, Ilustres Desembargadores prende-se em saber se deve a arguida beneficiar da Lei da Amnistia (Lei 38-A/2023 de 02.08).

Numa segunda linha de defesa, a arguida pretende que “A. Declarada a inconstitucionalidade material da norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º , d), ii), por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa

*

Não tem razão a arguida em ambos os segmentos da sua defesa.

*

Com efeito, através da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, o legislador procedeu ao perdão de diversas penas e à amnistia de algumas infracções criminais.

A amnistia concedida é aplicável a ilícitos praticados até 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do crime (art. 2º nº 1 do diploma legal).

No que releva para os presentes autos resulta do art. 4º da referida Lei que são amnistiadas as infracções penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.

Face ao disposto no artº 128 nº 2 do CP, a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.

No caso em apreço nos presentes autos, a arguida foi condenada por factos ocorridos em 30.03.2023.

À data da prática dos factos, a arguida tinha 23 (vinte e três) anos de idade.

Veio a ser condenada, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artº 292 nº 1 do CP.

Com efeito, no dia referido nos autos conduzia um veículo automóvel, na localidade de Rio Maior, na via pública, com uma TAS de 1,596 g/l sangue (correspondente à TAS de 1,68 g/l, após a dedução do erro máximo admissível).

Importa referenciar que o art. 7º nº 1 al. d) § ii) exclui a aplicação da amnistia concedida naquela Lei 38-A/2023, no que concerne a casos de condução de veículo em estado de embriaguez, nos seguintes termos:

Artigo7º

Exceções

1 — Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(...)

d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por:

(...)

ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291º e 292º do Código Penal.

*

Resulta, no nosso modesto parecer que o legislador quis subtrair da aplicação da Lei da Amnistia a que nos vimos a referir os crimes rodoviários - atenta a gravidade e frequência da sua prática e as suas, muitas vezes, trágicas consequências.

Com efeito, pode concluir-se que a amnistia não é aplicável ao caso dos autos, por se subsumir à exceção à sua aplicação e a que alude o artigo 7.º, n.º 1, al. d), ii) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, sendo esta a interpretação que mais se coaduna com o pensamento do legislador, com a coerência sistemática do Diploma e com o elemento histórico, não sendo tal interpretação contrária à letra da lei e nela encontrando um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso

Finalmente, importa referenciar o Ac. da Relação de Évora de 21.05.2024, procº 51/23.7GTABF.E1, relator Fernando Pina onde se consagra: “…I - O crime de condução de veículo em estado de embriaguez está excluído da amnistia concedida pela Lei nº 38-A/2023, de 02/08, independentemente da fase processual em que os autos respetivos se encontrem.

II - O artigo 7º da Lei nº 38-A/2023, de 02/08, muito embora utilize a expressão “condenados” (“não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei ... os condenados por ... crimes … de condução de veículo em estado de embriaguez”), exclui a aplicação da amnistia em causa a todos os agentes que forem autores do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tenham, ou não, sido já “condenados”

Cumpre referenciar que a Lei 29/1999 de 12.05 (Lei da Amnistia) também não contemplava a condução de veículo em estado de embriaguez.

A esse propósito o Ac. Relação do Porto de 20.10.1999, processo 9910789, relator Correia de Paiva onde se consagra (sumário): O crime do artigo 292 do Código Penal - condução de veículo em estado de embriaguez - não se encontra abrangido pela amnistia concedida pela Lei n.29/99, de 12 de Maio, face ao disposto no seu artigo 2 n.1 alínea c), em que a " demais legislação rodoviária " aí referida abarca o que o Código Penal dispõe sobre condução com taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

*

Nesta conformidade e com o respaldo dos acórdãos referidos somos de parecer que não assiste qualquer razão à arguida.

*

Relativamente à constitucionalidade da norma e a eventual violação do princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional têm entendido, em diversos acórdãos (ainda que sobre a questão da idade, 16 e 30 anos) que tal norma não ofende o princípio da igualdade

*

Nesta conformidade e atento tudo o que se deixou exposto deverão Vossas Excelências, Juízes Desembargadores, negar provimento ao recurso apresentado pela arguida AA e manter a douta sentença proferida na 1ª instância”.

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Cumprido o disposto no artigo 417º, nº2, do Código de Processo Penal, a arguida veio apresentar resposta ao parecer, mantendo os termos do recurso.

