CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO SOB A INFLUÊNCIA DE ESTUPEFACIENTES OU SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS
EXAME CIENTÍFICO OU PERICIAL
VALORAÇÃO PROBATÓRIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA.
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS
Sumário

1. O crime de condução perigosa de veículo rodoviário, sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, associa a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, já que o tipo legal de crime pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.
2. A demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança não carece da realização de um exame científico ou pericial, podendo ser obtida através da análise dos elementos de prova que o julgador disponha no caso concreto, numa valoração probatória ponderada e apoiada nas regras de experiência e da normalidade da vida.
3. O exame médico previsto no art. 25º da portaria nº 902-B/2007 de 13 de agosto, reporta-se ao nº 1 do art. 13º da referida lei nº 18/2007 de 17 de maio, isto é, “quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste”, o que não se verificou na situação em apreço.
4. Não constituindo o referido exame médico a única prova admissível para a demonstração de que o agente não estava em condições de exercer a condução em segurança, a apreciação efetuada pelo tribunal a quo não padece, de qualquer erro notório na apreciação da prova.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I-Relatório

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 9/22.3GBACB que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Alcobaça, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, a 30.10.2024 foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“6. DISPOSITIVO

Pelo exposto, o Tribunal decide:

a) condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;

b) condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão;

c) procedendo ao cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenar o arguido AA na pena única de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;

d) suspender, na sua execução, a pena de prisão aplicada ao arguido, pelo período de 1 (um) ano de 2 (dois) meses, com sujeição a regime de prova.

e) condenar o arguido AA na proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 (um) ano, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal;

f) condenar o arguido AA a pagar as custas criminais, a que acresce a taxa de justiça, que se fixa, ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, em 2UC.

Comunique à Direcção Geral de Reinserção Social, solicitando a elaboração do plano de execução a que alude o artigo 496.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Penal.

Comunique à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (artigo 69.º, n.º 4 do

Código Penal e 500.º, n.º 1 do Código de Processo Penal).

Após trânsito em julgado, remeta boletim aos serviços de identificação criminal.

Deposite (artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo


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I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido AA, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

 “CONCLUSÕES

I — Do Objecto do Recurso

1.º Vêm o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Instância Local Criminal de Alcobaça, proferida e depositada no dia 30 de Outubro que condenou o Arguido.

2.º Salvo o devido respeito, que é muito, não pode o Arguido conformar-se com a referida decisão, padecendo a mesma de diversos erros, vícios e omissões na matéria de facto e de direito.

3.º Com efeito, perante a prova produzida em juízo que infirmava os factos de uma acusação/pronuncia, que se encontrava grosseiramente errada, o Tribunal “ a quo” optou por desconsiderar por completo, a prova produzida, designadamente, no que concerne às declarações do arguido sobre o modo como ocorreu o acidente.

4.º Da mesma forma que o Arguido não pode conformar-se com as erróneas conclusões de direito que se retiram dessa mesma matéria de facto, devendo o Arguido ser absolvido do crime de condução perigosa pelo qual se encontra condenado, p. e p. no artigo 291.º n.º 1 al. a), bem assim da pena acessória de inibição de conduzir aplicada.

II- Do crime de condução perigosa p. e p. pelos artigos 291.º n.º 1, alínea a) e b) e 69.º , n.º 1 do Código Penal.

5.º É entendimento do Arguido de que o tribunal “ a quo” julgou erradamente os factos descritos nos pontos 8, 17, 18, 19, 20, 21, 22, e 23 dos factos dados como provados na douta sentença, tratando-se de um vício de julgamento que se traduz num erro notório na apreciação da prova.

6.º Na verdade, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não permitia concluir que o Arguido não estava em condições de não poder conduzir em segurança.

7.º Considerando que a prova produzida em sede de audiência e julgamento teve por base as declarações do Arguido, que o Tribunal considerou credíveis, tanto mais que as considerou para fundamentar a sentença, não podem as mesmas ser credíveis apenas, parcialmente. Sendo credíveis, teria o Tribunal de ter atendido à explicação do arguido sobre o modo como ocorreu o acidente, o que não sucedeu.

8.º Baseia-se ainda o Tribunal, para a condenação do Arguido num parecer do INML, junto aos autos a fls. 315, e que aqui se resume, por uma questão de economia processual, que refere “ a taxa apresentada pode ser considerada a possibilidade de ocorrência de prejuízo para uma condução segura na via pública”. Refere ainda o referido parecer que:

“É difícil estabelecer uma relação entre a concentração de THC no sangue e o prejuízo que a mesma possa causar no desempenho psicomotor de uma pessoa”

 9.º Na verdade, a prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento não permitia concluir que o Arguido não estava em condições de conduzir com segurança quando se deu o acidente, ora vejamos:

10.º Na condução em estado de embriaguez a lei fixa a taxa concreta a partir da qual se infere, objectivamente, quando a influência dessa substancia, o álcool, compromete de tal forma as capacidades motoras e intelectuais de uma condução segura ao ponto de ser punida criminalmente, ao passo que, na condução sob o efeito de substâncias, prevista no n. º 2 do artigo 292.º , o legislador optou por não indicar a taxa a partir da qual a condução deve ser sancionada criminalmente.

11.º Assim, em relação à ingestão de álcool o cometimento do crime depende tão só do facto de o condutor conduzir com uma TAS igual ou superior a 1,2g/l, enquanto que, na toma de estupefacientes para além do condutor ter de acusar o consumo através de um exame ao sangue tem de ser alegado e provado que aquele tinha a sua capacidade de exercício de condução diminuída devido ao consumo das referidas substâncias.

12.º Face aos inúmeros tipos de substâncias psicotrópicas, e aos diferentes tipos de efeitos decorrentes do seu consumo, o julgador terá de apreciar caso a caso, se essa taxa de psicotrópicos no sangue, é ou não capaz de criar um risco acrescido de uma condução censurável criminalmente.

13.º Como se pode provar se o condutor, em função da ingestão das referidas substâncias não estava em condições de conduzir em segurança?

14.º Alguma Jurisprudência tem salientado ser imprescindível a realização do “exame médico” aluído no anexo VII da Portaria 902-B/07 de 13.08. O que não sucedeu nos presentes autos.

15.º Recentemente o STJ, num acórdão de uniformização de jurisprudência, o acórdão 10/2024 decidiu que: “Sumário: Nos termos do artigo 27.º , n.º1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, para que seja reconhecido o direito de regresso à seguradora que satisfez a indemnização ao lesadø terá a mesma de alegar e provar que o condutor conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, diminuindo a aptidão física e menta/ do condutor para exercer a atividade da condução em condições de segurança, devendo ta/ «estado de influenciação» ser demonstrado através de exame médico e/ou pericial”.

16.º Ora para fins penais, é igualmente necessária a demonstração de que o consumo impedia o agente de conduzir em segurança.

17.º No caso dos autos, o parecer médico em que o Tribunal se baseia para extrair a conclusão de que o Arguido não estava EM CONDIÇÕES DE CONDUZIR EM SEFGURANÇA, é uma mera possibilidade, ou seja, o parecer junto aos autos e que serve de fundamentação ao tribunal, consigna que, com a taxa apresentada pode ser considerada a possibilidade de ocorrência de prejuízo para uma condução segura.

18.º Ou seja, não existe, não se verificou, a demonstração de que com a taxa apresentada o Arguido não estava em condições de poder conduzir em segurança.

19.º 0 Tribunal não apurou qualquer outro tipo de prova, relativamente ao exercício da condução por parte do Arguido; pelo que, quanto mais não fosse pelo princípio constitucional “in dubio pro reo”, o arguido não poderia ter sido condenado pelo crime de condução perigosa, o que desde já se requer.

20.º Ora, por referência ao princípio basilar do Processo Penal “in dubio pro reo”, nada se vislumbrou ou foi referido pelo tribunal, na douta sentença de que ora se recorre, que desaconselhasse a credibilização das declarações do arguido relativamente ao momento do consumo dos estupefacientes e ao modo como o acidente ocorreu.

21.º Logo, o Arguido não conduziu após o consumo quaisquer substâncias nem é possível demonstrar/concluir que o acidente se deu devido à diminuição de capacidades para conduzir em segurança.

22.º Se o Tribunal tivesse aplicado corretamente a norma do artigo 163.º do CPP, não poderia ter ido além do estatuído no parecer do INML que refere que é difícil estabelecer uma relação entre a concentração de THC no sangue e o prejuízo que a mesma possa causar no desempenho psicomotor de uma pessoa!, ou se o pretendia fazer teria de fundamentar devidamente essa divergência , ou que não fez, limitou-se a retirar uma conclusão divergente, sem qualquer prova adicional ou fundamento.

23.º Da sentença recorrida, não resultam provados quaisquer factos que permitam verificar o nexo de causalidade entre o consumo e a ocorrência do acidente.

24.º Considerando que o exame crítico das provas tem de ser aferido dentro de critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão, o que não sucede na sentença de que ora se recorre.

25.º 0 princípio “in dubio pro reo” é o correlato processual do principio da presunção de inocência do arguido, gozando o Arguido da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º n.º 2 da CRP, toda e qualquer dúvida com que o tribunal fique reverterá a favor daquele.

26.º Não adquirindo o Tribunal a “certeza” sobre os factos, a decisão tem de ser, por virtude deste princípio, a da absolvição do Arguido.

27.º Por todo o exposto verifica-se erro na valoração probatória resultante da violação das regras da experiência comum, que é patente aos olhos de qualquer observador que lê a decisão, pelo que forçoso é concluir que a sentença padece de vício de erro notório na apreciação da prova nos termos do artigo 410.º n. 2 alínea c) do CPP.

111 - DAS PRESUNÇÕES EXTRAÍDAS DA DECISÃO RECORRIDA

28.º Não se vislumbra, da análise da sentença, como foi possível o Tribunal chegar às conclusões da matéria de facto dada como provada, na douta sentença nos pontos 7,8, 18, 19 e 23.

29.º Na verdade, o Tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e da sua livre convicção, mas sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão, e da experiência acumulada, o que não sucedeu!

30.º Ora, o Arguido apresentava uma taxa de THC de pelo menos 2,3 ng/ml, o Arguido, prestou declarações que foram valoradas e mereceram o crédito do tribunal, tanto mais que o tribunal valorou o seu arrependimento, e não desconsiderou as mesmas, o Arguido assumiu o consumo da substância, negando no entanto que a mesma tenha ocorrido no dia do acidente, explicou o sucedido, para ter perdido o controlo do veículo no exacto momento em que se cruzou com o outro veículo interveniente no acidente, e que o levou a perder o controlo do veículo por si conduzido e nessa medida invadir a outra faixa de rodagem.

31.º Conforme já se referiu, o relatório junto aos autos referente á análise do valor do consumo detetado, é vago e genérico.

32.º Quando o resultado do relatório, refere que existe uma possibilidade da taxa de consumo apresentada pode influenciar a condução, não refere que influência objetivamente, e refere ainda que é difícil estabelecer uma relação entre a concentração de THC no sangue e o prejuízo que a mesma possa causar no desempenho psicomotor de uma pessoa.

33.º Existe assim uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, que com base na fundamentação apresentada, teria de conduzir à absolvição do Arguido do crime de condução perigosa.

34.º Ainda que assim se não entenda, verifica-se uma nulidade por inexistência de fundamentação nos termos e para os efeitos dos artigos 374.º n.º 2 e 379.º n.º 1 do CPP, pela inexistência de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

35.º Quais foram os sinais ou evidências, ou melhor dizendo, os factos que permitiram ao Tribunal retirar tal conclusão? No momento do acidente, ou posteriormente, o Arguido apresentava sinais de não estar nas suas capacidades plenas? Sinais, esses, retirados da sua postura, ou diálogo incoerente? E que sinais eram esses?

36.º Acresce o facto de atualmente a lei não definir valores mínimos de concentração de substâncias estupefacientes nos exames de sangue, contrariamente ao que sucede nos exames de rastreio na urina, pese embora já o tenha fixado no passado. Efectivamente, a portaria 1006/98 de 30/11 (que veio a ser revogada pela portaria 902-B/2007 de 13 de Agosto) fixava como valores limite, abaixo dos quais se considerava que o examinado não estava influenciado por substâncias estupefacientes os que constavam do quadro 2 do anexo V (valores de referência para o sangue e urina).

