MEDIDA DE SEGURANÇA DE INTERNAMENTO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO INTERNAMENTO
PROPORCIONALIDADE
MOBILIZAÇÃO DOS RECURSOS DA COMUNIDADE
Sumário

I. A suspensão da execução da medida de segurança de internamento, prevista no artigo 98.º CP, estriba-se no princípio da proporcionalidade, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição, permitindo que nos casos menos graves, em que ao processo de reintegração do agente da sociedade não é imprescindível a privação da liberdade, este ocorra sem privação daquela.
II. Gizando-se com essa medida proporcionar ao agente as condições de prosseguimento de tratamento em liberdade, de molde a mantê-lo equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos ilícitos-típicos.
III. A proporcionalidade é a dimensão valorativa que incorpora uma função limitadora em matéria de medidas de segurança; em termos similares à culpa nos casos dos agentes que dela são capazes.
IV. Imprescindível para lograr as finalidades impregnadas na lei, é mobilizar os serviços existentes na comunidade, que dispõem de programas e meios gizados para a prestação de cuidados e serviços a pessoas frágeis que não conseguem, por si só, assegurar, temporária ou permanentemente, os cuidados clínicos e medicamentosos de que carecem.

Texto Integral

ACÓRDÃO I – Relatório
a. No ….º Juízo1 Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum, da competência do tribunal singular, de AA, nascida a 20/12/1949, com os demais sinais dos autos, à estava imputada a autoria, em concurso efetivo, de:

- quatro crimes de dano, previstos no artigo 212.º, § 1.º do Código Penal (CP) – pelo Ministério Público;

- e dois crimes de injúria, previstos no artigo 181.º, § 1.º CP – pela assistente.

A assistente deduziu um pedido de indemnização civil contra a arguida, reclamando o ressarcimento dos danos de natureza patrimonial, que computou em 1 000€ e de natureza não patrimonial, que quantificou em 1 500€, decorrentes dos ilícitos imputados.

b. Veio a ser proferida sentença pela qual se decidiu:

- Declarar a arguida AA autora dos factos que lhe haviam sido imputados, com referência aos ilícitos típicos indicados;

- Declarar que a mesma é relativamente aos mesmos inimputável, por força de anomalia psíquica (nos termos previstos no artigo 20.º, § 1.º CP); e,

- Aplicar à arguida a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico, por um período máximo de 3 anos, até cessar o estado de perigosidade criminal (em conformidade com o disposto nos artigos 91.º, § 1.º e 92.º, § 2.º CP e 501.º do Código de Processo Penal (CPP), sem prejuízo do disposto no artigo 93.º CP;

- Julgar improcedente o pedido de indemnização civil absolvendo-se a demandada em conformidade.

c. Inconformada com a decisão determinativa do seu internamento, recorre a arguida, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões:

«1. A medida de internamento aplicada pelo Tribunal a quo é excessiva e desproporcionada.

2. A patologia diagnosticada à arguida não é grave pelo que tem tratamento em ambulatório e não internamento como determinado pelo douto tribunal.

3. Não ficou provado que a arguida não toma a medicação e que se recusa a tomá-la.

4. Também não ficou provado que a arguida se recusou a efetuar tratamento em liberdade.

5. Os factos cometidos pela arguida, não são considerados perigosos.

6. A arguida não é perigosa.

7. Violou o douto tribunal o estabelecido no art.º 40.º, 70.º, 91.º e 98.º/1 todos do CP.

8. Deveria ter sido suspensa a medida de internamento, mediante a imposição à arguida da frequência das consultas de psiquiatria em regime livre ou em ambulatório, e acompanhamento pela DGRS.»

d. Admitido o recurso o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, sintetizando a sua posição nos termos seguintes:

«1. O Tribunal a quo fez uma correta avaliação das circunstâncias, em ordem à ponderação da melhor decisão para o caso concreto, a qual, face ao que resultou da prova produzida, não podia, de facto, ser outra que não a que se traduzisse e foi o que se decidiu na aplicação à arguida da medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico por um período máximo de 3 anos.

2. A sentença recorrida, proferida pelo Tribunal a quo, mostra-se conforme à legislação aplicável, não se vislumbrando, na aludida decisão, qualquer vício, muito menos, aqueles cuja verificação é invocada pela recorrente.

3. Da prova produzida resultou que a recorrente não detém capacidade de autocontrole, existindo um sério risco de cometimento de factos semelhantes aos dos autos.

4. Só a medida de segurança de internamento em estabelecimento de tratamento psiquiátrico por um período máximo de 3 anos, em que a recorrente foi condenada poderá acautelar o efeito de prevenção de futuros crimes.»

e. No mesmo sentido sendo a resposta da assistente, acrescentando com eventual relevo que:

- Resulta do relatório médico-psiquiátrico que a perigosidade da arguida existe e depende diretamente do seu grau de adesão ao tratamento médico que lhe for prescrito.