*

No exame preliminar, o Relator proferiu decisão sumária em 26 de fevereiro de 2025, rejeitando o recurso por manifesta improcedência, nos termos dos artigos 417º, nº 6, alínea b) e 420º, nº 1, alínea a), do CPP.

*

Notificada desta decisão sumária, a recorrente/arguida veio reclamar para a conferência, com os fundamentos que se transcrevem:

“AA, Reclamante, nos autos melhor referenciados à margem, apresenta a sua, ALEGAÇÃO, nos termos e com os fundamentos seguintes,

A. Motivação

1. A Recorrente, pela sua idade, pela data da ocorrência do alegado ato ilícito, e, pela moldura penal do alegado ato ilícito, encontra-se abrangida pela denominada Lei da Amnistia, artigo 4º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a qual determinou a amnistia de infrações penais, cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, como no caso em concreto.

2. A Recorrente foi acusada de “(…) incorreu na prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 69.º, n.º 1, alínea a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal.”.

3. Deve, assim, com esse fundamento, ser julgado amnistiada a alegada infração praticada pela Recorrente, e, em consequência determinado o arquivamento do processo.

4. É publica a jurisprudência, que numa apreciação da alegada prática de uma infração por omissão de auxilio, foi aplicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, tendo sido julgada a amnistia da infração, e, arquivado o processo.

5. Assim, o disposto no artigo 7º, n.º , d), ii), viola o princípio da igualdade, por arbítrio legislativo, porquanto, todos os cidadãos são iguais perante a lei, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

6. O processo parlamentar da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/analise-juridica/parlamento/38-a-2023-216630826, que se dá reproduzido, evidencia a elaboração da mesma, assente em várias sensibilidades, influenciadas por posições ideológico/partidárias, que se afastam da racionalidade e coerência legislativa, quanto à teoria das penas e da sua medida.

7. A gravidade da infração é graduada, pela moldura da pena aplicável a cada ilícito penal. É pela pena aplicável, a cada infração, a gravidade e necessidade de prevenção, das condutas ilícitas.

8. A gravidade da infração, não é graduada, nem o pode ser, por posições ideológico/partidárias, da maioria dos titulares dos mandatos de deputados, na Assembleia da República, em atos legislativos fortuitos e de duração determinada, motivada, por estados de alma, ou, motivos religiosos.

9. No processo legislativo, não é perceptível, ou, compreensível, os fundamentos pelos quais, com a mesma moldura penal, por exemplo, o crime de omissão de auxílio é amnistiado, e, a alegada infração praticada pela Recorrente, o não é.

10. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio. Da proibição do discricionário.

11. O disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, é um arbítrio legislativo. É uma opção ideológica, que fere a medida da pena.

12. A norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, quando impede a amnistia das infrações nelas previstas, em conflito positivo com o disposto no artigo 4º, do mesmo diploma, nos termos expressos supra, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, porquanto trata de modo desigual, os ilícitos com a mesma moldura da pena, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

13. O legislador quis amnistiar todos os crimes, com a moldura penal, não superior a um ano de prisão.

14. Se o legislador, considerasse mais nefasta a condução sob o efeito do álcool, teria, previamente e em sede própria, procedido a alteração legislativa ao Código Penal, atribuído uma moldura penal, diferenciada, por mais grave, aos crimes praticados sob o efeito do álcool, o que não realizou.

15. Esta opção do Legislador, quanto à norma atacada, não trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições, porquanto diferencia, nos abrangidos pela mesma moldura penal, os que são amnistiados dos que não são amnistiados, de acordo com a ideologia dos autores do ato legislativo, e, não com fundamento na lei pré existente.

16. Como é referido no preâmbulo do Decreto Lei n.º 48/95, de 15 de Março, “2. Não sendo o único instrumento de combate à criminalidade, o Código Penal deve constituir o repositório dos valores fundamentais da comunidade. As molduras penais mais não são, afinal, do que a tradução dessa hierarquia de valores, onde reside a própria legitimação do direito penal.”

17. A necessidade de estabelecer uma hierarquia de valores fundamentais da comunidade, é graduada, previamente, atendendo à respetiva moldura penal atribuída, e não, à posterior, por apreciações casuísticas, de acordo com os estados de alma, dos titulares do Parlamento.

18. A diferenciação de crimes, com uma moldura penal igual, serem abrangidos ou não pela amnistia, é, assim, arbitrária, ferindo a legitimação do direito penal.

