OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
TIPO DE CULPA AGRAVADO
Sumário

O tipo qualificado, previsto no artigo 145.º do Código Penal, funciona com base na cláusula geral conjugada com as circunstâncias qualificativas elencadas no artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal. Trata-se, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque: “de um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física por força da cláusula geral da especial censurabilidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo”.
Também defendendo estarmos perante um tipo agravado de culpa Figueiredo Dias refere: “Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º2”.
De igual forma, a jurisprudência tem entendido que estamos perante exemplos padrão que revelam a especial censurabilidade ou perversidade da conduta, actuando ao nível da culpa do agente.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica de … do Tribunal Judicial da Comarca de Évora corre termos o processo comum singular n.º 181/21.0GBRMZ, aí tendo sido, após julgamento, proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto julga-se a acusação pública e o pedido de indemnização civil totalmente procedentes por provados e, em consequência, decide-se:

A) Condenar o arguido AA pela prática em 06-02-2022 de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal na pena de 4 (quatro) meses de prisão.

B) Substituir a execução da pena de prisão a que se alude em A), pela pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de 660,00 € (seiscentos e sessenta euros), nos termos do disposto nos artigos 42.º e 45.º, ambos do Código Penal.

C) Condenar o arguido nas custas do processo crime, que se fixam pelo mínimo, nos termos do disposto nos artigos 513.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º do Regulamento de Custas Processuais por referência à tabela III daquele regulamento.

D) Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela Unidade Local de Saúde do …, EPE (ULS…-EPE) e, em consequência condenar o arguido AA a pagar-lhe, a título de danos patrimoniais, a quantia de 119,07 € (cento e dezanove euros e sete cêntimos), acrescido de juros vencidos e vincendos, a contar da data da notificação do respectivo pedido de indemnização e até efectivo e integral pagamento, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, ambos do Código Civil.

Sem custas pela instância cível, cfr. artigo 4º, nº 1 al. n) do Regulamento das Custas Processuais.”

Inconformado, o arguido interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1- O presente recurso vem interposto da douta sentença que condenou o arguido numa pena de prisão de 4 (quatro) meses de prisão substituída por pena de multa, como autor material e na forma consumada crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal;

2 - Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, em momento algum, ficou provada a factualidade pela qual o arguido foi condenado pelo Tribunal “a quo”;

3 - Todas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público não conseguiram determinar e provar que tenha sido o arguido, ora recorrente, o autor material do crime de ofensas à integridade física qualificada;

4 - Apenas o ofendido refere ter sido agredido pelo ora recorrente, indicando a identificação do mesmo às testemunhas;

5 - Decorre das regras da experiencia comum, é muito pouco provável, até impossível, dada a debilidade do ofendido, usando o mesmo de uma bengala, que já apresentava dificuldades de locomoção, factos estes dados como provados e

6 - que resultaram do depoimento das testemunhas, que o ofendido tivesse subido para um portão e que alcançasse um muro com 2 metros, 2, 5 metros de altura.

7 - Era igualmente impossível, face ao depoimento do ofendido, que este apresentasse tão somente uma ferida na face marcada pela haste dos óculos, como assim o referem todas as testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento;

8 - Pelo depoimento do ofendido teriam de ter resultado outras leões, tais como, sangramento, vermelhidão, inchaço, lesões essas não visíveis a nenhuma testemunha.

9 - Existe uma violação do principio IN DUBIO PRO REU, não existindo nos autos qualquer prova que permita com certeza condenar o ora recorrente, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas a) e c) do Código Penal;

Tal principio é o correlato processual do principio da presunção da inocência do arguido e funciona para absolver o arguido em relação ao qual acha dúvida da prática dos factos que preenchem um tipo de crime, sendo que impõe-se considerar a posição de inocência legalmente atribuída ao arguido e só através de uma prova inequívoca, atribuir a responsabilidade pela prática do crime, dissipando previamente todas as dúvidas que se suscitem até poder concluir-se, e com certeza, sobre a culpabilidade do mesmo.

10 - O Tribunal “a quo” não teve, assim, com todo o devido respeito, e salvo melhor opinião, a adequada ponderação dos factos, havendo provas que impõem diversa decisão da recorrida, sendo que a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão, havendo erro notório na apreciação da prova. Os depoimentos impõem uma decisão diversa daquela que foi proferida.”

Pugnando, a final:

“Nestes termos e nos demais de direito,

Deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se e revogando-se a douta sentença recorrida pelos fundamentos supra expostos, e substituída por uma que absolva o arguido da prática do crime de ofensas á integridade física qualificada

Termos em que deve o presente recurso ser recebido e, a final, considerado procedente (…).”

O recurso foi admitido.

