LIBERDADE CONDICIONAL
2/3 DA PENA
LIQUIDAÇÃO DAS PENAS EM EXECUÇÃO SUCESSIVA
DECLARAÇÃO DE EXTINÇÃO DE UMA DAS PENAS
Sumário

1 - A lei faz depender a concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena, da formulação pelo tribunal de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
2 - Na formulação deste juízo sobre o comportamento futuro do condenado, o tribunal deve ponderar os traços da sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena, as competências por si adquiridas no período de reclusão, o comportamento prisional, o seu relacionamento com o crime cometido, as necessidades subsistentes de reinserção social, as perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional e a necessidades de proteção da vítima quando disso seja caso.
3 - Não é possível formular um juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional em virtude do percurso de vida do condenado - marcado pela prática de vários crimes, pela natureza dos crimes pelos quais o arguido cumpre pena de prisão, pela gravidade dos factos que a estes estão subjacentes e pelas anteriores condenações já sofridas que lhe determinaram anterior reclusão - por evidenciar fragilidade ao nível do juízo crítico, do pensamento reflexivo e consequencial, com fraco sentido de responsabilidade social, imaturidade e orientação para satisfação dos seus interesses imediatos.
4 - O computo e a liquidação das penas em execução sucessiva que foram ponderadas na decisão recorrida para a apreciação da liberdade condicional que nela lhe veio a ser negada, foram efetuados na sequência da decisão que determinou o cumprimento, em regime sucessivo, dessas penas, vindo a ser homologados por despacho proferido em 10.02.2020 [Refª 7241706], do qual foi o condenado e ora recorrente notificado em 17.02.2020, não tendo interposto recurso de tais decisões.
5 - Não pode agora, no decurso do cumprimento sucessivo dessas penas e quando já cumpriu duas delas vir discordar, a pretexto da declaração de extinção de uma destas, da liquidação que foi efetuada das mesmas, na sequência da decisão que determinou a sua execução em regime sucessivo, invocando a eventual inconstitucionalidade da norma contida no art. 63º, nº4 do CPP.

Texto Integral

                Acordam, em conferência, na 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra

            I- RELATÓRIO

            1. No Tribunal de Execução de Penas de Coimbra correm termos os autos de concessão da liberdade condicional relativos ao condenado AA, nos quais, por decisão datada de 27.11.2024, foi negada a concessão da liberdade condicional ao mesmo.


*

            2. Inconformado com o decidido, recorreu o condenado AA, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

                “1. No processo n.º: 3576/10...., do Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, Juízo de Execução de Penas de Coimbra- Juiz 3, foi decidido não conceder recorrente a liberdade condicional por referência ao marco dos 2/3 da pena, bem como, declarar extintas, por cumprimento, as penas que mesmo cumpriaàordem dos processos n.ºs 2805/18.... e 358/04...., não se conformando com tais decisões vem recorrer das mesmas.

                2. As decisões recorridas violam os direitos do condenado e os ditames legais, tendo o Tribunal a quo feito uma errada aplicação das normas jurídicas.

                3. A figura da liberdade condicional é tida como uma fase de transição da reclusão paraaliberdadedefinitiva, servindo afinalidadeespecíficadeprevenção especial positiva ou de socialização, visando minorar as dificuldades de adaptação à comunidade inevitavelmente associadas ao tempo de reclusão e alcançar uma gradual preparação ao reingresso na sociedade de alguém que há muito dela se encontra apartado.

         4. A concessão de liberdade condicional obedece a critérios legais de ordem formal e de ordem substancial.

            5. Atendendo à matéria provada (n° 2 dos factos provados e do relatório da decisão) têm-se como verificados tais requisitos.

                6. No que respeita aos requisitos materiais, com referência à apreciação aos dois terços da pena (art. 61°, n° 3 do Cód. Penal) o legislador abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, apenas havendo como requisito a expectativa de que o condenado em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente sem cometer crimes, ou seja prevenção especial, na perspetiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa).

            7. Quanto aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudançaeregeneração (ressocialização) enaprevenção decometimento denovos crimes (arts. 40° e 42° do Cód. Penal).

            8. Na avaliação da prevenção especial terá o julgador de elaborar um juízo da prognose possível sobre o que irá ser o comportamento futuro do recluso no que respeita a reiteração criminosa e seu bom comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, vida anterior do agente, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.

            9. Considerou o tribunal a quo não estarem reunidos os todos os pressupostos legais necessários a concessão da liberdade condicional ao recorrente, porquanto entendeu que não se encontra cumprido o requisito constante do art.º. 61.º n.º2 al. a) do Cód. Penal.

            10. O Tribunal a quo decidiu mal, pois, analisando o percurso do condenado e a sua evolução ao longo do cumprimento da pena é possível a obtenção do juízo de prognose favorável ínsito na al. a), do nº2 do artº 61 do C. Penal.

            11. O condenado tem feito tudo para evoluir e para se integrar na sociedade, sendo patente a sua evolução quer dos factos provados quer dos Relatórios elaborados a concessão da liberdade condicional.

            12. O recorrente, desde que está em reclusão no E. P. de Coimbra, sempre se interessou pela atividade laboral, tendo trabalhado como faxina desde 19 de Outubro de 2023 passando a 03-06-2024 para faxina do PRA (factos 9 da sentença), não tem registo de sanções disciplinares mantendo comportamento adaptado (facto 7 da decisão), iniciou gozo de medidas de flexibilização da pena em Dezembro de 2023, sem registo de anomalias encontrando-se também em regime aberto no interior desde 29-05-2024 (facto 6 da decisão), tem apoio familiar, nomeadamente da mãe, dos irmãos e da namorada (factos 10, 13 e 17 da decisão), dispõe de uma proposta de trabalho para a empresa “A... Unipessoal Lda.” (facto 20 dadecisão), tem projeto para o futuro pretendendo, voltar a emigrar para a Inglaterra, tendo aí possibilidade de trabalhar como motorista (facto 19 da decisão).

            13. Do Relatório da Liberdade Condicional do Estabelecimento Prisional Central de 25-07-2024, subscrito pelo Técnico Gestor do Caso BB, no que respeita a atitude face àprisão constaqueo condenado “Aceita a pena deprisão como consequência do seu comportamento delinquente edeforma adaptada.”,napartedo Registo disciplinar e louvores diz-se que o mesmo “Nesta Instituição não tem registo de sanções disciplinares, mantendo comportamento adaptado ao regime de internamento”, na parte atinente à relação com o crime cometido escreveu-se que o condenado “Assume a prática dos crimes e sabe reconhecer o desvalor da sua conduta criminal.” , concluindo-se dizendo na avaliação global realizada ao condenado que o mesmo “(…) Assume a responsabilidade do seu comportamento criminal e tem vindo a evoluir face à interiorização da gravidade da sua conduta. Dispões de suporte e bom enquadramento sociofamiliar. O seu discurso tem sido orientado no sentido da sua reintegração sociofamiliar e laboral desviado de comportamentos criminais”.

            14. Também do Relatório Social para a concessão da liberdade condicional elaborado pela DGRSP de 26-07-2024, subscrito por CC no segmento 4. denominado “características pessoais, atitudes e motivação para a mudança”, consta que o condenado: “encontra-se a cumprir pena de prisão efetiva pela segunda vez. O condenado deu entrada no Estabelecimento Prisional da PJ de Lisboa em 30-01-2017. Em 08-02-2017 foi afeto ao E. P. de Sintra, onde se inscreveu para a frequência do ciclo e, aparentemente, teve um comportamento maioritariamente adequado.”(…) Nos contactos mantidos apresentou um estilo de interação adequado e, relativamente ao seu futuro processo de reinserção social, orienta o seu discurso no sentido de uma adequada inserção social, embora reconheça ter tido anteriormente um trajeto comportamental menos ajustado, expressando objetivos de reinserção em moldes social e juridicamente integrados, conforme afirma que vinha a realizar durante o seu processo migratório. O condenado beneficiou de medidas de flexibilização da pena que decorreram sem problemas. No exterior beneficia de apoio familiar consistente.”

