INQUÉRITO
BEM APREENDIDO
DECLARAÇÃO DE PERDA
DESTINO
COMPETÊNCIA
Sumário

Enquanto a declaração de perda de bens constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um acto que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito de propriedade, sendo, por isso, da competência do Juiz de instrução, a determinação do destino final dos bens e valores constitui um acto de natureza administrativa, que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Temos, pois, que, sendo o inquérito uma fase processual em que a regra é a competência do Ministério Público, na sua direcção, não se tratando de matéria reservada ao juiz de instrução, nos termos do citado artigo 268.º do CPP, a decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é tomada pelo Ministério Público, na fase de inquérito, assim como o será pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz presidente na fase de julgamento

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. Nos autos de Inquérito (Actos jurisdicionais), nº 2106/23.9JFLSB, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, … - Juízo C. Genérica, no dia 31 de Janeiro de 2025, foi proferido o seguinte despacho:

“ Promoção de 14-11-2024:

No âmbito dos presentes autos foi apreendida uma nota com valor facial de 10 euros, conforme resulta do modelo de recibo de retenção e comunicação por suspeita relativa à genuinidade de 24-07-2023 (cf. participação de 8-10-2024).

Na sequência da decisão de arquivamento do inquérito, cumpre, neste momento, proferir decisão relativamente ao objeto apreendido.

Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 268º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal, 109.º do Código Penal, e 11º da Convenção Internacional para a Repressão da Moeda Falsa, declara-se perdida a favor do Estado a nota falsa apreendida à ordem dos presentes autos, e ordena-se a sua imediata destruição.

Notifique e DN.”

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2. Não se conformando com o teor deste despacho, dele recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público.

Da motivação de recurso extraiu as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 31/01/2025, pelo Tribunal a quo, que na sequência do despacho de arquivamento deduzido pelo Ministério Público, nos termos do artigo 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, para além de declarar perdido a favor do Estado o objecto apreendido nos autos, ordena a sua imediata destruição.

2. Salvo melhor e douto entendimento, somos a entender que, na fase de inquérito, a determinação do destino dos bens apreendidos nos autos cabe ao Ministério Público e não ao Juiz de Instrução Criminal, tendo sido violado, por isso, o disposto nos artigos. 109.º, n.º 1 do Código Penal e 268.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal.

3. De acordo com o disposto no artigo 263.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, sendo que, nos termos do artigo 262.º do mesmo diploma legal, «o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação.»

4. No entanto, uma vez que, durante a investigação, poderão praticar-se actos processuais que contendem com direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros, foram previstas algumas excepções à realização das finalidades referidas no n.º 1 do artigo 262.º.

5. Assim, para o que aqui nos interessa, o artigo 268.º, n.º 1 do Código de Processo Penal dispõe sobre os actos que, durante a fase de inquérito, competem, exclusivamente, ao Juiz de Instrução Criminal.

6. Conforme se poderá observar, a alínea e) do artigo 268.º, n.º 1 do Código de Processo Penal não inclui na competência exclusiva do Juiz de Instrução Criminal o destino a dar aos bens apreendidos, na sequência da declaração da sua perda a favor do Estado.

7. E, na esteira do que já foi sendo decidido pela jurisprudência maioritária, bem se compreende a solução adoptada pelo legislador.

8. Isto porque, “a declaração de perda constitui uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um acto que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito. Já a determinação do destino final dos bens e valores constitui um acto de natureza administrativa que não contende com direitos, liberdades e garantias que importem acautelar com a intervenção do “Juiz das garantias” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de Dezembro de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 639/18.8JFLSB.1, disponível em www.dgsi.pt e, neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12 de Dezembro de 2012, proferido no âmbito do processo n.º 1869/12.1JFLSB.1, disponível em www.dgsi.pt.

9. Aliás, se fosse intenção do legislador conferir ao Juiz de Instrução Criminal competência para decidir sobre o destino dos objectos apreendidos na fase de inquérito, tê-lo-ia feito, à semelhança do que ocorreu com a declaração de perda.

10. E mais, além de configurar um acto de natureza administrativa – porque os objectos apreendidos já foram declarados perdidos a favor do Estado - só o titular da acção penal, no caso do arquivamento do inquérito, saberá, em face dos elementos probatórios carreados, qual o destino adequado a dar ao bem apreendido, sendo certo que, no caso do arquivamento ter lugar nos termos do n.º 2, do artigo 277.º do Código de Processo Penal, poderá o mesmo vir a ser reaberto, importando preservar a prova que se logrou recolher.

11. Assim, cabendo ao Ministério Público a direcção do inquérito, não estando em causa matéria reservada ao Juiz de Instrução, a decisão sobre o destino da nota apreendida nos autos cabe ao Ministério Público.

12. Por tudo o exposto, pugna-se pela revogação do despacho recorrido, na parte em que se pronuncia sobre o destino da nota, ordenando a sua imediata destruição, o qual deverá ser substituído por outro que considere pertencer ao Ministério Público a competência para se pronunciar sobre tal destino.