O MP respondeu, concluindo que (transcrição):

“1. O Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos factos e das provas constantes dos autos e, nessa medida, não incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 410.º, n.º a al. a) do Código de Processo Penal;

2. O Tribunal a quo apreciou devidamente os depoimentos das testemunhas, bem como os demais elementos probatórios existentes nos autos, designadamente a documentação clínica e pericial;

3. O Recorrente visa apenas e tão só por em causa a apreciação que o Tribunal a quo fez da prova produzida e que se estribou na sua convicção com alicerce no princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal;

4. Os limites impostos pela lei a este princípio são a proibição de provas ilegais ou nulas (artigo 126.º do Código de Processo Penal), a existência de provas vinculadas, sendo exemplo a prova pericial (artigo 163.º do Código de Processo Penal), as limitações decorrentes dos depoimentos indiretos ou vozes públicas (artigos 129.º e 130.º do Código de Processo Penal), os documentos autênticos e autenticados, ainda que possam ser postos em causa (artigo 169.º do Código de Processo Penal) e, por fim, não podem ser valoradas as provas que não forem produzidas em audiência de julgamento (artigo 355.º do Código de Processo Penal). No mais, este princípio traduz-se na apreciação das provas indicadas e produzidas em audiência, ancorada nas regras de experiência comum, ou seja, “em regras de comportamento que exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes (id quod plerumque accidit)”;

5. O Tribunal a quo entendeu, com base neste princípio, que o Recorrente praticou os factos constantes da factualidade dada como provada e valorizou os depoimentos que o Recorrente quer descredibilizar, sobretudo o depoimento sofrido do ofendido, pai do arguido, por ter sido o único que, além do arguido, presenciou os factos;

6. Não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova, nem qualquer outro, porquanto, a convicção do Tribunal a quo não assentou em raciocínios contrários à lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, convicção essa que o tribunal a quo não deixou de fundamentar, e bem, nos termos do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal;

7. A sentença proferida não nos merece qualquer censura e não violou qualquer disposição legal, designadamente o disposto no artigo 410.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo Penal.

8. Em suma, a decisão recorrida não merece censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Nestes termos e nos melhores de Direito deve o recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se a sentença condenatória, nos seus precisos termos (…).”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação concluiu: “sou de parecer que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta sentença recorrida.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal1, sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II. Fundamentação:

Factos provados

Da produção de prova e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos, com relevo para o conhecimento da causa:

Da acusação

1. O arguido é filho do ofendido BB, o qual nasceu a … de 1939.

2. O ofendido reside com a sua esposa na habitação, de sua propriedade, sita na Rua …, …, …, em ….

3. Por sua vez, o arguido, pelo menos até 6 de Fevereiro de 2022, residia numa habitação anexa à aludida residência, a qual é independente da primeira, dispondo de uma entrada própria, sendo toda ela circundada por um muro, pese embora esteja inserida no terreno propriedade do ofendido.

4. No dia 6 de Fevereiro de 2022 entre as 14:00 horas e as 14:30 horas, o ofendido empoleirou-se junto ao muro que circunda a habitação do arguido e chamou o arguido para falar com este a respeito do fornecimento de água, solicitando-lhe que lhe facultasse o acesso a água para poder regar a sua horta.

5. De seguida, o arguido abeirou-se do ofendido e, na sequência de um desentendimento entre ambos a respeito do dito fornecimento de água, desferiu-lhe um número não concretamente apurado de socos no rosto, em concreto na zona do olho direito do ofendido, provocando-lhe dores.

6. Com a conduta descrita, o arguido provocou no ofendido uma equimose orbitária e infra palpebral direita, tendo o ofendido, nessa sequência, sido encaminhado para o Hospital …, onde recebeu assistência médica.

7. Tais lesões determinaram ao ofendido um período de doença de 8 dias sem afectação de capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

8. À data dos factos descritos supra, o ofendido tinha 82 anos de idade.

9. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde do ofendido, bem sabendo que a sua conduta era apta a causar-lhe as dores, lesões e doenças acima mencionadas.

10. Mais sabia o arguido que o ofendido era pessoa de provecta idade e que, por esse motivo, era uma pessoa particularmente frágil, vulnerável e desprotegida, uma vez que não tinha capacidade para poder reagir ou defender-se sozinha e, não obstante esse conhecimento, quis molestá-lo do modo acima descrito.

11. Sabia ainda o arguido que o ofendido era seu pai e que por isso lhe devia particular consideração e respeito, e não obstante esse conhecimento, quis molestá-la do modo acima descrito.

12. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Do pedido de indemnização cível

13. Como consequência das condutas do arguido descritas em 3 a 5 dos factos provados, no dia 06 de Fevereiro de 2022, o ofendido BB foi assistido no Serviço de Urgência do Hospital … – …, EPE..

14. A assistência médica prestada ao ofendido teve um custo no valor de 119,07 € (cento e dezanove euros e sete cêntimos).

Provou-se ainda que

15. O arguido vive no ….

16. O arguido não tem registadas remunerações na Segurança Social, não recebe qualquer subsídio, pensão ou apoio social por parte do Instituto da Segurança Social, I.P e não tem agregado familiar registado.

17. Do certificado de registo criminal do arguido não consta qualquer averbamento.

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Factos não provados:

Com relevância para a decisão da causa, não resultaram não provados quaisquer factos.

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Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes matéria conclusiva, irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma.

