I. O crime continuado não se verifica com a simples repetição da prática do mesmo tipo de crime ou crimes que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico, ocorrendo apenas quando essa repetição ocorre em circunstâncias evidenciadoras de uma diminuição significativa da culpa do agente.
II. O que apenas sucederá quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha para tal contribuído.
III. O perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, cinge o universo das pessoas abrangidas, às «que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto», não sendo inconstitucional a opção e limites traçados pelo legislador, por a mesma não assentar numa diferenciação injustificada.
Na audiência de julgamento a ofendida BB, desistiu da queixa apresentada contra o arguido pela prática do crime de furto, previsto no artigo 203.º CP, a que o arguido nada opôs, tendo o tribunal homologado a mesma.
A final o tribunal coletivo condenou o arguido como autor de três crimes de roubo, previstos no artigo 210.º, § 1.º CP e um crime de roubo na forma tentada, previsto no artigo 210.º, § 1.º CP, com referência ao artigo 22.º CP, respetivamente nas penas parcelares de 1 ano e 7 meses de prisão; 2 anos de prisão; 1 ano e 7 meses de prisão e 10 meses de prisão. Fixando a pena única, nos termos do artigo 77.º CP, em 3 anos e 9 meses de prisão.
b. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Aplicação ao caso concreto da Lei 38-A/2023 de 02.08 com entrada em vigor em 01.09.2023
2. Lei 38-A/2023 Inconstitucionalidade no seu art 2º nº1 “…discriminando em razão da idade - o que se traduz na patente e notória violação do art13º da CRP - principio da igualdade…”.
3. Em 02/08/2023 foi publicada a Lei 38-A/23 no DR nº 149/2023 1ºSuplemento Serie I (Lei da Amnistia).
4. O Recorrente AA impugna o douto Acórdão do Tribunal a quo que decretou a pena de prisão de 3 anos e 9 meses de prisão efetiva em virtude do suposto cometimento de 4 crimes de roubos sendo um deles na forma tentada.
5. O recorrente confessou os seus atos demonstrou arrependimento
6. O recorrente juntou aos autos relatórios e suporte clínico das suas condições psíquicas e outros relatórios foram requeridos pelo Tribunal.
7. O Tribunal a quo deu como provados todos os atos que o arguido confessou.
8. O arguido recorrente antes da marcação da audiência de julgamento já tinha ressarcido todos os lesados.
9. Os crimes em causa foram efetuados sem violência sem qualquer tipo de arma e todos de valor diminuto (inferior a 1 UC).
10. O Tribunal a quo vem a aplicar uma pena sem considerar a relevância técnica – de natureza clínica - dos relatórios realizados ao arguido.
11. O Tribunal a quo foi mal não aplicando o tratamento mais favorável determinando-se pelo instituto do crime continuado nos factos ocorridos junto do posto de abastecimento CC.
12. O Tribunal a quo deveria manter a aplicação do instituto do art. 50.º do CP suspendendo na execução a pena única aplicada que nunca deveria ser superior a dois anos.
13. O Tribunal a quo também foi mal pois não aplicou o perdão consignado na Lei 38-A/2023.»
c. O recurso foi recebido, ao qual respondeu o Ministério Público junto do Juízo de 1.ª instância, sustentando a manutenção da sentença recorrida, nos seguintes termos:
«1. No que concerne à apontada violação dos artigos 30.º e 50.º do CPenal, em tese, impugnação em matéria de direito, o recorrente ignora por completo as prescrições do artigo 412.º, n.º 2 do CPPenal, mormente a da alínea b) que, quanto às normas jurídicas violadas obriga a que se esclareça, “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada;”.
(…)
3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 2.º, n.º 1da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, ao estabelecer como condição da sua aplicação que o autor da infração tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, não a julgando inconstitucional, designadamente, no Acórdão n.º 471/2024 de 19 de Junho.
4. A aplicação do regime do crime continuado ao tipo do roubo está expressamente vedada pelo disposto no n.º 3 do invocado artigo 30.º do CPenal – “O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais” –, porque o crime de roubo tutela bens jurídicos relativos à pessoa.
