Há lugar à prestação do depoimento de uma testemunha, com quebra do sigilo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, quando se verifique que:
(i) sem esse depoimento não será possível, ou tornar-se-á muito difícil, perseguir criminalmente o autor dos crimes, sendo tal depoimento imprescindível para a descoberta da verdade;
(ii) os crimes sob investigação sejam graves, atenta a moldura penal e as circunstâncias concretas que envolveram a sua prática; e
(iii) a necessidade de protecção dos bens jurídicos, considerada à luz do princípio da intervenção mínima na contrição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, impõe que o segredo imposto aos contabilistas para proteger os direitos pessoais dos clientes, nomeadamente a reserva da intimidade da vida privada e o interesse privado das relações de confiança e de confidencialidade entre aqueles profissionais e os seus clientes, deve ceder perante o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu ius puniendi, através da justiça penal.
Nos autos de inquérito nº 25/22.5T9ABF, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Instrução Criminal de … - Juiz …, investigam-se factos passíveis de integrar, em abstracto, a prática de crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256º, nº 1, alíneas a) a c) do Cód. Penal, e de abuso de confiança agravado, p. e p. pelo art.º 205º, nºs 1 e 4, alínea a) do Cód. Penal.
O Ministério Público pretende apurar se pela arguida AA ocorreu um incremento patrimonial à custa do património da sociedade assistente BB, mercê da apresentação a pagamento, na aquisição de produtos/objectos para a própria arguida, de cheques emitidos em nome da assistente, nos quais consta a assinatura do gerente da assistente, CC, sendo que tais assinaturas não terão sido da autoria deste gerente.
Com vista à obtenção desta informação, pretendeu o Ministério Público inquirir, na qualidade de testemunha, o Dr. DD, contabilista à data dos factos da sociedade assistente, o qual invocou o sigilo profissional, não tendo prestado declarações.
Instada a Ordem dos Contabilistas Certificados acerca da legitimidade da escusa, esta entidade, com fundamento no art.º 72º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e no art.º 10º do Cód. Deontológico dos Contabilistas Certificados, concluiu pela legitimidade da recusa em prestar declarações por parte do Dr. DD, caso não tenha ocorrido o levantamento do sigilo, emitindo parecer no sentido de que o sigilo profissional abrange todos os factos e documentos conhecidos pelo contabilista certificado no exercício da sua profissão, e por causa desse exercício, numa relação de causalidade necessária entre o exercício das funções e o conhecimento dos factos.
Após promoção do Ministério Público, o Mmº JIC de … suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação para autorização da quebra do invocado sigilo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 135º, nº 3 do Cód. Proc. Penal.
II – Fundamentação de facto
Dá-se aqui por reproduzida a promoção do Ministério Público de 16/12/2024:
“(…) A presente investigação visa factos susceptíveis de configurar a eventual prática de crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a) a c), e nº 3, do C. Penal, e de abuso de confiança agravada, p. e p. pelo art. 205º, nº 4, al. a) do C. Penal.
Procedeu-se a inquérito, e foram realizadas diligências tendentes a apurar a verdade material.
Nos presentes autos visa-se apurar se pela arguida ocorreu um incremento patrimonial à custa do património da sociedade Assistente, mercê da apresentação a pagamento, na aquisição de produtos/objectos para a própria arguida, de cheques emitidos em nome da Assistente, nos quais consta a assinatura do gerente da Assistente, CC, sendo que tais assinaturas não terão sido da autoria deste gerente.
Diligenciou-se pela inquirição, na qualidade de testemunha, do Dr. DD, contabilista à data dos factos da sociedade Assistente, contudo veio o mesmo invocar o sigilo, não prestando declarações. Perguntado, afirmou ter conhecimento da factualidade em investigação.
O segredo profissional não é um segredo absoluto inafastável, contudo a razão de ser da sua existência impõe que apenas, excepcionalmente, o contabilista certificado o possa quebrar.
O contabilista certificado apenas deixará de estar sujeito a esse mesmo segredo profissional, entre o mais, em face do incidente processual da quebra de sigilo profissional previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.
Importa, relativamente ao referido incidente, atender, como dispõe o artigo 135º nº 3 do Código de Processo Penal, ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
No caso dos autos, mostram-se conflituantes o interesse na realização da justiça penal e o interesse tutelado com a existência do sigilo profissional do contabilista.
