I. Incidindo sobre pessoas presumivelmente inocentes, a aplicação das medidas de coação tem de revestir-se das devidas cautelas, estando por isso sujeitas a estritas prescrições de legalidade (de tipicidade), de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, que deverão orientar as decisões judiciais que lhes respeitem.
II. A prisão preventiva só pode ser aplicada (e subsequentemente mantida) quando, para acautelar as necessidades processuais, as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes.
III. Devendo ser revogada ou substituída sempre que circunstâncias de facto ou de direito supervenientes tenham efeito direto nos pressupostos que ditaram a sua aplicação.
IV. Postulando o princípio rebus sic stantibus, que em princípio a medida de coação aplicada se deverá manter, salvo superveniência de alguma das circunstâncias previstas na lei.
a. No processo do …º Juízo Central Criminal de …, no qual respondem 26 arguidos por crimes de tráfico de substâncias estupefacientes e ilícitos conexos, AA, nascida a … de 1996, com os demais sinais dos autos, está acusada da prática de «um crime de tráfico de estupefacientes, previstos no artigo 21º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabelas I-A, I-B e I-C anexas ao referido diploma legal.
No pretérito dia 31/1/2025, no âmbito do controlo liminar do processo na fase de julgamento, foi proferido o seguinte despacho no Juízo recorrido:
«(…)
«Considerando o disposto no art. 213.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, cumpre proceder ao reexame dos pressupostos da medida de coacção a que os arguidos se encontram sujeito, e tal sem que mostre necessária a Sua audição Ou do Ministério Público, não obstante o requerido pelo arguido BB e a posição assumida pelo Ministério Público, no sentido de ser indeferida a alteração do estatuto coactivo.
Como resulta dos autos os arguidos CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, AA, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP e QQ encontram-se sujeitos à medida de coacção de prisão preventiva desde 8 de Julho de 2023, sendo que os arguidos RR, SS, TT e UU encontram-se presos preventivamente a 15 de Dezembro de 2023.
Ora, é manifesto que desde a última revisão do estatuto coactivo, realizada na sequência da prolação da decisão instrutória, não sobrevieram quaisquer motivos que levem à alteração da medida, nem ao nível da indiciação dos ilícitos, nem ao nível das exigências cautelares, nomeadamente ao nível do intenso perigo de continuação da actividade criminosa.
Nestes termos, e porque também não se encontra excedido o prazo de duração da medida (2 anos e 6 meses, atento o estatuído no art.º 215.º, n.º 1 al. c) e 3 do Código Penal), determino que os arguidos supra identificados continuem a aguardar os ulteriores termos do processo sujeitos a prisão preventiva.
Atente-se que o decidido é inteiramente aplicável ao arguido BB, porquanto, a circunstância de alterar o seu meio residencial e até passar a residir com os com a sua avó e irmão, como referido no seu requerimento, não constituiria medida de coacção bastante e suficiente a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa, sendo perfeitamente concebível que mesmo nessas circunstâncias o arguido pudesse vir a continuar factos qualificáveis como de tráfico de estupefacientes.
Nestes termos, determina-se a manutenção da prisão preventiva, indeferindo-se a requerida alteração do estatuto coactivo.
(...)»
b. Inconformada com o assim decidido, apresenta-se a referida arguida a recorrer desta decisão que manteve a situação coativa determinada na fase de inquérito e depois mantida na fase de instrução, que foi a prisão preventiva, na qual se encontra desde 8/7/2023, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
1. Tendo por base o artigo 32º nº 2 da Constituição da República, segundo o qual todo o Arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação e atendendo ao normativo penal vigente é forçoso sublinhar o caracter excecional da medida de coação mais gravosa prevista na lei: a prisão preventiva. Efetivamente, na senda da presunção de inocência se situam as disposições do artigo 27º e do artigo 28º da CRP e o Código de Processo Penal em vigor.
2. A medida de prisão preventiva, mesmo nos casos do artigo 209º do Código de Processo Penal, só é admissível quando se verificam os pressupostos do artigo 204º do Código de Processo Penal.