            15. Concluindo o mesmo Relatório que “AA no que respeita ao seu processo de reinserção social, dispõe de suporte familiar, assim como de enquadramento habitacional, laboral e de sustentabilidade. Apresenta um discurso orientado no sentido da reinserção de acordo com os normativos sociais que, segundo o próprio, vinha a realizar em meio livre no período anterior à reclusão atual. Expressa objetivos de ressocialização baseados na constituição de agregado familiar e na priorização do acompanhamento aos filhos e na prossecução de atividade laboral. (…). Neste estabelecimento tem vindo a apresentar comportamento consentâneo com os normativos internos, encontra-se a trabalhar no refeitório do PRA. O condenado tem vindo a investir em meio prisional na aquisição de competências pessoais e sociais, incrementando as suas possibilidades de adoção de um estilo de vida pró-social. está a beneficiar de medidas de flexibilização da pena. Em termos familiares beneficia do apoio da sua mãe, namorada e restante família alargada.”

            16. Importa ainda realçar o facto a primeira reclusão do condenado já ter mais de 15 anos, tendo ocorrido de 24-03-2008 a 02-06-2010, bem como, o facto de o condenado se ter entregue voluntariamente para cumprimento da pena de prisão conforme resulta do Relatório da DGRSP, o que importará, uma valoração positiva na formulação do juízo de prognose.

            17. Todos estes factos revelam o projeto de vida que o condenado já tem, denotam o seu empenho em se reerguer, tendo já procurado meio de sustento, e o assumir de que errou, sendo coadjuvantes para que se possa fazer um juízo de prognose favorável do comportamento do condenado quando colocado em liberdade.

            18. Os fundamentos do Tribunal a quo para rejeitar a concessão da liberdade condicional ao recorrente são completamente erróneos, estão amplamente contrariados pela prova que serviu para motivar a decisão, nomeadamente pelos relatórios sociais realizados ao arguido para a concessão da liberdade condicional e pelas próprias declarações do mesmo, sendo violadores do preceituado nos artigos 61º nº2 al. a) e n.º3 e 40° e 42 todos do Código. Penal.

            19. Para aferir da verificação ou não do preenchimento do requisito do art. 61º do nº2 al. a), do C. Penal pelo condenado importa atentar ao constante dos Relatórios Sociais elaborados ao mesmo, resultando destes que o condenado assumiu o seu crime e sabe reconhecer o desvalor da sua conduta criminal, tem um projeto de futuro sustentado e exequível, com proposta de trabalho, tem forte suporte familiar e tem investido na aquisição de competências pessoais e sociais, incrementando as suas possibilidades de adoção de um estilo de vida pró-social, o seu contacto anterior com o meio prisional já data de mais de 15 anos, tendo-se, entregue voluntariamente para cumprimento de pena, a pena que se encontra a cumprir é por crimes que já cometeu há mais de 10 (dez) anos, o condenado beneficia de medidas de flexibilização, sem qualquer incidente, desde 23-11-2023 e está em RAI desde 29-05-2024.

            20. De um modo geral o condenando sempre cumpriu as regras dentro do estabelecimento prisional, mas Janeiro de 2022, com a transferência para o E.P de Coimbra, representou um marco significativo na alteração do seu comportamento para melhor, tal circunstância é notória e resulta dos relatórios elaborados pelo Estabelecimento Prisional e pela DGRSP, já identificados supra.

            21. O condenado tem capacidades pessoais e competências profissionais para se reorganizar no mundo exterior sendo percetível as mudanças positivas e a progressão que o mesmo tem vindo a desenvolver ao longo do tempo.

            22. O regime da liberdade condicional não é um regresso “tout court" à liberdade, é um regime no qual o tribunal da execução das penas pode decidir em que condições fica sujeita a concessão dessa liberdade condicional, ou seja, o tribunal pode, mesmo à distância e fora do EP, “controlar” o recluso com o auxílio da DGRSP.

            23. Estando o recorrente, já a beneficiar de medidas flexibilização da pena há um ano com sucesso, eestando a um ano etrês meses de atingir os cinco sextos dapena, conforme facto provado em 2., e sendo evidente o seu progresso e o seu projeto de vida delineado de harmonia com as regras jurídicas, a par de tudo o que já se expôs, estão, pois, reunidas todas as condições para efetuar um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro quando colocado em liberdade.

            24. Todo o supra exposto foi postergado pelo Tribunal a quo aquando da verificação do preenchimento do requisito do juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdadeínsito no art. 61.º n.º2 al.a) do Código Penal, e não devia ter sido, mostrando-se, por isso, violado o citado normativo legal.

            25. A ter atendido a todos os elementos acima referidos a decisão do Tribunal a quo só podia ter sido a de que era possível efetuar juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade concedendo-lhe a liberdade condicional.

            26. O Tribunal a quo valorou unicamente o facto de este, no entender do tribunal, não reconhecer de forma sincera as consequências do crime e não manifestar um profundo arrependimento e a “trajectória de vida do arguido com fraca proactividade em alterar os seus padrões comportamentais.”       

            27. Estes pressupostos estão incorretos e são contrariados pelos relatórios do Estabelecimento Prisional Central de 25-07-2024 e pelo Relatório da DGRSP de 26-07-2024, dos quais se extrai o arrependimento do condenado e o juízo autocrítico ajustado que tem em relação aos crimes cometidos.

            28. O reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento não são critérios para aferir do juízo de prognose positivo relativamente ao seu comportamento futuro em liberdade, já que, o que o art.º. 61.º n. º2 al. a) impõe para a emissão desse juízo é que se averigue a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão.

           29. Exige-se a viabilidade de um juízo de prognose favorável em relação ao condenado, no sentido de que este, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

            30. O entendimento segundo o qual se exige o reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento é violador da lei, nomeadamente do art.º. 61.º n. º2 al. a) do Código Penal.

           31. Mais importante que a verbalização de um arrependimento ou de vontade de mudança de vida, são os atos concretos praticados que o revelam ou não e o condenado demonstra, por atos concretos, uma vontade efetiva de mudança e paradigma de vida, através da procura de ferramentas de futura efetiva reinserção, abstendo-se de comportamentos desadequados ou delituosos.

            32. A apreciação global do percurso do condenado realizada permite-nos concluir que se mostram preenchidos os requisitos previstos no artº 61 nº2 al. a) e nº3 do C. Penal e que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, devendo ser-lhe concedida a liberdade condicional.          33. Considerou o Tribunal a quo que a anterior pena de prisão do condenado não teve o efeito suficientemente dissuasor para alterar a sua conduta, na medida em que veio a ser revogada a liberdade condicional que lhe havia sido concedida, dada a prática de outros ilícitos criminais no seu decurso.

            34. Com este fundamento está o Tribunal a quo a dar prevalência ao fim retributivo/punitivo da pena, ao invés do fim socializador, que é o pretendido.

            35. O recorrente encontra-se a cumprir pena por crimes que já cometeu há mais de 10 (dez) anos e seus crimes anteriores e cuja reincidência se está a atender, datam de mais de 15 anos, conforme se pode constatar do facto 1, pelo que, as suas anteriores condenações não devem ser suficientes para obstar a que se faça um juízo de prognose favorável ao comportamento do recorrente, já que, aprópria maturidadeque adquiriu com o tempo e as competências adquiridas, devem ser suficientes e pesar mais aquando da realização do juízo de prognose sobre o seu comportamento.

            36. No caso, pela factualidade demonstrada, está preenchido o requisito do art.61 n.º2 al. a) e 3, sendo possível realizar um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro do condenado em liberdade.