5. Quanto à medida das penas, o arguido invoca, em seu abono, a confissão, que não aconteceu, optando, ao invés, AA, através do relato de versão mirabolante dos factos, por tentar afastar de modo espúrio o preenchimento do tipo subjectivo dos roubos.
6. A circunstância de o produto dos roubos não assumir valor de tomo foi obviamente atendida pelo tribunal, concorrendo para a fixação das penas parcelares em medida muito próxima do limite mínimo da moldura abstracta.
7. No que toca o ilícito em apreço, as necessidades de prevenção geral são, obviamente, de tomo.
8. Quanto às exigências de prevenção especial as mesmas são igualmente expressivas, atenta a total ausência de autocensura da conduta perpetrada, corporizada na versão estapafúrdia dos factos por que AA enveredou e na consequente falta de um esboço de arrependimento, e na existência de antecedentes criminais, pese embora por ilícito de natureza distinta.
9. Importa valorar, outrossim contra o arguido, o dolo, enquanto elemento subjectivo do ilícito que, de harmonia com os factos nessa matéria assentes no acórdão recorrido, se expressou na sua forma mais intensa e que corresponde ao dolo directo – a realização do tipo penal foi posta pelo arguido como o fim a atingir.
10. À luz dos critérios dos artigos 40.º, 71.º e 77.º do CPenal, a fixação da medida das penas foi ajustada, de molde a permitir a tutela retrospectiva dos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora e, do mesmo passo, a “emenda” e ressocialização do arguido.
11. O arguido sofreu duas condenações anteriores em penas suspensas, cujas finalidades foram claramente por si postergadas, conduzindo mesmo à revogação de uma dessas suspensões.
12. À data da prática dos factos AA não estava profissionalmente inserido e era toxicodependente, circunstâncias potenciadoras da prática de ilícitos como meio de granjear liquidez para a satisfação da dependência.
13. A postura assumida em julgamento avoluma as necessidades de prevenção especial em sentido proporcionalmente inverso ao da possibilidade de formulação de um juízo de prognose favorável da sensibilidade do condenado à mera censura do facto e à ameaça da prisão.
14. Sendo possível formular, relativamente a AA, um juízo de certeza negativo, no sentido que a mera censura do facto e a ameaça da prisão não permitiram, nem permitem realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, bem andou o tribunal a quo ao impor o cumprimento efectivo da prisão fixada.
15. O acórdão recorrido não violou quaisquer normas, nem está ferido de qualquer nulidade.»
d. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação teve vista nos autos (artigo 416.º CPP), tendo-se pronunciado no sentido de o recurso não ser merecedor de provimento.
e. No exercício do contraditório o recorrente nada respondeu.
f. Foi efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – artigos 403.º, § 1.º, 410.º, § 2.º e 412.º, § 1.ºCPP.
Suscitam-se três questões:
i. Pressupostos do crime continuado;
ii. Suspensão da execução da pena de prisão;
iii. Perdão de pena e inconstitucionalidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 agosto.
B. A decisão recorrida
O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
«1. No dia 21 de Novembro de 2021, pelas 23.58 horas, o arguido AA dirigiu-se ao estabelecimento comercial sito no posto de combustíveis da CC, em …, …, com intenção de ali entrar e dali levar objectos ou quantias em dinheiro.
2. Assim, o arguido entrou no referido estabelecimento comercial, que se encontrava aberto ao público, dirigiu-se aos funcionários do mesmo, DD e EE e disse-lhes isto é um assalto quero 40,00 euros e um isqueiro.
3. Enquanto falava o arguido tinha uma das mãos no bolso da camisola.
4. Os funcionários, receando o que lhes poderia acontecer pois, por o arguido manter a mão no bolso, pensavam que o arguido tinha uma arma no bolso, entregaram-lhe duas notas de € 20,00 e um isqueiro da marca ….
5. Após, o arguido abandonou o local, levando consigo a referida quantia em dinheiro e o isqueiro, fazendo-os seus.
6. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo e conseguindo com a sua actuação fazer seus a quantia em dinheiro e o objecto referidos, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do seu dono.