Termos em que, e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, revogar-se o despacho recorrido, na parte em que se pronuncia sobre o destino da nota, ordenando a sua imediata destruição, que deve ser substituído por outro que considere pertencer ao Ministério Público a competência para se pronunciar sobre tal destino.”

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3. Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto proferiu fundamentado Parecer no sentido de o recurso dever obter provimento.

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4. Cumpridos os vistos, foi realizada a competente conferência.

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5. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se, na fase de inquérito, a determinação do destino dos bens, apreendidos nos autos, cabe ao Ministério Público, ou ao Juiz de Instrução Criminal.

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6. Apreciando:

Cabendo a direcção do inquérito ao Ministério Público, nos termos do art. 263º nº 1 do CPP, só haverá lugar à intervenção de um juiz, a funcionar como juiz de instrução criminal, nos casos excepcionais previstos na lei e que se prendam com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Entre os actos cuja competência, na fase de inquérito, a lei defere, em exclusividade, ao juiz de instrução, previstos nos artigos 268.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, encontram-se a “declaração de perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277.º, 280.º e 282.º” – artigo 268.º, n.º 1, e) do Código de Processo Penal.

Temos, assim, que o art. 268º do CPP enumera os actos, ainda que de forma não exaustiva, como se depreende da alínea f), do nº 1, cuja prática, na fase de inquérito, é da competência exclusiva do juiz de instrução.

No elenco de tais actos, designadamente da mencionada alínea e), onde se inclui a declaração de perda, não incluiu o legislador o destino dessa mesma coisa, daqui decorrendo, por isso, que o legislador entendeu que tal competência não deveria ser atribuída, em exclusivo, ao Juiz de Instrução, pois, se fosse essa a sua intenção, não se vislumbra, de facto, porque não o faria, de forma expressa, como o fez em relação à declaração de perda.

Com efeito, a intervenção do juiz, na fase de inquérito preliminar, apenas se impõe para acautelar a defesa dos direitos fundamentais dos sujeitos processuais ou de terceiros, relativamente àqueles actos processuais que possam pôr em causa essa mesma defesa.

Ora, enquanto a declaração de perda de bens constituiu uma competência materialmente jurisdicional, na medida em que está em causa um acto que implica uma real e efectiva quebra do vínculo estabelecido entre o titular originário e os bens e valores, desse modo extinguindo o respectivo direito de propriedade, sendo, por isso, da competência do Juiz de instrução, a determinação do destino final dos bens e valores constitui um acto de natureza administrativa, que não contende com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Temos, pois, que, sendo o inquérito uma fase processual em que a regra é a competência do Ministério Público, na sua direcção, não se tratando de matéria reservada ao juiz de instrução, nos termos do citado artigo 268.º do CPP, a decisão sobre o destino dos objectos apreendidos é tomada pelo Ministério Público, na fase de inquérito, assim como o será pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz presidente na fase de julgamento – neste sentido, veja-se Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e de Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, página 503..

Neste sentido, se tem pronunciado a jurisprudência, podendo citar-se, entre outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/7/2009, Proc.º 318/08.4GAACB-A.C1; da Relação do

Porto de 9/6/2010, Proc.º 321/07.1EAPRT-A.P1; de 16/3/2011, Proc.º 551/08.9GBVLG-A.P1; de 14/9/2011, Proc.º 271/11.7TASTS-A.P1 e de 7/11/2012, Proc.º 22/08.3FBPVZ-A.P1; da Relação de Lisboa de 26/9/2006, Proc.º 6187/2006-5 e de 28/11/2006, Proc.º 6205/2006-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt.; da Relação do Porto de 22/6/2011, Proc.º 1896/02.7PAVNG-A.P1; da Relação de Guimarães, de 17 de Dezembro de 2018, Procº 639/18.8JFLSB.1; da Relação de Coimbra, de 12 de Dezembro de 2012, Procº 1869/12.1JFLSB.1, disponíveis para consulta in www.dgsi.pt..

Acresce que só o Ministério Público, titular da acção penal, no caso do arquivamento do inquérito, saberá, em face dos elementos probatórios carreados, qual o destino adequado a dar ao bem apreendido, sendo certo que, no caso do arquivamento ter lugar nos termos do n.º 2, do artigo 277.º do Código de Processo Penal, poderá o mesmo vir a ser reaberto, importando, por isso, preservar a prova que se logrou recolher.

Assim, no caso, cabendo ao Ministério Público a direcção do inquérito, e não estando em causa matéria reservada ao Juiz de Instrução, a decisão sobre o destino da nota apreendida nos autos caberia ao Ministério Público, pelo que se impõe a procedência do recurso.

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- Decisão:

Em conformidade, com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores, neste Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que, pronunciando-se sobre o destino da nota apreendida nos autos, ordenou a sua destruição, a qual deverá ser substituída por outra que considere pertencer ao Ministério Público a competência para se pronunciar sobre tal destino.

Sem custas.

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(Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto)

Évora, 25 de Março de 2025

As Juízas Desembargadoras

Anabela Simões Cardoso

Laura Maurício

Carla Francisco