            37. A decisão recorrida de não concessão da liberdade condicional ao recorrente teve apenas em vista uma finalidade repressiva e intimidatória, olvidando por completo a sua função de socialização.

            38. Deve revogar-se a decisão recorrida e conceder-se a liberdade condicional ao condenado.

            39. Ao ter decidido como decidiu violou o Tribunal a quo os artigos 61 nº2 al. a) e nº3 40° e 42º todos do Código. Penal.

            40. A pena de prisão respeitante ao processo n.º 358/04.... (1ano,4meses e 9dias de prisão) não pode ser declarada extinta, tendo, ao invés, de ser junta com a pena de 9 anos de prisão à ordem do processo n.º 1037/14...., para integrar um novo cômputo de penas, que deverá ser realizado pelo Tribunal de Execução de Penas e consequentemente ser realizada nova liquidação por forma a determinar os novos marcos temporais para a concessão da liberdade condicional.

            41. O cômputo sucessivo das penas realizado ao condenado e que englobou tais processos baseou-se numa interpretação declarada inconstitucional, segundo a qual, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, no caso de revogação da liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido teria de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro não podendo quanto a ela beneficiar de nova liberdade condicional.

         42. Sendo desta forma que o condenado vem cumprindo as suas penas e sendo com base neste pressuposto que foi realizada a liquidação da sua pena constante no facto provado em 2.

         43. A interpretação dada ao artigo 63.º n.º4 do Código Penal, e que determinou o cumprimento da pena de prisão residual resultante da revogação de liberdade condicional de que Arguido beneficiou, conflitua com o julgamento de inconstitucionalidade constante no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 909/2023, bem como, com o que consta da decisão Sumária do Tribunal Constitucional n.º 245/2024 ambos disponíveis em www.dgsi.pt , e que determinou: “Julgar inconstitucional a norma, contida no n.º 4 do artigo 63.º do Código Penal, segundo a qual, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática deum crime pelo qual o arguido foi condenado em pena deprisão, o arguido terá decumprir o remanescente dessa pena por inteiro, não podendo quanto a ela beneficiar de liberdade condicional, por afetar de forma desproporcionada o princípio da ressocialização, extraível da conjugação dos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, da Constituição; e, em consequência (…)”.

            44. Não pode continuar em vigor uma liquidação das penas sustentada numa interpretação declarada inconstitucional, impondo-se, ao Tribunal, perante tal circunstância corrigir tal inconstitucionalidade que fere a decisão que recaiu sobre a liquidação das penas feita ao condenado, realizando novo cômputo de penas e consequentemente nova liquidação de penas, que esteja de acordo a declaração de inconstitucionalidade, aplicando-se ao condenado a lei e interpretação mais favorável.

            45. O Tribunal a quo ao invés de fazer a aplicação do aludido preceito legal de harmonia com a jurisprudência aludida, expurgando a decisão que recaiu sobre a liquidação de penas realizada ao condenado da invocada inconstitucionalidade, persiste naquela aplicação e extingue a pena que deveria ser somada à pena do processo n.º 1037/14.... inviabilizando uma nova liquidação de penas de harmonia com a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

            46. Tal circunstância prejudica o condenado, já que, a soma de ambas as penas e a possibilidade de beneficiar de liberdade condicional em relação à pena de prisão do processo n.º 358/04.... altera significativamente os marcos temporais para a concessão da liberdade condicional constantes da liquidação de penas realizada, cuja alteração o mesmo já reclamou, por requerimento de 12-12-2024, com a referência citius 50760627, sem qualquer resposta.

            47. A extinção da pena do processo n.º 358/04.... reveste um agravar da situação penal do condenado.

            48. Com a extinção da pena o Tribunal a quo suprime a possibilidade de nova concessão de liberdade condicional o que é uma restrição do direito fundamental da liberdade garantido no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa e coloca em causa a sociabilização pretendida pela liberdade condicional.

            49. Deve ser revogado o despacho decisório que declarou extinta a pena do processo n.º 358/04...., substituindo-se por outro que ordene a realização de novo cômputo de penas, com a soma da pena deste processo com a do processo n.º 1037/14...., ordenando-se, consequentemente, a realização de nova liquidação das penas ao condenado e relativamente ao total apurado, resultante desta soma da penas, sejam encontrados novos marcos de liberdade condicional, assim se harmonizando com o decidido no Acórdão n.º 909/2023 e na decisão Sumária n. 245/2024 ambas do Tribunal Constitucional, bem como com o Acórdão da Relação de Coimbra proc. N. 480/20.8TXCBR-UC1.

            50. Ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo os artigos 40º, 42º, 61º e 64º do C.P., bem como, a decisão do Tribunal Constitucional constante do Acórdão n.º 909/2023 e da decisão Sumária n.º 245/2024, os artigos 470º, 474º , nº 1, 475º e 477º nº 1 do C.P.P., os artigos 138º, nº 2 e 4, e 141º, alínea i) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1 e 27.º da Constituição da República Portuguesa, o princípio da ressocialização do condenado, ínsito na letra dos artigos 40º e 42º C.P e extraível dos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1.

            51. É inconstitucional e violador do princípio da ressocialização e dos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, e 27.º da Constituição da República Portuguesa a norma contida no n.º 4 do artigo 63.º do Código Penal, aplicada pelo Tribunal a quo.

            52. Deve, ser declarado inconstitucional a norma contida no n.º 4 do artigo 63.º do Código Penal, segundo a qual, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro, não podendo quanto a ela beneficiar de liberdade condicional, por afetar de forma desproporcionada o princípio daressocialização, extraível daconjugação dos artigos 1.º, 2.º e25.º, n.º 1, daConstituição da República Portuguesa.

         53. Tal interpretação é inconstitucional pois afeta de forma desproporcionada o princípio da ressocialização, que é um dos fins das penas, encontrando-se ínsito na letra dos artigos 40º e 42º do C.P., e que é possível extrair da conjugação dos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e porque se está a suprimir a possibilidade de nova concessão de liberdade condicional o que constitui uma restrição do direito fundamental da liberdade garantido no artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa e coloca em causa a sociabilização pretendida pela liberdade condicional.

            54. Deve a norma a norma contida no n.º 4 do artigo 63.º do Código Penal ser interpretada no sentido de que: em caso de execução sucessiva de penas de prisão, mesmo que uma delas resulte da revogação da liberdade condicional (pena residual), devem somar-se todas elas para, relativamente ao total apurado, se encontrarem os novos marcos de liberdade condicional, na linha do preceituado pelos artigos 61º e 63º do CP (marcos esses a calcular dentro da pena de prisão ainda não cumprida e nunca por referência às iniciais penas de prisão), com a consequente necessidade realização e homologação de nova liquidação de pena.

            Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente:

            a) Ser revogada a decisão alvo de recurso concedendo-se a liberdade condicional condenado.

            b) Ser revogado o despacho que declarou extinta a pena do processo n.º 358/04.... (1ano,4meses e 9dias de prisão), substituindo-se por outro que ordene a realização de novo cômputo de penas, com a soma da pena deste processo com a do processo n.º 1037/14...., ordenando-se, consequentemente, a realização denova liquidação das penas ao condenado erelativamenteao total apurado, resultantedesta soma da penas, sejam encontrados novos marcos de liberdade condicional, assim se harmonizando com o decidido no Acórdão n.º 909/2023 e na decisão Sumária n. 245/2024 ambas do Tribunal Constitucional, bem como com o Acórdão da Relação de Coimbra proc. N. 480/20.8TXCBR-UC1.

            c) Ser declarado inconstitucional a norma contida no n.º 4 do artigo 63.º do Código Penal, segundo a qual, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro, não podendo quanto a ela beneficiar de liberdade condicional, por afetar de forma desproporcionada o princípio da ressocialização, extraível da conjugação dos artigos 1.º, 2.º e 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

                JUSTIÇA.”