7. Para concretizar os seus intentos não se coibiu de intimidar os funcionários do estabelecimento comercial, de modo a não ser impedido de retirar e levar consigo, a quantia em dinheiro e objecto referidos, bem sabendo que ao manter a mão dentro do bolso, exigindo dinheiro aos ofendidos, criava a aparência, perante estes, de que podia ter consigo uma arma de fogo e desta forma os constrangia a tolerar a subtracção do dinheiro que se encontrava naquele estabelecimento, e a entregarem-lhe a quantia pretendida criando-lhes receio de que pudesse atentar contra a sua integridade física ou a sua vida.
8. Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
*
9. No dia 22 de Novembro de 2021, pelas 11h00, o arguido dirigiu-se à dependência da FF, sita no Largo …, naquela localidade com o intuito de aí subtrair o dinheiro existente nas caixas daquele balcão e que aí se encontrasse disponível.
10. Para tanto, mantendo sempre uma mão no interior do bolso direito, entrou no referido estabelecimento e dirigiu-se de imediato ao balcão de atendimento onde se encontravam as funcionárias GG e HH.
11. Aí, e mantendo sempre a mão direita dentro do bolso do casaco que vestia, disse a GG quero dinheiro, quero dinheiro.
12. Questionado por GG sobre se era cliente do banco e na afirmativa qual o seu número de conta, o arguido, mantendo sempre a mão no bolso, mão que apontava para cima e movimentava para um lado e para o outro, bateu com a outra mão no balcão dizendo quero dinheiro.
13. Entretanto, quando GG atendeu o telefone, o arguido, sempre com a mão direita dentro do bolso apontada para cima, dirigiu-se a HH e, bastante agitado e nervoso, empurrou o acrílico à data existente em cima do balcão e solicitou o dinheiro que estava na máquina de contar notas.
14. Com receio de que o arguido pudesse ter consigo uma arma e as atingisse, HH retirou da referida máquina, nove notas de €20,00 e duas notas de €10,00, no total de €200,00 que entregou de imediato ao arguido.
15. Após o que este se ausentou do local, levando consigo as referidas notas.
16. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao colocar a mão no interior do bolso, exigindo dinheiro em tom exaltado e mantendo a mão no bolso criava a aparência, perante GG e HH, de que podia ter consigo uma arma de fogo e desta forma as constrangia a tolerar a subtracção do dinheiro que se encontrava naquele balcão da FF, e a entregarem-lhe a quantia pretendida criando-lhes receio de que pudesse atentar contra o seu corpo e a sua vida.
17. Sabia que a importância monetária com que se locupletou, não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
18. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
19. No dia 30 de Novembro de 2021, pelas 19h34m, o arguido dirigiu-se ao supermercado II, sito na Rua …, naquela localidade com o intuito de aí subtrair dinheiro que se encontrasse em caixa, se necessário com recurso à força e intimidação dos funcionários.
20. Para tanto, mantendo sempre uma mão no interior do bolso direito, entrou no referido estabelecimento e dirigiu-se ao balcão da cafetaria onde se encontrava a funcionária JJ dizendo-lhe dá-me € 50.
21. Pensando que o arguido queria trocar dinheiro, JJ disse para se deslocar à caixa central por ser o local indicado para o efeito.
22. Nessa sequência, e mantendo sempre a mão direita dentro do bolso o arguido disse eu não estou a brincar, isto e um assalto, estou armado quero € 50!
23. Com receio de que o arguido pudesse ter consigo uma arma e a atingisse, a ofendida retirou da registadora a quantia de €50,00 que entregou de imediato ao arguido.
24. Após o que este se ausentou do local.
25. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que ao colocar a mão no interior do bolso, exigindo dinheiro à ofendida, em tom ameaçador e mantendo a mão no bolso, referindo estar armado, criava a aparência, perante a ofendida, de que podia ter consigo uma arma de fogo e desta forma a constrangia a tolerar a subtracção do dinheiro que lhe exigiu e a entregar-lhe a quantia pretendida criando-lhe receio de que pudesse atentar contra o seu corpo e a sua vida.