- A arguida padece de uma incapacidade de aderir ao tratamento de que necessita, ainda que involuntária, nada a impedindo, em liberdade, de voltar a praticar os mesmos factos, já que irá manter-se sem acompanhamento psiquiátrico e sem acompanhamento medicamentoso ou, no limite, no que configura um perigo para si própria, automedicando-se.

- Não possuindo uma rede familiar ou económica que lhe permita o apoio de que carece, o que também não debelaria o juízo de prognose favorável a que não se chegou.

- Não tendo sido produzida qualquer prova que a arguida acolheria ou cooperaria com rede familiar, cuja prova também não foi produzida existir, de apoio que poderia eventualmente vir a suprir, pelo menos em teoria, a sua incapacidade/recusa de sujeitar-se a tratamento/acompanhamento psiquiátrico permanente, ainda que se viesse a decretar vigilância, a tutela dos serviços de reinserção social e um apertado controle do Tribunal através da imposição de exames e outras regras de conduta

- Aa condições de vida da arguida não são de molde a antever uma evolução clínica positiva que permita, nos termos e com os fins legais, a suspensão da execução da medida de internamento;

- E que a suspensão da medida de segurança, sem necessidade do internamento, não satisfaria o fim que determina a aplicação da medida de segurança: a proteção dos bens jurídicos e a reintegração da agente na sociedade.

f. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público aportou doutas considerações, entendendo mostrar-se justificada a medida de segurança imposta à arguida.

g. Respondeu a assistente, aderindo ao sustentado no parecer do Ministério Público.

h. Efetuado exame preliminar, colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP)2. Suscitando-se apenas a seguinte: i) Se a medida de internamento é desproporcionada, devendo ser antes aplicada a suspensão desse internamento, com acompanhamento pela DGRSP.

B. Os factos provados constantes da sentença são os seguintes3:

«1. No dia 8 de Junho de 2021, cerca das 10h30m, a arguida AA, que reside na habitação sita na Rua …, n.º …, em … que é contígua à da assistente BB sita na Rua …, n.º …, na mesma localidade, lançou para o quintal desta um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos 75,50€.

2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida AA, com recurso a objeto de características não concretamente apuradas, desferiu pancadas na chapa que se encontra sobre o muro que divide a sua propriedade e a da assistente, propriedade desta, que amolgou, assim provocando estragos com o valor de pelo menos 162,38€.

3. No dia 9 de dezembro de 2021, a hora não concretamente apurada, nas mesmas circunstâncias de lugar, a arguida AA lançou para o quintal da assistente um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos 77€.

4. No dia 2 de agosto de 2022, cerca das 02h00m, nas mesmas circunstâncias de lugar, uma vez mais, a arguida AA lançou para o quintal da assistente um produto químico com amoníaco que atingiu a horta propriedade da assistente, assim queimando as suas plantações e culturas e provocando-lhe estragos com o valor de pelo menos de 60,50€.

5. Com a conduta descrita, a arguida causou prejuízos no quintal da assistente no valor global de pelo menos de 375,38€.

6. A arguida agiu da forma descrita com o propósito concretizado de provocar estragos nas culturas e plantações do quintal da assistente e na chapa que se encontrava colocada sobre o muro que divide a propriedade de ambas, bem sabendo que tais bens não lhes pertenciam e que agia contra a vontade da sua legítima proprietária BB, o que representou e quis.

7. A arguida AA, sem motivo ou justificação, dirige à assistente, com caráter frequente, palavras com vista a apelidá-la em termos impróprios.

8. Trata também, com o mesmo caráter de frequência, de atirar pedras e laranjas para o quintal desta, o que sucedeu designadamente no dia 2 de agosto de 2022, data em que a GNR se deslocou ao local a pedido da assistente.

9. Bate, ainda, com pedras nas chapas da divisão do muro de ambas, amolgando-as.

10. No contexto e concretizando o provado em 7, a arguida dirigiu-se em voz alta à assistente, pelo menos numa ocasião, situada no referido dia 8 de junho de 2021, proferindo as seguintes expressões: - «És uma puta, uma ladra» - «Sua puta» - «Puta de merda» - «Essa merda tá a ladrar é igual à dona» - «Puta da beira da estrada» - «Vaca de merda» - «Vaca» - «O teu marido é um inválido de merda» - «O teu filho é um cabrão» - «O teu filho é um filho da puta» - «Puta andas a trair o teu marido» - «Vai para o caralho».

11. No referido dia 2 de agosto de 2022, na presença dos militares da GNR que se encontravam no quintal da assistente, CC e DD, a arguida proferiu em voz alta as seguintes expressões dirigidas à assistente: - «Sua vaca, vai-te lavar porca de merda».

12. Com a conduta descrita, a arguida quis ofender, como efetivamente ofendeu, a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente.

13. Os factos aqui descritos chegaram ao conhecimento de vizinhos e terceiras pessoas, tornando-se rapidamente conhecidos na localidade de ….