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             3. Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, extraindo da resposta apresentada as seguintes conclusões que, igualmente, se transcrevem:

                “-A decisão está devidamente fundamentada e foi acertada a decisão de não colocação do condenado em liberdade condicional.

                -Não houve violação de lei.

                -O recurso deve ser julgado improcedente.”


*

            4. Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, aderiu à resposta do Ministério Público junto da 1ª instância na parte em que nesta se pugnou pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida, e que apenas complementou, da seguinte forma, que se transcreve:

                 “(…) breves considerações sobre a declaração de extinção da pena relativa ao processo 358/04..... Assim

                Ao contrário do que parece ser o entendimento do recorrente, a declaração de inconstitucionalidade constante do acórdão e decisão sumária do Tribunal Constitucional por si invocadas, tendo sido proferidos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, tiveram os seus efeitos limitados aos processos em que foram proferidos, nos termos do art.º 80º.1 da Lei 28/82, de 15 de novembro, não podendo o recorrente pretender que sejam fundamento para alterar um cômputo e uma liquidação de penas relativamente às quais não reagiu tempestivamente.

                Por outro lado, tendo a pena em causa já sido integralmente cumprida, não vislumbramos, nem o recorrente o explica, em que medida é que a declaração de extinção o prejudica ou a formulação de um novo cômputo que a inclua o possa beneficiar, razão pela qual, atento o disposto pelo art.º 236º.1, al. b), a contrario sensu, da Lei 115/2009, de 12 de outubro, julgamos que ao mesmo falece, nesta parte, legitimidade para recorrer.

                Assim, em síntese, também nós somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida.”


*

            5. Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer.

*

             6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

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            II- FUNDAMENTAÇÃO

            A) Delimitação do objeto do recurso

            Dispõe o art. 412º, nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

            Decorre de tal preceito legal que o objeto do processo se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º, 403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, pág. 340, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição, 2009, pág. 1027 a 1122, Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, pág.103).

            Como expressamente afirma o Professor Germano Marques da Silva, in obra citada, “São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões que o tribunal tem que apreciar”.

            Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

            - A verificação [ou não] dos pressupostos da concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena;

            - A incorreta declaração de extinção da pena de prisão respeitante ao processo n.º 358/04.....

             


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                B) Da decisão recorrida

               Para a apreciação das questões suscitadas pelo recorrente no presente recurso, importa ter presente o que decorre da decisão recorrida, a qual se transcreve na parte relevante para o efeito [levando em conta a correção nela introduzida, por despacho proferido em 4.02.2025, Refª 3981857]:

                “II. – FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:

                Matéria de facto Provada:

                Com relevância e pertinência resultam provados os seguintes factos:

                1. O recluso AA cumpre sucessivamente as seguintes penas: a) pena única de 9 [nove] anos de prisão resultante de cúmulo jurídico efectuado no Processo n.º 1037/14...., do Juízo Central Criminal de Almada – J..., por [englobou as penas desse processo e ainda dos processos n.ºs 1027/11.... e 25979/15....], por crimes de ameaça agravada, roubo agravado, como reincidente, detenção de arma proibida, roubos agravados – em execução; b) pena de 4 [quatro] meses de prisão à ordem do Processo n.º 2805/18...., Juízo Local Criminal de Sintra - J..., por crime de injúria agravada [praticado em meio prisional] - cumprida; c) remanescente da pena de 1 [um] ano, 4 [quatro] meses e 9 [nove] dias de prisão à ordem do processo n.º 358/04...., por revogação da liberdade condicional, por crimes de ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado, na forma tentada - cumprida.

                2. A pena foi liquidada nos seguintes termos:

                - Ininterruptamente preso desde 07.10.2017

                - Meio da pena em 07.04.2023

                - Dois terços da pena em 07.10.2024

                - Cinco sextos da pena em 16.03.2026

                - Termo da pena em 07.10.2027

                3. Do certificado de registo criminal do constam outras condenações pela prática de crimes de condução sem habilitação legal, desobediência, furto qualificado, condução de veículo em estado de embriaguez e roubo.

                4. O recluso já cumpriu pena(s) de prisão anteriormente.

                5. O recluso esteve internado no Estabelecimento Prisional de Monsanto em regime de segurança em 14.01.2021 até 17.01.2022 vindo transferido para o Estabelecimento Prisional de Coimbra.

                6. Iniciou o gozo de medidas de flexibilização da pena em Dezembro de 2023, sem registo de anomalias., encontra-se em regime aberto no interior desde 29.05.2024.

                Comportamento prisional/registo cadastral:

                7. No Estabelecimento Prisional de Coimbra o recluso não tem registo de sanções disciplinares mantendo comportamento adaptado.

                8. Fez o EFA B 3 em reclusão e em 2023/2024 esteve matriculado no 10.º ano, mas foi excluído por faltas a 25/03/2024.

                9. Em reclusão trabalhou como faxina desde 19.10.2023 e a 03.06.2024 passou para faxina do PRA.

                10. Beneficia de visitas da sua companheira, emigrante em Inglaterra e que se desloca a Portugal regularmente beneficiando, também, de apoio por parte da sua família de origem.

                Situação económico-social e familiar:

                11. Em período anterior à actual reclusão o condenado estava emigrado, há cerca de 3 anos, na Irlanda do Norte, onde estabeleceu relação afetiva com a mãe do seu filho mais novo.

                12. Mantinha actividade profissional como operário fabril em fábricas de embalamento de maçãs, de comida fast-food e, por último, na lavandaria de um hospital.

                13. Em 2020 AA iniciou relação de namoro com DD, que já conhecia anteriormente e que se encontra a residir em Inglaterra. O relacionamento cé descrito como afetuoso e muito gratificante, constituindo-se aquela como um grande suporte no seu processo de reinserção social.

                14. Quando for libertado o condenado pretende numa primeira fase integrar o agregado da sua mãe, no entanto, perspectiva ir viver com a namorada, DD e a filha desta menor de idade para Inglaterra.

                15. A mãe do recluso reside em apartamento constituído por dois quartos com boas condições de habitabilidade. Trata-se de um espaço de gestão camarária, pelo qual é paga uma renda mensal aproximada de 17 euros, encontrando-se o condenado inscrito na ficha da habitação.

                16. No contexto da família de origem a relação familiar é descrita como gratificante e de entreajuda (o pai do condenado faleceu em 2022).

                17. O condenado beneficia, ainda, do apoio dos seus irmãos.

                18. O recluso AA tem também uma filha com 16 anos, que se encontra em Portugal, bem como um filho com 9 anos, que está no estrangeiro. Ambas os filhos residem com as respectivas progenitoras, sendo descrito um relacionamento positivo.

                Perspectiva laboral/educativa:

                19. Em meio livre o condenado AA pretende voltar a emigrar para Inglaterra, onde refere ter a possibilidade de trabalhar como motorista.

                20. Em Portugal dispõe de uma proposta de trabalho para a empresa “A... Unipessoal Lda”, com sede em ....

                Vida anterior do recluso e caracterização pessoal:

                21. O processo de desenvolvimento do arguido AA decorreu junto dos pais e irmãos, sendo o mais novo dos seis filhos. A família ter-lhe-á proporcionado a vivência num ambiente ajustado e gratificante, bem como num quadro económico avaliado pelo próprio como equilibrado, em o que pai era pintor da construção civil e a mãe cozinheira.

                22. O agregado residia num bairro de habitação social — Bairro ..., com várias problemáticas associadas, contexto onde decorreu o seu processo de crescimento/socialização.

                23. O arguido AA manteve durante alguns anos a modalidade desportiva de kickboxing, tendo participado em competições desportivas.