26. Sabia que a importância monetária com que se locupletou, não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
27. Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
28. No mesmo dia 30 de Novembro de 2021, pelas 23.55 horas, o arguido AA dirigiu-se ao estabelecimento comercial sito no posto de combustíveis da CC, em …, …, com intenção de ali entrar e dali levar quantias em dinheiro.
29. Assim, na execução de tal intento, o arguido entrou no referido estabelecimento comercial, que se encontrava aberto ao público, dirigiu-se aos funcionários do mesmo, KK, LL e MM e disse Quero 50,00 euros.
30. KK ainda disse ao arguido que não lhe dava o dinheiro, pois sairia do bolso dos funcionários, momento em que o arguido, bastante agitado e nervoso, tentou entrar no interior do balcão, tendo nesse momento sido impedido por MM.
31. Voltando a dirigir-se a KK esta disse que lhe dava € 20 ao que o arguido respondeu não quero e, ao mesmo tempo, colocou a mão direita no bolso da camisola que vestia e disse tenho aqui uma arma!
32. Nesse momento entraram no interior do estabelecimento comercial alguns clientes que se encontravam no exterior, aos quais KK havia acenado pedindo ajuda, e ajudaram também a agarrar o arguido e a mantê-lo imobilizado.
33. O arguido foi assim mantido detido pelos funcionários e clientes do estabelecimento comercial, até à chegada ao local da GNR.
34. O arguido havia-se feito transportar no veículo de matrícula …, o qual havia deixado parado, com o motor a trabalhar e as portas destrancadas, a cerca de 50 metros da entrada do referido estabelecimento comercial, a fim de facilitar a sua fuga.
35. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo com a sua actuação fazer sua a quantia em dinheiro referida, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e que actuava contra a vontade do seu dono.
36. O que apenas não conseguiu por motivo alheio à sua vontade, concretamente por ter sido imobilizado e detido pelos funcionários e clientes do referido estabelecimento comercial.
37. Para tentar concretizar os seus intentos não se coibiu o arguido de intimidar e constranger os funcionários do estabelecimento comercial, alegando que tinha uma arma consigo, de modo a não compeli-los a entregar-lhe e a permitirem que levasse consigo a referida quantia em dinheiro.
38. Sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
39. Apresenta quadro clínico de natureza psicótica, perturbação esquizofreniforme em comorbilidade com perturbação do uso de substâncias.
40. No momento da prática dos factos estava genérica e minimamente capaz de se avaliar e de determinar de acordo com tal avaliação.
41. O processo de socialização de AA decorreu junto dos pais, irmã mais velha e avós maternos.
42. Os pais separaram-se quando o arguido tinha … anos de idade ficando, inicialmente aos cuidados da mãe e, mais tarde, no início da adolescência, por sua opção, alternava a sua permanência junto do pai e dos avós maternos.
43. Fruto da situação socio económica estável vivenciada pelo seu agregado, beneficiou de situação em que lhe foram asseguradas as necessidades inerentes ao seu bem estar.
44. Em termos afectivos, a relação foi harmoniosa e de afectividade entre os vários elementos do agregado que, após conhecimento da problemática aditiva de AA têm demonstrado apoio e colaboração na sua reabilitação.
45. Tem uma filha de … anos de idade, fruto de relação afectiva que durou 4 anos, que terminou devido à problemática aditiva e a problemas de saúde mental, não assumidos pelo próprio que, fruto de tal postura, rejeitava acompanhamento clínico e a toma de medicação.
46. Concluiu o 9º ano de escolaridade, desistindo da escola por opção, aos 16 anos de idade, manifestando desinteresse pelos estudos e por ambicionar autonomia financeira.
47. A nível laboral, manteve hábitos regulares de trabalho até Novembro de 2019.
48. Iniciou consumo de cocaína com 20 anos de idade os quais foi intensificando.
49. Em 2006 teve acompanhamento psicoterapêutico da Equipa de Tratamento de … e em consultas de psiquiatria, registando descontinuidade na toma da medicação e tratamento/acompanhamento, que abandonou nesse mesmo ano, entrando em surto psicótico.
50. Esteve compulsivamente internado em Abril de 2016 com diagnóstico de psicose secundária devido ao abuso de substâncias.