37.º Na verdade a comunidade científica, e consequentemente a jurídica, o legislador, não conseguem chegar a um consenso para a definição do estado de influenciado comprometer a condução em segurança. Daí a necessidade da prova acrescida do estado de influenciado.

38.º Neste sentido converge o Acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência n.º 10/2024.

39.º Os acórdãos uniformizadores de jurisprudência visam garantir a certeza do direito e o princípio da igualdade, evitando que decisões judicias que envolvam a mesma lei e a mesma questão de Direito obtenham respostas diferentes. Por força do artigo 4.º do CPP terá aplicação no presente caso, visando a integração de lacunas da lei.

40.º Em sede de conclusão, dir-se-á que terá sempre de se demonstrar em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica do agente, e que este não estava em condições de exercer a condução em segurança, e que esta prova não se produziu. A convicção que não consegue ser explicada, não pode vingar e não fundamente a matéria de facto.

41.º A Afirmação de que o Arguido conduzia sob o estado de influenciado, e que não lhe permitia conduzir em segurança, é uma afirmação conclusiva, não referindo a sentença quais os factos, que lhe permitiram retirar, tal conclusão.

42.º Não presumido a lei que, após o consumo de estupefacientes não existem condições necessárias para a condução de veículos, não se pode afirmar, sem produção de prova adicional ao obvio, que ocorrendo um acidente, este ocorreu em consequência de uma conduta culposa do condutor que apresenta consumo de estupefacientes, tal foi necessariamente a causa do acidente, ou se possa presumir que o foi! Ainda que o acidente se tenha dado por um imprevisto ou descuido do condutor, como o mesmo referiu, teria sempre de se ter provado o nexo de causalidade entre o referido consumo e o imprevisto ou descuido do Arguido.

IV- DA FALTA DE FUNDAMNETAÇÃO DA SENTENÇA

43.º De acordo com o artigo 374.º do CPP, a sentença, além dos requisitos formais ali expressamente previstos, deve incluir a fundamentação que consiste claramente na enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. A lei impõe assim que, o Tribunal não só dê a conhecer os factos provados e não provados, mas também que explicite expressamente o porquê da decisão tomada.

44.º A fundamentação da decisão há-de permitir ao Tribunal de recurso uma avaliação cabal e segura da razão da decisão adotada e do processo lógico--mental que lhe serviu de suporte.

45.º Nos termos do artigo 379.º nº , alínea a), é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º, ou seja a falta da enumeração dos factos provados e não provados gera a nulidade da sentença. Nulidade essa que se arguí para todos os efeitos legais

V - DA PENA ACESSÓRIA

46.º Foi o Arguido condenado ainda na pena acessória de um ano de proibição de conduzir.

47.º Da leitura da sentença, resulta que a Meritíssima Juiz formulou um juízo de perigosidade com base apenas no facto concreto gerador da punição, não contextualizando a personalidade do agente, os transtornos de que sofre, do meio no qual se integra, na identidade do facto, e nos motivos e atitudes posteriores, tendo-se limitado a fixar a pena acessória, sem aludir à individualidade do Arguido.

48.º A graduação da medida concreta da pena acessória é efectuada em função dos mesmos fatores que determinam a graduação da pena principal, ou seja nos termos do disposto no artigo 71.º do Código Penal, preceito este também violado pela decisão recorrida, com a excepção de que a finalidade a atingir é mais limitada, dado que a sanção em causa tem apenas em vista prevenir a perigosidade do agente,

49.º A condenação do Arguido pelo crime de condução perigosa, não basta por si só para justificar a sua aplicação, tendo presente que essa sanção poderá ter reflexos e até condicionar o desempenho profissional de quem a ela é sujeito.

50.º Da leitura da sentença, resulta que a Meritíssima Juiz formulou um juízo de perigosidade com base apenas no facto concreto gerador da punição, não contextualizando a personalidade do agente, os transtornos de que sofre, do meio no qual se integra, na identidade do facto, e nos motivos e atitudes posteriores ao cometimento dos factos.

51.º Só após a formulação desse enquadramento, poderia a Meritíssima Juiz elaborar o seu juízo de prognóstico criminal, determinando a conexão existente entre os sintomas da perigosidade e a previsão de repetição do facto. Aliás da sentença nenhum facto se pode retirar que, faça criar a convicção de existir o referido perigo de reiteração, exigindo-se uma fundamentação que é completamente omissa na fixação da pena acessória, na douta sentença de que ora se recorre, sob pena da expressa violação do artigo 30. 0 n. 0 4 da CRP que determina que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.

52.º Com este preceito o legislador quis impedir que à condenação em certas penas acresça, de modo automático, por efeito direto da le, uma outra sanção da mesma natureza, independentemente de decisão judicial. Neste sentido Ac n. 0 376/2018 do tribunal Constitucional.

53.º As penas acessórias são uma consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas que revestem autonomia em relação a esta. Não um efeito da pena, nem uma sua consequência automática.

54.º Nos autos não existe sequer relatório social elaborado, não foram efectuadas diligências, ou solicitados elementos que habilitassem o julgador a aferir da personalidade do Arguido, e em que medida tal pena acessória se poderia revelar útil, como forma de acautelar os fins das penas, que reside, essencialmente, na prevenção de futuros comportamentos análogos.

55.º Por último, e por uma questão de cautela de patrocínio, sempre se dirá que a pena acessória aplicada ao arguido, a manter-se, é excessiva e desadequada aos fins da punição violando o disposto no artigo 71.º n.º 2 e 3 e 50.º do CP, devendo aproximar-se do mínimo

56.º Todas as normas citadas nas presentes conclusões foram violadas pela decisão recorrida, designadamente o artigo 291.º n.º 1, alínea a) e b) e 69.º n.º 1 b), do Código Penal, o artigo 163.º do CPP. Artigo 32.º ,n.º 2 da CRP, 410. 0 n. 0 2 CPP, artigo 81. 0 n. 0 5 do CE.

Termos em que, com o douto suprimento de Vs. Ex.as se pede a revogação da decisão recorrida, com a absolvição do Arguido pela prática do crime p. e p. no artigo 291. 0 do Código Penal, e consequentemente da pena acessória aplicada.

Ou caso assim, se não entenda, que se revogue a decisão recorrida, com a declaração das invocadas nulidades da douta sentença, com a s legais consequências.

Caso ainda assim se não entenda, não deverá haver lugar à aplicação de qualquer pena acessória a manter-se a condenação.

Nestes termos em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos requeridos, assim se fazendo a costumada Justiça.


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            Foi admitido o recurso nos termos do despacho proferido a 09.12.2024.


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I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação, o Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, não apresentando conclusões.


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I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido de que [transcrição]:

“(…) Não se verificam circunstâncias que obstem ao conhecimento do recurso.


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Apreciação

Dos fundamentos dos recursos -dos vícios que podem afectar as decisões – conceitos gerais

Sendo o julgamento já efectuado e vertido na motivação relativa à matéria de facto o ponto de partida de análise para o tribunal de recurso, importará sempre referir que, no que tange à valoração e à impugnação da matéria de facto, os recursos em processo penal não permitem a realização de um segundo julgamento global de toda a prova produzida como se não tivesse existido julgamento anterior - os recursos, nomeadamente os que incidem sobre matéria de facto, terão sobretudo em vista a detecção e a correcção de erros, de vícios, de raciocínios ilógicos na apreciação de determinada prova ou do recurso a provas proibidas.

Os recursos são intervenções pontuais para melhor alcançar a justiça, havendo vasta jurisprudência que vem considerando que é na audiência de julgamento em primeira instância que o facto é revelado de forma e em circunstâncias que não mais poderão ser repetidas, aí acontecendo a plenitude da imediação e da oralidade da prova, pelo que não deve perspectivar-se o recurso como um novo julgamento, anulando o que ali foi efectivamente realizado.

Por outro lado, as nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma – cf. acórdão do supremo tribunal de justiça de 3/03/2021, acessível em www.dgsi.pt.

Quanto aos vícios previstos no artigo 410º do código de processo penal, sempre de conhecimento oficioso, cumpre dizer o seguinte:

-a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada refere-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada), ocorrendo este vício quando da factualidade provada resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição.

-a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ocorrem quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados.

-o erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Ocorre quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão e verifica-se quando, pelo menos, a prova em que se baseou a decisão recorrida não poderia fundamentar a decisão do tribunal sobre essa matéria de facto.

Por fim, o erro de julgamento consiste na errada apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento. Existe erro de julgamento quando, por exemplo, o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ter sido considerado não provado, ou o inverso. O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal ad quem, nos termos dos artigos 412º, n.º 3, e 431º, al. b), do código de processo penal, não se reconduz a qualquer situação em que se pugne pela diferente valoração da prova produzida, mas antes a um erro flagrante do tribunal que, em função das provas, julgou erradamente, de forma ostensiva e clamorosa, a matéria de facto. Para sustentar um erro de julgamento, não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito, nem configura erro de julgamento a circunstância de o tribunal, com base na prova produzida, ter formado a sua convicção em sentido divergente da convicção do recorrente.

A jurisprudência dos tribunais superiores vem apontando no sentido de que a sindicância deste erro não se basta com a circunstância de os elementos probatórios apontados na impugnação de facto permitirem a consideração de uma realidade alternativa.

Exige a lei, para demonstração da existência de um erro de julgamento, a referência “às concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida”, o que significa o inarredável reconhecimento de que a prova pode permitir diversas soluções. De tudo decorre que, se a solução encontrada pelo tribunal estiver fundamentada e tiver acolhimento nas regras da experiência, não poderá ser afastada em recurso, porquanto foi assumida pelo julgador no âmbito do princípio da sua livre convicção.

Tudo o que acima se enunciou está bastamente referido em doutrina e jurisprudência vária, cuja indicação expressa aqui nos dispensamos de fazer.


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O caso - a nossa posição

Questão prévia - do incumprimento do ónus de impugnação especificada

Na resposta, alega o Ministério Público que não foi cumprido o ónus da impugnação especificada.

E é sabido que, visando-se com o recurso em que se impugne (amplamente) a matéria de facto, o despiste e a correcção de erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se-lhe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estipulando o artigo 412º, nº 3, do código de processo penal que:

“Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:

- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

-As provas que devem ser renovadas”.

Essa especificação dos concretos pontos de facto constitui-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença e que se entende que foram incorrectamente julgados - ónus de impugnação especificada, que obriga a uma indicação pontual, um por um, dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente provados e não provados, com referência expressa às concretas provas que levam a solução diversa da recorrida, bem como às provas que devem ser renovadas.

A impugnação só se mostrará observada com a indicação expressa do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que o recorrente considera incorrectamente julgado, não sendo bastante a referência a todos ou alguns dos factos correspondentes aos pontos/itens da sentença.

A este propósito, cf. acórdão de 14/7/2010 - processo n.º 508/07.7GCVIS.C1- , deste tribunal da relação de Coimbra, publicado em www.dgsi.pt, onde se considera que o recorrente, para além da indicação das provas concretas, terá de proceder de uma das seguintes formas:

-Reproduzir o conteúdo da prova que, para o fim em vista (impugnação dos concretos pontos de facto), considere relevante;

-Expor, ainda que em súmula, os segmentos pertinentes das declarações/depoimentos; ou

-Situar objectivamente o segmento da declaração/depoimento em causa por referência a específicas circunstâncias ocorridas.

Deve, ainda, o recorrente explicar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida.

Vistas a motivação e as respectivas conclusões, conclui-se que não respeitam o preceituado no artigo 412º ex vi artigo 417º do código de processo penal.

Nem na argumentação expendida na motivação, nem nas conclusões, o recorrente indica, com suficiência, os específicos segmentos da prova gravada, que levariam à conclusão que aponta e que pretende.

E, pretendendo-se essa impugnação ampla da matéria de facto, sequer basta transcrever excertos das gravações; é necessário que se indiquem onde estão as discrepâncias com o decidido.

Ora, nenhuma destas exigências está cumprida, disso devendo retirar-se consequências quanto à eventual pretensão de impugnação ampla dos factos assentes - cf. artigos 417º, nº 3, e 420º, al. c), do código de processo penal.