                24. O recluso AA apresenta capacidades para distinguir condutas favoráveis/desfavoráveis às convenções sociais, impondo-se a necessidade de consolidar o seu processo de desenvolvimento das capacidades reflexivas e alternativas, para fazer face a possíveis situações de adversidade que possam surgir no meio livre, e ainda de competências pessoais e sociais como pensamento consequencial e alternativo, prevenindo a reincidência.

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             Factos não provados:

Inexistem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão de mérito, não se provando facto contrário nem que estivesse em contradição com a factualidade elencada.


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III.- Motivação da matéria de facto:

A convicção do tribunal no que respeita à resposta à matéria de facto provada resultou do teor da(s) certidão(ões) da(s) decisão(ões) condenatória(s) e do(s) cômputo(s) de pena(s), com homologação (artigo 477.º e 479.º, ambos do Código de Processo Penal), no certificado de registo criminal do recluso, do teor da ficha biográfica, do teor dos relatórios da equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em que se confiou pela metodologia evidenciada e fontes consultadas, contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, tudo conjugado com os esclarecimentos prestados em Conselho técnico e com as declarações do recluso.


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IV. - FUNDAMENTOS FÁCTICO-CONCLUSIVOS E JURÍDICOS:

O instituto da liberdade condicional é especificamente regulado pelos artigos 61.º e 63.º do Código Penal, cuja concessão implica (com excepção da concedida pelos 5/6 da pena, que é obrigatória) toda uma simultaneidade de circunstâncias, necessárias e cumulativamente verificáveis, e que mais não são do que o fim visado pela execução da própria pena. Por outras palavras, a pena, por si só, terá que espelhar a capacidade ressocializadora do sistema, sempre na mira de evitar o cometimento futuro de novo crime.

«A liberdade condicional não é uma medida de clemência: pela promoção, de forma planeada, assistida e supervisionada da reintegração do condenado na sociedade, constitui, sim, um meio dos mais eficazes e construtivos de evitar a reincidência.

Sendo exclusivamente preventivas as razões que estão na base da justificação e da avaliação da liberdade condicional (prevenção especial positiva ou de ressocialização e prevenção geral positiva ou de integração e defesa do ordenamento jurídico), só deverá a mesma ser recusada se a libertação afrontar as exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico ou na decorrência de motivo sério para duvidar da capacidade do recluso para, uma vez em liberdade, não repetir a prática de crimes.» [cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.04.2010, disponível in www.dgsi.pt].

A liberdade condicional constitui a libertação antecipada, mas não definitiva, do recluso, após cumprimento de uma parte da pena de prisão em que foi condenado, fazendo parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão no fito da sua ressocialização.

Serve o objectivo de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o condenado possa equilibradamente adquirir o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

Com tal medida - que pode ser normalmente decretada logo que cumprida metade da pena (artigo 61.º, n.ºs 2 e 3, do Código Penal) – espera-se fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do recluso, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade. Assim se compreendem, por um lado, a fixação de mínimos de duração para o período da liberdade condicional (artigo 63.º, n.º 5, Código Penal) e, por outro, a obrigatoriedade da pronúncia dela, decorridos que sejam 5/6 da pena, nos casos de prisão superior a 6 anos (artigo 61.º, n.º 4, do Código Penal).

Em suma, visa-se com a liberdade condicional atingir uma adequada reintegração social, satisfazendo-se o preceituado no artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal sob a epígrafe «finalidade das penas», onde se diz que “a aplicação de penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, bem como o quanto estipula o artigo 42.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”. A finalidade da liberdade condicional é hoje a prevenção especial positiva ou de socialização.

Ao abrigo do disposto no artigo 61.º do Código Penal, são pressupostos formais da concessão da liberdade condicional:

a) que o condenado tenha cumprido 1/2 da pena, e no mínimo 6 meses de prisão (n.º 2), ou 2/3 da pena, e no mínimo 6 meses de prisão (n.º 3) ou 5/6 da pena, quando a pena for superior a 6 anos (n.º 4);

b) que o condenado consinta ser libertado condicionalmente (n.º 1).

Por seu turno, são requisitos substanciais da concessão da liberdade condicional (excepto na situação do n.º 4):

a) que, de forma consolidada, seja de esperar, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respectiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto); e

b) a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social (excepto, também, na situação do n.º 3).

Ora, no que se reporta aos requisitos da liberdade condicional, é comummente aceite e lido que a alínea a) se reporta e assegura finalidades de prevenção especial, ao invés da alínea b), que antes visa finalidades de prevenção geral.

Dando o efectivo relevo ao objectivo de reinserção social por parte da liberdade condicional, por parte do libertado condicional de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, haverá para tanto que no caso em análise, atender-se:

- Às circunstâncias do caso, tal análise deve ser concretizada na valoração concreta dos crimes cometidos, apreciação da sua natureza e pelos quais operou condenação em pena de prisão, e as realidades normativas que deram azo à efectiva determinação concreta da pena, face ao artigo 71.º do Código Penal e, por efeito inerente, à medida concreta da pena, assim se atendendo ao grau de ilicitude do facto, ao concreto modo de execução deste, bem como à gravidade das suas consequências e ao grau de violação dos deveres impostos ao agente; determinando a intensidade do dolo ou da negligência considerada; atendendo aos provados sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; acompanhando as condições pessoais do agente e a sua situação económica; atentando na conduta anterior ao facto e na posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; considerando a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta foi censurada através da aplicação da pena.

- À consideração da vida anterior: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta do certificado de registo criminal – simples existência, ou não, de antecedentes criminais.

- À personalidade do condenado: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, ainda que por via estatística, do passado criminal postulado nos existentes antecedentes criminais, elemento este que se pode revelar como fortemente indiciador de uma personalidade disforme ao direito e, como tal, não merecedora da liberdade condicional, tudo com o firme propósito de aquilatar e compreender se o determinado percurso criminoso do condenado se gerou em circunstâncias que o mesmo não controlou, ou não controlou inteiramente (a chamada culpa pela condução de vida).

- À evolução da personalidade do condenado durante a execução da pena de prisão: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, não só pelos comportamentos assumidos institucionalmente pelo condenado no seio prisional (a vulgar esfera interna psíquica do condenado), mas essencialmente por via dos padrões comportamentais firmados de modo duradouro e que indiciem um concreto e adequado processo evolutivo de preparação para a vida em meio livre, sempre temperados nos limites da liberdade condicional.

Por seu turno, no propósito de prevenção geral serve a defesa da sociedade (artigo 42.º, n.º 1 do Código Penal). 

Por último, em termos de duração da liberdade condicional, fixa o n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal, que esta tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.

Revertendo ao caso concreto dos autos:

Perante a factualidade apurada com relevo para a decisão a proferir, no que se reporta aos pressupostos formais da concessão da liberdade condicional podemos concluir pelo seu preenchimento, porquanto o condenado AA já cumpriu dois terços das penas de prisão em que se mostra condenado, tal como declarou aceitar a aplicação da liberdade condicional.

Para ser concedida a liberdade condicional no presente momento apenas têm de estar preenchidas as razões de prevenção especial: reinserção do condenado e prevenção da reincidência – não voltar a delinquir.

Quanto à prevenção especial, a questão que cumpre ao Tribunal responder é a de determinar se num juízo de prognose – se a personalidade do condenado e a evolução deste durante a reclusão – fez gerar um efectivo processo de mudança, em moldes tais que no futuro se pode fundadamente esperar que o recluso não volte a cometer crimes.

O primeiro passo para que se possa fazer um juízo de prognose favorável no sentido de futuro comportamento socialmente responsável e sem cometer crimes é, indubitavelmente, o reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento. Só isso garantirá, com um mínimo de segurança, uma aptidão séria para a mudança.