51. Esteve diversas vezes internado no serviço de psiquiatria do Hospital de … tendo o último internamento compulsivo ocorrido em Julho de 2021.
52. Após, deu entrada em comunidade terapêutica que abandonou em Outubro de 2021, de imediato retomando os consumos de cocaína, que foi intensificando até à actual reclusão em 19.01.2022
53. À data dos factos o arguido resida com a mãe, …, que o sustentava, já que estava profissionalmente inactivo há 2 anos
54. A dinâmica familiar estava condicionada pelos consumos aditivos do arguido verificando-se situações de conflitualidade e agressividade verbal do arguido quando confrontado com a manutenção de estilo de vida ligado ao consumo de estupefacientes.
55. Parece dispor de competências para identificar causas e consequências do seu comportamento parecendo reconhecer o impacto do seu historial de toxicodependência e de saúde mental.
56. Tem apresentado discurso de acordo com a desejabilidade social, expressando desejos de mudança no sentido de se manter abstinente, assumindo a necessidade de debelar a problemática aditiva.
57. Reconhece os danos associados à criminalidade em causa nestes autos.
58. Mantém o apoio da mãe.
59. É reputado de bom amigo, tranquilo e honesto.
60. Por decisão de 06.08.2012, transitada em julgado em 06.12.2013, foi condenado pela prática em 2010 de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova, pena declarada extinta por inexistência de causas de revogação da suspensão.
61. Por decisão de 19.09.2017, transitada em julgado em 19.10.2017, foi condenado pela prática em 15.12.2016 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade na pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova, suspensão que foi revogada por despacho de 12.10.2020, transitado em julgado em 17.11.2021.»
Sendo neste contexto também relevante acrescentar o que consta da motivação da decisão quanto à matéria de facto: «(…) o Tribunal teve em consideração o Certificado de Registo Criminal refª … de 14.10.2024 e o relatório social refª … de 10.05.2024 juntos aos autos, tendo ainda sido tido em consideração o relatório de perícia médico-legal de fls. 760 e ss., de onde emerge a prova das patologias psiquiátricas de que sofre o arguido e, bem assim, da sua imputabilidade à data da prática dos factos.»
C. Apreciando.
C.1 Do crime continuado
O recorrente sustenta que relativamente aos factos praticados no posto de abastecimento CC, com referência aos factos de 21nov2021 (factos 1 ss.); e aos ocorridos a 30nov2021 (factos 28 ss.) há apenas um único crime continuado.
O Ministério Público na sua resposta refere que os factos em causa são insuscetíveis de continuação criminosa, em razão do preceituado no § 3.º do artigo 30.º do Código Penal, que torna inaplicável ao crime de roubo a figura do crime continuado, na medida em que a incriminação em referência tutela também bens jurídicos pessoais.
Adiantemos que o recorrente não tem razão. E comecemos por deixar claro que apesar dos problemas de cariz mental de que padece o arguido, potenciadas pelo elevado consumo de substâncias psicoativas, ele não é inimputável, conforme bem decidiu o tribunal recorrido, fundado na prova pericial produzida nos autos. Importa caracterizar, ainda que sinteticamente, o crime de roubo, previsto no artigo 210.º, § 1.º CP, cometido pelo arguido em cada uma das situações em referência. Os seus elementos objetivos reconduzem-se a uma ação de subtração ou de constrangimento à entrega; de coisa móvel; que tem de ser alheia; e com valor venal; por meio de violência, de ameaça ou colocação da vítima na impossibilidade de resistir. E o tipo subjetivo é doloso, consistindo na ilegítima intenção de apropriação.