14. A assistente sentiu-se transtornada, humilhada, magoada, envergonhada e constrangida, por ter sido destinatária das expressões supra descritas e estas terem sido ouvidas pelas pessoas que se encontravam presentes no local e pelas demais que tiveram conhecimento dos factos.

15. A arguida bem sabia que as expressões que proferira ofendiam a honra, dignidade, bom nome e consideração social da assistente.

16. A arguida foi seguida na especialidade de psiquiatria junto do Hospital Distrital de … a 22 de maio de 2018.

17. Do registo documental de tal consulta, consta designadamente o seguinte:

“Doente, sexo feminino, 68 anos, seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 45 anos, tendo abandonado o seguimento passados cerca de 36 anos. Hoje recorreu à consulta de Psiquiatria por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Apresenta humor deprimido e ansioso, refere irritabilidade, nega alterações do apetite e refere insónia inicial, intermédia e terminal. Nega ideação suicida. Refere ideação deliróide de conteúdo persecutório. Nega alterações da percepção. Nega consumo de substâncias psicoativas. Queixas dolorosas generalizadas. Nega outras patologias relevantes. Faço ajuste terapêutico.”.

18. A arguida foi seguida por conta de episódio de urgência no Hospital Distrital de …, datado de 14 de dezembro de 2019.

19. Do registo documental de tal episódio, consta designadamente o seguinte:

“Doente de 69 anos de idade, sexo feminino. Mora com o marido. Trazida pelos bombeiros e pela GNR por comportamento agressivo para com os vizinhos. Parece que liga para a GNR várias vezes por dia, tem um bar ao lado e a doente se queixa do ruído do bar e o cão que tem e não consegue dormir. A doente diz já ter feito no domicílio 2 cp de diazepam. Seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 45 anos, terá abandonado o seguimento passados cerca de 36 anos. Consulta de Psiquiatria no 2018 por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Com humor deprimido e ansioso, e irritabilidade. Referia ideação deliróide de conteúdo persecutório. (...) Tira análise e faz haloperidol agora. Vai para H…, Psiquiatria.”.

20. A arguida foi seguida na especialidade de psiquiatria junto do Hospital Distrital de … a 24 de fevereiro de 2020.

21. Do registo documental de tal consulta, consta designadamente o seguinte:

“Doente, sexo feminino, 70 anos, seguida em consulta de Psiquiatria há cerca de 48 anos, recorreu à consulta de Psiquiatria por queixas de insónia e dificuldades mnésicas. Apresenta humor deprimido e ansioso, refere irritabilidade, nega alterações do apetite e refere insónia inicial. Nega ideação suicida. Refere ideação deliróide de conteúdo persecutório. Nega alterações da percepção. Nega consumo de substâncias psicoativas. Queixas dolorosas lombo-sagradas. Nega outras patologias relevantes. Faço ajuste terapêutico.”.

22. Durante o exame pericial psiquiátrico a que foi submetida, a 15 de março de 2024, a arguida “Apresentou um discurso muito pobre em termos lexicais, por vezes desorganizado e pouco claro. Estavam presentes ideias sobrevalorizadas de teor persecutório. Não se apuraram alterações da senso-perceção. Procedeu- se a uma avaliação cognitiva breve com recurso ao instrumento MoCA (Montreal Cognitive Assessment, versão portuguesa), que a examinanda não foi capaz de concluir, mas ainda assim corroborando a impressão clínica relativamente à presença de evidentes dificuldades intelectuais, em particular na compreensão lógica e no pensamento abstrato, com discalculia, bem como comprometimento mnésico e evocativo. Não foram verbalizadas ideias de suicídio durante a avaliação. Foi referida alteração do padrão do sono. Não apresentava crítica para os comportamentos que motivaram a avaliação” – relatório de perícia psiquiátrica forense do INML datado de 18 de abril de 2024.

23. A arguida padece de perturbação do desenvolvimento intelectual ligeira, enquadrável no código 6A00.0 da 11.ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial da Saúde (CID-11).

24. Demonstra incapacidade intelectual traduzida em défices de funcionamento intelectual e adaptativo, em diferentes áreas, demonstrando dificuldades no pensamento abstrato e funções executivas, entre outras, dificuldades de planificação e operacionalização de estratégias, estabelecimento de prioridades e flexibilidade cognitiva.

25. Manifesta-se ainda com alterações do comportamento, dificuldades na regulação emocional e comportamento paranoide, o qual, em situações de crise ou stress contínuo pode-se assumir com uma intensidade típica de ideias delirantes, presente na forma como interpreta acontecimentos, descreve a convivência e as alegadas práticas da vizinhança.

26. Durante o exame pericial psiquiátrico a que foi submetida, a 15 de março de 2024, a arguida, perante os Srs. Peritos, enquadrou os “insultos” que constam da acusação particular com uma “atitude normativa, demonstrando baixo conhecimento das normas convencionais do comportamento, sem capacidade de distinguir o lícito do ilícito, sem compreender o alcance das consequências dos seus atos e sem capacidade de autocontrole em relação aos seus comportamentos” - relatório de perícia psiquiátrica forense do INML datado de 18 de abril de 2024.