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Motivação:

O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada dos meios de prova produzidos, nomeadamente no assento de nascimento (fls. 96 a 97); documentação clínica (fls. 103 a 107); assento de nascimento (fls. 111 a 112); Informação do INEM (fls. 118 a 123); documentos juntos com o pedido de indemnização cível (fls. 163 a 165) e ainda na Perícia de Avaliação de dano corporal (fls. 62 a 64) e no CRC do arguido, bem como nas declarações das testemunhas ouvidas BB (ofendido), CC (bombeiro), DD (militar da GNR) e EE (militar da GNR).

Em detalhe:

A factualidade assente em 1 e 8 resulta dos assentos de nascimento de arguido e ofendido.

Já a factualidade assente em 3 a 5 decorre da conjugação das declarações do ofendido e das testemunhas ouvidas.

Assim, o ofendido, pai do arguido, ouvido em audiência de julgamento, prestou um depoimento muito credível, pela sua espontaneidade e emotividade, tendo explicado, com denotado sofrimento, considerando estar em causa factos praticados pelo seu filho, a relação que tinham, a forma como o arguido foi viver para perto do pai, tendo murado a zona do terreno do ofendido em que o arguido passou a viver.

Explicou que, por força de tal muro ficou sem acesso à água de que necessitava para os seus animais e para as suas culturas e que, naquele dia pediu água ao filho, tendo para o efeito subido a algo para se empoleirar e ficar acima do muro e que o filho, empoleirando-se numa cadeira do lado de dentro do muro, ficando ao mesmo nível que o ofendido, lhe deu uns murros na cara, até que o ofendido caiu.

As restantes testemunhas ouvidas não assistiram aos factos, tendo prestado nesse dia, a posteriori, assistência ao ofendido, tendo prestado um testemunho isento e credível.

As testemunhas DD e EE (militares da GNR), explicaram que no dia 06-02-2022 responderam a uma chamada nas …, onde teria havido agressões entre pai e filho.

Ali chegados, encontraram o ofendido ferido na face, junto ao olho, que lhes relatou que o filho lhe tinha batido na cara e que lhes tinham saltado os óculos.

Esclareceram que não encontraram o filho do ofendido e que o ofendido já apresentava dificuldades de locomoção naquela altura, apesar de estar mais ligeiro do que no dia do julgamento.

A testemunha DD descreveu ainda que muro que circundava a casa do arguido teria cerca de 1,5/2m.

Já a testemunha EE concretizou que a marca na cara do ofendido era na sua face direita.

Finalmente, CC (bombeiro) explicou que tinha sido chamado, no dia 6-02-2022, via 112, chamados pela GNR, às …. Uma vez aí chegado encontrou o ofendido acompanhado pelos militares da GNR, tendo dito que tinha sido agredido pelo filho. Os bombeiros prestaram os primeiros socorros e transportaram o ofendido para o Hospital de ….

Descreveu o ofendido como estando mais fresco à data dos factos, mas já com algumas dificuldades de locomoção.

Em sentido contrário, a missiva junta pelo arguido na qual negava ter praticado qualquer facto contra o ofendido não foi considerada credível pelo Tribunal, desde logo por não ser corroborada por qualquer outro elemento, mas sobretudo por ser contrariada quer pelos depoimentos ouvidos, em especial o do ofendido, que o Tribunal entendeu, como se disse merecedor de toda a credibilidade.

A assistência hospitalar que o ofendido recebeu, bem como as consequências da conduta do arguido para a saúde do ofendido estão documentados nos autos, nomeadamente na documentação clínica (fls. 103 a 107); na informação do INEM (fls. 118 a 123); nos documentos juntos com o pedido de indemnização cível (163-165) e ainda na Perícia de Avaliação de dano corporal (fls. 62 a 64). Em face destes elementos documentais e da prova medica pericial, considerou o Tribunal como demonstrados os factos 6 e 7.

Relativamente ao dolo e consciência da ilicitude, o Tribunal conjugou os meios de prova supra expostos, com as regras da experiência comum, os quais permitem concluir não apenas que o arguido agiu com o propósito alcançado de molestar o corpo do ofendido, o que conseguiu, mas ainda que actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais resulta evidente e absolutamente coerente com as regras da experiência comum que o arguido sabia que o ofendido era seu pai, conhecia as suas fragilidades físicas (estas até relatadas pelas testemunhas que não privavam com o ofendido, permitindo concluir que eram perceptíveis pelo mero observar do ofendido) e a sua idade. Em face do que antecede, não teve o Tribunal dúvidas quanto aos factos assentes em 9 a 12.

A assistência hospitalar que o ofendido recebeu e o custo da mesma (factos 13 e 14) resulta da conjugação da documentação clínica (fls. 103 a 107); com a fatura junta com o pedido de indemnização cível (fls. 163).

No que respeita às condições socioeconómicas do arguido, aquelas resultam da informação prestada pela Segurança Social (ref.ª Citius n.º …), considerando assim provados os factos 15 e 16.

Quanto à ausência de antecedentes criminais do teve o Tribunal em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos (facto 17).

*

Enquadramento Jurídico-legal:

Vem o arguido acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 al. a) e 2, por referência ao artigo 132º n.º 2 alíneas a) e c), todos do Código Penal.

O crime matricial consta do artigo 143.º, n.º1 do Código Penal que dispõe: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Prevendo o artigo 145.º do Código Penal um crime qualificado, há que verificar em primeiro lugar, o preenchimento do tipo legal previsto no artigo 143.º do Código Penal e só em momento posterior dedicar atenção à qualificação.