**

Sem prejuízo e porque, ainda assim, se percebe a intenção do recurso, sendo que refere a conclusão da prova pericial do INML e indica as declarações do arguido (embora, de modo genérico) como argumentos essenciais, no seu entender, para a defesa da sua argumentação:

Com os pressupostos acima enunciados acerca dos fundamentos dos recursos e dos vícios que podem afectar as decisões, designadamente os previstos no artigo 410º do código de processo penal, lida a sentença e vista a prova, não encontramos contradição, insuficiência ou erro de apreciação que permitam considerar verificados quaisquer dos aludidos vícios, de conhecimento oficioso, como acima se referiu.

O tribunal procedeu à apreciação da globalidade da prova do processo e da que foi produzida em audiência de julgamento, explicando o raciocínio que levou à condenação do arguido por aqueles crimes, e fundamentou a sua decisão.

A motivação de facto, considerando a prova produzida, bem como a subsunção dos factos ao Direito não merecem censura, máxime no que tange à matéria factual dada como prova

Uma palavra quanto ao princípio da livre apreciação da prova, ainda que sabido em que consiste:

É unânime na doutrina e na jurisprudência que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido; tendencialmente, todas as provas valem o mesmo e o tribunal apreciá-las-á segundo a sua livre convicção, ou seja, com a liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação dada pelo treino profissional.

O que se exige é a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, no sentido da indicação das razões que levaram o tribunal a credibilizar determinados meios de prova, designadamente, com referência à razão de ciência das testemunhas - trata-se de um livre conhecimento, vinculado a estritos critérios de objectividade, lógica e motivação.

É, portanto, irrelevante argumentar sobre um qualquer desmesurado peso que determinado depoimento mereceu face a outro, pois que, não estando consagrado o regime da prova vinculada, o específico peso que um ou outro depoimento tem no processo de formação da convicção depende única e exclusivamente do julgador.

Nada impede que, face à oposição de versões, como ocorre na esmagadora maioria dos julgamentos, a convicção do juiz se forme com base num único meio de prova - v.g. as declarações do arguido ou do assistente ou, ainda, o depoimento de uma única testemunha -, ainda que em sentido contrário sejam as declarações ou os depoimentos de outros e, porventura, maioritários meios de prova.

A “garantia de legalidade da «livre convicção» a que alude o artigo 127.º do CPP, terá de bastar-se com a necessária explicitação objetiva e motivada do processo da sua formação, de forma a ficar bem claro não só o acervo probatório (…), como também o processo lógico que a partir dele o tribunal desenvolveu para chegar onde chegou, nomeadamente da valoração efetuada, enfim, da razão de ser do crédito ou descrédito dado a este ou àquele meios de prova.” – cf. o já antigo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/11/2004 (processo n.º 04P3182) -, não podendo esquecer-se que a valoração das provas cabe, em primeira linha, ao tribunal perante o qual foram produzidas, sendo que não lhe está vedado o recurso à prova indirecta, baseada em indícios constituídos por todas as provas conhecidas e apuradas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém conclusão firme, segura e sólida, posto que os mesmos resultem comprovados por prova directa, de natureza acusatória, plural, contemporâneos do facto punível e relacionados entre si.

Regressando ao caso:

Apresentando-se a fundamentação esclarecedora sobre as provas de que o tribunal se socorreu para chegar à responsabilidade do arguido e, bem assim, como as conjugou entre si, seguindo um processo lógico e racional, e revelando-se o juízo de inferência razoável, respeitando a lógica da experiência da vida, e não já arbitrário, absurdo ou infundado, não ocorre violação do princípio da livre apreciação da prova.

Limitando-se o recorrente a discutir o processo lógico usado pelo tribunal para formar a sua convicção, o recurso terá de improceder.

A condenação está assente em prova diversa, máxime nas declarações do arguido - embora sem aceitação integral da versão apresentada como justificação do despiste/entrada de insecto no veículo - e documental/pericial, que o tribunal aceitou como credível - cf. a motivação da decisão de facto.

De notar que a alegada não inquirição de testemunhas se deveu à confissão, ainda que parcial, dos factos pelo arguido, na sequência do que foi prescindida essa inquirição, sem oposição da sua mandatária - cf. acta de audiência de discussão e julgamento de 16/10/2024.

Não ficando o tribunal em dúvida sobre a responsabilidade criminal, é destituída de fundamento a alegação da violação do in dubio pro reo.

Acresce que, considerados os princípios da oralidade e da imediação, inerentes a qualquer julgamento, ao tribunal de recurso não cabe fazer uma reavaliação da percepção que o tribunal de julgamento retirou da prova que foi produzida. Essa apreciação circunscrever-se-á aos erros de julgamento que, de modo inequívoco, forem identificados na decisão da matéria de facto perante a prova identificada.

E nada do que vem alegado quanto à pretensa má apreciação da prova está reflectido na decisão.

No mais, sendo que não vem contestado o concurso dos crimes em questão:

Da verificação do crime de condução perigosa

Sem pretendermos alongar-nos na análise do tipo legal, tanto mais que o tribunal já sobre ele se debruçou, sabe-se que a verificação do perigo concreto para a vida ou para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado a que se refere o artigo 291º do código penal tem, naturalmente, de se retirar das concretas circunstâncias do caso.

Sabe-se, também, que este ilícito típico apresenta duas categorias alternativas de comportamentos capazes de preencher o tipo: uma primeira, relativa à ausência de condições para a condução e a segunda relativa à violação grosseira das regras de circulação automóvel, estando sempre subjacente o bem jurídico protegido - a segurança rodoviária, enquanto tutela reflexa e circunscrita à medida da protecção de bens individuais, como a vida, integridade física e património de elevado valor. (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11/02/2009 - processo 137/06.2GBSRT.C1, publicado no mesmo sítio da internet).

Porém, não basta que um condutor viole as regras de trânsito especificadamente previstas no tipo ou que conduza sob influência de álcool ou de substâncias estupefacientes; há que atender às circunstâncias concretas da condução e da circulação rodoviária, relacionando-se a violação das regras de circulação rodoviária com o perigo previsível; e exige-se que o perigo para a vida ou para a integridade física seja provocado, isto é, causado pela conduta do arguido; se bastasse a violação das regras estradais, o ilícito típico seria um crime de perigo abstracto, e não é.

Seguro é que a violação das regras de circulação tem de ser uma violação grosseira para que o tipo legal se consubstancie. E essa violação grosseira, à falta da respectiva designação no código penal, acontece quando, em cada caso, fica demonstrado um grau especialmente elevado da negligência, exigindo-se, neste tipo de ilícito, uma acção particularmente perigosa, revelando o agente uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido – cf. Professor Doutor Figueiredo Dias e Nuno Brandão in Comentário Conimbricense do Código Penal.

Quanto à questão central do recurso, que se prende com a prova de o arguido não se encontrar em condições de conduzir com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica - cf. al. a) do nº 1 artigo 291º do código penal - cumpre dizer que o tipo legal em causa, sendo de perigo comum, é um crime contra a segurança das comunicações rodoviárias.

Com este normativo (e também com o previsto no artigo 292º), visa-se criminalizar a condução sob a influência de estupefacientes, nos casos em que estes causem uma diminuição da capacidade do condutor para essa actividade – é condição da verificação do crime de que quem conduza veículo sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica, não o faça em condições de segurança.

Não basta, pois, a presença de substância psicotrópica no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir com segurança, facto a apurar e a constar da matéria de facto - vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/04/2011 – processo 1017/08.2TAAVR.C2 -, publicado em www.dgsi.pt.

Decorrendo essa condição, esse requisito de verificação do crime, da conduta do arguido, haverá que ponderar as circunstâncias do caso, a lógica e o senso comum, tudo conjugado as regras da experiência e com os divulgados e comuns conhecimentos dos efeitos do produto estupefaciente em causa nas pessoas, máxime nas suas funções sensoriais:

“A valoração sobre se aquele consumo impedia ou não o condutor de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.” – in acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10/11/2020 – processo 253/18.8GBSLV.E1 – publicado em www.dgsi.pt.

Neste mesmo acórdão escreveu-se que “(…) não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução. Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável, ou pelo menos, faria recair a demonstração do crime naquilo a que comummente se denomina por prova diabólica. (…)”. (nosso bold e sublinhado)

E a este entendimento não obsta o acórdão uniformizador de jurisprudência citado no recurso, porquanto respeita a questão jurídica diversa - o exercício do direito de regresso por seguradora -, sendo também diversa a concreta factualidade ali apurada.

Na lei 18/2007, de 17/05, estão indicados, de modo hierarquizado, os meios de prova/exames/rastreios necessários para a detecção de substâncias psicotrópicas, só sendo realizado exame médico como modo especial de demonstração da infracção - relativamente ao modo normal do exame de confirmação seguinte a exame de rastreio positivo - quando, após repetidas tentativas de colheita, não se conseguir retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste – cf., também a Portaria 902-B/2007, designadamente o ponto 25 da Secção III e Anexo VII.

O ilícito típico consuma-se, portanto, com a condução de um veículo na via pública com estupefaciente no sangue, sem condições de o fazer em segurança, uma vez que, nessas circunstâncias, existe forte probabilidade de, em consequência da condução nesse estado, resultarem danos em bens jurídicos e, designadamente, perigo para a vida ou integridade física das pessoas.

Com base numa observação empírica, legitimamente presume o legislador que a situação de condução nesse estado é perigosa em si mesma, tendo em vista bens jurídicos penalmente tutelados, sendo certo que o bem jurídico protegido pela norma é a segurança da circulação rodoviária - cf. Paula Ribeiro de faria in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II.

Ora, fazendo a conjugação dos factos provados com a respectiva motivação, contém a sentença a factualidade provada necessária à condenação pelo crime de condução perigosa:

Factos provados:

“(…) 8. Sucede que, naquele dia, hora e local, o arguido conduzia o veículo ..-IO-.., após ter consumido produto estupefaciente, apresentando uma concentração de tetrahidrocanabinol (THC) na corrente sanguínea de, pelo menos, 2,3ng/ml (3,6±1,3 ng/ml);

9. Por conseguinte, junto ao km 29,560, da EN ...42, o arguido efetuou uma manobra, que consistiu no desvio da trajetória do veículo que conduzia para a esquerda, invadindo a via de trânsito de sentido oposto, onde nesse momento circulava o veículo ..-..-XA, conduzido pelo ofendido BB, que se fazia acompanhar pela sua esposa CC;

10. Desse desvio de trajetória efetuado pelo veículo conduzido pelo arguido, resultou numa colisão frontal angular com o automóvel ..-..-XA, conduzido pelo ofendido BB;

(…)

17. O acidente ficou a dever-se à manifesta desatenção do arguido AA que permitiu que o automóvel por si conduzido invadisse a via de trânsito de sentido oposto, colidindo com o automóvel de matrícula ..-..-XA;

18. Além do mais, o arguido conhecia o seu estado e sabia que estava sob a influência de produto estupefaciente (cannabis), o que não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o aquele veículo, o que efetivamente fez;

19. Ao agir do modo descrito o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo as características do veículo que conduzia e da via em que seguia e bem sabendo que, fazendo-o então sob o efeito de produtos estupefacientes, a sua conduta era suscetível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efetivamente colocou;

20. Agiu o arguido com manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis a quem conduz veículos automóveis, tanto mais que desenvolvia uma atividade perigosa, assim vindo a causar um resultado que poderia e deveria prever; (…)

E no capítulo da motivação:

“(…) o arguido confessou parcialmente os factos, alegando apenas que a causa dos mesmos foi a distração causada pela entrada de um inseto no veículo e não o consumo de estupefacientes, que já teria ocorrido há vários dias. Porém, do exame pericial elaborado pelo INML – prova técnica que o Tribunal não põe em causa – resulta que o consumo de estupefaciente ocorreu em data próxima da ocorrência dos factos e que este tipo de estupefaciente reflete-se e limita o exercício da condução de veículos.

Efetivamente, atento o circunstancialismo de tempo e lugar acima mencionado, donde se destaca a boa visibilidade, as condições atmosféricas, o estado da via, circunstâncias que o arguido conhecia, e não se provando a ocorrência de qualquer obstáculo ou causa imprevisível que pudesse motivar a condução adoptada pelo arguido, deve concluir-se, de acordo com as regras da experiência comum, que tal embate era evitável, não fora o consumo de estupefacientes.