27. A sua condição, que se reveste de um caráter irreversível, resulta numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência da arguida, pelo que lhe limita significativamente a perceção do lícito ou ilícito, que estava presente à data dos factos provados em ambas as acusações deduzidas, assim como atualmente.

28. Este contexto incapacita-a e incapacitava de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação, situação que se reconduz a uma condição de inimputabilidade em razão da anomalia psíquica.

29. Existe um risco alto de cometimento de factos da mesma natureza e/ou gravidade dos que cometeu nos presentes autos, atendendo à incapacidade intelectual que apresenta, e à ausência de crítica para os seus comportamentos.

30. Carece a arguida de acompanhamento adequado em Psiquiatria, o qual deixou de ter, sendo necessário que cumpra de forma rigorosa o esquema psicofarmacológico que lhe seja proposto, algo que não consegue fazer voluntariamente, não revelando capacidade de aderir a tal tratamento, não tendo sequer capacidade para administrar a medicação de que necessita.

31. A arguida não detém antecedentes criminais registados no seu certificado de registo criminal.

32. A arguida detém a 3.ª classe de escolaridade, tendo desempenhado ao longo da sua vida trabalhos de tipo agrícola.

33. A socialização de AA processou-se na freguesia de …, região onde os pais eram arrozeiros, dedicando-se ambos ao cultivo de arroz, desenvolvendo-se num contexto de carência económica.

34. A arguida exerceu atividade laboral com os pais nos arrozais desde os 12 anos de idade.

35. Casou com 20 anos de idade com EE, que conheceu e começou a namorar aos 16 anos, tendo vivido sempre com dificuldades.

36. Teve 2 filhos, tendo um deles falecido há 15 anos.

37. O outro filho vive na …, visitando os pais uma vez por ano.

38. À data dos factos constantes da acusação, como atualmente, a arguida vive com o marido numa pequena barraca sem as mínimas condições de habitabilidade, salubridade, higiene ou conforto.

39. É coberta por uma placa de zinco, sem qualquer isolamento.

40. Tem acesso a eletricidade e água potável.

41. A arguida foi reformada por invalidez aos 37 anos por lesão na coluna que a incapacitou para o trabalho, auferindo de 341,59€ mensais.

42. O seu marido aufere uma reforma por velhice no valor de 518,34€.

43. A arguida faz fisioterapia diariamente, por manter graves problemas de coluna e de mobilidade, serviço assegurado pelo sistema nacional de saúde.

44. No local de residência, a arguida é conhecida por criar problemas com a generalidade das pessoas, ligando diariamente para a GNR de … queixando-se do comportamento de terceiros para com ela. Liga também inúmeras vezes para a GNR de … para se queixar da inoperância da GNR de ….

45. Das diligências encetadas por parte da DGRSP tendentes a realizar o relatório social da arguida, resulta que “Os vizinhos referem que a arguida sempre teve ideação persecutória, que se tem vindo a agravar de dia para dia. (…). Atualmente, há relatos de que atira pedras aleatoriamente a pessoas que passem nas proximidades da sua casa.”

46. A arguida revela um estado de descompensação, detendo incapacidade psíquica para gerar uma resposta adequada a uma situação de tensão nervosa e/ou emocional, de que podem resultar alterações de humor, delírios ou comportamentos psicóticos.

47. Das diligências encetadas por parte da DGRSP tendentes a realizar o relatório social da arguida, resulta que “Nos tempos livres, a arguida dedica-se a pequenas atividades agrícolas como produção de horta e, segundo os habitantes que contactámos, está associada a práticas que envolvam mezinhas e rituais utilizados para contactar “espíritos”, tendo alguns clientes que a procuram para este tipo de rituais”.

48. A arguida culpabiliza a assistente por todas as ocorrências negativas da sua vida.

49. Na eventualidade de ser condenada, a arguida referiu junto da DGRSP, no seguimento do relatório social que lhe foi exarado, “indisponibilidade para cumprir uma medida judicial de execução na comunidade, nomeadamente de carácter probatório, que contemple acompanhamento terapêutico na área da psiquiatria, ou enquadramento em serviço de apoio domiciliário”.»

C. Da desproporcionalidade do internamento e da suspensão deste com acompanhamento pela DGRSP A arguida/recorrente questiona a proporcionalidade da medida de segurança de internamento que lhe foi aplicada, sustentando dever ser suspensa a execução de tal medida de internamento, com fixação de deveres e controlo externo dos mesmos. O Ministério Público e a assistente, por seu turno, sufragam a posição sustentada na sentença recorrida. Pois bem.