Trata-se de um crime material e de dano, abrangendo um determinado resultado, qual seja a lesão do corpo ou da saúde de outrem, independentemente da dor ou do sofrimento causados.

Ora, a incriminação das ofensas à integridade física tutela assim integridade física e psíquica, sendo um crime de dano e de resultado, exigindo-se a lesão do corpo ou da saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou omissão do agente.

Assim, ao nível do tipo objectivo de ilícito, o artigo 143.º do Código Penal abrange quer as condutas de lesão corporal, quer as lesivas da saúde.

No que respeita ao tipo subjectivo, é o mesmo constituído pelo dolo, que pode manifestar-se em qualquer das modalidades consignadas no artigo 14.º do Código Penal – dolo directo, necessário, ou eventual, donde se torna necessário que o arguido tenha querido atentar contra a integridade física ou tenha considerado esse resultado como consequência necessária da sua conduta, ou, pelo menos, tenha concebido a hipótese desta o produzir, conformando-se com tal eventualidade.

Neste contexto, a motivação do agente é, assim, irrelevante, embora possa ser tida em conta para efeitos de determinação da medida da pena, o que terá sempre de suceder.

Regressando ao caso dos autos, dos factos provados, não pode deixar de ser imputado ao arguido a prática do crime de ofensa à integridade física, uma vez que resultou provado que no dia 06-02-2022, o arguido desferiu socos no ofendido que lhe provocaram dores, bem como equimose orbitária e infra palpebral direita, com necessidade de assistência hospitalar e 8 dias para cura da mesma.

O arguido sabia, como não podia deixar de saber, que a sua conduta não era permitida por lei, estando, assim, provada a ilicitude. Não se verificam quaisquer causas de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem se verifica a falta de qualquer condição de punibilidade, impondo-se assim concluir que o arguido, com a sua conduta, preencheu o tipo legal base.

Por seu turno, o artigo 145.º, n.º1, alínea a) estatui “1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º (…)”. Acrescentando o n.º 2 deste mesmo artigo: “2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º”.

O tipo qualificado, previsto no artigo 145.º do Código Penal, funciona com base na cláusula geral conjugada com as circunstâncias qualificativas elencadas no artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal. Trata-se, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque: “de um tipo de culpa agravada de ofensa à integridade física por força da cláusula geral da especial censurabilidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo”.

Também defendendo estarmos perante um tipo agravado de culpa Figueiredo Dias refere: “Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º1, verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º2”).

De igual forma, a jurisprudência tem entendido que estamos perante exemplos padrão que revelam a especial censurabilidade ou perversidade da conduta, actuando ao nível da culpa do agente.

Por todos, vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo n.º 127/16.7GBPFR.P1, em 26-06-2019 e disponível em www.dgsi.pt: “No fundo, o que está em causa é saber se o agente teve uma motivação que merece a censura geral de quem pratica qualquer crime de ofensa à integridade física simples, ou se teve uma motivação que merece uma censura especial. (…) Na verdade, deve entender-se que o legislador não estabeleceu os exemplos-padrão de especial censurabilidade por mero capricho, mas porque entendeu que as circunstâncias que aí elencou estão geralmente associadas a uma elevada censurabilidade das condutas de quem nelas incorre.”

Esta opção pela qualificação ao nível da culpa e não ao nível do ilícito determina precisamente a não automaticidade e taxatividade das circunstâncias ali previstas, pelo que necessário se mostra que se verifique no caso concreto que a conduta do arguido revela essa especial censurabilidade requerida pela cláusula geral e que a verificação da(s) circunstância(s) prevista(s) na(s) alínea(s) em causa.

In casu, estão em causa as alíneas a) ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima; e c) praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

Em concreto, apurou-se que o arguido praticou os factos na pessoa do seu pai (cuja relação de parentesco conhecia, à saciedade). Os laços familiares, ainda para mais, no âmbito da família nuclear, devem constituir-se como factores inibitórios da prática de quaisquer condutas criminosas, cuja violação supõe uma especial censurabilidade. Assim, tendo em conta esta relação familiar, impunham-se ao arguido particulares deveres de respeito e assistência perante o ofendido, bem como um dever acrescido de não atentar contra a integridade física do seu pai, ainda para mais numa sequência de acontecimentos em que o ofendido vinha acedendo e cedendo ao arguido nas suas pretensões e vontades, não podendo a conduta do arguido deixar de ser tida como reveladora de especial perversidade e censurabilidade.

Igualmente se apurou que o arguido, não só era uma pessoa de provecta idade como demonstrava já algumas debilidades físicas, debilidades essas que foram até relatadas pelos militares da GNR e pelo Bombeiro que lhe prestaram assistência e que as conseguiram apreender com um mero contacto de uma ocasião, pelo que, sempre teria o arguido, não só filho como vizinho do ofendido que ter conhecimento dessas debilidades e vulnerabilidades físicas, o que mesmo assim não o impediu de atentar e atingir a integridade física do ofendido.