A natureza dos crimes pelos quais o condenado cumpre pena de prisão e os factos por si praticados assumem gravidade, pelo que se exige a demonstração de um percurso prisional consolidado, devidamente testado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário e o actual adequado comportamento institucional do recluso, e tempo de pena já cumprido, por si só, não devem nem podem determinar a concessão da liberdade condicional, pois que o comportamento prisional normativo presentemente não é garantia de comportamento conforme o direito fora de meio vigiado, como aliás, o arguido veio a demonstrar, pois não se trata da primeira condenação do arguido nem da primeira reclusão, pois, encontra-se em cumprimento do remanescente de pena por revogação da liberdade condicional.

O arguido apresenta um significativo rol de condenações tendo anteriormente cumprido pena de prisão. O seu percurso de vida marcado pela prática de vários crimes, não nos permite por formular um juízo de prognose favorável caso lhe seja concedida, neste momento, a liberdade condicional.

A sua fragilidade ao nível do juízo crítico, do pensamento reflexivo e consequencial, com fraco sentido de responsabilidade social, imaturidade e orientação para satisfação dos seus interesses imediatos, leva-nos a acompanhar a posição maioritária do Conselho técnico e do Ministério Público.

Como se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21/01/2015, proferido no processo n.º 7164/10.3TXLSB-K.L1, o juízo de prognose tem, em casos como o presente, de assentar na constatação de que “algo de relevante tenha mudado em especial no […] modo de pensar [do recluso], e que ocorram situações ou circunstâncias exteriores ao cumprimento da pena ou ao meio prisional, que nos levem a considerar que algo mudou para melhor, na medida que se trata de […] conceder [ao recluso] o benefício de sair da prisão antes de cumprir a pena (adequada aos factos e à sua culpa), por o merecer e não ter mais necessidade de ali se encontrar”.

Impõe-se assim a consolidação do percurso prisional por parte do arguido, pois, o primeiro passo para que se possa fazer um juízo de prognose favorável no sentido de futuro comportamento socialmente responsável e sem cometer crimes é, indubitavelmente, o reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento. Só isso garantirá, com um mínimo de segurança, uma aptidão séria para a mudança, o que o recluso ainda necessita de trabalhar. Não nos parece possível concluir que o arguido já tenha condições internas que potenciem a necessária alteração comportamental, de molde a não repetir comportamentos de idêntica natureza, devendo evidenciar uma sólida interiorização da gravidade das suas condutas, devendo o recluso investir na aquisição de competências, continuar a ser testado em meio livre, consolidando o seu percurso de forma a reunir condições intrínsecas para não reincidir.

O recluso possui suporte exterior – da mãe e da namorada e terá integração laboral, mas o apoio familiar e a perspetiva laboral não são suficientemente contentores a evitar a prática de crimes por parte do condenado, até porque o suporte familiar trata-se de factor pré-existente à prática dos crimes e não demoveu o arguido ao seu cometimento.

Donde, percepcionamos que subsistem fragilidades que importa ultrapassar tendo em conta a trajectória de vida do arguido com fraca proactividade em alterar os seus padrões comportamentais, tanto mais que, a anterior condenação porque cumpriu pena de prisão não teve o efeito suficientemente dissuasor para alterar a sua conduta, na medida em que veio a ser revogada a liberdade condicional que lhe havia sido concedida, dada a prática de outros ilícitos criminais no seu decurso.

Consequentemente, tudo aponta no sentido de que ainda não estão identificados elementos suficientes que sejam reveladores de mudança de vida do recluso e da sua ressocialização, não se evidenciando uma evolução suficientemente positiva em ambiente prisional, pelo que os fins da reinserção impõem que adquira e consolide comportamentos que o levem a tal percurso.

Assim, concluímos que o condenado carece de mais tempo de prisão, de modo a que pena produza o seu efeito inibitório de evitar que volte a delinquir, isto é, que reforce, pela consolidação de competências pessoais em meio prisional e provimento de modo mais consistente as suas necessidades de reinserção social, as naturais contra-motivações éticas no sentido do respeito pela lei e o direito.

Em face do exposto, acompanha-se o entendimento unânime do Conselho técnico e o parecer do Ministério Público, no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedido ao recluso AA a liberdade condicional.


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            V. – DECISÃO:

Em face do exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decido:

a) Não conceder a liberdade condicional ao arguido AA, pelo que o cumprimento efectivo da pena de prisão se manterá.

Notifique o condenado, o(a) Ilustre Mandatário(s) ou Defensor(a) Oficioso(o), se existir, e o Ministério Público.

Comunique à Equipa de Reinserção Social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e remeta cópia ao processo individual único.

Comunique ao Tribunal da pena em execução.

Para efeitos de renovação de instância para eventual concessão da liberdade condicional a mesma será reapreciada em sede de renovação de instância, devendo atender-se à data de 27 de Novembro de 2025 (12 meses a contar da data infra, que é aquela em que foi proferida a decisão – artigo 180.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade).

Com a antecedência de 90 dias sobre tal data deverá a secção de processos solicitar o envio, no prazo de 30 dias, dos elementos referidos no artigo 173.º, n.º 1, do referido Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, requisitar e juntar certificado de registo criminal actualizado e cópia da ficha biográfica do condenado.


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Declaro extintas, por cumprimento, as penas que o arguido AA cumpria à ordem dos processos n.ºs 2805/18.... e 358/04...., ao abrigo do disposto nos artigos 475.º do Código de Processo Penal e 138.º, n.º 4, al. s), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

Notifique.

Comunique.

Remeta boletim à D.S.I.C.”


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            C) Apreciação do recurso

            - Da verificação [ou não] dos pressupostos da concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena 

            Suscitada pelo recorrente a questão da verificação dos pressupostos da concessão da liberdade condicional aos dois terços das penas sucessivas decididas pelo tribunal recorrido, constitui esta no âmbito do presente recurso motivo de dissensão por parte do recorrente em relação à decisão recorrida na qual se decidiu em sentido contrário.

            Passemos, então, à apreciação da mesma.

            De acordo com o disposto no art. 40º, nº 1 do C. Penal, a aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade ou sejam, a realização de fins de prevenção, geral e especial.

            Por seu turno, dispõe o art. 42º, nº 1 do mesmo C. Penal que, a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, tendo ainda redacção idêntica o art. 2º, nº 1 do C. Execução das Penas e das Medidas Privativas da Liberdade [CEPMPL]. 

            É precisamente neste âmbito que se insere o instituto da liberdade condicional entendido, como o legislador deixou consignado no parágrafo 9 da Introdução do Código Penal, aprovado pelo Dec. Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, não como uma recompensa por boa conduta prisional mas antes, como um auxílio e incentivo ao condenado, através da criação de um período de transição entre a prisão e a liberdade, que lhe permita uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais, necessariamente enfraquecida pelo período de reclusão suportado.

            Trata-se de um incidente de execução da pena de prisão a que preside uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, e que assenta na formulação de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro e em liberdade, do condenado que já cumpriu parte considerável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 528).

            A concessão da liberdade condicional depende da verificação dos pressupostos previstos no art. 61º, do C. Penal.

            A primeira ideia a reter é a de que ela depende sempre do consentimento do condenado (nº 1, do artigo citado).

            Depois, há que distinguir entre liberdade condicional não obrigatória e liberdade condicional obrigatória.

            A liberdade condicional não obrigatória é concedida quando:

            a) O condenado tiver cumprido metade da pena de prisão e no mínimo de seis meses, se:

            - Atentas as circunstâncias do caso, a sua personalidade e a evolução desta ao longo do cumprimento da pena, existiram fundadas razões para crer que, posto em liberdade, conduzirá a sua vida de forma socialmente responsável (nº 2, a) do art. 61º do C. Penal); e

            - A libertação for compatível com a defesa da ordem e da paz social (nº 2, b) do mesmo artigo);

            b) O condenado tiver cumprido dois terços da pena de prisão e no mínimo de seis meses, desde que, atentas as circunstâncias do caso, a sua personalidade e a evolução desta ao longo do cumprimento da pena, existiram fundadas razões para crer que, posto em liberdade, conduzirá a sua vida de forma socialmente responsável (nº 3 do mesmo artigo).