O quadro normativo respeitante à inimputabilidade, norteador da aplicação das medidas de segurança e da possibilidade legal da suspensão do internamento, encontra-se previsto nos artigos 20.º, 40.º, § 1.º e 3.º e 91.º a 99.º, todos do CP e 501.º a 508.º CPP, preceitos estes encimados pelos princípios constitucionais previstos nos artigos 2.º, 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º da Constituição. Devendo recordar-se que a aplicação das medidas de segurança, talqualmente sucede com as penas, visa a proteção de bens jurídicos (artigo 40, § 1.º CP). «Sendo finalidade delas a prevenção especial de recuperação social do inimputável perigoso, através do tratamento da anomalia psíquica e ainda da inocuização ou neutralização da perigosidade criminal do infrator, através do internamento, enquanto subsistir aquela perigosidade.»4 Os pressupostos da aplicação de uma medida de segurança (de internamento) são: a prática de um facto ilícito típico, por agente considerado inimputável nos termos do artigo 20.º; e que, devido à anomalia psíquica de que sofre e da gravidade do facto praticado, haja fundado receio de vir a cometer outros factos típicos graves. Gizando a aplicação da medida de segurança acautelar o perigo («probabilidade séria») de repetição de atos da mesma natureza (id est da mesma espécie e género dos cometidos). Isto é, só poderá aplicar-se medida de segurança (de internamento) se esta se mostrar proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente (id est à probabilidade de repetição de factos da mesma espécie e género) – artigo 91.º, § 1.º CP.

Nas circunstâncias do caso presente, o tribunal recorrido procedeu à avaliação prevista no artigo 20.º CP, tendo considerado – e bem – que a arguida era inimputável relativamente aos factos ilícitos que praticou. Isto é, que a arguida era insuscetível de ser considerada culpada relativamente aos factos que praticou, em razão do comprometimento de cariz psiquiátrico que lhe condicionou a respetiva vontade. Mais entendeu que para acautelar o perigo de recidiva criminosa (a repetição de atos do mesmo jaez) era necessário o seu internamento. Sucede que conforme resulta do quadro normativo citado, a lei reserva os «remédios pesados» do direito penal, como é, evidentemente, o caso da medida de segurança de internamento do agente, apenas lá onde isso se mostrar ajustado e proporcional. Ou seja, quando a mobilização dos serviços disponíveis na comunidade se mostrar insuficiente para acautelar o perigo de repetição de factos ilícitos e a reintegração do agente na comunidade. Vejamos, então: que factos praticou a arguida cuja repetição importa acautelar? Em três ocasiões distintas, nos anos 2021 e 2022 atirou um líquido (desconhecido) contendo amoníaco para o quintal da vizinha, causando-lhe prejuízo nas plantações que esta ali tinha. Por junto importando o prejuízo em 375,38€. Noutra ocasião, também no período em referência, amolgou umas chapas do muro divisório dos quintais (seu e da vizinha-assistente); e noutra ainda atirou com pedras e laranjas para o quintal da ofendida.

E pelo menos em outras duas ocasiões dirigiu à mesma imputações desonrosas (que tinha trato com amantes), apelidando-a com os nomes que normalmente acompanham tais imputações. E quem é a arguida? Tem 75 anos e não regista antecedentes criminais. Não completou o ensino primário. Iniciou a atividade laboral nos campos com apenas 12 anos de idade. Posteriormente casou e teve dois filhos (um deles já falecido, estando o outro emigrado na …, o qual visita os pais uma vez ao ano). Vive com o seu marido numa casa sem condições de salubridade, de higiene e de conforto, dispondo, contudo, de eletricidade e água potável. Encontrando-se reformada por invalidez (por lesão na coluna que a incapacitou para o trabalho), recebendo uma pensão mensal de 341,59€; sendo a pensão de reforma do seu marido de 518,34€.

Padece de doença psiquiátrica, caracterizada por Perturbação do desenvolvimento intelectual ligeira, enquadrável no código 6A00.0 da CID-11, a qual reveste caráter irreversível, resultando numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência, limitando significativamente a perceção do lícito ou ilícito.

Sendo este o contexto que concretamente a incapacitava (na data dos factos) de avaliar a ilicitude dos seus atos e de se determinar de acordo com essa avaliação O que do ponto de vista psiquiátrico-forense justifica que se invoque a figura de inimputabilidade em razão da anomalia psíquica, sem que se possa excluir «o risco de cometimentos de factos da mesma natureza e/ou gravidade» dos praticados (extrato do relatório pericial).