Em face do que antecede, entende o Tribunal que a conduta do arguido, ao agredir o seu pai da forma descrita, não só perpetuou uma conduta desvaliosa e ilícita criminalmente, como preencheu o tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, preenchendo as duas circunstâncias em análise.

No que ao elemento subjectivo respeita, ficou provado, não apenas que o arguido agiu com o propósito de agredir o ofendido, bem sabendo que com tal conduta lhe causava dores e lesões no seu corpo e saúde e ainda que sabia que o ofendido era seu pai e que era não só uma pessoa com mais de 80 anos, como padecia de fragilidades físicas que o deixavam especialmente vulnerável, em especial perante uma agressão física, mas não se absteve de agir no modo descrito, o que quis.

Em face do que antecede, entende este Tribunal que, com a conduta descrita, o arguido, praticou o crime de ofensa à integridade física qualificada de que vinha acusado.

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Escolha e determinação da medida concreta da pena:

Enquadrada a conduta dos arguidos da forma supra descrita, cumpre proceder à determinação da pena a aplicar em concreto, pela prática do crime que resultou provado.

O crime de ofensa à integridade física é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (cfr. artigo 143.º, n.º1 do Código Penal).

Por força da qualificação operada pelo artigo 145.º, n.º1 alínea a) conjugada com o n.º2 e por referência ao disposto no artigo 132.º, n.º2, alíneas a) e c), todos do Código Penal, a moldura penal apenas prevê pena de prisão, que vai de 1 mês até aos 4 anos de prisão.

Na escolha da medida concreta da pena, não olvidando a característica fundamental do direito penal de direito de ultima ratio, há que considerar as finalidades da punição, conjugando o disposto nos artigos 40.º e 70.º do Código Penal. Destes decorrem as finalidades de prevenção especial (reintegração social e dissuasão do agente do crime) e ainda as necessidades de prevenção geral (de protecção dos bens jurídicos), limitadas pela medida da culpa.

Assim, para além das necessidades de prevenção geral e especial, limitadas pela medida da culpa, há que considerar todos os outros factores que, não integrando o tipo, militam a favor ou contra o arguido, conforme previstos no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal.

As finalidades de prevenção geral do crime em apreço são muito elevadas são muito elevadas, uma vez que a prática de crimes de ofensas à integridade física é muito frequente, surgindo agravada em concreto por ter sido praticada no âmbito familiar, considerando a distorção que causa nas relações familiares e na paz da comunidade, com consequências graves e nefastas, físicas e psicológicas, para os envolvidos e restante família.

No que respeita às exigências de prevenção especial, estas são medianas atendendo à ausência de antecedentes criminais registados do arguido, conjugadas com a sua idade.

Por outro lado, na ponderação da pena concretamente aplicável cumpre atender ainda aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, sendo que a pena deve ser determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção especial de socialização e geral de integração que ao caso se imponham, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

Há, no caso concreto, que considerar:

Contra o arguido:

- a culpa que assenta no dolo directo;

- o grau de ilicitude que é médio, atentas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos e, bem assim, as consequências que resultaram para o ofendido;

A favor do arguido:

- a ausência de antecedentes criminais registados do arguido

Em face de tudo quanto antecede, entende o Tribunal como adequada e suficiente a aplicação ao arguido de uma pena de 4 (quatro) meses de prisão.

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Da substituição da pena de prisão:

Nos termos do disposto no artigo 45.º do Código Penal uma pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.

No caso em apreço, entende-se que a pena de substituição que mais se adequa às finalidades da punição é a pena de multa, nos termos previstos no artigo 45.º do Código Penal.

Considerando as necessidades medianas de prevenção especial presentes e apesar de constituir sanção pecuniária, a multa de substituição mostra-se suficiente e adequada uma que vez que apresenta virtualidades dissuasoras da prática de novos crimes, dado o esforço patrimonial que representa para o arguido.

Por remissão do artigo 45.º, n.º 1 do Código Penal, é aplicável o disposto no artigo 47.º do mesmo código, segundo o qual a pena de multa é fixada entre 10 e 360 dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art.º 71.º do Código Penal.

Ora, tendo presente tudo o que acima se referiu sobre as exigências de prevenção geral e especial que o caso convoca e para o qual se remete, decide-se substituir a pena de 4 (quatro) meses de prisão pela pena de 120 dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de 660,00 € (seiscentos e sessenta euros), nos termos do disposto nos artigos 42.º e 45.º, ambos do Código Penal.

*

Pedido de indemnização civil:

Face ao disposto no artigo 129.º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”, tanto no que se refere ao respectivo quantitativo como aos seus pressupostos, uma vez que processualmente vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova.

A prática de uma infracção penal implica, com frequência, a lesão de direitos patrimoniais ou não patrimoniais de terceiros. O ressarcimento de tais lesões deve, em consequência do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º, do Código de Processo Penal, ser deduzido no processo penal.