            A liberdade condicional obrigatória ou ope legis é concedida logo que o condenado cumpra cinco sextos da pena de prisão superior a seis anos (nº 4, do mesmo artigo).

            No presente recurso está em causa a concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena pelo que, atingido este patamar e cumpridos que estejam seis meses de prisão, verificado o consentimento do condenado, ela depende da satisfação das exigências de prevenção especial de socialização – prognose favorável sobre o futuro comportamento em meio livre.

            Vejamos então.

            De acordo com o que deflui da decisão recorrida e dos demais elementos que integram a certidão junta aos autos:

            O recluso AA encontra-se em reclusão para o cumprimento, em regime sucessivo, da pena única de 9 [nove] anos de prisão resultante de cúmulo jurídico efetuado no Processo n.º 1037/14...., do Juízo Central Criminal de Almada – J... [que englobou as penas desse processo e ainda dos processos n.ºs 1027/11.... e 25979/15....], por crimes de ameaça agravada, roubo agravado, como reincidente, detenção de arma proibida, roubos agravados, da pena de 4 [quatro] meses de prisão à ordem do Processo n.º 2805/18...., Juízo Local Criminal de Sintra - J..., por crime de injúria agravada [praticado em meio prisional] e do  remanescente da pena de 1 [um] ano, 4 [quatro] meses e 9 [nove] dias de prisão à ordem do processo n.º 358/04...., por revogação da liberdade condicional, por crimes de ofensa à integridade física qualificada e homicídio qualificado, na forma tentada.

            O condenado atingiu ½ das referidas penas em 7.04.2023, os 2/3 em 7.10.2024 e alcançará os 5/6 em16.03.2026 e o seu termo em 07.10.2027.

            Ouvido em declarações, o condenado consentiu na sua colocação em liberdade condicional.

            Estão, pois, verificados os pressupostos formais da aplicação da liberdade condicional aos dois terços das penas, conforme, aliás, se entendeu na decisão recorrida.

            Atentemos agora na verificação, ou não, do seu pressuposto material.

            Como já o dissemos, a lei faz depender a concessão da liberdade condicional aos dois terços da pena da formulação pelo tribunal de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

            Na formulação deste juízo sobre o comportamento futuro do condenado, o tribunal deve ponderar os traços da sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena, as competências por si adquiridas no período de reclusão, o comportamento prisional, o seu relacionamento com o crime cometido, as necessidades subsistentes de reinserção social, as perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional e a necessidades de proteção da vítima quando disso seja caso (art. 173º, nº 1 do CEPMPL).

            Toda a prognose é uma probabilidade, uma previsão da evolução futura de uma situação, fundada no conhecimento da evolução de situações semelhantes, sendo aplicáveis as mesmas condições ou seja, fundada nas regras da experiência.

            O juízo de prognose a fazer para o efeito nunca poderá ser um juízo de certeza, mas apenas um juízo de previsão emergente da conjugação e ponderação dos fatores supra enunciados, devendo a liberdade condicional ser concedida quando o julgador conclua que o condenado reúne condições que, razoavelmente, fundam a expectativa de que, uma vez colocado em liberdade, assumirá uma conduta conforme às regras da comunidade. Inversamente, a liberdade condicional deverá ser negada quando o julgador conclua que o condenado não reúne tais condições, seja porque o juízo contrário se revela carecido de razoabilidade, seja porque se revela temerário.

            Não olvidando, ainda, que na formulação de tal juízo, para além da subjetividade do decisor, existe também a vantagem decorrente da imediação da prova designadamente, da audição do recluso (ao abrigo do disposto no art. 176º do CEPMPL), da qual não poderá comungar o Tribunal de recurso.

            Tendo em conta estes considerandos, cumpre assinalar que o artigo 61.º, n.º 2 do CP exige a existência de um prognóstico individualizado e favorável de reinserção social, assente, essencialmente, na probabilidade séria de o condenado em liberdade vir a adotar um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

            Para além da vontade subjetiva do condenado, o relevante é a “capacidade objetiva de readaptação”, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos a serem suportados pela comunidade com a antecipação da restituição à liberdade do condenado.

            Daí não ser tão decisivo o bom comportamento prisional em si ou verbalizações de arrependimento, mas os índices de ressocialização revelados pelo condenado, a serem aferidos de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso, principalmente a sua conduta anterior e posterior à condenação.

Como salienta Joaquim Boavida, in A Flexibilização da Prisão, Almedina, 2018, pag. 139-140, na ponderação da concessão ou não da liberdade condicional “é relevante apurar a personalidade manifestada pelo recluso na prática do crime, quais os seus traços, sintomas e exteriorizações”, acrescentando o mesmo, ainda, que “não é indiferente se o crime é uma decorrência da personalidade impulsiva e agressiva do recluso ou se resultou apenas da conjugação de circunstâncias irrepetíveis ou da mera imaturidade do agente”.

Como também se salienta no ac. deste Tribunal a Relação de Coimbra, 18.04.2012, disponível in www.dgsi.pt., “A personalidade do agente é um factor de essencial importância para a concessão da liberdade condicional, particularmente pela via da prevenção e do prognóstico favorável à outorga de tal liberdade; não decerto a personalidade como um todo, mas da personalidade manifestada no acto e que o fundamenta, isto é, na justificação a partir do que se faz e não do que se é”.

Considerando o exposto, e adiantando já, afiguram-se sem razão os argumentos recursórios aduzidos pelo recorrente. 

A ponderação feita pelo tribunal recorrido a respeito de que não é possível formular, neste momento, um juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional ao ora recorrente em virtude do seu percurso de vida - marcado pela prática de vários crimes, pela natureza dos crimes pelos quais o arguido cumpre pena de prisão, pela gravidade dos factos que a estes estão subjacentes e pelas anteriores condenações pelo mesmo já sofridas que lhe determinaram anterior reclusão - por evidenciar fragilidade do mesmo ao nível do juízo crítico, do pensamento reflexivo e consequencial, com fraco sentido de responsabilidade social, imaturidade e orientação para satisfação dos seus interesses imediatos, mostra-se assertiva.

Na verdade, apesar do período de pena já cumprido pelo recluso, não se mostra, ainda, consolidado um percurso prisional revelador de que o mesmo atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário demonstrativo da preparação para viver em liberdade cumprindo regras, não sendo as condenações pelas quais cumpre, sucessivamente, as penas que lhe determinaram a presente reclusão as únicas que determinaram o contato com o meio prisional, uma vez que, já anteriormente, esteve preso em cumprimento de pena resultante de outras condenações, tendo visto ser-lhe revogada a liberdade condicional que, então, lhe fora concedida.

Com efeito, como se sintetiza no ac. do STJ, de 4.7.2019 que integra a certidão que instrui os presentes autos (no qual se decidiu, em definitivo, a pena única de 9 anos, agora em execução):

“O arguido, que nasceu em ../../1984, tinha 17 anos quando cometeu o primeiro crime e encontra-se actualmente em cumprimento de pena, depois de se ter ausentado durante cerca de 3 anis e ter regressado a Portugal, pretendendo cumprir as penas em que foi condenado.

 Apesar das sucessivas condenações, o arguido manteve, durante muitos anos, desde o início da idade adulta, um percurso de vida em frontal violação dos deveres de observância dos valores do direito que se lhe impunham e, apesar das condenações, não alterou a sua conduta, não revelando sensibilidade às penas impostas.  