A arguida é, pois, em suma: uma pessoa idosa, pobre e doente do foro psiquiátrico, que em diversas ocasiões nos anos 2021 e 2022, produziu danos materiais no quintal da sua vizinha (assistente), em valor inferior a 500€. E no mesmo período, em pelo menos em duas ocasiões distintas, dirigiu àquela a imputação de factos desonrosos (que tinha trato com amantes), acompanhada de epítetos caracterizadores de tais factos. Conforme se referiu, a lei e a interpretação que dela vem sendo feita pela doutrina e pela jurisprudência, exigem que para a aplicação da medida de segurança de internamento, a mais da prática de factos previstos na lei penal como crime, é também necessário que da avaliação global dos factos praticados resulte uma prognose desfavorável, decorrente da perigosidade do agente (da arguida). Sendo também necessário que da avaliação global dos factos praticados emirja uma prognose desfavorável decorrente da perigosidade do agente («fundado receio de que venha a cometer outros factos típicos graves»5). Isto é, nesse caso, os factos prognosticados, sustentadores do fundado receio de repetição, deverão apresentar-se como consequência da anomalia psíquica de que sofre o agente (e não de quaisquer outras circunstâncias, como por exemplo uma dada situação conflitual). E «para que uma medida de segurança em consideração possa ser aplicada necessário se torna ainda que o facto assuma uma natureza e uma gravidade tais que possam justificar uma medida tão severa como a do internamento, com a consequente privação da liberdade do inimputável.» Quer-se dizer, não pode deixar ponderar-se a gravidade relativa dos factos praticados (e cuja repetição poderá sobrevir). Pois é a esses que se reporta o fundado receio de repetição. Não sendo – como ficou dito – indiferente, termos em referência factos que vulneram os bens jurídicos mais relevantes, como a vida ou a integridade física, por um lado; e a honra ou o património, por outro. Evidenciando as circunstâncias do caso, não estarmos, pois, perante ilícitos que protejam os bens jurídicos mais importantes Não sendo ademais irrelevante anotar a circunstância de (pelo menos) se evidenciar haver uma relação conflitual entre a arguida e a sua vizinha – aqui ofendida6. Sendo que este tipo de conflitos tanto surgem com pessoas com comprometimento da capacidade de avaliação e determinação, como noutras que não sofrem de mal que afete tal capacidade. Não estando neste caso concretamente determinado até que ponto essa conflitualidade latente poderá ser independente da incapacidade da arguida! E nestas circunstâncias consideramos ser razoável conjeturar que a suspensão da execução do internamento e a manutenção em liberdade da arguida, cumprirão as finalidades de prevenção especial (de socialização e de segurança) e de prevenção geral (compatibilidade com a defesa da ordem jurídica e da paz social). Até porque, conforme assinala o relatório pericial, o acompanhamento médico e medicamentoso permitirá controlar a perigosidade latente. Ali concretamente se referindo que: «(…) 2. A sua condição, que se reveste de um caráter irreversível, resulta numa incapacidade intelectual que compromete a inteligência da examinanda, pelo que lhe limita significativamente a perceção do lícito ou ilícito, que estava presente à data dos factos que lhe são imputados, assim como atualmente. 3. O risco de cometimentos de factos da mesma natureza e/ou gravidade dos que agora a examinanda vem indiciada não pode ser excluído, atendendo à incapacidade intelectual que apresenta, e à ausência de crítica para os seus comportamentos. 4. É recomendável que retome o acompanhamento em consulta de Psiquiatria e que cumpra de forma rigorosa o esquema psicofarmacológico que lhe seja proposto, que ainda que não consiga reverter os défices que a examinanda apresenta, pode controlar, na medida do possível, eventuais comportamentos impulsivos.» Em suma: - a prognose relativa à perigosidade (repetição de atos da mesma espécie e género - danos de pequena monta e injúrias) alicerça-se na anomalia psíquica de que sofre a arguida (na sua incapacidade intelectual), com ressalvada de possível questão conflitual subjacente; - tal perigosidade tem por referência bens jurídicos de segunda linha (por referência à ordenação dos bens jurídicos no Código Penal); - podendo tal perigosidade (a adveniente da doença psiquiátrica) ser controlada por via do devido acompanhamento médico-psiquiátrico e psicofarmacológico. O tribunal recorrido não deixou de equacionar a possibilidade de suspensão da execução do internamento, tendo considerado que a arguida «não possui uma rede familiar ou económica que lhe permita o apoio de que carece.» E que «as suas condições de vida não são de molde a antever uma evolução clínica positiva (...) jamais sendo expetável que a arguida se submetesse a um plano delineado pela DGRSP, ainda que particularmente rígido ou “apertado”.» Concluindo, assim, pela não mobilização da suspensão da execução do internamento! Cremos que nesta última parte importaria ter ido mais longe. Assinala a doutrina, com inteira pertinência neste contexto, que «a medida de segurança de internamento de inimputáveis por anomalia psíquica nos interroga sobre a necessidade de repensar as disposições legais que a conformam, ao ponto de questionar se faz sentido manter a intervenção penal nesta área. A queda das certezas da psiquiatria biológica e positivista enredou os juristas em dificuldades, praticamente inultrapassáveis, no que diz respeito ao pressuposto desta medida de segurança – a perigosidade criminal do agente (...)»7 A tais certezas e à via da imposição da medida de segurança de internamento «contrapõe-se hoje uma resposta médico-psiquiátrica centrada na necessidade (ou não) de tratamento do agente declarado inimputável em razão de anomalia psíquica. Ao que acresce que a intervenção médico-psiquiátrica atual – psicofarmacológica, psicoterapêutica e psicossocial – permite, cada vez mais, internamentos menos prolongados e modalidades de tratamento que não passam pelo internamento.»8

Recordemos o que preceitua a lei em matéria de pressupostos e regime da preconizada suspensão da execução do internamento (artigo 98.º CP). Preceituando-se que: «1. O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.