3. A acusação não imputa ao arguido, factos concretos que correspondam à incriminação pelos crimes de que vem acusado (especificar os artigos e a incriminação).
4. Face aos condicionalismos pessoais do arguido, à manifesta deficiência da acusação, à não verificação dos pressupostas do artigo 204º do Código de Processo Penal deveria a Arguida, ter sido restituída à liberdade imediatamente.
5. O douto despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos e violou o artigo 32º, Nº 2, e o artigo 27º e o artigo 28º da Constituição da República Pública, e o artigo 209º, o artigo 204º e o artigo 213º do Código de Processo Penal, pelo que deve ser revogado, ordenando-se a libertação imediata do Requerente, devendo aguardar os ulteriores trâmites do processo em liberdade.
6. A arguida AA encontra-se presa preventivamente no âmbito dos autos acima indicados.
7. O crime de que vem acusada a arguida, é um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. nos termos do art. 21.º. N.º 1, DL 15/93 de 22/01, na redação dada pela lei 11/2004, de 27/03, conjugado com o art. 26.º. do Código penal.
8. Inexiste perigo de fuga da parte da Arguida, porquanto a Arguida não tem meios de viver no estrangeiro, nem económicos nem financeiros, nem familiares nem outros.
9. Inexiste perigo de continuação de atividade criminosa.
10. Inexiste perigo de perturbação do Inquérito, porquanto a prova já se encontra recolhida nos autos.
11. A arguida deve ser imediatamente devolvida à liberdade.
12. Não se encontram preenchidos quaisquer requisitos previstos no disposto no artigo 204.º do Código de processo penal.
13. Deverá ser revogada a medida de coação da prisão preventiva nos termos do disposto no art. 212.º, nº1 alínea b), do Código do processo penal.
14. A não se entender assim, deverão ser reexaminados os pressupostos de prisão preventiva nos temos do disposto no artigo 213.º, nº1 alínea a) do Código de processo penal.
15. A arguida não tem meios para se eximir à ação de justiça.
16. A arguida não tem dinheiro para escapar para um país estrangeiro.
17. A arguida é primária.
18. A Arguida tem uma proposta de trabalho.
19. E pode começar a trabalhar imediatamente assim que for libertada.
20. Iniciando assim a sua reinserção social e profissional.
21. Não se justificando a prisão da arguida, deverá a mesma ser devolvida à liberdade a todo o momento.»
c. Respondendo a esse recurso o Ministério Público junto do Tribunal recorrido sustentou a justeza da decisão recorrida, sintetizando a sua argumentação nos seguintes termos:
«1. Salvo melhor opinião, não assiste razão à ora recorrente.
2. Primeiramente, cumpre sublinhar que o libelo acusatório imputa factos concretos e objetivos, circunstanciando as condições de tempo, modo e lugar em que a ora recorrente perpetrou, indiciariamente, o ilícito imputado nessa sede, tendo, por isso, sido respeitado o comando processual consagrado na alínea b) do nº 3 do art.º 283º do Código de Processo Penal.
3. Em segundo lugar, tal como assertivamente sublinhado pelo Tribunal a quo, é manifesto que desde a última revisão do seu estatuto coativo, realizada na sequência da prolação da decisão instrutória, não sobrevieram quaisquer motivos que levem à alteração da medida de coação de prisão preventiva, nem ao nível da indiciação do ilícito, nem ao nível das exigências cautelares, nomeadamente ao nível do intenso perigo de continuação da atividade criminosa.
4. Em consequência, face à inexistência de qualquer alteração factual superveniente que debele o intenso perigo de continuação da atividade criminosa, vigora a condição rebus sic stantibus, sendo, por isso, imutável a decisão que aplicou a medida de coação de prisão preventiva.
5ª Em suma, inexiste, pois, qualquer violação dos preceitos legais convocados pela ora recorrente.»
d. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação considerou serem fundadas as razões invocadas pelo Ministério Público na primeira instância.
e. Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)1, estando suscitada apenas uma questão:
i) Legalidade da decisão de manutenção da medida de coação de prisão preventiva.