É, neste quadro, justificado concluir-se que a conduta do arguido não se reduz a uma mera pluriocasionalidade, antes revelando características de personalidade relevadora de tendência para a prática de crimes (…) nomeadamente de crimes contra as pessoas e contra o património, geradores de particular sentimento de insegurança”.

De facto, a personalidade do arguido evidencia propensão para a prática de crime, designadamente, contra as pessoas e contra o património.

E, se é certo que o seu comportamento em meio prisional ultimamente se vem apresentando consentâneo com os normativos internos, não é menos verdade é que a sua conduta institucional nem sempre se pautou pela adequação ao convencionalmente estabelecido, apresentando fases de irregularidade e anomalias, reveladoras de dificuldades para se adequar às regras instituídas no meio prisional, como disso se dá conta no Relatório da Equipa de Reinserção Social junto aos autos.

Assim é que, conforme também salienta a Digna Procuradora na resposta ao recurso, “ Da sua ficha biográfica constam vários incidentes disciplinares, sendo que durante o ano de 2018 constam entre março e setembro, 5 medidas disciplinares, uma de internamento em cela disciplinar e as outras de permanência obrigatória no alojamento. Em 2019 também consta uma punição em fevereiro de 9 dias de permanência obrigatória no alojamento.

De 05.11.2021 até 20.12.2022 esteve no Estabelecimento Prisional de Monsanto, em regime de segurança, devido a um conflito/agressão a um guarda prisional no Estabelecimento Prisional de Vale dos Judeus.

No EP de Coimbra o seu comportamento tem vindo a estabilizar e vinha mantendo comportamento consentâneo com o normativo, sendo que no final de 2023 registou duas infrações, uma por posse de uma pen e outra por posse de telemóvel.”

Doutra parte, a circunstância do recluso possuir apoio em meio livre, da mãe e da namorada, e perspetivas de integração laboral, estas não se apresentam, só por si, suficientemente contentoras da recidiva criminosa, pois existiam já à data da prática dos factos que levaram à sua reclusão e não constituíram impedimento ao seu cometimento.

            Como como refere Figueiredo Dias, decisivo é “… não o «bom» comportamento prisional «em si» – no sentido de obediência aos (e do conformismo com) os regulamentos prisionais –, mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re)socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade” (cfr. “As Consequências Jurídicas do Crime”, ed. 1993, pág. 538 e 539 e Ac. da RC de 25/2/2015, disponível em www.dgsi.pt). Isto porque “A liberdade condicional não é um “prémio”, não se baseia exclusivamente no bom comportamento prisional ou na existência de apoio no exterior. O condenado deve demonstrar que consegue ter um comportamento adequado em meio livre, aprofundando a sua capacidade reflexiva quanto aos atos anteriormente praticados.” (cfr. Ac. da RC de 10/7/2018, disponível em www.dgsi.pt).

            O condenado tem, ainda, um percurso a realizar em reclusão, no sentido da interiorização da necessidade de cumprir as regras necessárias à vida em comunidade, de modo a que, como se refere na decisão recorrida, “a pena produza o seu efeito inibitório de evitar que volte a delinquir”

            Daí que se mostre necessário consolidar a sua capacidade para, em meio livre, conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, o que sempre poderá ser alcançado, com vista à sua reintegração na sociedade, através das medidas de flexibilização da pena de que vem beneficiando, sem registo de incidentes.

            Tudo, pois, a apontar para um juízo de prognose não favorável sobre o futuro comportamento do condenado em meio livre, como, aliás foi entendimento maioritário do Conselho Técnico e do Ministério Público, que vieram a ser sufragados na decisão de não concessão da liberdade condicional ao recorrente que vem posta em causa no presente recurso, a qual, pelos motivos adiantados, não merece censura, sendo por isso de manter.

            Face ao exposto, julga-se, nesta parte, improcedente o recurso.


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                - Da incorreta declaração de extinção da pena de prisão respeitante ao processo n.º 358/04....

        Nas Conclusões 40. e 54. resume o recorrente as razões que, no seu entendimento, impediriam que se declarasse extinta a pena de 1 ano, 4 meses e 9 dias de prisão que constitui o remanescente da que lhe foi aplicada no âmbito do processo 358/04.... por revogação da liberdade condicional.

Tal argumentação recursiva prender-se-á, tanto quanto se alcança, com o segmento da decisão recorrida, quando, no final da mesma, se exarou o seguinte:

“Declaro extintas, por cumprimento, as penas que o arguido AA cumpria à ordem dos processos n.ºs 2805/18.... e 358/04...., ao abrigo do disposto nos artigos 475.º do Código de Processo Penal e 138.º, n.º 4, al. s), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.”

No entendimento do recorrente a referida pena não podia ter sido declarada extinta, como o foi na decisão recorrida, porque deveria ter sido objeto de cúmulo jurídico com a pena de 9 anos de prisão à ordem do processo n.º 1037/14...., para integrar um novo cômputo de penas, a ser realizado pelo Tribunal de Execução de Penas, devendo, consequentemente, ser realizada nova liquidação por forma a determinar os novos marcos temporais para a concessão da liberdade condicional.

Afigura-se-nos, porém, que a discordância do recorrente não tem qualquer razão de ser.

Isto porque.

O computo e a liquidação das penas em execução sucessiva que foram ponderadas na decisão recorrida para a apreciação da liberdade condicional que nela lhe veio a ser negada, foram efetuados na sequência da decisão que determinou o cumprimento, em regime sucessivo, dessas penas, vindo a ser homologados por despacho proferido em 10.02.2020 [Refª 7241706], do qual foi o condenado e ora recorrente notificado em 17.02.2020, tudo como se colhe do apenso 3576/10...., cuja consulta, para o efeito, fizemos através da ferramenta do Citius “ Processos Relacionados”, uma vez que a liquidação das penas que integra a certidão que instrui os presentes autos não se mostra elucidativa da liquidação referente ao somatório das penas em cumprimento.

Não tendo o ora recorrente interposto recurso de tais decisões, não pode agora, no decurso do cumprimento sucessivo dessas penas e quando já cumpriu duas delas vir discordar, a pretexto da declaração de extinção de uma destas, da liquidação que foi efetuada das mesmas, na sequência da decisão que determinou a sua execução em regime sucessivo, invocando a eventual inconstitucionalidade da norma contida no art. 63º, nº4 do CPP.

Ademais, como bem salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no Parecer emitido nos autos, “ a declaração de inconstitucionalidade constante do acórdão e decisão sumária do Tribunal Constitucional por si invocadas, tendo sido proferidos no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, tiveram os seus efeitos limitados aos processos em que foram proferidos, nos termos do art.º 80º.1 da Lei 28/82, de 15 de novembro, não podendo o recorrente pretender que sejam fundamento para alterar um cômputo e uma liquidação de penas relativamente às quais não reagiu tempestivamente.” 

Assim sendo, também não merece censura a decisão recorrida a respeito da declaração de extinção da pena que cumpriu à ordem dos processos n.º 358/04...., que o recorrente poe em causa, porque ancorada no disposto nos arts. 474º do CPP e 138º, nº4, al. s) do CEPMPL, como também o foi a declaração de extinção da pena que cumpriu à ordem do Proc. 2805/18...., nela igualmente decidida.

Face ao exposto, improcede, também neste segmento a pretensão do recorrente.


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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            1. Negar provimento ao recurso interposto pelo condenado/recorrente AA, e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

            2. Condenar o recorrente nas custas do recurso, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs (arts. 153º, nºs 1 e 6 do CEPMPL, e 8º, nº 9 do R. das Custas Processuais e tabela III, anexa).


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                                                                                   Coimbra, 26 de março de 2025

  (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

(Maria José Guerra – relatora)

(Cândida Martinho – 1ª adjunta)

(João Abrunhosa – 2º adjunto)