Estabelece o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Assim, para que haja obrigação de indemnizar será necessário que se verifiquem cumulativamente os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente:

- o facto voluntário (i.e., um facto, positivo ou negativo, objectivamente dominado ou dominável pela vontade humana);

- a ilicitude (i.e., a violação de um direito de outrem ou de disposição legal destinada a proteger interesses alheios);

- a culpa (i.e., o nexo psicológico entre o acto praticado e a vontade do lesante, que permite um juízo de reprovação da sua conduta; há pois culpa quando, nas circunstâncias concretas, o agente poderia e deveria ter agido de outro modo – cfr. art. 487.º, n.º 2 do Cód. Civil);

- o dano (i.e., o prejuízo ou a lesão); e, por último,

- o nexo de causalidade entre o facto e o dano (i.e., exige-se que o facto seja causa adequada do dano produzido – cfr. art. 563.º do Cód. Civil).

No caso em apreço, resultou demonstrado que o demandado praticou os factos com relevância criminal dos quais vinha acusado, agindo dolosamente.

No que respeita ao dano este é a supressão ou a diminuição de uma vantagem protegida pelo direito (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações Vol. II, 2016, pág. 511).

Não são todos os danos que são indemnizáveis, mas, tão-somente, os que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º do Código Civil), ou seja, os resultantes do facto.

No que respeita ao pedido de indemnização deduzido pela Unidade Local de Saúde do …, E.P.E., apurou-se que a conduta do demandado foi adequada a causar, como causou, para além do mais, a necessidade do ofendido ser medicamente assistido no Hospital …, o que teve um custo para a demandante de 119,07 €, que esta suportou.

Perante os factos dados como provados, não há dúvidas que se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana em relação ao demandado.

Daqui se extrai com clarividência que, no caso concreto, se encontram verificados os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana imputável ao demandado no que respeita aos danos reclamados.

Sobre aquele montante acresce juros vencidos e vincendos, a contar da data da notificação do respectivo pedido de indemnização e até efectivo e integral pagamento, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, ambos do Código Civil.”

Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

1.ª questão – Erro notório na apreciação da prova;

2.ª questão - Impugnação da matéria de facto;

3.ª questão – A não integração do crime.

*

B. Decidindo.

1.ª questão – Erro notório na apreciação da prova.

O recurso pode ter como fundamento (nos termos do art.º 410.º, n.º 2, alínea c)), desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum o erro notório na apreciação da prova.

Tal erro, dizem-nos Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques2, é uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível para o cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se tirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.

Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis.”

Ora, no caso dos autos, basta uma leitura perfunctória da motivação da matéria de facto para se concluir que é ali exposto o iter que fundamentou o juízo probatório, com indicação clara dos meios de prova atendidos e dos motivos pelos quais tal prova logrou convencer o tribunal. Outra coisa, diversa de tal vício, é averiguar se tal convicção se encontra devidamente fundada ou se é passível de impugnação fundada. Mas tal questão releva noutra sede, como de seguida exporemos no Acórdão da Relação de Évora de 09.01.2018 proferido no processo 31/14.3GBFTR.E1:

“A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação).

O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.

No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

Na verdade, impõe o art. 412º, nº 3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012).

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

No caso, o recorrente, indicando-a embora, não procedeu à mínima especificação da concreta prova em que funda a sua impugnação, pois não transcreveu as concretas passagens, nem as indicou por referência ao consignado na acta. A omissão é, aqui, absoluta.

E como a omissão detectada atravessa toda a peça processual, não se encontrando nesta as indicações ou transcrições dos depoimentos indicados, não poderá o recurso ser aperfeiçoado já que de uma omissão total se trata.

Este incumprimento das especificações prejudica o conhecimento do recurso em matéria de facto, deteriora a exequibilidade da sindicância da decisão de facto a um nível mais alargado, como se disse, pois o ónus de impugnação “concretos factos, concretas provas” visa viabilizar o próprio recurso de facto.

Daqui não resulta, porém, que a Relação fique desobrigada de sindicar o acórdão na parte relativa à decisão da matéria de facto, devendo fazê-lo através da análise do seu texto, perscrutando se enfermará, então, de um erro notório na apreciação da prova que possa ter condicionado a demonstração dos factos impugnados no recurso.

Na verdade, o presente recurso é aproveitável como arguição de vício de sentença (embora o recorrente não o refira expressamente) e este, a existir, sempre seria de conhecimento oficioso.”

O que o recorrente faz é invocar o teor de meios de prova produzidos, o que nos remete, de imediato e nos termos acima expostos, para o conhecimento da questão ulterior. Por último, para além da invocação, que se esgota em si própria, da alegada violação dos princípios consagrados nos artigos 13.º, 20.º, n.º 4 e 32.º da CRP, não é sequer indicada qualquer interpretação normativa que ofenda tais invocados princípios, invocação, assim, totalmente insubsistente.

2.ª questão - Impugnação da matéria de facto.

Constitui princípio geral que os tribunais da relação conhecem de facto e de direito, nos termos do art.º 428.º.

Apesar de, como vimos, o recorrente apenas configurar a existência do vício acima referido, afigura-se-nos que, substancialmente3, pretende impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença4, nos termos do art.º 412.º, que, recorde-se, tem o seguinte teor:

“(…) 3 – Quando impune a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Como consta do Comentário do Código de Processo Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque5, em anotação à referida norma, “[a] especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado (…)” ; “[a] especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, [ao que] “(…) acresce que o recorrente deve explicitar a razão porque essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. É este o cerne do dever de especificação.”