2. Da legalidade da manutenção da medida de coação de prisão preventiva
Ainda que de modo indireto (e ilegítimo2), o que a recorrente deveras faz no recurso é recorrer do despacho proferido a 7 de julho de 2023 já transitado em julgado! Porquanto os fundamentos que alega, na sua maior medida, não se referem ao despacho recorrido, mas à decisão que foi tomada na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos (e da recorrente em concreto).
Entendamo-nos: o despacho de que ora se recorre é o proferido no dia 31/1/2025, cujo objeto foi o de reexaminar a manutenção dos pressupostos que determinaram a medida de coação aplicada à arguida/recorrente. Tendo-se aí considerado que desde a última revisão da medida de coação vigente (prisão preventiva), não sobrevieram quaisquer motivos que determinassem a alteração da medida coativa anteriormente aplicada, quer ao nível dos indícios do ilícito que lhe está imputado (tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º do Decreto-lei n.º 15/93, de 20 de janeiro), quer no plano das exigências cautelares, nomeadamente no respeitante ao perigo de continuação da atividade criminosa.
Nessa mesma ocasião se tendo também aferido não estar excedido o prazo máximo de duração da medida coativa.
E, por assim ser, decidiu-se nada determinar acerca da alteração da medida coativa vigente, mantendo-a.
Constatamos, pois, que a decisão recorrida se limitou a observar o princípio rebus sic stantibus, que postula que em princípio a medida de coação aplicada dever-se-á manter, salvo superveniência de alguma das circunstâncias previstas na lei.
Conforme se consigna no artigo 212.º, § 1.º al. b) CPP, as medidas de coação são imediatamente revogadas ou substituídas sempre que circunstâncias de facto ou de direito supervenientes tenham efeito direto nos pressupostos que ditaram a aplicação precedente de medida de coação.
Certo é que a recorrente nada aporta na temática da alteração de algum dos pressupostos da manutenção da prisão preventiva! Tendo-se limitado a alinhavar generalidades sobre a decisão que aplicou aquela medida de coação! Sendo essa matéria aqui totalmente irrelevante, por não estar a mesma agora sobre escrutínio.
E afirmar que não se conhecem «as datas dos factos que lhe estão imputados, nem quais são as pessoas envolvidas na atividade ilícita, nem quem foram os adquirentes dos produtos estupefacientes com que o arguido terá lidado» é, decerto, um lapso de escrita!
Assim o consideramos porquanto a mera leitura da pronúncia (que no essencial reproduz a acusação) permite identificar, com completude e clareza, as mais de cinco dezenas de transações ou cedências de substância estupefacientes ilícitas feitas pela recorrente a terceiros, situadas no tempo, no espaço. Ali estando também identificados os destinatários de tais produtos!
Aporta ainda a recorrente inexistirem os perigos sustentadores da medida de coação aplicada, apesar de o despacho recorrido se reportar a um só: perigo de continuação da atividade criminosa!
Perigo este que naturalmente se mantém, porquanto foi a essa atividade que (pelo menos indiciariamente) a recorrente se dedicou entre fevereiro e maio de 2023.
Limitar-se a alegar que a arguida é primária e que tem «uma proposta de trabalho», é pouco mais que irrelevante, porquanto o perigo que se mantém e se acautela, nada tem a ver com essas circunstâncias.
A estruturação sintética da decisão recorrida e o arrimo remissivo para o despacho que primeiramente aplicou a medida de coação e para o que a manteve, mostram-se plenamente justificadas em razão do princípio rebus sic stantibus, a que se aludiu.
Finalmente, é certo que, em linha com a tradição liberal democrática, que também inspirou a Constituição da República Portuguesa, se erigiu a liberdade individual como direito fundamental (artigo 27.º, § 1.º), de harmonia com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), estatuindo-se que tal direito apenas poderá ser restringido na medida do necessário, em face de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, § 2.º).