B. Conclusões

19. O Legislador quis amnistiar todos os crimes, com a moldura penal, não superior a um ano de prisão.

20. Se o Legislador, considerasse mais nefasta a condução sob o efeito do álcool, teria, previamente e em sede própria, procedido a uma alteração legislativa ao Código Penal, atribuído uma moldura penal, diferenciada, por mais grave, aos crimes praticados sob o efeito do álcool, o que não realizou.

21. Esta opção do Legislador, quanto à norma atacada, não trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições, porquanto diferencia, nos abrangidos pela mesma moldura penal, os que são amnistiados dos que não são amnistiados, de acordo com a ideologia dos autores do ato legislativo, e, não com fundamento na lei pré existente.

22. Como é referido no preâmbulo do Decreto Lei n.º 48/95, de 15 de Março, “2. Não sendo o único instrumento de combate à criminalidade, o Código Penal deve constituir o repositório dos valores fundamentais da comunidade. As molduras penais mais não são, afinal, do que a tradução dessa hierarquia de valores, onde reside a própria legitimação do direito penal.”

23. A necessidade de estabelecer uma hierarquia de valores fundamentais da comunidade, é graduada, previamente, atendendo à respetiva moldura penal atribuída, e não, à posterior, por apreciações casuísticas, de acordo com os estados de alma, dos titulares do Parlamento.

24. A diferenciação de crimes, com uma moldura penal igual, serem abrangidos ou não pela amnistia, é, assim, arbitrária, ferindo a legitimação do direito penal.

25. Quando numa dimensão normativa concreta, se prever que, a norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, impede a amnistia das infrações nelas previstas, em conflito positivo com o disposto no artigo 4º, do mesmo diploma, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, porquanto trata de modo desigual, ilícitos, com a mesma moldura da pena, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Pelo exposto,

Deve, sempre com o douto suprimento de V. E.xa, ser,

A. Declarada a inconstitucionalidade material da norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º , d), ii), por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

B. Julgada a alegada infração imputada à recorrente, amnistiada.

C. Determinado o arquivamento dos autos.”.

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A reclamação para a conferência foi admitida.

*

Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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Cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação.

No caso sub judice a questão suscitada pela recorrente é a da inconstitucionalidade material da norma resultante do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, por violação do princípio da igualdade.

A aludida decisão sumária de 26 de fevereiro de 2025 tem o seguinte teor, na parte relevante (transcrição):

«A arguida alega o seguinte:

“1. A Recorrente, pela sua idade, pela data da ocorrência do alegado ato ilícito, e, pela moldura penal do alegado ato ilícito, encontra-se abrangida pela denominada Lei da Amnistia, artigo 4º, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a qual determinou a amnistia de infrações penais, cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa, como no caso em concreto.

2. A Recorrente foi acusada de “(…) incorreu na prática, em autoria material, de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 69.º, n.º 1, alínea a) e 292.º, n.º 1 do Código Penal.”.

3. Deve, assim, com esse fundamento, ser julgado amnistiada a alegada infração praticada pela Recorrente, e, em consequência determinado o arquivamento do processo.

4. É publica a jurisprudência, que numa apreciação da alegada prática de uma infração por omissão de auxilio, foi aplicada a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, tendo sido julgada a amnistia da infração, e, arquivado o processo.

5. Assim, o disposto no artigo 7º, n.º , d), ii), viola o princípio da igualdade, por arbítrio legislativo, porquanto, todos os cidadãos são iguais perante a lei, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

6. O processo parlamentar da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/analise-juridica/parlamento/38- a-2023-216630826, que se dá reproduzido, evidencia a elaboração da mesma, assente em várias sensibilidades, influenciadas por posições ideológico/partidárias, que se afastam da racionalidade e coerência legislativa, quanto à teoria das penas e da sua medida.

7. A gravidade da infração é graduada, pela moldura da pena aplicável a cada ilícito penal. É pela pena aplicável, a cada infração, a gravidade e necessidade de prevenção, das condutas ilícitas.

8. A gravidade da infração, não é graduada, nem o pode ser, por posições ideológico/partidárias, da maioria dos titulares dos mandatos de deputados, na Assembleia da República, em atos legislativos fortuitos e de duração determinada, motivada, por estados de alma, ou, motivos religiosos.