A imprescindibilidade do depoimento do Dr. DD reside no facto de este ter sido o contabilista da sociedade Assistente no período em que se imputam os factos praticados à arguida, e ser de extrema relevância apurar o conhecimento que tem quanto aos factos denunciados, nomeadamente com quem contactava relativamente às questões (em especial dívidas tributárias) da sociedade Assistente naquele período; especificar quem tinha acesso às contas bancárias da sociedade e realizava os respectivos pagamentos; de que forma tais pagamentos eram efectuados; se teve conhecimento da aquisição daqueles produtos com apresentação a pagamento de cheques (segundo a queixa crime, falsificados) da sociedade, e em caso afirmativo com quem contactou a esse respeito e que resposta obteve; se o gerente CC tinha conhecimento da existência de dívidas da empresa à Segurança Social e ao Fisco. Ademais, esta testemunha, como contabilista da sociedade ofendida, deverá ter outros conhecimentos quanto à situação em investigação, que serão certamente relevantes para apreciação da factualidade em investigação e para a boa decisão da causa.
Em face do exposto, considera o Ministério Público, que perante o silêncio profissional imposto à testemunha, tão só ouvindo-a poderá apurar-se do cometimento do crime em investigação.(…)”.
III – Fundamentação de direito
A fim de decidir a questão de quebra de sigilo suscitada nos autos, importa atentar nas seguintes normas invocadas pela Ordem dos Contabilistas Certificados:
- Art.º 72º, nº 1 da Lei nº 139/2015, de 7/09, ANEXO III - (a que se refere o art.º 6º) - Republicação do D.L. nº 452/99, de 5/11 (Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados):
“1 - Nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem deveres dos contabilistas certificados:
a) Desempenhar, conscienciosa e diligentemente as suas funções;
b) Abster-se de qualquer procedimento que ponha em causa tais entidades;
c) Prestar informações e esclarecimentos, nos termos previstos no Código Deontológico;
d) Guardar segredo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, dele só podendo ser dispensados por tais entidades, por decisão judicial ou pelo conselho diretivo da Ordem;
e) Não se servir, em proveito próprio ou de terceiros, de factos de que tomem conhecimento em razão do exercício das suas funções;
f) Não abandonar, sem justificação ponderosa, os trabalhos que lhes estejam confiados.” (sublinhado nosso)
- Art.º 10º da Lei nº 139/2015, de 7/09, ANEXO II - (a que se refere o n.º 2 do art.º 3º) – Código Deontológico dos Contabilistas Certificados:
“1 - Os contabilistas certificados e os seus colaboradores estão obrigados ao sigilo profissional sobre os factos e documentos de que tomem conhecimento no exercício das suas funções, devendo adotar as medidas adequadas para a sua salvaguarda.
2 - O sigilo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
3 - A obrigação de sigilo profissional não está limitada no tempo, mantendo-se mesmo após a cessação de funções.
4 - Cessa a obrigação de sigilo profissional quando os contabilistas certificados tenham sido de tal dispensados pelas entidades a que, prestam serviços, por decisão judicial ou ainda quando previamente autorizados pelo conselho diretivo, em casos devidamente justificados.
5 - Os membros dos órgãos da Ordem não devem revelar nem utilizar informação confidencial de que tenham tomado conhecimento no exercício dos cargos associativos, exceto nos casos previstos na lei.” (sublinhados nossos)
Atento o teor destas normas, verifica-se os contabilistas certificados, como é o caso da testemunha indicada, não estão, desde logo, obrigados a prestar às autoridades judiciárias informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas.
Antes pelo contrário, caso prestem tais informações podem incorrer em responsabilidade disciplinar, nos termos do art.º 78º do D.L. nº 452/99, de 05/11 (Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados), ou até mesmo em responsabilidade criminal, atento o previsto no art.º 195º do Cód. Penal.
Na verdade, o sigilo profissional foi criado e legislado para que os profissionais de determinadas áreas, como é o caso dos contabilistas, não possam divulgar dados ou informações sobre a relação que têm com os seus clientes.
Com a observação do dever de sigilo mantêm-se os dados pessoais dos clientes em segredo, garantindo-se, assim, uma maior segurança e privacidade e o respeito pelos direitos de personalidade dos clientes.
Porém o dever de sigilo não é um dever absoluto, que não deva ceder face a outros interesses mais prementes de ordem pública ou privada.
A quebra do sigilo profissional, no que concerne a estas matérias, obedece, no entanto, a um regime legal restrito, que se encontra previsto no art.º 135º do Cód. Proc. Penal nos seguintes termos:
1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.ºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.” (sublinhados nossos)
Decorre desta norma que o Tribunal pode decidir pela prestação de testemunho, com quebra do segredo profissional, sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento (ou do documento) para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de determinados bens jurídicos.
Efectivamente o sigilo profissional não é um direito absoluto, podendo e devendo ceder perante outros direitos, nomeadamente o da realização da justiça e da descoberta da verdade, quando está em causa a prática de determinados tipos de crime.
A derrogação do sigilo profissional, decorrente do princípio da prevalência do interesse preponderante, tem que ser necessária para garantir os meios indispensáveis à prossecução da acção penal e à protecção de bens jurídicos, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade de determinado depoimento, documento ou de outro meio de prova para a descoberta da verdade, os quais não se poderiam obter de outro modo.
