SIGILO PROFISSIONAL
PREVALÊNCIA DO INTERESSE PREPONDERANTE
Sumário

A derrogação do sigilo profissional, decorrente do princípio da prevalência do interesse preponderante, tem que ser necessária para garantir os meios indispensáveis à prossecução da acção penal e à protecção de bens jurídicos, tendo em conta a imprescindibilidade de determinado depoimento, documento ou de outro meio de prova para a descoberta da verdade, os quais não se poderiam obter de outro modo ou cuja obtenção seria muito difícil.
Há lugar à prestação do depoimento da testemunha pretendido, com quebra do sigilo profissional do advogado, quando da actuação dessa testemunha se conclui que o seu depoimento não pode ser substituído por outros meios de obtenção de prova, designadamente pericial ou documental.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório

Nos autos de inquérito nº 235/23.8IDFAR, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, investigam-se factos passíveis de integrar a prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art.º 103º do RGIT (Lei nº 15/2001, de 5/06), por parte da sociedade “AA”.

No âmbito das diligências de investigação, o Ministério Público diligenciou pela inquirição de BB, advogada de profissão, a qual invocou o sigilo profissional, não tendo prestado declarações.

Considera o Ministério Público que a imprescindibilidade do depoimento desta testemunha reside no facto de a mesma ter prestado serviços jurídicos para a sociedade AA e ter intervindo como procuradora dos suspeitos AA, e respectivos directores, CC e DD, na venda do imóvel que gerou a dívida tributária (verificação de mais valias obtidas com essa venda) e, após, a omissão das respectivas declarações de rendimentos modelo 22 de IRC a que os suspeitos estavam obrigados e subsequente não pagamento do imposto devido.

Instada a Ordem dos Advogados acerca da legitimidade da escusa, esta entidade, com fundamento no disposto no art.º 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados e no art.º 4º, nº 2 do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional, veio concluir pela legitimidade da recusa em prestar declarações por parte da Dr.ª BB, caso não tenha ocorrido o levantamento do sigilo.

Após promoção do Ministério Público, o Mmº JIC de … suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação para autorização da quebra do invocado sigilo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 135º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.

II – Fundamentação de facto

Dá-se aqui por reproduzida a promoção do Ministério Público de 16/12/2024:

“(…) A presente investigação visa factos susceptíveis de configurar a eventual prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º do RGIT.

Procedeu-se a inquérito, e foram realizadas algumas diligências tendentes a apurar a verdade material.

Diligenciou-se pela inquirição na qualidade de testemunha a Sra. Dra. BB, na qualidade de advogada, vem a mesma invocar o sigilo, não prestando declarações.

O segredo profissional não é um segredo absoluto inafastável, contudo a razão de ser da sua existência impõe que apenas, excepcionalmente, o advogado o possa quebrar.

O advogado apenas deixará de estar sujeito a esse mesmo segredo profissional, entre o mais, em face do incidente processual da quebra de sigilo profissional previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.

Importa, relativamente ao referido incidente, atender, como dispõe o artigo 135º nº 3 do Código de Processo Penal, ao princípio da prevalência do interesse preponderante.

No caso dos autos, mostram-se conflituantes o interesse na realização da justiça penal e o interesse tutelado com a existência do sigilo profissional do advogado.

A imprescindibilidade do depoimento da Sra. Dra. BB, reside no facto de esta ter intervindo como procuradora dos suspeitos (AA, e respectivos directores CC e DD) na venda do imóvel que gerou a dívida tributária (verificação de mais valias obtidas com essa venda) e, após, a omissão das respectivas declarações de rendimentos modelo 22 de IRC a que os suspeitos estavam obrigados (e subsequente não pagamento do imposto devido), factos em investigação no presente processo crime pela eventual prática de crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º do RGIT.

Em face do exposto, considera o Ministério Público, que perante o silêncio profissional imposto à testemunha, tão só ouvindo-a poderá apurar-se do cometimento do crime em investigação.

Em face do que se deixa escrito, e porque a sua não audição impossibilitará apurar a verdade dos factos, o Ministério Público promove o levantamento do sigilo profissional da Sra. Dra. BB.

Conclua ao Mmo. JIC-Portimão para douta apreciação e decisão.(…)”.

III – Fundamentação de direito

A fim de decidir a questão de quebra de sigilo suscitada nos autos, importa atentar nas seguintes normas invocadas pela Ordem dos Advogados:

- Art.º 92º do EOA (Estatuto da Ordem dos Advogados), atualizado de acordo com a Lei nº 6/2024, de 19/01, vigente desde 1/04/24:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.” (sublinhado nosso)

- Art.º 4º do Regulamento nº 94/2006, de 12 de Junho, Regulamento de dispensa de segredo profissional:

“1 - A dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade.

2 - A autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes.

3 - A decisão do presidente do conselho distrital, nos termos do EOA e do presente regulamento, aferirá da essencialidade, actualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo, considerando e apreciando livremente os elementos de facto trazidos aos autos pelo requerente da dispensa.” (sublinhados nossos)

Atento o teor destas normas, verifica-se os advogados, como é o caso da testemunha indicada, não estão, desde logo, obrigados a prestar às autoridades judiciárias informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas.

Antes pelo contrário, caso prestem tais informações podem incorrer em responsabilidade disciplinar, nos termos do art.º 92º, nº 8 do EOA, ou até mesmo em responsabilidade criminal, atento o previsto no art.º 195º do Cód. Penal.