9. No processo legislativo, não é perceptível, ou, compreensível, os fundamentos pelos quais, com a mesma moldura penal, por exemplo, o crime de omissão de auxílio é amnistiado, e, a alegada infração praticada pela Recorrente, o não é.

10. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio. Da proibição do discricionário.

11. O disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, é um arbítrio legislativo. É uma opção ideológica, que fere a medida da pena.

12. A norma resultando do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, quando impede a amnistia das infrações nelas previstas, em conflito positivo com o disposto no artigo 4º, do mesmo diploma, nos termos expressos supra, padece de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, na vertente de arbítrio legislativo, porquanto trata de modo desigual, os ilícitos com a mesma moldura da pena, artigo 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.”

Sobre a questão da inconstitucionalidade material da norma resultante do disposto no artigo 7º, n.º 1, d), ii), da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, porque foi suscitada nos autos pela defesa, pronunciou-se a sentença recorrida nos seguintes termos:

“A arguida veio, por requerimento entrado em juízo em 2024/09/10 (ref.ª eletrónica …), data designada para realização da audiência de julgamento, invocar a inconstitucionalidade da norma contida no art.º 7.º da Lei n.º 1, alínea d), ii), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que exceciona do perdão e da amnistia previstos naquele diploma legal à luz da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, por violação do princípio da igualdade por arbítrio legislativo, requerendo, consequentemente, seja amnistiado o crime a si imputado, entendendo verificarem-se preenchidos os requisitos de idade e de data de prática dos factos subjacentes, com o consequente arquivamento dos autos.

Dado o contraditório ao Ministério Público no início da audiência de julgamento que teve lugar na referida data de 2024/09/10, foi pelo Digníssimo Procurador da República promovido o indeferimento da pretensão da arguida.

*

Apreciando.

Relembrando, a arguida AA vem acusada nos presentes autos pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal, o qual estatui que “[q]uem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.

Dispõe o art.º 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, (que veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude), que “[e]stão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Por seu turno, o art.º 4.º do mesmo diploma legal prevê que “[s]ão amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.”.

E o art.º 7.º, n.º 1, alínea d), ii), dispõe ainda, no que ao caso releva, que “[n]ão beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) d) No âmbito dos crimes contra a vida em sociedade, os condenados por: (…) ii) Crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal”.

Tratou este último normativo, portanto, de proceder a uma exclusão do perdão de penas e da amnistia de infrações de um conjunto de ilícitos expressamente discriminados, nos quais se inclui o crime imputado à arguida nestes autos.

E é contra esta específica exclusão que se insurge agora a arguida, entendendo que resulta de arbitrariedade legislativa, violando assim o princípio da igualdade ínsito ao art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa, o qual estatui que:

“1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.

Como bem se nota na jurisprudência pertinente ao tema provinda do Tribunal Constitucional,

“igualdade não é igualitarismo”1, pelo que importa desenvolver a dimensão material do princípio em apreço.

Isso mesmo foi levado a cabo com assinalável mestria e cristalina clareza no AcTC n.º 232/2003, de 2003/05/13, in www.tribunalconstitucional.pt/ onde, refletindo-se amplamente sobre jurisprudência e doutrina, nacional e estrangeira, se nota que:

“[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula diretamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade direta, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República II Série, de 12 de Setembro de 1990). (…)

O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objetivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C. Vieira de Andrade – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cfr., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da “diferença” de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação. (…)

O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respetivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”. (…) [negrito nosso].

No fundo, “(…) vistas as coisas na ótica da igualdade em sentido material, e enquanto princípio vinculador do próprio legislador, (…) exige[-se] que a lei dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e trate de forma distinta o que for dissemelhante. O princípio da igualdade não comporta, pois, uma proibição absoluta de discriminações no tratamento legal de uma dada matéria, mas tão somente que essas discriminações sejam arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante (…)”2, sendo que “(…) o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat (…)”3.

Aflorando já a temática do concreto caso que nos ocupa nos autos (i.e., a opção político-legislativa de exclusão da aplicação do perdão e da amnistia a certos crimes ou categorias de crimes), veio o Supremo Tribunal de Justiça no AUJ n.º 2/2023, publicado no Diário da República n.º 23/2023, Série I, de 2023/02/01, págs. 22-41, e respeitante à lei de clemência n.º 9/2020, de 10 de abril, referir que o princípio da igualdade “[e]xige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado […] O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado, quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante”. (…) Todavia, no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objetivamente iguais. O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais.” [negrito nosso].