Assim sendo, sempre que seja impugnada a matéria de facto por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente tem de expressamente indicar esse aspeto, a prova em que apoia o seu entendimento e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida.

No caso dos autos, o recorrente coloca em causa o juízo de prova quanto a determinados factos, que entende que não deveriam ter sido dados como provados.

A este propósito, importa valorar o expressivo iter seguido pelo tribunal a quo para fundamentar a matéria de facto (em causa) dada como provada:

“O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada dos meios de prova produzidos, nomeadamente no assento de nascimento (fls. 96 a 97); documentação clínica (fls. 103 a 107); assento de nascimento (fls. 111 a 112); Informação do INEM (fls. 118 a 123); documentos juntos com o pedido de indemnização cível (fls. 163 a 165) e ainda na Perícia de Avaliação de dano corporal (fls. 62 a 64) e no CRC do arguido, bem como nas declarações das testemunhas ouvidas BB (ofendido), CC (bombeiro), DD (militar da GNR) e EE (militar da GNR).

Em detalhe:

A factualidade assente em 1 e 8 resulta dos assentos de nascimento de arguido e ofendido.

Já a factualidade assente em 3 a 5 decorre da conjugação das declarações do ofendido e das testemunhas ouvidas.

Assim, o ofendido, pai do arguido, ouvido em audiência de julgamento, prestou um depoimento muito credível, pela sua espontaneidade e emotividade, tendo explicado, com denotado sofrimento, considerando estar em causa factos praticados pelo seu filho, a relação que tinham, a forma como o arguido foi viver para perto do pai, tendo murado a zona do terreno do ofendido em que o arguido passou a viver.

Explicou que, por força de tal muro ficou sem acesso à água de que necessitava para os seus animais e para as suas culturas e que, naquele dia pediu água ao filho, tendo para o efeito subido a algo para se empoleirar e ficar acima do muro e que o filho, empoleirando-se numa cadeira do lado de dentro do muro, ficando ao mesmo nível que o ofendido, lhe deu uns murros na cara, até que o ofendido caiu.

As restantes testemunhas ouvidas não assistiram aos factos, tendo prestado nesse dia, a posteriori, assistência ao ofendido, tendo prestado um testemunho isento e credível.

As testemunhas DD e EE (militares da GNR), explicaram que no dia 06-02-2022 responderam a uma chamada nas …, onde teria havido agressões entre pai e filho.

Ali chegados, encontraram o ofendido ferido na face, junto ao olho, que lhes relatou que o filho lhe tinha batido na cara e que lhes tinham saltado os óculos.

Esclareceram que não encontraram o filho do ofendido e que o ofendido já apresentava dificuldades de locomoção naquela altura, apesar de estar mais ligeiro do que no dia do julgamento.

A testemunha DD descreveu ainda que muro que circundava a casa do arguido teria cerca de 1,5/2m.

Já a testemunha EE concretizou que a marca na cara do ofendido era na sua face direita.

Finalmente, CC (bombeiro) explicou que tinha sido chamado, no dia 6-022022, via 112, chamados pela GNR, às …. Uma vez aí chegado encontrou o ofendido acompanhado pelos militares da GNR, tendo dito que tinha sido agredido pelo filho. Os bombeiros prestaram os primeiros socorros e transportaram o ofendido para o Hospital de ….

Descreveu o ofendido como estando mais fresco à data dos factos, mas já com algumas dificuldades de locomoção.

Em sentido contrário, a missiva junta pelo arguido na qual negava ter praticado qualquer facto contra o ofendido não foi considerada credível pelo Tribunal, desde logo por não ser corroborada por qualquer outro elemento, mas sobretudo por ser contrariada quer pelos depoimentos ouvidos, em especial o do ofendido, que o Tribunal entendeu, como se disse merecedor de toda a credibilidade.

A assistência hospitalar que o ofendido recebeu, bem como as consequências da conduta do arguido para a saúde do ofendido estão documentados nos autos, nomeadamente na documentação clínica (fls. 103 a 107); na informação do INEM (fls. 118 a 123); nos documentos juntos com o pedido de indemnização cível (163-165) e ainda na Perícia de Avaliação de dano corporal (fls. 62 a 64). Em face destes elementos documentais e da prova medica pericial, considerou o Tribunal como demonstrados os factos 6 e 7.

Relativamente ao dolo e consciência da ilicitude, o Tribunal conjugou os meios de prova supra expostos, com as regras da experiência comum, os quais permitem concluir não apenas que o arguido agiu com o propósito alcançado de molestar o corpo do ofendido, o que conseguiu, mas ainda que actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais resulta evidente e absolutamente coerente com as regras da experiência comum que o arguido sabia que o ofendido era seu pai, conhecia as suas fragilidades físicas (estas até relatadas pelas testemunhas que não privavam com o ofendido, permitindo concluir que eram perceptíveis pelo mero observar do ofendido) e a sua idade. Em face do que antecede, não teve o Tribunal dúvidas quanto aos factos assentes em 9 a 12.

A assistência hospitalar que o ofendido recebeu e o custo da mesma (factos 13 e 14) resulta da conjugação da documentação clínica (fls. 103 a 107); com a fatura junta com o pedido de indemnização cível (fls. 163).”

