REVISTA EXCECIONAL
CLÁUSULA DE REMISSÃO
CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO
Sumário


I. A cláusula de remissão é uma cláusula do contrato de trabalho, livremente acordada entre as partes, valendo aqui o princípio pacta sunt servanda.
II. A autonomia da vontade pode integrar ou incorporar no conteúdo do contrato individual de trabalho o que conste de convenções coletivas de trabalho que não seriam diretamente aplicáveis.

Texto Integral


Processo n.º 2567/23.6T8SNT.L1.S2

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Doce Alcofinha Unipessoal, Lda., Ré na presente ação, em que são também Réus AA e BB e em que é Autora CC, veio interpor recurso de revista excecional, invocando as alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Pelo Exmo. Relator neste Tribunal foi decidido que estavam presentes os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista e que, verificando-se uma “dupla conformidade” das decisões das instâncias, havia que remeter o recurso a esta Formação.

Nas suas alegações de recurso o Recorrente invocou, como já se disse, duas alíneas do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

Quanto à alegada verificação da alínea a) pode ler-se no recurso:

“A relevância jurídica da questão – art. 672.º, n.º 1, al. a), do CPC –, pressuposto de admissibilidade de recurso de revista excepcional, afere-se pelo debate doutrinal e jurisprudencial acerca da mesma, que aconselha a prolação reiterada de decisões judiciais em ordem a uma melhor aplicação da justiça.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 7, do art.º 663º do CPC, o relator sumariou o Acórdão recorrido nos seguintes moldes:

I A aplicabilidade de CCT a certa relação laboral pode decorrer, atento o princípio da liberdade contratual consagrado no art.º 405º do Código Civil, da previsão do próprio contrato de trabalho (através de cláusula de remissão geral para a contratação colectiva de trabalho do sector ou da empresa), sendo que nesse caso é conferida relevância ao clausulado do instrumento em causa pela vontade negocial das partes expressa no contrato de trabalho.

-- Caberá por isso, primeiramente, debruçar-nos sobre esta questão - que se nos afigura relevante em termos de merecer uma melhor aplicabilidade do Direito.

Quanto às concretas razões que justificam que neste caso se possa ter como verificada a relevância jurídica que justifica que a revista seja excepcionalmente admitida tendo em vista uma melhor aplicação do Direito, comecemos por dizer que a consideração interpretativa dos Tribunais relativamente à aplicabilidade de um IRCT tendo por base o princípio da liberdade contratual por remissão a uma cláusula contratual ínsita no próprio contrato de trabalho, ou por força de um acordo estabelecido entre as partes - sem cuidar de analisar com detalhe e de modo especifico qual o teor dessas cláusulas em apreço, e das suas condições objectivas de aplicabilidade - podem redundar numa situação de enorme injustiça (para qualquer uma das partes).

Nesta linha de raciocínio, parece-nos prejudicial não apenas em ordem à segurança jurídica das decisões sobre esta matéria em concreto, que os Tribunais sem cuidarem de aprofundarem com maior rigor e acuidade os termos de cada um dos IRCT em causa, entendam que, genericamente, seja possível sujeitar a uma certa relação laboral um instrumento que, de modo objectivo e bem assim na prática, nenhuma aplicabilidade possa ter àquela relação laboral.

E seguidamente concretiza assim as razões pelas quais a apreciação da questão por este Supremo Tribunal de Justiça seria claramente necessária para uma melhor aplicação do Direito:

1 - Permitir que seja aplicada a uma relação laboral, disposições contratuais colectivas que não sejam próprias daquela área de actividade (ainda que com características afins), sem respeito pelos princípios basilares da contratação colectiva de trabalho, como sejam o estabelecimento de normas reguladoras das condições de trabalho de um grupo; melhoria das condições previstas nos contratos de trabalho de uma profissão ou sector de atividade, com sejam o estabelecimento de carreiras, sustentabilidade e segurança remuneratória, fixação dos limites de período e horas de prestação do trabalho, etc., desvirtua a aplicação do direito ao caso concreto, e cria desigualdades em relação aos demais trabalhadores abrangidos pelo IRCT.

2 - Permitir que por força dessa aplicabilidade baseada na liberdade contratual, as partes estabeleçam condições contratuais de tal modo díspares daquelas que se aplicam (e são permitidas) num determinado sector económico, e com isso criarem desigualdades entre o universo de trabalhadores e das entidades patronais abrangidas, podendo redundar em discriminação positiva ou negativa em relação a qualquer um desses agentes económicos.

3 - Descaracterização do modelo de IRCT aplicados às relações estabelecidas entre entidades patronais e trabalhadores, que por força de vigorar o princípio de liberdade contratual, deixam de ter a identidade própria de aplicação dentro do âmbito para que foram criadas.

-- Na verdade quando se permite que por via do princípio da liberdade contratual, as partes revistam a sua relação contratual de determinadas características próprias de outros sectores de actividade, e até de outras categorias profissionais, estamos a desvirtuar a função económico-social que se pretende alcançar por via de instrumentos de regulamentação de contratação colectiva.

A importância da submissão desta questão à apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça reveste-se da maior relevância, tendo em conta a importância das relações laborais na vida social, sendo um dos pilares estruturais dos agregados familiares, e do próprio direito individual ao trabalho consagrado constitucionalmente”.

Começando pela análise desta questão, importa ter presente que da Cláusula 12.ª do contrato de trabalho celebrado entre a Recorrente e a Recorrida consta que "[e]sta relação de trabalho está sujeita à Legislação Geral do Trabalho, nomeadamente o Código do Trabalho, Lei n.º 99/2003 de 27 de agosto, e demais legislação complementar, e CCT entre a AEEP (Assoc. Estab Ensino Particular e Cooperativo) e o SINAPE (Sind Nac dos Profissionais de Educação), publicado no BTE n.º II, de 22-03-2007" (facto provado K).