Assim, de acordo com a prova pericial e com as regras da experiência comum é possível concluir que o acidente de ficou a dever ao consumo de estupefacientes por parte do arguido. (…)” (bold nosso)

Consta, portanto, da sentença que a condução sob influência do consumo de estupefacientes influenciou a produção do acidente, pois que tornou o condutor incapaz de conduzir com segurança.

De acordo com as regras da experiência e com os conhecimentos sobre a nefasta influência do consumo de substâncias psicotrópicas na condução, resulta um nexo de causalidade entre aquela influência de estupefacientes e o acidente ocorrido, pois que o tribunal considerou provado que a substância detectada no sangue teve efeitos perturbadores na aptidão física, mental e psicológica do arguido e que ele sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança.

Sem prejuízo,

a não se entender deste modo, sempre restará a condenação do arguido pelo crime de condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas previsto no artigo 292º, nº 2, do código penal, ao qual também corresponde a pena acessória prevista no artigo 69º, devendo então ser cumprido o disposto no artigo 424º, nº 3, do código de processo penal.

Da falta ou deficiência de fundamentação e da omissão de pronúncia

Nos termos do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei – cf. artigo 97º, nº 5, do código de processo penal.

No que respeita às sentenças, estatui o artigo 374º, n.º 2, do mesmo código que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

A fundamentação da sentença deve permitir o convencimento do arguido, em particular, e da comunidade jurídica, em geral, relativamente à bondade da decisão, tornando-a transparente e apreensível, permitindo ainda a sua controlabilidade em sede de recurso, designadamente no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto - cf. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2ª ed, p. 206, Almedina.

E, como é bastamente referido em inúmera jurisprudência, a exigência legal do exame crítico das provas satisfaz-se com a «enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» - cf. acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 16/03/2005, processo n.º 05P662.

A falta de fundamentação - de facto e de direito - de uma decisão só ocorre falta quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respectivo destinatário a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade.

Quanto à omissão de pronúncia, vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência, nomeadamente pelo supremo tribunal de justiça, que só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

A pronúncia, cuja omissão determina a consequência prevista no artigo 379º, nº 1, al. c), do código de processo penal – nulidade da sentença – deve incidir sobre os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.

Da não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte, podendo, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou error in iudicando, mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.

Nesta conformidade, cremos que desses vícios não padece a decisão, porquanto o tribunal conheceu das questões de que lhe cumpria conhecer e, de modo bastante, fundamentou a sua decisão.

As penas - parcelares e única e a pena acessória - aplicadas

Vistas as molduras penais abstractas correspondentes e as condições pessoais do arguido, as penas mostram-se adequadas e proporcionais à gravidade dos crimes cometidos e às sentidas e elevadas exigências de prevenção geral e especial.

Foram consideradas todas as coordenadas legais previstas para a determinação das penas.

Na determinação da pena acessória, importa dar especial importância à prevenção especial, nomeadamente à consciencialização do arguido para pautar a sua conduta de acordo com o Direito, sendo que essa pena acessória não tem de ser proporcional à pena principal, uma vez que os objectivos de política criminal são, também eles, distintos.

Aqui, cumpre assinalar que a sinistralidade rodoviária em Portugal assume números assustadores e tem, muitas das vezes e como sucedeu no caso, consequências dramáticas.

A pena acessória é de aplicação obrigatória para os crimes dos artigos 291º e 292.º do Código Penal, por se entender que no âmbito da circulação rodoviária cumpre um importante papel no que tange às necessidades de prevenção especial e geral de intimidação - vide, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de justiça 4/2017, que, embora de fixação de jurisprudência noutra questão, aborda exaustivamente as questões atinentes à proibição de conduzir.

E essa penalização de proibição de conduzir veículos automóveis não viola quaisquer direitos do arguido, designadamente o direito ao trabalho, apenas comportando uma proibição temporária do exercício da condução, adequada, proporcional e até necessária à salvaguarda de outros valores imanentes à nossa sociedade, também com dignidade constitucional e legal, como sejam a vida e a integridade física dos condutores e dos outros utentes das vias estradais - cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 7712/20222, processo 314/22.9PFVNG.P1, acessível em www.dgsi.pt.

Do relatório social

O relatório social pode revestir relevância para a operação da determinação da pena.

Porém, não sendo obrigatório, a sua não realização não acarreta o cometimento de qualquer nulidade ou irregularidade - vide, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1/06/2022, processo 218/21.2GCCVL.C1, publicado em www.dgsi.pt.

No mais, adere-se a resposta do Ministério Público na primeira instância.

A sentença está fundamentada, isenta de vícios e não viola normas legais ou princípios de Direito.

Em conclusão, aderindo, no essencial, ao que vem respondido pelo Ministério Público na primeira instância, somos de parecer que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, sem prejuízo da aventada e eventual consideração da condenação pelo crime previsto no artigo 292º, nº 2, do código penal.

A magistrada do Ministério Público/Procuradora-Geral adjunta (…)
a) O Recurso interposto pelo Arguido DD deve ser julgado improcedente.
b) O recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente e, consequentemente, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o Arguido DD numa pena única não inferior a 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa (no montante diário fixado na sentença recorrida).


*

I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.


*


I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento dos recursos em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:


»


II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que aludem os artigos 379º e 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95].

Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

- Erro notório na apreciação da prova – art. 410º, nº 2 , al. c) do Código de Processo Penal, quanto aos pontos 8,17,18,19, 20, 21, 22 e 23.

- Violação do princípio in dubio pro reo.

- Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão – art. 410º, nº 2 al. a) do Código de Processo Penal.

- Da nulidade da sentença por inexistência de fundamentação nos termos dos arts. 374º, nº 2 e nº 3 al. b) e 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal quanto aos factos 7, 8, 18, 19 e 23.

- Da nulidade da sentença por não ter enumerado nos factos provados e não provados os factos alegados pelo arguido no requerimento de abertura de instrução e que resultaram das suas declarações – art. 379º, nº al. a) e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.

- Do excesso e desadequação da pena aplicada ao crime previsto e punível pelo art. 291º do Código Penal.

- Da omissão de fundamentação quanto à pena acessória, cuja condenação não deve manter-se.

- Do excesso e desadequação da pena acessória fixada.

As questões serão apreciadas por ordem de precedência lógica.


*
II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“Factos provados

Encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

1. No dia 21 de janeiro de 2022, pelas 14h40m, o arguido conduzia o automóvel da marca BMW, com a matrícula ..-IO-.., na Estrada Nacional ...42, no sentido ...;

2. No sentido inverso circulava o ofendido BB, acompanhado vítima CC, sua esposa, conduzindo o automóvel da marca ..., com a matrícula ..-..-XA.

3. Neste local, a via configura uma reta em patamar, composta por duas vias de trânsito em sentido oposto, separadas pela marca horizontal M2 — linha descontinua — e delimitada pela marca horizontal M 19 — linhas guia -, inexistindo na via qualquer obstrução visual que obste ao exercício da condução;

4. A via de rodagem possui largura de 11,20 metros na sua totalidade, com bermas pavimentadas, em piso betuminoso, em razoável estado de conservação, encontrando-se limpo e seco, inexistindo, naquele momento, qualquer obstáculo que impedisse a livre circulação automóvel;

5. O limite de velocidade vigente nesta via é de 90 Km/h, em ambos os sentidos de marcha;

6. Naquele dia e hora a visibilidade era boa, o dia encontrava-se claro e com boas condições climatéricas;

7. Na referida ocasião, o arguido circulava enquadrado na sua via de trânsito, no sentido ..., da EN ...42, enquanto o ofendido circulava no sentido oposto, igualmente enquadrado na sua hemi-faixa de rodagem;

8. Sucede que, naquele dia, hora e local, o arguido conduzia o veículo ..-IO-.., após ter consumido produto estupefaciente, apresentando uma concentração de tetrahidrocanabinol (THC) na corrente sanguínea de, pelo menos, 2,3ng/ml (3,6±1,3 ng/ml);

9. Por conseguinte, junto ao km 29,560, da EN ...42, o arguido efetuou uma manobra, que consistiu no desvio da trajetória do veículo que conduzia para a esquerda, invadindo a via de trânsito de sentido oposto, onde nesse momento circulava o veículo ..-..-XA, conduzido pelo ofendido BB, que se fazia acompanhar pela sua esposa CC;

10. Desse desvio de trajetória efetuado pelo veículo conduzido pelo arguido, resultou numa colisão frontal angular com o automóvel ..-..-XA, conduzido pelo ofendido BB;

11. Em consequência desta colisão, e de toda a dinâmica subsequente, o veículo com a matrícula ..-IO-.., conduzido pelo arguido, sofreu uma deformação da frente esquerda e rotação para a direita, ficando imobilizado no eixo da via, ocupando parcialmente as duas vias de trânsito, numa posição final com um ângulo superior a 90 graus relativamente ao sentido de marcha;

12. Por sua vez, o veículo ..-..-XA, conduzido pelo ofendido, após a colisão, devido às forças sofridas durante o impacto e que provocaram a deformação frente esquerda do veículo, foi projetado para a retaguarda, ficando imobilizado na berma do lado direito e sensivelrnente a 45 graus, relativamente ao seu sentido de marcha;

13. Como consequência direta e necessária da colisão entre os dois veículos, e da dinâmica descrita, resultaram lesões internas na passageira do automóvel de matrícula ..-..-XA, CC, que lhe determinaram a morte;

14. O Relatório de Autópsia Médico-Legal conclui que: "a morte de CC foi devida às lesões traumáticas toraco-abdominais descritas. Tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuado como tal, podendo ser devidas a acidente de viação (…).

15. De igual forma, em consequência direta e necessária da colisão entre os dois veículos, e da dinâmica descrita, resultaram no ofendido BB as seguintes lesões: "fratura-luxação do punho direito; e fratura diáfise fémur esquerdo – com tratamento cirúrgico, intervencionado em 29.01.2021”.

16. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em 416 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral (416 dias), resultando ainda a título sequelar permanente as cicatrizes nos membros superior e inferior esquerdos que não desfiguram gravemente a vítima;

17. O acidente ficou a dever-se à manifesta desatenção do arguido AA que permitiu que o automóvel por si conduzido invadisse a via de trânsito de sentido oposto, colidindo com o automóvel de matrícula ..-..-XA;

18. Além do mais, o arguido conhecia o seu estado e sabia que estava sob a influência de produto estupefaciente (cannabis), o que não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o aquele veículo, o que efetivamente fez;

19. Ao agir do modo descrito o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo as características do veículo que conduzia e da via em que seguia e bem sabendo que, fazendo-o então sob o efeito de produtos estupefacientes, a sua conduta era suscetível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efetivamente colocou;

20. Agiu o arguido com manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis a quem conduz veículos automóveis, tanto mais que desenvolvia uma atividade perigosa, assim vindo a causar um resultado que poderia e deveria prever;

21. Ao não atuar de acordo com as regras de cuidado que conhecia e que era capaz de cumprir o arguido veio a colidir com o automóvel onde seguia a vítima CC e dessa forma provocou-lhe a morte;

22. De igual forma, ao não atuar de acordo com as regras de cuidado que conhecia e que era capaz de cumprir, o arguido sabia que a sua conduta era suscetível de provocar no ofendido BB as lesões supra descritas, o que efetivamente se concretizou;

23. O arguido tinha consciência que conduzia com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária (condução sob influência de substâncias psicotrópicas) e que a sua conduta era suscetível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efetivamente colocou.

24. Atuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.

Da discussão da causa, mais se provou, com interesse para a decisão, que:

25. O arguido é engenheiro mecânico e aufere cerca de 1900€ mensais.

26. Vive sozinho em casa arrendada, por cuja renda despende 600€ mensais.

27. O arguido tem carta de condução de veículos ligeiros de passageiros há cerca de 20 anos.

28. O arguido não tem antecedentes criminais.

29. O arguido tem registada, no seu registo individual de condutor, uma infração de natureza rodoviária praticada em 06.04.2021 (Condução de automóvel ligeiro, fora localidade, +30 até 60Km/h lim.sinaliz.).

30. O arguido mostrou-se arrependido.

3.2 Factos não provados

Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa.