Por seu turno a gravidade dos crimes que justificam a quebra do sigilo deve aferida em abstracto e em concreto.
Em abstracto, para integrar o conceito de “gravidade do crime” ou de “crime grave” pode-se recorrer ao elenco do art.º 187º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, onde na sua alínea a) se considera que é um crime grave o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade por este preceito e a tutela do segredo profissional pelo art.º 135º do mesmo diploma.
Daqui não decorre que tenha que haver quebra de segredo profissional sempre que estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos.
É necessário também a ponderação em concreto da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstracto, mas também em face das concretas circunstâncias que envolveram a sua prática e a necessidade de protecção dos bens jurídicos.
Os “bens jurídicos” a que a lei se refere são os bens jurídicos tutelados pela lei penal Portuguesa, mas a quebra do sigilo profissional só é justificável se corresponder a um interesse social premente ( cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª edição actualizada, págs. 366, n.º 12, 364, n.º 8, 365, n.º 10, e 364, n.º 9).
Voltando ao caso concreto, entendemos que há lugar à prestação do depoimento da testemunha pretendido, com quebra do sigilo profissional, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, porquanto se verifica que:
(i) sem esse depoimento não será possível, ou tornar-se-á muito difícil, perseguir criminalmente a autora dos crimes, sendo tal depoimento imprescindível para a descoberta da verdade;
(ii) os crimes sob investigação são graves, atenta a moldura penal e as circunstâncias concretas que envolveram a sua prática, das quais decorre a necessidade de revelação da informação coberta pelo dever de sigilo; e
(iii) a necessidade de protecção dos bens jurídicos, considerada à luz do princípio da intervenção mínima na contrição dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, impõe que o segredo imposto aos contabilistas para proteger os direitos pessoais dos clientes, nomeadamente a reserva da intimidade da vida privada e o interesse privado das relações de confiança e de confidencialidade entre aqueles profissionais e os seus clientes, deve ceder perante o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu ius puniendi, através da justiça penal.
A imprescindibilidade do depoimento do Dr. DD reside no facto de este ter sido o contabilista da sociedade assistente no período temporal em que se imputam os factos praticados à arguida e ser de extrema relevância apurar o conhecimento que tem quanto aos factos denunciados, nomeadamente com quem contactava relativamente às questões (em especial dívidas tributárias) da sociedade assistente naquele período, especificar quem tinha acesso às contas bancárias da sociedade e realizava os respectivos pagamentos, de que forma tais pagamentos eram efectuados, se teve conhecimento da aquisição daqueles produtos com apresentação a pagamento de cheques (segundo a queixa crime, falsificados) da sociedade, e em caso afirmativo com quem contactou a esse respeito e que resposta obteve, se o gerente CC tinha conhecimento da existência de dívidas da empresa à Segurança Social e ao Fisco, para além de outros conhecimentos quanto à situação em investigação, que serão certamente relevantes para a apreciação da factualidade em apreço e para a boa decisão da causa.
Para além disso, não se vislumbra a existência de razões importantes que determinem a recusa da prestação do depoimento em apreço, impondo-se, assim, dispensar a referida testemunha do sigilo invocado nos autos.
IV – Decisão
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em dispensar o cumprimento do dever de sigilo profissional por parte da testemunha DD, contabilista à data dos factos em investigação da sociedade assistente, determinando-se, em consequência, que o mesmo preste ao Ministério Público junto do Tribunal a quo as informações que anteriormente lhe foram solicitadas.
Sem custas.
Évora, 11 de Março 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Carla Francisco
(Relatora)
Anabela Simões Cardoso
(Adjunta)
J. F. Moreira das Neves
(Adjunto com declaração de voto)
“Declaração de voto
O princípio regente sobre a quebra do segredo profissional, enuncia-se no § 3.º do artigo 135.º CPP, ali se afirmando a prevalência do interesse preponderante, devendo nomeadamente ter-se em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
A razão da exigência de tutela judicial logo sinaliza a natureza de garantia fundamental do segredo profissional, cuja quebra em favor do interesse da descoberta da verdade deve ser excecional. Isto é, só deverá ceder perante razões prementes, ditadas por imperativos de justiça e ausência de meios alternativos para alcançar a verdade.
Na circunstância nem o Ministério Público esclarece por que razão só o contabilista pode superar a dificuldade que encontra(!); como se antevê que a nomeação de perito e realização de perícia visando descobrir se há razões objetivas justificativas dos movimentos suspeitos, cumprirá os objetivos da investigação, sem quebra da garantia do sigilo profissional.
Razões pelas quais não autorizaria a quebra do sigilo.
Francisco Moreira das Neves”