Na verdade, o sigilo profissional foi criado e legislado para que os profissionais de determinadas áreas, como é o caso dos advogados, não possam divulgar dados ou informações sobre a relação que têm com os seus clientes.

Com a observação do dever de sigilo mantêm-se os dados pessoais dos clientes em segredo, garantindo-se, assim, uma maior segurança, privacidade e o respeito pelos direitos de personalidade dos clientes.

Porém o dever de sigilo não é um dever absoluto, que não deva ceder face a outros interesses mais prementes de ordem pública ou privada.

A quebra do sigilo profissional, no que concerne a estas matérias, obedece, no entanto, a um regime legal restrito, que se encontra previsto no art.º 135º do Cód. Proc. Penal nos seguintes termos:

1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.

2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.

3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.

4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.

5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.” (sublinhados nossos)

Decorre desta norma que o Tribunal pode decidir pela prestação de testemunho, com quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento (ou do documento) para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de determinados bens jurídicos.

Efectivamente o sigilo profissional não é um direito absoluto, podendo e devendo ceder perante outros direitos, nomeadamente o da realização da justiça e da descoberta da verdade, quando está em causa a prática de determinados tipos de crime.

A derrogação do sigilo profissional, decorrente do princípio da prevalência do interesse preponderante, tem que ser necessária para garantir os meios indispensáveis à prossecução da acção penal e à protecção de bens jurídicos, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade de determinado depoimento, documento ou de outro meio de prova para a descoberta da verdade, os quais não se poderiam obter de outro modo ou cuja obtenção fosse muito difícil.

Por seu turno a gravidade dos crimes que justificam a quebra do sigilo deve aferida em abstracto e em concreto.

Em abstracto, para integrar o conceito de “gravidade do crime” ou de “crime grave” pode-se recorrer ao elenco do art.º 187º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, onde na sua alínea a) se considera que é um crime grave o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade por este preceito e a tutela do segredo profissional pelo art.º 135º do mesmo diploma.

O crime em apreço é punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, podendo esta punição vir a ser agravada se se verificarem as circunstâncias previstas no art.º 104º do RGIT.

Porém, é também necessária a ponderação em concreto da gravidade dos crimes, a qual deve ser aferida em face das concretas circunstâncias que envolveram a sua prática e a necessidade de protecção dos bens jurídicos preponderantes.

Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal Portuguesa, mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente ( cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, págs. 366, n.º 12, 364, n.º 8, 365, n.º 10, e 364, n.º 9).

Por outro lado, o conceito de imprescindibilidade não pode assumir o significado de que o depoimento a prestar seja o “único” ou “exclusivo” elemento de prova existente, no sentido de não haver outros a prestar ou já prestados (cf. neste sentido, Acórdão do TRE datado de 7/05/19, proferido no processo nº 248/12.5TAELV-B.E1, em que foi relator João Gomes de Sousa, in www.dgsi.pt).

Voltando ao caso concreto, entendemos que há lugar à prestação do depoimento da testemunha pretendido, com quebra do sigilo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, porquanto se verifica que:

(i) sem esse depoimento não será possível, ou tornar-se-á muito difícil, perseguir criminalmente a sociedade autora dos crimes, sendo tal depoimento imprescindível para a descoberta da verdade;

(ii) o crime sob investigação é grave, atentas as circunstâncias concretas que envolveram a sua prática, das quais decorre a necessidade de revelação da informação coberta pelo dever de sigilo; e

(iii) a necessidade de protecção dos bens jurídicos, considerada à luz do princípio da intervenção mínima na contrição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, impõe que o segredo a que os advogados devem obedecer para proteger os direitos pessoais dos clientes, nomeadamente o interesse privado das relações de confiança e de confidencialidade entre aqueles profissionais e os seus clientes, deve ceder perante o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu ius puniendi, através da justiça penal.

Como se viu, a imprescindibilidade do depoimento da Dra. BB reside no facto de esta ter intervindo como procuradora dos suspeitos AA, e respectivos directores, CC e DD, na venda do imóvel que gerou a dívida tributária (verificação de mais valias obtidas com essa venda) e, após, a omissão das respectivas declarações de rendimentos modelo 22 de IRC a que os suspeitos estavam obrigados (e subsequente não pagamento do imposto devido), factos que estão em investigação pela eventual prática de crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art.º 103º do RGIT.

Em face desta actuação da testemunha em causa não se antevê que o seu depoimento possa ser substituído por outros meios de obtenção de prova, designadamente pericial ou documental, uma vez que esta testemunha teve um conhecimento presencial e directo dos factos sob investigação.

Para além disso, não se vislumbra a existência de razões importantes que determinem a recusa da prestação do depoimento em apreço, impondo-se, assim, dispensar a referida testemunha do sigilo invocado nos autos.

IV – Decisão

Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dispensar o cumprimento do dever de sigilo profissional por parte da testemunha BB, advogada à data dos factos em investigação da sociedade “AA” e respectivos directores, CC e DD, determinando-se, em consequência, que a mesma preste ao Ministério Público junto do Tribunal a quo as informações que anteriormente lhe foram solicitadas.

Sem custas.

Évora, 25 de Março 2025

(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Carla Francisco

(Relatora)

Manuel Soares

Carla Oliveira

(Adjuntos)