Foi o que sucedeu precisamente com a formulação da norma ínsita ao art.º 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, tendo o legislador procedido a uma exclusão do âmbito de aplicação do perdão de penas e da amnistia de infrações de um catálogo de crimes não condizente com a própria natureza do evento que lhe deu origem (Jornada Mundial da Juventude), de natureza cristã católica e promotora da uma sadia convivência comunitária do seu público alvo, em idade formativa da sua personalidade.

Pretendendo ser um vetor de valores comunitários comuns, compreende-se assim a opção legislativa, razoável, criteriosa e proporcional de não estender o perdão e a amnistia de penas ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo art.º 292.º, n.º 1, do Código Penal.

Conclui-se assim que a delimitação do catálogo de exclusões em apreço, aplicada de forma geral e abstrata a todos os arguidos infratores, sem qualquer acompanhamento de regras que diferenciem situações objetivamente iguais (nenhum agente do crime de condução em estado de embriaguez beneficiará de qualquer perdão de pena ou amnistia do ilícito), não encerra em si qualquer violação do princípio da igualdade previsto pelo art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.

Consequentemente, é o crime imputado à arguida insuscetível de ser amnistiado nos termos do art.º 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

*

Pelo exposto, improcede a invocada inconstitucionalidade e, consequentemente, a aplicação ao crime sub judice da amnistia prevista pelo art.º 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto”.

As considerações que se verteram na douta sentença acerca da questão são absolutamente corretas e merecem a nossa adesão.

A elas acrescentaremos que não nos poderemos olvidar da natureza das medidas decretadas pela Lei nº 38-A/2023 – medidas de Direito de Graça ou Clemência.

Tais medidas têm, como já há muito se vem referindo, um carácter subversivo de princípios do moderno Estado de Direito, incidindo sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais e permitindo a intromissão de outros poderes na administração da justiça. Mas esse carácter subversivo não pode ultrapassar limites intransponíveis do Estado de Direito Democrático, estando o Direito de Graça igualmente submetido aos princípios da igualdade e da proibição do arbítrio.

A explicação da afirmação que deixamos pode ser encontrada no texto do Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2001, de 14 de Novembro (publicado no Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 2001-11-14), onde se lê:

“2 - Amnistia significa, tal como o vocábulo grego que lhe serviu de étimo, esquecimento. É a abolição da incriminação de um facto passado.

Embora inexistindo, actualmente, na lei, uma definição de amnistia, é aquela uma ideia assumida pela jurisprudência e pela generalidade da doutrina, nacional e estrangeira. A amnistia aniquila os factos já ocorridos como objecto da incriminação, «de sorte que aos olhos da justiça, por uma ficção legal, considera-se como se nunca tivessem existido, salvos os direitos de terceiro com relação à acção civil para a reparação do dano», conforme as considerações de N. Paiva e de L. Osório, apud Notas, 2.ª ed., p. 425 (extracto do estudo «As medidas de graça no Código Penal e no projecto de revisão», de M. Maia Gonçalves, in RPCC, ano 4, fasc. 1, p. 13).

Concepção que, segundo o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 689), embora tenha uma longa tradição, não se apresenta, todavia, à luz da «estadualidade de direito» subjacente à Constituição da República Portuguesa, como a mais rigorosa ou mesmo aceitável, pois, na verdade, «o direito de graça só pode ter a ver, em qualquer dos casos, com a consequência jurídica, não com o facto ou o crime praticados», pelo que «o que distingue os vários institutos abrangidos por aquela realidade é o carácter geral da amnistia (dirigida a grupos de factos ou agentes, na qual se inclui o perdão genérico, que deve ser considerado, para todos os efeitos, uma verdadeira amnistia) em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)».

Numa breve resenha histórica da evolução dos conceitos em causa, que cremos ser relevante para a dilucidação da questão sub judice, seguindo de perto os ensinamentos daquele ilustre mestre (cf. declaração de voto no parecer 13/79 da Comissão Constitucional, in Pareceres, 8.º vol., pp. 107 e segs.), dir-se-á que:

Nos períodos da monarquia absoluta e do Estado de polícia a amnistia fazia parte - conjuntamente com o perdão de pena, o indulto e a comutação, dos quais, teórica e praticamente mal se distinguia - do acervo de actos indiferenciados de graça ou de clemência, que exclusivamente cabiam na indulgentia principis: só o soberano, como supremo e em rigor único titular do poder do Estado, tinha competência para os actos que constituíam a expressão pura do arbítrio real.