3.3 Motivação

O Tribunal formou a sua convicção, analisando, de forma crítica e conjugada, o conjunto das provas produzidas em audiência de julgamento, de harmonia com a regras da lógica e da experiência comum, designadamente o teor das declarações do arguido, bem como a prova documental e pericial junta aos autos.

Concretizando, o arguido confessou parcialmente os factos, alegando apenas que a causa dos mesmos foi a distração causada pela entrada de um inseto no veículo e não o consumo de estupefacientes, que já teria ocorrido há vários dias. Porém, do exame pericial elaborado pelo INML – prova técnica que o Tribunal não põe em causa – resulta que o consumo de estupefaciente ocorreu em data próxima da ocorrência dos factos e que este tipo de estupefaciente reflete-se e limita o exercício da condução de veículos.

Efetivamente, atento o circunstancialismo de tempo e lugar acima mencionado, donde se destaca a boa visibilidade, as condições atmosféricas, o estado da via, circunstâncias que o arguido conhecia, e não se provando a ocorrência de qualquer obstáculo ou causa imprevisível que pudesse motivar a condução adoptada pelo arguido, deve concluir-se, de acordo com as regras da experiência comum, que tal embate era evitável, não fora consumo de estupefacientes.

Assim, de acordo com a prova pericial e com as regras da experiência comum é possível concluir que o acidente se ficou a dever ao consumo de estupefacientes por parte do arguido.

Quanto ao elemento subjectivo, o Tribunal deu-o como provado com recurso às regras da lógica e da experiência comum, pois que, perante as referidas condições atmosféricas, era possível ao condutor atento, cuidadoso e experiente (sendo que o arguido, à data, tinha carta de condução há cerca de 20 anos), dar início atempado à travagem do veículo que conduzia ou desviá-lo da trajectória que o levou a embater no outro veículo, o que podia e devia ter feito, evitando o embate, por ter capacidade e experiência para o efeito, não prevendo, porém, o resultado verificado.

Quanto às consequências do embate, e ao nexo de causalidade entre o facto e o resultado morte, consideraram-se a Relatório de Autópsia Médico-Legal de CC, o Relatório do serviço de química e toxicologia do INML de fls. 59, o Relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 259, o Parecer do IMNL de fls. 315 e Informação clínica de fls. 239-249.

As características da via assentaram no Auto de Notícia de fls. 3; na Participação de acidente de viação de fls. 4; no Aditamento de fls. 52; no Aditamento à participação de acidente de viação — fls. 54-56; no Auto de exame ao local fls. 113-119; e no Relatório fotográfico de fls. 189-214.

No que respeita à habilitação do arguido para conduzir e ao registo de infracções estradais, levou-se em conta o teor da informação do IMTT e o registo individual de condutor do arguido.

No que concerne à situação familiar e profissional do arguido, consideraram-se as declarações por este prestadas, que se reputaram merecedoras de crédito.

No que diz respeito à ausência de antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos.


***


II.3- Apreciação do recurso
II.3.1 – Da Nulidade por falta de fundamentação dos pontos 7, 8, 18, 19 e 23 dos factos provados e da graduação pena acessória.

Invoca o recorrente o disposto no art. 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, alegando a inexistência de fundamentação, alegando que não se vislumbra como foi possível ao Tribunal chegar às conclusões da matéria de facto dada como provada nos pontos 7, 8, 18, 19 e 23 dos factos provados e da graduação da pena acessória aplicada.

Vejamos então:

O artigo 205º nº 1, da CRP determina que as decisões dos tribunais “…que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Na densificação deste princípio constitucional o legislador ordinário, no âmbito do processo penal, estabeleceu no artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal que na fundamentação devem “…ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

No artº 374º, nº2 do Código de Processo Penal estabelece-se que a sentença começa por um relatório, ao qual se segue a fundamentação «...que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.».

Por seu turno, o artº 379º do Código de Processo Penal preceitua, no seu nº1, al. a) que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º Código de Processo Penal.

A fundamentação, compõe-se, assim, de três partes distintas:

- a enumeração dos factos provados e não provados;

- a exposição dos motivos que fundamentam a decisão;

- a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quanto à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito. Os motivos de facto "…que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência" [cf. Acórdão do TC nº 680/98, proferido no processo nº 456/95 e publicado no DR II série  de 05.03.99]

O rigor e a suficiência do exame crítico haverão de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas do mesmo modo bastante, que sejam percetíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo.

Consiste, assim, na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção [cfr. acórdão do STJ de 30.01.2002, proc. 3063/01, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido os acórdãos do STJ de 3.10.2007, proc. 07P1779; de 19.05.2010, proc. 459/05.0GAFLG.G1.S1, de 17.09.2014, proc. 1015/07.3PULSB.L4.S1; de 14.12.2016, proc. 303/14.7JELSB.E1.S1; de 13.12.2018, proc. 308/10.7JELSB-L3.S1 e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt].

Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.

Contudo, não se exige, numa fastidiosa explanação, transformando o processo oral em escrito, que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, todo o raciocínio lógico seguido. A lei impõe, isso sim, uma enunciação suficiente, ainda que sucinta, para persuadir os destinatários e garantir a transparência da decisão.

Como se refere no Acórdão do TRC de 24.05.2023 [processo 56/13.6GBCNT.C2, disponível in www.dgsi.pt] “O dever de fundamentação não impõe ao julgador que proceda a uma relacionação exaustiva de cada um dos meios de prova em que se baseou para considerar provado cada um dos factos que assim considerou, bastando que a indicação e exame crítico da prova dê a conhecer com suficiência o percurso lógico e racional que efectuou em sede da sua apreciação e valoração.

Presidem critérios de razoabilidade, impondo-se mas ao mesmo tempo bastando, que seja apreensível o processo lógico e intelectual que lhe serviu de suporte e desde que torne percetível e sindicável, em instância de recurso, as razões da convicção do Tribunal do julgamento, quanto aos factos, não se verificará a nulidade emergente da falta de exame crítico das provas [Neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03 e Ac. do STJ de 3.10.2007, processo 07P1779, Ac. da Relação de Lisboa de 10.07.2018, processo nº 106/15.1PFLRS.L1-5, ambos disponíveis in www.dgsi,.pt e ainda Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º 3, p. 21 e segs.].

A sentença recorrida enumera os factos provados e os não provados, indica os meios de prova e as provas que considerou para a formação da sua convicção, analisa-as, correlaciona-as e valora-as e, por fim, indica o caminho que seguiu na formação da convicção, permitindo-nos acompanhar esse raciocínio e chegar aos factos provados, designadamente indicando as razões porque considerou em parte as declarações do arguido e as desconsiderou noutro segmento  e os documentos e prova pericial considerada, sendo que o tribunal a quo se fundamentou também nas regras da experiência comum na análise que efetuou de toda a prova recolhida, como ali deixou expresso.

Na verdade, na decisão recorrida – cingindo-nos aos pontos invocados - deu-se conta que para a formação da convicção se consideraram “formou a sua convicção, analisando, de forma crítica e conjugada, o conjunto das provas produzidas em audiência de julgamento, de harmonia com a regras da lógica e da experiência comum, designadamente o teor das declarações do arguido, bem como a prova documental e pericial junta aos autos.

Concretizando, o arguido confessou parcialmente os factos, alegando apenas que a causa dos mesmos foi a distração causada pela entrada de um inseto no veículo e não o consumo de estupefacientes, que já teria ocorrido há vários dias. Porém, do exame pericial elaborado pelo INML – prova técnica que o Tribunal não põe em causa – resulta que o consumo de estupefaciente ocorreu em data próxima da ocorrência dos factos e que este tipo de estupefaciente reflete-se e limita o exercício da condução de veículos.

Efetivamente, atento o circunstancialismo de tempo e lugar acima mencionado, donde se destaca a boa visibilidade, as condições atmosféricas, o estado da via, circunstâncias que o arguido conhecia, e não se provando a ocorrência de qualquer obstáculo ou causa imprevisível que pudesse motivar a condução adoptada pelo arguido, deve concluir-se, de acordo com as regras da experiência comum, que tal embate era evitável, não fora consumo de estupefacientes.

Assim, de acordo com a prova pericial e com as regras da experiência comum é possível concluir que o acidente se ficou a dever ao consumo de estupefacientes por parte do arguido.

Quanto ao elemento subjectivo, o Tribunal deu-o como provado com recurso às regras da lógica e da experiência comum, pois que, perante as referidas condições atmosféricas, era possível ao condutor atento, cuidadoso e experiente (sendo que o arguido, à data, tinha carta de condução há cerca de 20 anos), dar início atempado à travagem do veículo que conduzia ou desviá-lo da trajectória que o levou a embater no outro veículo, o que podia e devia ter feito, evitando o embate, por ter capacidade e experiência para o efeito, não prevendo, porém, o resultado verificado.

Quanto às consequências do embate, e ao nexo de causalidade entre o facto e o resultado morte, consideraram-se a Relatório de Autópsia Médico-Legal de CC, o Relatório do serviço de química e toxicologia do INML de fls. 59, o Relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 259, o Parecer do IMNL de fls. 315 e Informação clínica de fls. 239-249.

As características da via assentaram no Auto de Notícia de fls. 3; na Participação de acidente de viação de fls. 4; no Aditamento de fls. 52; no Aditamento à participação de acidente de viação — fls. 54-56; no Auto de exame ao local fls. 113-119; e no Relatório fotográfico de fls. 189-214.

Em suma, o Tribunal a quo, ainda que de uma forma sucinta, invocou as declarações do arguido e explicou as razões pelas quais não as considerou no segmento em que referiu que a distração foi causada por um inseto no veículo e que o consumo de estupefacientes já tinha ocorrido há vários dias, , invocando para o efeito a prova pericial realizada a análise que desta fez e as conclusões que retirou partindo das circunstâncias de tempo e lugar, destacando a visibilidade, condições atmosféricas, e o estado da via, dando conta que se tratavam de condições que o arguido conhecia e fazendo apelo às regras da experiência comum concluiu que “tal embate era evitável não fora o consumo de estupefacientes”.

Por outro lado estão mencionados os diversos documentos juntos aos autos que permitiram as aludidas afirmações, e quanto ao elemento subjetivo mais uma vez o tribunal esclareceu como concluiu pela sua verificação e em que termos.

Aliás como bem se salienta no acórdão do STJ proferido no processo nº 99P285, [disponível in www.dgsi.pt] a motivação da decisão de facto, seja qual for o conteúdo que se lhe dê, não pode ser um substituto do princípio da oralidade e da imediação no que tange à atividade de produção da prova, transformando-a em documentação da oralidade da audiência, nem se propõe refletir nela exaustivamente todos os fatores probatórios, argumentos, intuições, etc., que fundamentam a convicção ou resultado probatório.

Assim sendo, o tribunal – reiteramos ainda que de forma sucinta - deixou claro o percurso lógico racional que expendeu, sendo a fundamentação da matéria de facto clara e percetível, designadamente quanto a estes pontos da matéria de facto.

O que o recorrente não concorda é com a valoração da prova que o tribunal a quo efetuou, mas, essa discordância, ainda que legítima não se traduz, atento o já exposto, em falta fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o que, no caso dos autos, manifestamente não aconteceu, inexistindo, por isso, qualquer violação do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa ou dos arts. 97º, nº 5 ou 374º do Código de Processo Penal.

De modo, uma vez que da motivação do acórdão sob recurso decorre o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo, inexiste a invocada nulidade prevista no art. 379º, nº 1 al. a) por referência ao art. 374º, nº 2 do Código de Processo Penal.

No que diz respeito à graduação da pena acessória:

Na sentença a propósito da pena acessória prevista no art. 69º do Código Penal, a Mmª Juiz remeteu para os factores suprarreferidos e fixou em 1 (um) ano a pena acessória.

Refere o recorrente que inexiste qualquer fundamentação.

Não cremos que assim seja, na medida em que o que ocorreu foi que na decisão se remeteu para os factores que havia referido anteriormente e, muito concretamente, uma vez que estamos ainda dentro do ponto 5 da aludida sentença os factores que considerou na escolha e determinação das penas principais e na suspensão da execução da pena única encontrada.

Não se tratando da melhor técnica, não equivale ela a uma ausência de fundamentação, tanto mais que ainda que por remissão, foram concretamente analisados, entre o mais, o grau de ilicitude dos factos a gravidade das consequências da sua conduta, as exigências de prevenção geral a ausência de antecedentes criminais a sua inserção social, a confissão parcial dos factos e o arrependimento demonstrado.