Trata-se de ilícito em que são ofendidos bens jurídicos patrimoniais (como o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis) e bens jurídicos pessoais (como a liberdade individual de decisão e de ação, a integridade física e até a vida).2 Se bem se vir o acervo factológico provado, respeitante aos segmentos aqui em causa (factos provados de 1. a 8. e de 28. a 32.), deles emerge, com exuberante clareza, a intimidação exercida pelo arguido sobre os empregados do estabelecimento em causa (em duas datas e ações distintas). E ainda que sempre no mesmo estabelecimento comercial, os empregados colocados sob coação eram distintos. Só desse modo, de resto, se tornando possível a subtração dos bens ilicitamente apropriados. E logo por isso se mostra inaplicável o disposto no artigo 30.º CP. A mais disso, a mobilização da figura do crime continuado nunca é automática, conforme ex adverso parece depreender-se das alegações do recorrente! Ela só ocorre se houver razões que evidenciem uma diminuição significativa da culpa do agente. O que apenas sucederá quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha para tal contribuído (artigo 30.º, § 2.º CP). Isto é, para que se verifique crime continuado é suposta uma reiteração de propósitos, na realização plúrima do mesmo crime ou de crimes que protejam essencialmente o mesmo bem jurídico, mas devida tal reiteração a um estado de coisas, exterior ao agente, de força criminógena, o qual, nessa medida lhe diminua a culpa. Essencial é, pois, que o agente haja sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos atos criminosos. Não sendo isso que sucedeu neste caso. O arguido foi uma segunda vez assaltar o mesmo estabelecimento, mas não porque a porta estivesse aberta e não se encontrasse lá ninguém (por exemplo). Não se verificando nenhuma circunstância externa ao agente suscetível de lhe diminuiu a culpa na ação ilícita empreendida. Razões estas que são evidenciadoras da inconsistência deste fundamento do recurso.
C.2 Da suspensão da execução da pena de prisão
O recorrente tece diversas considerações (de caráter genérico) sobre os princípios e as regras respeitantes à matéria da determinação da medida das penas! Mas com respeito ao erro de julgamento em matéria de pena, limita-se a afirmar, conclusivamente, que considera justa «uma pena única de 2 anos e 7 meses de prisão suspensa na sua execução e sujeito a um regime de prova de igual período»!
Por seu turno o Ministério Público lembra que o recorrente já foi anteriormente condenado em penas de prisão suspensas na sua execução: foi condenado em 2012, por tráfico de substâncias estupefacientes, por decisão transitada a 6/12/2013, numa pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; e em 2017, também por tráfico de substâncias estupefacientes de menor gravidade, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, por decisão transitada a 19/10/2017, a qual veio a ser revogada em 2020.
E ainda que à data da prática dos factos pelos quais foi agora condenado, não se encontrava profissionalmente ocupado, continuando a ser toxicodependente, circunstâncias potenciadoras da prática de ilícitos como meio de granjear liquidez para a satisfação da dependência.
Não havendo, portanto, razões que possam sustentar um juízo de prognose favorável.
Neste conspecto o Tribunal recorrido considerou que:
«Vistos os factos, a postura do arguido em relação aos mesmos e os seus antecedentes criminais, não se pode afirmar que o juízo de prognose é favorável ao arguido, pois que em momento anterior a estes factos o arguido havia sido condenado, por duas vezes, em penas de prisão suspensas na sua execução e nenhuma delas, como estes autos demonstram à saciedade, foi aproveitada pelo arguido ou logrou alcançar um dos seus desideratos qual seja o de prevenir e demover o condenado da reincidência criminosa.
Na verdade, apesar dos diversos diagnósticos médicos, e da perícia médico-legal existente nos autos, em que está diagnosticado com perturbação esquizofreniforme e perturbação do uso de substâncias, o arguido continua a afirmar que não tem qualquer patologia; apesar de o seu quadro clínico ter sido classificado como crónico e permanente (cfr. fls. 764) e de o perito médico legal ter emitido parecer médico no sentido de o seguimento em consulta de psiquiatria e toma regular de medicação antipsicótica melhora e controla os sintomas da perturbação esquizofreniforme o arguido continua a afirmar não carecer de qualquer medicação.
Não se duvida que o arguido esteja mais estabilizado e orientado, mas a verdade é que as suas características de personalidade demonstram à saciedade a sua rigidez e pouca abertura a opiniões e influências externas que não sejam do seu agrado ou de acordo com as suas convicções e interesses, donde se conclui, em conjugação com o atrás referido, que a ameaça de prisão não é suficiente para prosseguir devida e adequadamente as necessidades da punição que se fazem sentir, sendo tal eventual suspensão reputada pela comunidade como injustificada indulgência perante a prática de ilícitos criminais e daria ao arguido uma sensação de complacência e impunidade.»