Contra esse estado de coisas reagiu, compreensivelmente, a Revolução Francesa e todas as correntes de pensamento coevas, dominadas pelos desejos de legalidade e igualdade estritas. Todavia, se, por um lado, era indiscutível a função política que em certas circunstâncias os actos de clemência ou de graça cumpriam (temperar a dureza da justiça, quando particulares circunstâncias políticas, económicas e sociais houvessem tornado aquele rigor aberrante e iníquo), era, por outro, inestimável a oportunidade deles quando se destinassem a corrigir efeitos legislativos ou de aplicação do direito ou erros judiciários. Por último, era conveniente o seu uso quando se propusessem finalidades político-criminais ligadas à reabilitação dos delinquentes.

Por tais razões, o Estado de direito liberal acolheria tais medidas no seu seio, imputando a competência para a prática de tais actos ao rei, como «poder moderador», em compatibilização com o princípio básico da separação dos poderes, situação de que foi exemplo o nosso Código Penal de 1852, onde tanto o poder de amnistiar como o de perdoar constituíam «actos reais.»

Não deixaram, porém, as assembleias legislativas de reivindicar pelo menos uma parte dessa competência, tornando-se então largamente dominante a distinção entre amnistia em sentido amplo, que caberia no poder das assembleias, e um perdão, indulto ou graça, cujo exercício caberia ao chefe de Estado ou equivalente.

Aquela, abrangendo tanto a amnistia própria (anterior à condenação) como a imprópria (a posterior à condenação), era entendida como medida jurídica (pertencente ao mundo do direito e portanto sujeita ao controlo jurisdicional), distinguia-se basicamente do perdão ou indulto, entendido, pelo contrário, como medida graciosa, pré-jurídica (portanto, jurisdicionalmente incontrolável).

Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se reflectiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.

É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de actos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).

Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contraface do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).

Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.

Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.

É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).”.

Igualmente esclarecedores são os contributos que se acham no ainda recente Acórdão Unificador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/20234, de 1 de Fevereiro, onde se lê:

“C. Do Direito de Graça e afins

6 - Ora, o direito de graça, em que se integra o perdão de penas, consubstancia a "contraface do direito de punir estadual", consubstanciando um caminho "para obviar incorrecções legislativas ou a erros judiciários [...] como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal, ou [...] à socialização do condenado"(…).

Assim, as medidas de graça ou de clemência são uma "reminiscência do direito de graça que o soberano detinha quando concentrava em si todos os poderes estatais, incluindo os de castigar e de perdoar", subvertendo os "princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça"(…).

Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação(…). A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente(…).

Assim, "[...] o Estado-de-Direito metamorfoseou o direito de graça, passando a encará-lo através de outro prisma, e aproveitou-o como instrumento útil na realização de uma autêntica justiça. Criteriosamente administrado, o direito de graça pode servir para a realização da justiça nos casos em que a aplicação da lei, na sua generalidade a abstracção, dá lugar a decisões concretas materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas"(…).

Tais medidas de graça não estão expressamente previstas a se no âmbito da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se apenas mencionadas aquando da referência aos poderes do Presidente da República (indulto e comutação da pena, nos termos do artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e do Parlamento (amnistia e perdão genérico, previstos no artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa).

"O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral da amnistia (dirigido [...] a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)"(…).

"A amnistia é, pois, uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República. Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos. No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).

O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia. Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).

Designa-se por amnistia a medida de graça, de carácter geral, aplicada em função do tipo de crime, e perdão genérico a medida de graça geral aplicada em função da pena.

Visto que o perdão genérico é, como se disse, aplicado em função da pena, ele tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena"(…).

Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, "apagando" a natureza criminal do facto, o perdão implica que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas.

"A amnistia serve para libertar o agente de um processo penal ainda em curso ou do cumprimento de uma pena, devida à prática de determinado crime. Significa isto que alguns bens jurídicos, protegidos pela legislação penal, são considerados menos importantes, em determinados contextos (por exemplo, em caso de necessidade de pacificação social), razão pela qual a sua protecção pode ser sacrificada reotractivamente. Contudo, tal não significa que a amnistia implique a ausência de dignidade punitiva do acto ilícito.”.