Não ocorreu, pois, qualquer violação do disposto no art. 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que por remissão para os fundamentos anteriormente mencionados a sentença fundamentou a graduação da pena e fê-lo por referência aos fatores atendíveis.

Não se verifica, pois, também aqui a nulidade da sentença por falta de fundamentação.


II.3.2. Da Nulidade decorrente da não inclusão dos factos alegados pelo arguido no requerimento de abertura de instrução.

               Entende o arguido que ocorre a nulidade prevista no art. 379º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal, porquanto o tribunal à quo não transpôs para os factos provados ou não provados a versão do arguido apresentada no requerimento de abertura de instrução.

            Nos termos do art.º 374.º, n.º 2 do CPP, o dever de fundamentação da sentença exige a enunciação «como provados ou não provados, de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção e a responsabilidade civil, constantes da acusação ou da pronúncia e do pedido de indemnização cível e das respetivas contestações» [Cf. Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Processo Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5.ª edição atualizada, pág. 469, p. 8] .

            O requerimento de abertura de instrução, nos termos do disposto no art. 286ºdo Código de Processo Penal, designadamente quando requerido pelo arguido deve conter as razões de facto e de direito de discordância em relação à acusação e quando for o caso os atos de instrução que pretende sejam levados a cabo e os factos que com estes pretende provar. Este requerimento vai – sem prejuízo dos poderes de investigação do Juiz de instrução criminal - delimitar, juntamente com a acusação deduzida, o objeto do processo na fase de instrução.(sublinhado nosso).

            Transitando o processo para a fase de julgamento, abre-se nova possibilidade ao arguido para, querendo, através da contestação (art. 311º-B do Código de Processo Penal) apresentar as razões de facto e de direito que entender com vista a contrariar o despacho de pronúncia.

            Deduzindo contestação o Tribunal deve pronunciar-se sobre os factos ali alegados, a não ser que estes sejam irrelevantes. [Neste sentido o acórdão do TRC de 05.06.2024 –  processo nº 1683/20.0T9CLD.C1, disponível in www.dgsi.pt]. Considerando-se neste aresto que ocorrer omissão da pronúncia se for “lacunosa a enumeração dos factos provados e não provados” ferindo tal sentença “de nulidade (artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal. No mesmo sentido o Acórdão do TRL de 10.01.2013 [Processo nº 905/05.2JFLSB.L1-9, disponível in www.dgsi.pt].

            Porém, nos autos o arguido não deduziu contestação e apesar de resultar da motivação da respetiva sentença que o arguido nas suas declarações invocou que o desvio da trajetória do veículo ocorreu por força da entrada de um inseto para o habitáculo, o certo é que a resposta dada pelo tribunal às concretas causas desse desvio de trajetória, e a fundamentação utilizada, faz com que essa matéria fique prejudicada.

Assim, não se tratando de matéria alegada em contestação e não sendo relevante neste momento, para tal efeito, o conteúdo do requerimento de abertura de instrução, não ocorreu qualquer omissão de pronúncia ou falta de fundamentação, pois que o Tribunal a quo se pronunciou sobre todos os factos que na fase de julgamento lhe foram submetidos à apreciação. 

Não pode o requerente pretender que, não tendo deduzido contestação, o tribunal repristine o requerimento de abertura de instrução e que tome posição sobre os factos ali alegados. O requerimento de abertura de instrução refere-se a fase processual distinta e não pode ser chamado à colação para assacar uma qualquer nulidade da sentença por omissão da inclusão dos factos nele constantes na respetiva sentença.

            Por outro lado, como se refere no Acórdão do STJ de 11.10.2023 [processo 813/22.2JABRG.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt]: “A omissão de pronúncia, como é sabido, constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal se não pronuncia sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, sejam as mesmas de conhecimento oficioso ou sejam suscitadas pelos sujeitos processuais.

Porém, como vem sendo entendimento uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, “a falta de pronúncia que determina a existência de vício da decisão incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão. Por isso, como defende este Supremo Tribunal  apenas a total falta de pronúncia sobre as questões levantadas pelas partes ou que sejam de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia e, mesmo assim, desde que a decisão de tais questões não esteja prejudicada pela solução dada a outra ou outras” – Ac. STJ de 26/10/2016, Proc. 122/10.OTACBC.GI-A.S 4. No mesmo sentido, cfr., a título meramente exemplificativo, os Acs. deste STJ de 10/12/2020, Proc. 936/18.2PBSXL.S1 e de 6/11/2019, Proc. 30/16.0T9CNT.C2-A.S1.

            Ora, na situação em apreço não constando alegados quaisquer factos em sede de contestação, certo é também que o tribunal se pronunciou sobre os factos constantes da acusação considerando-os provados, e tomou posição sobre a factualidade que se lhe impunha.

Improcede, pois, a nulidade invocada.


*

          III – Da impugnação da matéria de facto
III.1 - Do erro de julgamento quanto aos factos 8 e 17 a 23 dos factos provados.

Conforme decorre do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “motivação do recurso e conclusões”:

“1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;

b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas. [sublinhado nosso].

No nº 4 do mesmo artigo prevê-se que: “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação(sublinhado nosso).

E no nº 6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” .

Impõe-se, pois, ao recorrente, versando o recurso matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa.

Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.

A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.

Exige-se ao recorrente, quando impugna a matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

E, quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

A remissão para os suportes técnicos não se basta com a indicação da totalidade das declarações prestadas – indicando a hora e minutos em que cada um dos depoimentos se iniciou e terminou - mas para os concretos locais da gravação que suportam a tese do recorrente.

Na situação presente, embora referindo os pontos 8 a 17 a 23 , invocando para o efeito as declarações do arguido, sem que indique um qualquer segmento destas e o correlacione com qualquer dos factos impugnados.

Ora, como acima referimos, esta forma de impugnação impõe ao recorrente o dever de especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa e tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e, bem assim, tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
E não cumpria convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, pois resumindo as conclusões as razões do pedido, nada pode ser resumido que não se contenha na motivação, de que as conclusões constituem uma síntese essencial. Neste sentido, vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, de que o não cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto ou a indicção das normas jurídicas violadas, tanto na motivação como nas conclusões desta, não justifica o convite ao aperfeiçoamento, uma vez que só se pode corrigir o que está deficientemente cumprido e não o que se tem por incumprido [Cf. entre outros, os Acórdãos do STJ, de 04-10-2006, Processo n.º 812/06-3.ª; de 08-03-2006, Processo n.º 185/06-3.ª; 04-01-2007, Processo n.º 4093-3.ª e de 10-01-2007, Processo n.º 3518/06-3.ª, e de 01.06.2011, Processo nº 234/00.8JAAVR.C2.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt].
Este entendimento é também sufragado pelo Tribunal Constitucional, designadamente, nos acórdãos nos 259/2002, 140/2004, 322/04, 357/2006, 529/03 e 685/2020 [Disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt], que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação das especificações previstas na lei - caso em que o vício será insanável -, da omissão de levar as especificações constantes da motivação às conclusões – caso em que se impõe o convite à correção. Em suma, o artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, impõe o dever de convite ao aperfeiçoamento tão só quando “a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412.º”.
Se o recorrente não faz, como no presente caso, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos números 2, 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, nos seus precisos termos, não há lugar ao convite à correção das conclusões, uma vez que o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser ultrapassado através do mencionado convite.

Assim, e em face da inobservância de tais normativos (não cumprimento do ónus de especificação que lhes é imposto pelo art° 412° CPP), não é possível conhecer da impugnação da matéria por essa via, que vai rejeitada.


***


III.2 – Dos vícios do art. 410º, nº 2, als. b) e c) do CPP

Defende o recorrente que o tribunal a quo incorreu em contradição insanável entre a fundamentação e  a decisão em relação ao s factos 7, 8, 18, 19 e 23 e em  erro notório da apreciação da prova relativamente à factualidade constante dos ponto 8, e 17 a 23 dos factos provados (conclusões 1 e 33).

Vejamos:

Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, que:

“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”

Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques [Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol., pág.379] “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”

A contradição insanável ocorre no seio da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão. A fundamentação, para efeitos deste preceito e do próprio conceito, é não só aquela que se reporta ao facto, mas, também a que se reporta à decisão e a esta na sua relação com a fundamentação de facto.
A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, percetível, consistente e conjugável harmonicamente entre si [Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2015, disponível in www.dgsi.pt.].

Ora, não se extrai da simples leitura do teor da decisão recorrida o invocado vício de “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão,” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal.

Com efeito, lida a decisão recorrida, constata-se que da mesma não resulta qualquer incompatibilidade - e muito menos insuscetível de ser ultrapassada, através da própria decisão recorrida - entre os factos provados e os não provados e/ou a fundamentação e a decisão.

O tribunal valorou as declarações do arguido mas não as considerou na sua totalidade e muito concretamente afastou-as nos segmentos em que este declarou que a distração foi causada por um inseto no veículo e quando referiu que havia consumido os produtos estupefacientes há vários dias, fundamentando-se nestes aspetos no relatório do INML e concretamente explicitando a razão de ser da sua conclusão, como já deixamos expresso no ponto II.3.1 para onde se remete.

Esta fundamentação sustenta juntamente com a restante prova convocada os factos provados e estes por sua vez sustentam a subsunção jurídica efetuada e a decisão tomada, neste particular a condenação do arguido pelo crime de condução perigosa.

Importa salientar que o que releva não é a interpretação ou a análise pessoal do recorrente, mas o resultado da avaliação e ponderação sobre as provas produzidas perante o tribunal, avaliadas segundo o princípio da livre convicção

Neste aspeto o recorrente extravasa o âmbito do disposto no art. 410º, nº 2 al. b) do Código de Processo Penal, e, procurando justificação no vício da contradição insanável, mais não faz do que confrontar com os factos provados, a sua interpretação na apreciação da prova, designadamente da análise que foi feita do parecer do INML e das declarações do arguido, extravasando o texto da própria decisão.

Assim, a pretexto do vício da contradição insanável pretende colocar em causa a valoração que o Tribunal a quo efetuou.

Porém, em relação aos factos provados sob os pontos 7, 8, 18, 19 e 23 nenhuma contradição se verifica entre estes e outros provados e também não se verifica qualquer contradição e muito menos insanável em relação à fundamentação probatória que os suporta e à decisão que veio a ser proferida.

Não se verifica, pois, este vício.


*

Invoca igualmente o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova quanto aos pontos 8, e 17 a 23.

O erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.

Este vício da decisão supõe, assim, factualidade contrária à lógica e às regras da experiência comum, detetável por qualquer cidadão de formação cultural média.

Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., pág. 74.

“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido” [Acórdão do TRC de 24-04-2018, P. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt].

Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido.” [Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, pág. 74].
Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício [Cf. o Acórdão do TRC de 24-04-2018, Proc. n.º 1086/17.4T9FIG.C1, in www.dgsi.pt].

Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

 A fundamentação, para efeitos deste preceito e do próprio conceito, é não só aquela que se reporta ao facto, mas, também a que se reporta à decisão e a esta na sua relação com a fundamentação de facto.

Reiteramos que a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou, não se confunde com o vício de erro notório de apreciação de prova nem qualquer outro do artigo 410º nº 2 do CPP.

Visto o texto da decisão recorrida não se constata a existência do apontado vício do “erro notório na apreciação da prova” a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Penal, pois do texto do acórdão não resulta que o tribunal tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada ou da legis artis. 

Alega o recorrente que se o tribunal tivesse interpretado corretamente o art. 163º não poderia ter ido além do estatuído no parecer do INML que refere que é difícil estabelecer uma relação entre a concentração de THC no sangue e o prejuízo que  a mesma posa causar para o desempenho psicomotor de uma pessoa. Tendo-o feito sem prova adicional, designadamente exame médico, incorreu em erro notório na apreciação da prova designadamente exame médico.

Para que se esteja perante uma conduta ilícita tipificada como crime de condução perigosa de veículo nos termos do disposto no art. 291º, al. a) do Código de Processo Penal, não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é necessário, ainda, que se possa fazer a afirmação de que, por estar assim influenciado, não está capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.

Atualmente, a lei não define valores mínimos de concentração de substâncias estupefacientes nos exames de sangue.