O âmbito pessoal da convenção coletiva vem regulado entre nós nos artigos 496.º e seguintes do Código do Trabalho. O princípio estruturante é o princípio da filiação, ao que acrescem múltiplas exceções, como, por exemplo, a possibilidade de escolha da convenção por um trabalhador não filiado – trata-se de uma escolha unilateral e potestativa pelo trabalhador. Além disso, as convenções coletivas podem ser objeto de portarias de extensão. Não consta da lei a possibilidade de, por acordo, as partes do contrato individual de trabalho estenderem o âmbito pessoal da convenção coletiva. Podem, contudo, remeter para uma convenção coletiva – assim, por exemplo, ao fazê-lo a tabela salarial para que remetem integra o conteúdo do próprio contrato individual de trabalho.

Com efeito, não só há que atender ao princípio da autonomia privada (artigo 405.º do Código Civil), como o próprio Código do Trabalho prevê a possibilidade de o conteúdo do contrato individual de trabalho ser determinado por remissão para IRCT (artigo 105.º). Com efeito, admitem-se cláusulas de remissão estáticas ou dinâmicas para, designadamente, uma convenção coletiva.

Esta remissão não se confunde com o âmbito pessoal ou subjetivo das convenções coletivas, tal como o mesmo vem regulado nos artigos 496.º e seguintes do Código do Trabalho, sem esquecer a possibilidade de existência de portarias de extensão (artigos 514.º e seguintes do CT). Aqui, na cláusula de remissão, do que se trata é de incorporar no conteúdo do próprio contrato individual de trabalho a convenção (ou parte da convenção) para a qual se remete. Tal conteúdo prevalecerá sobre a convenção coletiva aplicável (diretamente ou por portaria de extensão) desde que seja mais favorável, por força do disposto no artigo 476.º do CT. Refira-se, ainda, que a cláusula de remissão não se confunde, de todo, com a possibilidade de escolha pelo não filiado de uma convenção coletiva, pelo que também não colhe o que o Recorrente afirma a respeito da não manifestação dessa vontade individual de adesão.

A questão não tem suscitado dúvidas ao nível doutrinal e não se vislumbra necessidade de este Tribunal se pronunciar e muito menos uma “clara necessidade” como a lei requer.

Sublinhe-se, também, que a cláusula de remissão é uma cláusula do contrato de trabalho, livremente acordada entre as partes. Vale aqui o princípio pacta sunt servanda: se o empregador achava que a convenção para a qual se remete não era apropriada o que tinha a fazer era não acordar na referida remissão, tanto mais que não está demonstrado qualquer vício da vontade da sua parte. E a autonomia da vontade pode integrar ou incorporar no conteúdo do contrato individual de trabalho o que conste de convenções coletivas de trabalho que não seriam diretamente aplicáveis.

O Recorrente veio, igualmente, invocar a alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, indicando como Acórdão em contradição com o Acórdão recorrido o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no Processo n.º 3910/16.0T8VIS.C1, a 15.09.2017.

Antes de mais, sublinhe-se que a lei exige que se indique um Acórdão transitado em julgado e o Acórdão indicado foi parcialmente revogado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 20 de junho de 2018 (Relator Conselheiro Gonçalves Rocha)

Mas e sobretudo exige-se uma contradição sobre a mesma questão fundamental de direito, tendo que se tratar de uma questão, como refere ABRANTES GERALDES, que tenha sido “essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões, sendo irrelevantes as respostas ou argumentos que não tenham valor decisivo”1.

Dir-se-ia que essa oposição existe já que no Acórdão fundamento se afirma que “[a]o abrigo da liberdade contratual prevista no citado 405.º do Código Civil, independentemente das regras de aplicação dos IRCT’s constantes do Código do Trabalho, não havendo outro IRCT aplicável que se imponha necessariamente e que com ele conflitue, nada impede que o trabalhador e o empregador estabeleçam que o contrato seja regulado por um determinado CCT, a ele aderindo, ou que apliquem à relação laboral parte do regime previsto num IRCT”.

Importa, contudo, atentar em que nesse processo ficou provado (facto 34) que “[a] referência ao CCT que a Ré fez constar dos contratos individuais de trabalho celebrados com os seus trabalhadores traduziu apenas o dever de informação aos trabalhadores relativamente ao instrumento de regulamentação coletivo que lhes eram aplicáveis, não decorrendo de qualquer acordo entre as partes”.

E daí que o Acórdão fundamento acabe por concluir que não houve qualquer cláusula de remissão:

“Não é o caso dos autos, uma vez que ficou provado – facto 34 – que a referência ao CCT que a Ré fez constar dos contratos individuais de trabalho celebrados com os seus trabalhadores traduziu apenas o dever de informação aos trabalhadores relativamente ao instrumento de regulamentação coletivo que lhes eram aplicáveis, não decorrendo de qualquer acordo entre as partes”.

Assim a referência à ausência de conflito com um IRCT é obiter dicta, tratando-se de uma passagem que não teve qualquer caráter decisivo para a decisão.

Pelo que não se verifica uma contradição relevante para a admissão desta revista excecional.

Decisão: Acorda-se em não admitir a presente revista excecional.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 2 de abril de 2025

Júlio Gomes (Relator)

Mário Belo Morgado

José Eduardo Sapateiro

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1. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, p.440.↩︎