Em conformidade com a matriz constante do artigo 40.º do Código Penal, toda a pena tem como finalidades «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, (…) em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.»
A pena concreta a cumprir pelo condenado visa afastá-lo da delinquência e integrá-lo nos princípios e valores dominantes na comunidade.3 Devendo corresponder ao necessário para a reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal que para isso seja necessário.
O arguido/recorrente tem as características que se descrevem nos factos provados, dos quais ressalta que tem 41 anos de idade e o 9.º ano de escolaridade. Até novembro de 2019 manteve hábitos regulares de trabalho. Relevante sendo ainda que é toxicodependente, tendo iniciado consumo de cocaína com 20 anos de idade, o qual se foi intensificando.
E que em 2006 esteve sob acompanhamento psicoterapêutico pela Equipa de Tratamento de … e em consultas de psiquiatria, registando descontinuidade na toma da medicação e tratamento/acompanhamento, quadro que abandonou nesse mesmo ano, entrando em surto psicótico.
Antes disso já havia estado internado compulsivamente (em abril de 2016), com diagnóstico de psicose secundária devido ao abuso de substâncias. Tendo depois disso estado internado por diversas vezes, no serviço de psiquiatria do Hospital de …, tendo o último internamento compulsivo ocorrido em julho de 2021, altura em que deu entrada numa comunidade terapêutica, que veio a abandonar em outubro do mesmo ano. Logo retomando os consumos de cocaína, o que se foram intensificando até à reclusão em 19jan2022. Ora, de acordo com o disposto no artigo 50.º do CP, a possibilidade de substituição da pena de prisão pela suspensão da execução da prisão, obedece a dois pressupostos básicos: sendo um de natureza formal (a medida concreta da pena imposta ao agente não pode ser superior a cinco anos de prisão); e outro de cariz material (constituído por um juízo de prognose favorável acerca da ressocialização em liberdade - de desnecessidade de cumprir efetivamente a pena de prisão), a realizar no momento da condenação, quando se tem de escolher e fixar a medida da pena.
A suspensão da execução da pena de prisão é uma pena de substituição, substituindo uma pena principal (que é a pena de prisão) e sendo matricialmente constituída por uma solene advertência ao condenado, que agrega à condenação e ao cumprimento dos deveres a ela ligados a ameaça da prisão efetiva (como a espada de Dâmocles pendendo sobre a sua cabeça), preconizando um efeito sobre o seu comportamento futuro, em benefício da sua reintegração social. Agregando, pois, um conteúdo pedagógico e reeducativo.
Esta pena de substituição só deverá ser decretada quando o tribunal concluir, que em face da personalidade do agente, das condições da sua vida e de outras circunstâncias apuradas, que a mesma é adequada a afastar o arguido da criminalidade.
Efetivamente, a suspensão da execução da pena tem sempre na sua base uma prognose favorável: a esperança fundada de que o condenado sentirá a condenação como uma advertência e que não virá a cometer nenhum crime.
Assentando a sua aplicação num risco prudencial4 sobre a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime e as circunstâncias deste. Sendo de aplicar se se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da execução da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Daí que ao tribunal de julgamento se exija uma ponderação sobre todos os elementos disponíveis que possam sustentar a conclusão de que o facto ilícito praticado terá sido como que um acidente de percurso; e de que a solene advertência que constitui a condenação e a ameaça da prisão, terá inevitável reflexo sobre o comportamento futuro do agente, em benefício da sua reintegração social.
Fatores essenciais para tanto são: a capacidade da pena concreta apontar ao condenado rumo certo no domínio dos valores prevalecentes na sociedade, impondo-lhe num sentido pedagógico e autorresponsabilizante o seu comportamento futuro; e a capacidade dele para sentir e compreender a ameaça da prisão, de molde a que ela exerça sobre si efeito contentor.