Como se refere no Acórdão do TRG de 14.10.2019 [processo nº 3/18.9PTBRG.G1, disponível in www.dgsi.pt] : “ Afigura-se que a tal desaparecimento não será alheia a evolução científica, uma vez que há atualmente evidência clínica de que valores de concentração de THC no sangue a partir de 1,6 ng/ml causam efeitos perturbadores no ato de conduzir. Dizemo-lo com base no estudo sobre as consequências negativas do consumo de marijuana na condução publicado em “Marijuana and the Cannabinoides” - cap. 12 da autoria de Barry K. Logan – Ed M. A Elsohly, . Phd – the School of Pharmacy, The University of Mississipi – Elsohly Laboratories Inc, Oxford, MS – Human Press Totowa, New Jersey.

De facto é hoje incontroverso que o THC é um vasodilatador periférico que provoca efeitos na visão e que perturba a perceção do tempo, da velocidade e da distância. Sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada significativamente após o consumo de canabis.

Por outro lado, de acordo com o mesmo estudo, os efeitos mais fortes fazem-se sentir quando a concentração no sangue depois de atingir um pico máximo (que ocorre cerca de 1 hora após o consumo fumado), começa a diminuir. Há nessa altura um aumento de risco. Considera-se que 2ng/ml de THC corresponde a um aumento de risco significativo e 5ng/ml um aumento de risco muito elevado.” [ No mesmo sentido o acórdão TRC de 17.03.2022 processo nº 4/21.0PTCBR.C1, e o Acórdão do TRL de 06.12.2022, processo nº 1005/19.3GLSNT.L1-5, ambos  disponíveis in www.dgsi.pt]

Aliás, outros estudos como aquele indicado no parecer emitido pelo INML e junto aos autos [Handbook of Forensic Medicine, First Ediotion, Edited by Burkhard Madea. 2014 Jophn wiley& sons, Ltd, Published 2014 by John Willey & Sons Ltd] refere o surgimento de prejuízo no desempenho psicomotor para a concentração no sague compreendidas entre 2 e 5 ng/ml, com a ressalva que tal pode também ocorrer com concentrações inferiores <1-2ng/ml),.

E, como sustenta Helena Maria Teixeira [Na tese de doutoramento que publicou “Determinação de canabinóides em amostras biológicas por cromatografia líquida de alta resolução com espectrometria de massa: aplicação em toxicologia forense”]: “A marijuana, o haxixe e outros produtos psicoactivos obtidos da Cannabis sativa, são as drogas ilícitas mais produzidas e traficadas em todo o mundo. Por outro lado, paralelamente a um aumento do seu consumo na comunidade em geral, tem-se assistido a um acréscimo de casos de condução sob a sua influência. Tem sido demonstrado que a intoxicação provocada por este tipo de compostos está principalmente relacionada com a concentração do seu principio activoo Δ9-Tetrahidrocanabinol (Δ9-THC)”.

É verdade que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, associa de forma inelutável a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.

Se assim é, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Por conseguinte, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir o veículo, na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança.

A valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.

A insegurança na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução.

Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros.

Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução.

Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável.

Dito de outra forma, a demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança, pode e deve, ser lograda, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.

Neste sentido se pronunciou o citado acórdão do TRC de 17.03.2022 [processo nº 4/21.0PTCBR.C1, disponível in www.dgsi.pt]onde se escreveu: “– Se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar de perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve ser lograda através de todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória completa e integrada, com uma clara ponderação das vicissitudes do caso concreto e com o apoio do conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.”

Em igual sentido o acórdão do TRL 06.12.2022 [processo nº 1005/19.3GLSNT.L1-5, igualmente disponível in www.dgsi.pt]  onde se escreveu: “I Para que se esteja na presença de uma conduta ilícita tipificada como crime de condução perigosa de veículo rodoviário não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é, ainda, necessário que não esteja capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.

II. Quando a obtenção do valor de concentração de canabinoides resulta da análise sanguínea, sem que tenha ocorrido o exame prévio de rastreio na urina, são inatendíveis os valores de referência que constam do quadro 2 do Anexo V à Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto para se concluir pela existência do “estado de influência”.

III. A demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança não carece da realização de um exame científico ou pericial, podendo e devendo ser lograda pela análise dos elementos de prova que o julgador disponha no caso concreto, numa valoração probatória responsável, ponderada e apoiada nas regras de experiência, da razoabilidade e da normalidade da vida.”

Deste modo, concluímos que inexistiu na análise efetuada pelo tribunal a quo qualquer erro notório na apreciação da prova, porquanto a demonstração de que a substância estupefaciente detetada o impedia de conduzir com segurança não estava dependente de prova tabelada e designadamente de exame médico.

Invoca o recorrente o Acórdão de fixação de jurisprudência nº 10/2024 de 15 de julho.

Cumpre apenas referir que o Acórdão de fixação e jurisprudência indicado (acórdão nº 10/2024), diz respeito ao direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização ao lesado nos termos do disposto no art. 27º, nº 1 al. c) do DL 291/2007 de 21.08, e, por isso, o seu objeto tem aplicação no âmbito de ação cível e não abrange a situação em apreciação nestes autos.

Por outro lado, inexiste qualquer lacuna que urja colmatar com recurso à sua aplicação ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal.

Na verdade, a Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, veio precisamente estabelecer os procedimentos necessários ao seu apuramento, decorrendo do seu artigo 10.º que “a detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”, resultando do artigo 16.º da Portaria nº 902- B/2007, de 13 de agosto, inserido no Capítulo II, intitulado “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas”, Secção I, intitulada de “exame de rastreio”, e quadro nº 2, do anexo V, respeitante a valores de concentração para exame de rastreio na urina, que os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v, ou seja, igual ou superior a 50 ng/ml no que se reporta aos canabinóides.

Ou seja, o artigo 10.º da Lei nº 18/2007, de 17 de maio, prevê que a deteção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.

Ora, na situação em apreço o valor obtido resultou da análise sanguínea e não foi precedido de análise de rastreio em urina. Mas tal facto não retira qualquer valor ao exame de sangue efetuado pois que é através do exame de confirmação que se obtém a identificação e quantificação das substâncias psicotrópicas existentes.

Já quanto ao exame médico previsto no art. 25º da portaria nº 902-B/2007 de 13 de agosto, verificamos que este se reporta ao nº 1 do art. 13º da referida lei nº 18/2007 de 17 de maio, isto é, “quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste, deve este ser submetido a exame médico para avaliação do estado de influenciação por substâncias psicotrópicas.”

Mais estabelecendo o nº 3 do mesmo artigo que “A presença de sintomas de influência por qualquer das substâncias previstas no n.º 1 do artigo 8.º, ou qualquer outra substância psicotrópica que possa influenciar negativamente a capacidade para a condução, atestada pelo médico que realiza o exame, é equiparada para todos os efeitos legais à obtenção de resultado positivo no exame de sangue”. (sublinhado nosso).

Concluímos pois, que o exame médico não constitui, no caso, prova tabelada e consequentemente a apreciação efetuada pelo tribunal a quo não padece, de erro notório n apreciação da prova.

Acresce que, embora o recorrente se socorra do vício do erro notório na apreciação dos factos provados sob os pontos 8, e 17 a 23, não o explica a partir do próprio texto da decisão recorrida.

Na verdade, a análise efetuada pelo recorrente não se cinge ao teor da decisão recorrida, mormente à motivação da decisão de facto, antes convoca o conteúdo dos meios de prova por si elencados, sobretudo o relatório pericial e o parecer emitido pela Exma. Sra. Assessora de Medicina Legal da Carreira de Especialistas superior de Medicina Legal (respetivamente juntos aos autos a 31.03.2022 – refª 8578085 e 17.11.2023 – refª 10261641), e com base na concreta argumentação expendida nas conclusões de recurso, pretende contrariar a valoração da prova vertida na decisão recorrida quanto aos pontos da matéria de facto indicados, deste modo extravasando os limites da arguição do convocado vício decisório.

Ora, da leitura da decisão recorrida não sobressai qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.

Do seu texto, contexto lógico e da fundamentação não resulta que os factos dados como provados se contradigam entre si ou violem os conhecimentos adquiridos pelas regras da experiência comum.

Em sede de recurso cabe apenas “ (…) aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” [Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, p. 253].

E, quanto aos concretos pontos da matéria de facto provada, analisando a motivação constante da sentença percebemos que esta teve por base as declarações do arguido que confessou parcialmente os factos, e o relatório pericial do INML, referindo tratar-se “de prova técnica que o Tribunal não põe em causa” e de onde resulta que o consumo de estupefacientes ocorreu em data próxima à ocorrência dos factos e que este tipo de estupefacientes reflete-se e limita o exercício da condução.

Mais se fundamentou no auto de notícia de fls. 3 relativamente às condições da via remetendo também para a participação de acidente de viação de fls. 4 e aditamento de fls. 52 e de fls. 54 e 56 e ao auto de exame do local de fls. 113 a 119 e relatório fotográfico de fls. 189 a 214, o que permite integrar as afirmações efetuadas relativamente ao circunstancialismo de tempo e lugar, destacando a boa visibilidade, as condições atmosféricas, o estado da via, referindo-se que tudo eram condições conhecidas do arguido.

Mais se refere que não se tendo provado a ocorrência de qualquer obstáculo ou causa improvável – aqui se afastando as declarações do arguido quanto à introdução do dito inseto no habitáculo - para concluir, fazendo apelo às regras da experiência comum, que o embate era evitável não fora o consumo de estupefacientes.

E afirma-o expressamente dizendo “Assim, de acordo com a prova pericial e com as regras da experiência comum é possível concluir que o acidente se ficou a dever ao consumo de estupefacientes por parte do arguido”.

E socorrendo-se da informação do IMTT e do registo individual do condutor juntos aos autos, veio a salientar ainda “ Quanto ao elemento subjectivo, o Tribunal deu-o como provado com recurso às regras da lógica e da experiência comum, pois que, perante as referidas condições atmosféricas, era possível ao condutor atento, cuidadoso e experiente (sendo que o arguido, à data, tinha carta de condução há cerca de 20 anos), dar início atempado à travagem do veículo que conduzia ou desviá-lo da trajectória que o levou a embater no outro veículo, o que podia e devia ter feito, evitando o embate, por ter capacidade e experiência para o efeito, não prevendo, porém, o resultado verificado.”

Em suma, a sentença apresenta-se bem estruturada, com indicação e exame crítico das provas suficiente, numa análise concatenada da prova pericial e documental e das declarações do arguido, com as regras da experiência comum e de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º do CPP.

Lendo a decisão recorrida não logramos descortinar onde a mesma é ilógica ou atentatória das regras da experiência comum ou violadora de qualquer prova vinculada.

O que o recorrente pretende é colocar em crise a convicção que o Tribunal recorrido formou perante as provas produzidas em audiência e substituir essa convicção pela sua própria convicção.

Em conclusão, evidencia a sentença recorrida a explicitação lógica e escorreita do modo como o julgador formou a sua convicção sobre o facto em apreço – concretamente a razão porque conjugando todos os indícios que recolheu, designadamente da prova pericial e documental e das declarações do arguido, chegou às conclusões vertidas nos referidos pontos da matéria de facto - tudo permitindo num percurso lógico e suportado pelas regras da experiência comum perceber e concluir pela imputação feita ao ora recorrente.

Não ocorreu, pois, o vício do erro notório na apreciação da prova.


IV - Da violação do princípio in dubio pro reo.

Este princípio, derivado do princípio da presunção de inocência do arguido, (artigo 32º, n.º 2 da CRP), estabelece um limite ao principio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.

No acórdão do TRL de 10.01.2018 [processo nº 63/07.8TELSB-3, disponível in www.dgsi.pt] escreveu-se: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.

O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.

Para que se imponha ao Tribunal a aplicação deste princípio é necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que há-de ser razoável e insanável.

Analisando a sentença sob recurso verificamos que o tribunal a quo não expressou qualquer dúvida razoável e fundada sobre a matéria de facto ora posta em causa, nem da sua fundamentação emerge que a devesse ter, ao abrigo do princípio constitucional do in dubio pro reo.

A negação e/ou diferente interpretação dos factos por parte do arguido, por si só, não impõe a alteração factual pretendida, mostrando-se plenamente justificada a credibilidade e interpretação conferida a toda a prova produzida e examinada em julgamento, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.