Em face de tal fundamentação, é absolutamente insubsistente a argumentação do ora recorrente, já que:

(i) O tribunal a quo pronunciou-se expressamente sobre a questão de ninguém ter assistido às agressões, para além, naturalmente, do arguido e da vítima, tendo o depoimento desta (confirmatório das mesmas – “vá de murros”, como até expressivamente o recorrente reproduz) sido considerado “muito credível, pela sua espontaneidade e emotividade”. Os depoimentos das demais testemunhas são absolutamente compatíveis com as mazelas provocadas (com uma ou outra divergência, o que até lhes confere credibilidade), bem como a documentação clínica junta aos autos, no mesmo sentido. Também se nos afiguram inteiramente inócuas, neste contexto, quaisquer dúvidas sobre a altura do muro (1,5, 2,0, 2,5m), já que não está minimamente demonstrada qualquer incapacidade de ascender (diretamente ou por meio de escadas, escadotes, etc., ao mesmo).

Por seu turno, quanto ao elemento subjetivo, cumpre aqui reproduzir os seguintes acórdãos, que enquadram devidamente a temática da respetiva prova: Acórdão da Relação de Évora de 28.10.2014 proferido no processo n.º 3/09.0AASTB.E1 (Relatora Ana Barata Brito)6: “Os factos do tipo subjectivo resultam frequentemente dos factos externos. E eles constituem também um exemplo de demonstração por prova indirecta. (…) Assim, os factos que integram o dolo (…), os actos interiores ou internos, por respeitarem à vida psíquica raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos do tipo objectivo, a prova do dolo far-se-á por ilações, retiradas de indícios, e também de uma leitura de um comportamento exterior e visível do agente. (…) O julgador resolverá a questão de facto decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente. (…) As dificuldades e as vicissitudes da prova da intenção serão, assim, comuns à generalidade dos crimes.”

Acórdão do STJ de 06.10.2010 proferido no processo n.º 936/08.JAPRT (Relator Henriques Gaspar) “A prova de determinados factos que não são directamente apreensíveis in natura, no plano da observação imediata, física e sensorial, só pode ser obtida por aproximações empíricas, permitidas pelas deduções decorrentes de factos ou comportamentos individuais, aceitáveis ou pressupostos pela normalidade de consequências que está suposta pelas regras da experiência e do fluir normal dos acontecimentos e relações. Estes elementos de construção e apreciação permitirão o estabelecimento de um facto não directamente apreensível (mas apenas deduzido de referências comportamentais concretas), como resultado de uma conclusão sustentada, e por isso afastando uma apreciação dominada pelas impressões. Nesta perspectiva metodológica, as regras da experiência são a base e o limite do resultado, positivo ou negativo, de uma presunção natural, como critério, ou no rigor, regra normativa de prova. Com uma de duas possíveis consequências. Pode verificar-se um afastamento entre a base da presunção (o facto conhecido, preciso e determinado) e o facto desconhecido (objecto de prova), de tal modo que a relação se situa apenas no simples domínio das possibilidades físicas e materiais, sem proximidade que caiba nos limites razoáveis do id quod; neste caso, o facto desconhecido não poderá considerar-se como assente. Mas, ao invés, as regras da experiência podem determinar que, segundo a normalidade das coisas, dos comportamentos e da apreciação externa comum e referencial sobre a causalidade e a sequência, um facto ou uma série de factos conhecidos não se compreende, nem por si tem relevante significado autónomo e não apresenta qualquer sentido, razão ou explicação, se não for pelas consequências normais e típicas que a experiência das coisas e da vida lhe associa; neste caso, a presunção deve ser estabelecida: os factos serão precisos e concordantes.”

Do exposto flui que se nos afigura que a revelação externa da ação do ora recorrente (ou seja dar murros no pai) só se explica se, internamente, o mesmo previu ou, pelo menos, admitiu como possível, que atuando do modo descrito, causaria, como causou, as lesões descritas no corpo do ofendido.

Não se vislumbra, assim, quaisquer motivos que imponham (como a lei exige) uma solução probatória diversa da vertida na decisão recorrida e com o teor da propugnada pela recorrente.

A questão é, consequentemente, improcedente.

3.ª questão – A não integração do crime.

Uma vez que a absolvição pela prática do crime dependia do êxito das questões anteriores, insubsistentes como vimos, é o recurso totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Diploma a que pertencerão as referências normativas ulteriores sem indicação diversa.

2 Recursos Penais, 9.ª edição, Rei dos Livros, Lisboa, 2020, página 81.

3 De notar que a “impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410.º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou através do recurso amplo ou efectivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, nºs 3, 4 e 6 do CPP”. Acórdão deste TR proferido em 09.01.2018 no processo 31/14.3GBFTR.E1 (relatora Ana Brito)

4 Especificamente quando alega “que foram incorretamente julgados os seguintes pontos dados como provados”.

5 UCP Editora, Volume II, 5.ª edição, 2023, páginas 677/8.

6 Disponível em www.dgsi.pt, tal como todos os demais acórdãos citados, sem indicação de proveniência diversa.