A par da liberdade a Constituição afirma igualmente o princípio da presunção de inocência dos arguidos (artigo 32.º, § 2.º e 27.º, § 1.º).3
Mas fá-lo, contudo, sem prejuízo de permitir (de prever expressamente no § 3.º do seu artigo 27.º) a existência das medidas de coação, as quais constituem, necessariamente, uma restrição à liberdade pessoal de quem a elas é sujeito, assinalando-lhes justamente a finalidade de satisfazerem exigências cautelares exclusivamente processuais (i. e. garantia do bom andamento do processo e o efeito útil da decisão final).
E justamente porque incidem sobre pessoas presumivelmente inocentes, a sua aplicação tem de revestir-se das devidas cautelas, sendo essa a razão pela qual tais medidas estão sujeitas a estritas prescrições de legalidade (de tipicidade), de necessidade, de adequação e de proporcionalidade, que deverão orientar as decisões judiciais que lhes respeitem.
No que especialmente concerne à prisão preventiva, por ser a que mais fortemente restringe a liberdade das pessoas, só pode ser aplicada (e subsequentemente mantida) quando para acautelar as necessidades processuais as outras medidas legalmente previstas se revelarem inadequadas ou insuficientes.
Sendo que para a mobilização da prisão preventiva a lei prevê (artigo 202.º, § 1.º do CPP) que tal só possa suceder quando haja fortes indícios da prática de crime, nas condições ali definidas (cuja verificação é patente); e se verifique algum (qualquer um) dos perigos previstos no artigo 204.º do CPP.4
Em suma: para fundamentar a decisão de sujeitar a recorrente a tal medida de coação, o tribunal competente fez (no dia 7/7/2023) um juízo de forte indiciação da prática de crime punível com prisão de 4 a 12 anos (tráfico de substância estupefacientes – artigo 21.º, § 1.º DL n.º 15/93, de 22 de janeiro); tendo considerado haver necessidade de acautelar diversos perigos, entre eles o de continuação da atividade criminosa.
Tendo o despacho recorrido feito o que a lei neste contexto de revisão periódica exige: verificou e confirmou a inexistência de qualquer alteração relativamente àquele juízo de forte indiciação criminosa, bem assim como a manutenção do perigo de continuação da atividade criminosa. O que tudo se mostra integral e muito bem realizado, com total respeito pelos pressupostos normativos pertinentes.
Consideramos, pois, que a decisão recorrida respeitou os critérios definidos na Constituição e na lei, a que se referem nomeadamente os artigos 18.º, § 1.º, 20.º, § 4.º, 27.º, § 1.º, 28.º, § 2.º e 32.º, § 2.º da Constituição e 191.º, § 1.º, 193.º, § 1.º e 2.º, 202.º, § 1.º, alínea a) 204.º, al. c) e 213.º do CPP, na medida em que se mantêm inalterados os pressupostos, de facto e de direito, que determinaram e depois mantiveram a sujeição da arguida/recorrente a prisão preventiva, designadamente por se manter o forte juízo indiciário relativamente à prática por aquele de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes (artigo 21.º, § 1.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro), e efetivo perigo de continuação da atividade criminosa.
Termos em que o recurso não se mostra merecedor de provimento.
III - Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão de sujeição da arguida/recorrente em prisão preventiva.
b) Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
Évora, 25 de março de 2025
Francisco Moreira das Neves (relator)
Artur Vargues
Jorge Antunes
..............................................................................................................
1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.
2 Ilegítima porque a decisão de 7jul2023, que aplicou a medida de coação prisão preventiva, na sequência de primeiro interrogatório judicial de arguido detido está transitada em julgado.
3 Igualmente proclamado no artigo 11.º da DUDH (Declaração Universal dos Direitos do Homem) e consagrado nos artigos 6.º, § 2.º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e 14.º, § 2.ºdo PIDCP (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos) e 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
4 A verificação de qualquer um dos perigos a que se reporta o artigo 204.º corresponde à exigência contida no artigo 5.º, § 1.º, al. c) e § 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que por ter sido regulamente ratificada pelo Estado português constitui direito interno (artigo 8.º, § 2.º Constituição).