No caso foi efetuado um exame crítico e consistente às provas produzidas, tendo o tribunal a quo formado a sua livre convicção, quanto à autoria e circunstâncias como os factos ocorreram, sendo que a decisão recorrida só seria de alterar se se revelasse evidente que as provas não conduziriam àquela decisão, o que, in casu, não sucedeu, sendo irrelevante se a interpretação que o recorrente faz dessa prova é diversa da interpretação do julgador.

Deste modo, não houve valoração arbitrária ou ilegal da prova e por isso não foi violado o art. 127º do Código de Processo Penal, não ocorreu violação do princípio in dubio pro reo, previsto no art.32º da Constituição da República Portuguesa.


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            Estando fixada a matéria de facto nenhuma censura há a fazer quanto a subsunção jurídica da mesma, entre o mais no crime de condução perigosa de veículo

No caso em apreço, ficou provado que o arguido:
® “(…), naquele dia, hora e local, o arguido conduzia o veículo ..-IO-.., após ter consumido produto estupefaciente, apresentando uma concentração de tetrahidrocanabinol (THC) na corrente sanguínea de, pelo menos, 2,3ng/ml (3,6±1,3 ng/ml);
® Por conseguinte, junto ao km 29,560, da EN ...42, o arguido efetuou uma manobra, que consistiu no desvio da trajetória do veículo que conduzia para a esquerda, invadindo a via de trânsito de sentido oposto, onde nesse momento circulava o veículo ..-..-XA, conduzido pelo ofendido BB, que se fazia acompanhar pela sua esposa CC;
® O acidente ficou a dever-se à manifesta desatenção do arguido AA que permitiu que o automóvel por si conduzido invadisse a via de trânsito de sentido oposto, colidindo com o automóvel de matrícula ..-..-XA;
®  Além do mais, o arguido conhecia o seu estado e sabia que estava sob a influência de produto estupefaciente (cannabis), o que não lhe permitia efetuar uma condução cuidada e prudente e lhe diminuía a capacidade de atenção, reação e destreza, mas, ainda assim, quis conduzir o aquele veículo, o que efetivamente fez;
®  Ao agir do modo descrito o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo as características do veículo que conduzia e da via em que seguia e bem sabendo que, fazendo-o então sob o efeito de produtos estupefacientes, a sua conduta era suscetível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efetivamente colocou;
®  Agiu o arguido com manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis a quem conduz veículos automóveis, tanto mais que desenvolvia uma atividade perigosa, assim vindo a causar um resultado que poderia e deveria prever;
® (…) ao não atuar de acordo com as regras de cuidado que conhecia e que era capaz de cumprir, o arguido sabia que a sua conduta era suscetível de provocar no ofendido BB as lesões supra descritas, o que efetivamente se concretizou;
®  O arguido tinha consciência que conduzia com desrespeito pelas regras de circulação rodoviária (condução sob influência de substâncias psicotrópicas) e que a sua conduta era suscetível de colocar em perigo tal circulação e que poderia colocar em causa a vida e a integridade física dos utentes da estrada, como efetivamente colocou.
®  Atuou de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as descritas condutas são proibidas e puníveis por lei.

Portanto, pese embora fosse necessário apurar que a cannabis no seu organismo o impedia de conduzir em segurança, essa prova foi feita, conforme decorre da leitura dos factos provados, que sucintamente elencamos.

Face ao exposto e tendo em conta a factualidade apurada e os pressupostos do crime em referência, entendemos que estes se encontram preenchidos, não existindo qualquer censura a fazer no que respeito ao enquadramento jurídico efetuado na sentença recorrida.

Verifica-se que, in casu, ao contrário do invocado pelo recorrente, perfectibilizam-se todos os elementos objetivos e subjetivos, diga-se, que integram o delito em causa, não tendo, consequentemente, sido violada qualquer disposição legal, designadamente as apontadas.


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V – Da pena acessória

Insurge-se o recorrente contra a pena acessória fixada em 1 (um ano) alegando que a Mmª Juiz formulou um juízo de perigosidade apenas com base no facto concreto gerador da punição, não contextualizando a personalidade do agente os transtornos que sofre, no meio no qual se integra, na identidade do facto e nos motivos e atitudes posteriores, sem aludir à individualidade do arguido.

Vejamos então:

Estabelece o Artigo 69.º n.º 1 al. a) do CP, com a epígrafe “Proibição de conduzir veículos com motor”, o seguinte:

1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;

            b) Por crime cometido com a utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante;

A pena acessória é uma censura adicional pelo facto cometido pelo agente, revestindo a natureza de uma verdadeira pena, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente [cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, p. 165 e ss..]

Acrescentando [ob. cit., p. 158]: “Condição necessária, mas nunca suficiente, de aplicação de uma pena acessória e, assim, a condenação numa pena principal; (…) Para além deste requisito torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”.

A aplicação da pena acessória tem, pois, uma “função preventiva adjuvante da pena principal”, não sendo de aplicação automática mas estando, ao invés, submetida aos princípios gerais da pena, como os da legalidade e proporcionalidade.

Aliás, nos crimes relacionados com o tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal, de multa – que, sendo esta a imposta, os infratores pagam, normalmente, sem grande inconformismo – ou de prisão suspensa na sua execução – que é vista até como menos onerosa que aquela. Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida com o cometimento do crime cometido no exercício da condução e, na situação presente, de condução perigosa nos termos do disposto no art. em estado de embriaguez.

A pena acessória possuindo essa função preventiva adjuvante da pena principal, tem subjacente um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a sua concreta determinação se imponha, igualmente, o recurso aos critérios estabelecidos no artigo 71.º do Código Penal, o que vale dizer que dada a paridade de critérios para a determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória, na respetiva definição haverá, em princípio, que atentar numa certa proporcionalidade entre a medida da pena principal e da sanção acessória que cabem ao caso, pese embora nada na lei imponha que as penas acessórias tenham de ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais [Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19.12.2017, e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.02.2018, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.].

Tratando-se de verdadeiras penas criminais e estando ligadas a considerações de culpa e de prevenção, como acima se referiu, a determinação da medida concreta das penas acessórias e concretamente da prevista no art.º 69 do CP, efetua-se segundo os critérios orientadores gerais contidos no artigo 71.º do Código Penal, que dispõe, no seu n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

Prevendo-se no nº 2 do mesmo artigo que “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”

            Começaremos por referir que analisando a sentença recorrida verificamos que nesta aplicada a pena acessória por referência à al. b) do art. 69º do Código Penal, quando na acusação pública deduzida e no despacho de pronúncia que remete para a primeira se imputa ao arguido por via da prática do crime de condução perigosa de veículo a pena acessória prevista no art. 69º, al. a) do Código Penal.

            Cremos que a aplicação desta alínea b) do art. 69º do Código Penal terá decorrido de um erro que surge logo no relatório da sentença em causa onde se menciona erradamente que o arguido foi pronunciado, entre o mais pelo disposto no art. 69º, nº 1 al. b) do Código Penal, quando, na verdade, havia sido pronunciado, entre o mais, pelo art. 69º, nº 1 al. a) do Código Penal.

            Deste modo, impõe-se, a retificação nos termos do disposto no art. 380º, nº 1 do Código de Processo Penal deste lapso de escrita no respetivo relatório.

            Porém, aquando da aplicação da respetiva sanação acessória voltou a Mmª Juiz a mencionar do disposto no art. 69º, nº 1 al. b) do Código Penal e a integrar a conduta do arguido nesta alínea do referido dispositivo legal, sem que para tal tivesse qualquer sustentação, designadamente no despacho de pronúncia proferido nos autos.

            Tal consubstancia, a nosso ver, a nulidade prevista na al. c) do nº 1, do art. 379º do Código de Processo Penal, na medida em que o tribunal a quo se pronunciou sobre questão que não podia tomar conhecimento e omitiu a pronúncia sobre outra que devia apreciar. Porém, entendemos que, este Tribunal da Relação - na medida em que dispõe de todos os elementos - pode conhecer e sanar a referida nulidade, tanto mais que apenas foi imputada ao arguido uma pena acessória e, quer se trate da alínea a) quer se trate da alínea b) do nº 1 do art. 69º do Código Penal, a moldura penal e os critérios de determinação da pena são os mesmos sendo a factualidade a apreciar, naturalmente, também a mesma.

            Deste modo, entendendo-se que ocorreu excesso de pronúncia quando o tribunal a quo conheceu a pena acessória prevista no art. 69º, nº 1 al. b) do Código Penal, deve ter-se tal segmento como não escrito.

Passando a suprir-se a omissão de pronúncia quanto à aplicação da pena acessória prevista no art. 69º, nº 1 al. a) do Código Penal (normativo que ao longo do processo sempre foi indicado ao arguido e em relação ao qual pôde e exerceu o seu contraditório e, por isso, não importa efetuar qualquer comunicação).

            Vejamos então:          

No caso são impostas fortes necessidades de prevenção geral dado o elevado índice de sinistralidade rodoviária, que tantas vezes, como na situação presente acarreta a perda de vidas e a existência de um perigo concreto e dano na integridade física de terceiros, gerando um forte sentimento de insegurança na comunidade; as exigências de prevenção especial não são elevadas já que o arguido não tem antecedentes criminais.

A considerar ainda que se encontra laboralmente ativo e integrado socialmente.

O arguido tem carta de condução há cerca de 20 anos e tem averbada uma infração de natureza rodoviária praticada em 06.04.2021 (condução de automóvel ligeiro fora da localidade +30 até 60 Km/limite.sinaliz)

A ilicitude é elevada, como referido pelo tribunal a quo na análise efetuada quanto às penas principais.

As consequências da sua atuação são graves dado que efetivamente vieram a verificar-se lesões à integridade física de BB.

O arguido mostrou arrependimento.

Já acima referimos que, havendo uma tendencial proporcionalidade entre a pena principal e a pena acessória - até porque os critérios da sua aplicação são tendencialmente os mesmos - estas não têm e ser matematicamente equivalentes, desde logo, pela diversidade dos objetivos de política criminal e finalidades que lhe estão subjacentes.

Deste modo, apesar da ausência de antecedentes criminais do arguido, da sua idade e inserção social, as prementes exigências de prevenção geral e as restantes circunstâncias supramencionadas, designadamente a elevada culpa e ilicitude verificadas – tendo por base uma moldura que vai dos três meses aos três anos de proibição de conduzir veículos com motor – levam-nos a concluir que a pena acessória de 1 (um) ano é a adequada a satisfação das finalidades da punição, mostrando-se um pouco acima da pena fixada para o crime de condução perigosa, e apenas 9 meses acima do limite mínimo, sendo que o máximo da moldura penal se situa ainda dois anos acima do fixado.

Nos autos não vinha o arguido acusado ou pronunciado nos termos do disposto no art. 69º, nº 1 al. a) do Código Penal, por referência ao crime de homicídio por negligência pelo qual foi igualmente condenado.

Nada foi requerido nessa matéria nem foi operada qualquer comunicação nos termos do disposto no art. 358º, nº 3 do Código de Processo Penal, pelo tribunal a quo.

 Deste modo, porque apenas o arguido interpôs recurso da sentença proferida, e dada a proibição da reformatio in pejus estabelecida pelo art. 409º do Código de Processo Penal, está este Tribunal impedido de aplicar ao arguido qualquer pena acessória por via do cometimento do aludido crime.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em:
1. Determinar, nos termos do disposto no art. 380º, nº 1 do Código de Processo Penal, a retificação do lapso de escrita constante do relatório da sentença proferida pelo Tribunal a quo passando dele a constar 69º, nº 1 alínea a) do Código Penal onde até agora consta “69º, nº 1 alínea b) do Código Penal”.
2. Declarar a nulidade por excesso de pronúncia relativamente ao enquadramento da conduta do arguido na pena acessória prevista na al. b) do art. 69º do Código Penal.
3. Suprir a nulidade decorrente da omissão de pronúncia relativamente à integração da conduta do arguido no disposto no art. 69º, nº 1 al. a) do Código Penal, e em consequência fixar a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor em 1 (um) ano.
4. No restante julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas.


Coimbra, 26 de março de 2025.

 [Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]

Os Juízes Desembargadores

Sandra Ferreira

Maria da Conceição Miranda

Alexandra Guiné