O ponto fulcral é o já referido prognóstico favorável, assente num juízo de probabilidade fundada (e não num mero risco calculado), cujo contraponto será naturalmente o prognóstico desfavorável, o qual emergirá quando num juízo quase seguro puder predizer-se a reincidência.5
O acórdão recorrido expressa, com assinalável clareza e indubitável acerto, as veementes razões que impediram a mobilização de tal pena de substituição, lembrando que o arguido já beneficiou dessa confiança nas duas condenações anteriores, sendo que na segunda delas as coisas não correram bem e a suspensão veio a ser revogada, determinando-se o cumprimento efetivo da pena de prisão. Entretanto (entre 21 e 30 de novembro de 2021) o arguido cometeu os crimes que foram julgados neste processo.
Ora, das circunstâncias que se deixaram descritas ressaltam impostergáveis as exigências de prevenção geral positiva (de reforço da confiança da comunidade na validade das normas que proíbem a prática dos factos que o arguido cometeu) e de prevenção especial (ressaltando evidentes as especiais necessidades de reintegração do arguido na sociedade).
E quando assim é, a suspensão da execução da prisão não deve ser decretada, por a ela se oporem as necessidades mínimas de reprovação e prevenção do crime. Isto é, por se interporem «exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.»6 Termos em que, por inverificação dos pressupostos em que assenta a preconizada suspensão da execução pena de prisão, não vislumbrarmos razão para alterar o decidido.
C.3 Do perdão de pena
Sustenta também o recorrente que deverá beneficiar o perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, considerando ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma que cinge o universo das pessoas abrangidas por aquela lei, àquelas «que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto». Relembremos: na data da prática dos factos ilícitos aqui em referência o arguido/recorrente tinha 37 anos de idade.
Relativamente a este fundamento do recurso lembra o Ministério Público, na sua resposta, que o Tribunal Constitucional, já se pronunciou sobre a suscitada inconstitucionalidade da norma contida no artigo 2.º, § 1.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto (que estabelece como condição da sua aplicação que o autor da infração tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto), não a tendo julgado inconstitucional, o que sucedeu p. ex. no acórdão n.º 471/2024 de 19 de junho.
O recorrente não tem razão. Atentando nas razões que determinaram a Assembleia da República a aprovar a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, o que logo consta do seu artigo 1.º: «a presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude», logo se constata que a delimitação do universo de beneficiários da amnistia não foi arbitrária, assentando antes em razões de política criminal que são constitucionalmente legítimas.
E conforme o próprio Tribunal Constitucional refere no acórdão citado pelo Ministério Público (de 19jun2024, relator José Teles Pereira), a opção legislativa «não se mostra arbitrária, nem infundada, nem irrazoável, dentro dos pressupostos que, assumidamente, motivaram o (este) exercício do direito de graça pelo legislador. A referência etária não vale, neste particular contexto e nos termos em que foi construída, como diferenciação inadmissível.» Esse mesmo entendimento veio a ser replicado pelo mesmo Tribunal, no seu acórdão n.º 857/2024 (de 5dez2024), do qual foi relator Afonso Patrão; e também no acórdão n.º 898/2024 (de 11dez2024), em que foi relatora Dora Lucas Neto. Interpretação e conclusão estas a que integralmente aderimos. Razões pelas quais o recurso não se mostra merecedor de provimento.
III – Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter integralmente o acórdão recorrido.
b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Évora, 25 de março de 2025
Francisco Moreira das Neves (relator)
Jorge Antunes
Manuel Soares
..............................................................................................................1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).
2 Cf. Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, tomo II, 2.ª ed., 2022, pp. 200, Gestlegal, pp. 199 ss.; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2007, Universidade Católica Editora, p. 578.; M. Miguez Garcia, O Direito penal Passo a Passo, vol. II, 2011, Almedina, pp. 170 ss.
3 Neste exato sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, pp. 227 e ss.; e Claus Roxin, Derecho Penal - Parte General, I, Madrid, Civitas, 1997, p. 86.
4 Hans-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Comares editorial, 5.ª edición (corregida y ampliada), 2002, pp. 902
5 Neste exato sentido Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pp. 343-344; e Hans-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General, Comares editorial, 5.ª edición (corregida y ampliada), 2002, p. 902.
6 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Ob. cit., p. 344.