2. No caso previsto no n.º 2 do artigo 91.º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas.

3. A decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52.º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.

4. O agente a quem for suspensa a execução do internamento é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53.º e 54.º.

5. A suspensão da execução do internamento não pode ser decretada se o agente for simultaneamente condenado em pena privativa da liberdade e não se verificarem os pressupostos da suspensão da execução desta.

6. É correspondentemente aplicável:

a) À suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 92.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 93º;

b) À revogação da suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 95.º.»

A previsão legal desta medida de segurança não privativa da liberdade encontra o seu esteio no princípio da proporcionalidade9, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição – a que já nos referimos -, permitindo que nos casos menos graves, em que ao processo de reintegração do agente da sociedade não é imprescindível a privação da liberdade, este ocorra sem privação daquela. A manutenção em liberdade do agente dos factos ilícitos constitui um maius face às soluções de clausura obrigatória, para o agente e para a comunidade, na medida em que neste está pressuposto um grande investimento na reinserção social do agente em liberdade, assegurando-lhe as condições de acesso ao tratamento adequado, de molde a permitir manter a sua liberdade, protegendo-se, do mesmo passo (ainda que apenas na medida possível) os bens jurídicos de terceiros.

Tendo esta medida algumas similitudes com a suspensão da execução da pena de prisão, aplicável aos imputáveis, não deverá, porém, com ela confundir-se. Pois que, contrariamente ao que sucede nesta, em que a simples ameaça do cumprimento da pena de prisão exerce sobre o condenado uma benévola coação psicológica para que não volte a delinquir; na suspensão da medida de segurança de internamento essa coação psicológica não funciona da mesma maneira, justamente em razão das condicionantes impostas pela anomalia psíquica que está na base da inimputabilidade. O que nestes casos verdadeiramente se giza é, apenas, proporcionar ao agente as condições de prosseguir um tratamento em liberdade, que o mantenha equilibrado e, por essa via, controlada a perigosidade, que impedirá a repetição da prática de factos ilícitos-típicos. É justamente por isso que a medida de suspensão da execução do internamento incorpora, necessariamente, um conjunto de regras de conduta, «em termos correspondentes às prevenidas no artigo 52.º CP, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regime de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados»10 (artigo 98.º, § 3.º CP).

No contexto de uma sociedade justa e inclusiva, que até por imposição constitucional vamos coletivamente construindo, é suposto que os mais vulneráveis tenham efetivo acesso à proteção da comunidade.

Daí que, diversamente do juízo feito na sentença recorrida, consideremos mais ajustado o risco que subjaz à suspensão da execução do internamento, com efetiva mobilização dos serviços existentes na comunidade, os quais estão vocacionados justamente para garantir a todos o acesso a um patamar mínimo de dignidade, o que ademais vem imposto pelo princípio da proporcionalidade, previsto no § 2.º do artigo 18.º da Constituição (nas dimensões de adequação e idoneidade). E referimo-nos à proporcionalidade por ser a dimensão valorativa que incorpora uma função limitadora em matéria de medidas de segurança; em termos similares à culpa nos casos dos agentes que dela são capazes11 O que se mostra imprescindível para lograr as finalidades impregnadas na lei é, pois, nos termos já referidos, mobilizar os serviços existentes na comunidade, que (com as insuficiências que sabemos sempre existirem) dispõem de programas próprios e meios de prestação de cuidados e de serviços a pessoas frágeis, que se encontram no seu domicílio em situação de dependência psíquica, e que não conseguem por si só assegurar, temporária ou permanentemente, a satisfação das suas necessidades básicas (que na circunstância do caso presente são cuidados clínicos e medicamentosos).

Não se terá atentado que a arguida vem fazendo fisioterapia diariamente (por ter graves problemas de coluna e de mobilidade), para o que conta com a colaboração do sistema nacional de saúde, como se refere no facto 43.

É desse mesmo modo que se deverão mobilizar os serviços de apoio social e clínica, com capacidade para acudir à comprovada falta de retaguarda familiar da arguida, suprindo as necessidades de acompanhamento de que esta necessita:

- levá-la às consultas;

- e realizar a vigilância ativa sobre o regime terapêutico, em razão da doença psiquiátrica de que padece.

O facto de a arguida ser pobre e desvalida não pode ser fator de descriminação, em desfavor da sua dignidade e da sua liberdade, conforme imposto pelo princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição). Claro que para lograr o controlo médico e medicamentoso a que nos referimos se torna necessário acompanhamento tutelar, o qual pode e deve ser realizado pelos serviços de reinserção social. Sem que nos abstraiamos de duas componentes essenciais: a fragilidade da arguida (que é uma doente); e a dimensão real dos factos praticados (por referência aos quais reporta o perigo de repetição), cuja gravidade relativa se situa na fronteira do que convencionalmente se vem designando de pequena criminalidade ou de criminalidade de baixa intensidade.