Tendo presente tudo isto, importa encontrar resposta para a questão a decidir: a solução normativa vertida na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, exclui da aplicação das medidas de clemência os crimes de condução perigosa de veículo rodoviário e de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal - art.º 7.º, n.º 1, alínea d), ii); estabelece uma diferenciação de tratamento entre esses os cidadãos a quem são imputados esses crimes e outros a quem são imputados crimes com a mesma moldura penal abstrata – deverá entender-se que tal diferenciação passa o crivo do princípio da igualdade a que as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas?

A busca de resposta para a questão a decidir remete-nos, pois, para a indagação acerca da ratio daquela diferenciação de tratamento entre crimes a que corresponde precisamente a mesma moldura penal, para se apurar se a mesma é “razoável, racional e objetivamente fundada” ou se, pelo contrário, como pretende a recorrente, é irrazoável e arbitrária.

Analisada a Lei constata-se ter havido por parte do legislador a clara preocupação em não amnistiar as infrações praticadas sob o efeito do álcool, já que os acidentes de viação representam um verdadeiro flagelo da época atual que ceifa a vida de centenas de pessoas e incapacita outras tantas anualmente, sejam elas punidas como ilícito contraordenacional ou como ilícito criminal. Particularmente, quando as estatísticas aumentam de dia para dia, fornecendo números alarmantes.

Daí que o legislador, consciente da importância nefasta que a condução sob o efeito do álcool tem nesses acidentes, não tenha ficado indiferente e, por essa razão, tenha excluído da aludida lei, os crimes praticados sob o efeito do álcool.

Esta opção do Legislador trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições e, por outro lado, opera distinção que assenta num critério objectivo e materialmente fundado – a nocividade dos crimes excluídos do benefício das medidas de clemência, expressa nas elevadíssimas taxas de sinistralidade que se verificam.

A escolha dos crimes a excecionar surge como expressão da margem de discricionariedade do Legislador para delimitação do universo dos destinatários das medidas, surgindo essa delimitação em conformidade com critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de Direito.

Aqui chegados, concluímos que a escolha do legislador encontra uma justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo e constitucionalmente relevantes, justificação compatível com os fins do Estado de Direito e, por isso, capaz de justificar a exclusão, em razão da nocividade dos crimes.

Somos, deste modo, uma vez mais, confrontados com o que se explicou no acórdão do Tribunal Constitucional nº 510/98, publicado no Diário da República, II Série, nº 242, de 20 de Outubro de 1998, em matéria de amnistia e de delimitação do seu campo de aplicação - se o legislador "pode demarcar esse campo em função de quaisquer fins admissíveis do Estado de direito, então também a sua discricionariedade é máxima".

A diferenciação não é arbitrária. E tanto basta para não dar como violados os princípios da igualdade e da proibição da discriminação.

Nestes termos, o recurso improcede manifestamente, devendo ser rejeitado.» * Vejamos, então, o mérito da reclamação. A reclamante insurge-se quanto ao entendimento do Juiz Relator expresso na decisão sumária de se verificar a manifesta improcedência do recurso, renovando tudo o que ali verteu nas alegações e conclusões. Ora, na decisão reclamada explicita-se cabalmente o fundamento do ponto de vista seguido, apoiado na jurisprudência nacional dos Tribunais Superiores e nas pertinentes normas legais, em ordem à demonstração da manifesta inviabilidade da pretensão da recorrente. Para além do que se escreveu na decisão sumária, nada mais se impõe acrescentar para extrair a conclusão de que a reclamação não merece ser acolhida. Impunha-se, e impõe-se, a rejeição do recurso, reiterando-se que não ocorreu violação de quaisquer princípios constitucionalmente consagrados, designadamente os da igualdade e da proibição da discriminação.

*

III – Decisão.

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, após conferência, em julgar improvida a presente reclamação, mantendo a decisão de rejeitar o recurso interposto pela arguida AA, por manifesta improcedência.

*

Condeno a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 UC’s.

*

D.n.

*

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 25 de março de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Artur Vargues (1º Adjunto)

Laura Goulart Maurício (2ª Adjunta)

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1 Cfr. AcTC n.º 488/2008, de 2008/10/07, in www.tribunalconstitucional.pt/.

2 Cfr. AcTC n.º 149/93, de 1993/01/28, in www.tribunalconstitucional.pt/.

3 Cfr. AcTC n.º 42/02, de 2002/01/31, in www.tribunalconstitucional.pt/.

4 Acessível em: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/2-2023-206800919