Importa, pois, mobilizar os serviços públicos existentes, criados justamente para acudir às necessidades dos cidadãos que servem, prestando-lhes o apoio de que carecem. Claro que há sempre uma margem de risco prudencial pressuposta, que decerto valerá a pena correr.

A medida de segurança de internamento, cuja duração se fixará em dois anos, deverá ficar suspensa nos termos previstos no artigo 98.º CP, com acompanhamento pela DGRSP (dotada de técnicos muito competentes - ainda que, como é bem-sabido, também sempre insuficientes), que se posicionará como elo mobilizador e agregador dos serviços de apoio social e de saúde, bem assim da realização das diligências necessárias à regularidade das consultas médicas, de molde a controlar a perigosidade imanente, prevenindo (na medida do possível) o risco de reincidência. E desse modo prevenindo os riscos para os bens jurídico-penais em referência (artigos 53.º e 54.º ex vi artigo 98.º, § 4.º CP). A mera vigilância burocrática será, evidentemente, insuficiente – equivalendo mesmo a uma «burla de etiquetas» - por se não tratar de um efetivo «acompanhamento». Mas é este que é necessário e é este que a lei tem por referência, pelo que é o devido no contexto de um direito penal moderno, que também deste modo se reafirma. Por banda da arguida, o sucesso da medida de suspensão do internamento, impõe não apenas a sua comparência às consultas de psiquiatria, sempre que elas forem marcadas, bem assim como o cumprimento das prescrições farmacológicas (base do equilíbrio mental da arguida). Mas também evitará os contactos com a assistente e abster-se-á de arremessar quaisquer objetos, líquidos ou gases para o quintal desta. Breve: consideramos que a decisão recorrida, ao afastar a possibilidade de suspensão da execução da medida de segurança de internamento, não atentou devidamente nos valores em presença e, desse modo, desrespeitou o programa da lei.

Pelo que a mesma será alterada nos termos que se deixaram alinhavados.

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto, acordam Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conferência:

1. Conceder integral provimento ao recurso interposto pela arguida, e, consequentemente, revogar a medida de segurança determinada na sentença recorrida;

2. Aplicar à arguida a suspensão da execução do internamento, como previsto no artigo 98.º CP, por um período máximo de 2 anos, mas findando quando o tribunal verificar cessado o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem; sendo essa apreciação obrigatória decorrido um ano sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (artigo 93.º, § 1.º e 2.º CP);

3. Sobre a arguida recaindo em especial os seguintes deveres e regras de conduta: a. comparecer às consultas de psiquiatria, sempre que elas forem marcadas e lhe forem comunicadas, acompanhando quem para esse efeito for designado; b. cumprir as prescrições farmacológicas (base do seu equilíbrio mental); c. abster-se de quaisquer contactos com a assistente; d. abster-se de enviar quaisquer objetos, líquidos ou gases para o quintal da assistente ou interferir com o muro dela.

4. Determinar que a DGRSP, com a máxima urgência, no âmbito de um plano de reinserção social a elaborar (artigos 53.º e 54.º ex vi artigo 98.º, § 4.º CP) com vista aos objetivos traçados, concerte com os demais serviços da comunidade (nomeadamente com os serviços de saúde e as valências se apoio da Segurança Social), o acompanhamento da arguida de molde a assegurar a presença desta nas consultas médico-psiquiátricas periódicas e consequente plano de tratamento, ajustado à contenção dos efeitos delirantes da doença psiquiátrica adrede - fonte dos riscos que a medida judicial imposta visa justamente acautelar. 5. Sem custas (artigo 513.º, § 1.º CPP a contrario).

Évora, 25 de março de 2025

J. F. Moreira das Neves (relator)

Mafalda Sequinho dos Santos

Jorge Antunes

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1 A utilização da expressão ordinal (1.º Juízo, 2.º Juízo, etc.) por referência ao nomen juris do Juízo tem o condão de não desrespeitar a lei nem gerar qualquer confusão, mantendo uma terminologia «amigável», conhecida (estabelecida) e sobretudo ajustada à saudável distinção entre o órgão e o seu titular, sendo por isso preferível (artigos 81.º LOSJ e 12.º RLOSJ).

2 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

3 Com exceção dos que têm relevo exclusivamente cível e as redundâncias.

4 Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal – Parte Geral, 2.ª ed., 2008, Coimbra Editora, p. 76. 5 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 417 e 467

6 Sobre a independência e relevância (face à anomalia psíquica) de situação conflitual cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 470 (§ 741

7 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, pp. 124-125.

8 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 125.

9 Neste sentido Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 124.

10 Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2020 (reimp.), Almedina, p. 124.

11 Neste sentido cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 468 (§ 737).