I - Não obstante o dolo eventual no homicídio tentado com o atropelamento, a exuberante energia criminosa que o arguido empregou na sua virulenta ação com uma poderosa vontade, circulando em progressiva aceleração em vias principais povoadas de veículos e peões, disseminando perigo pelos utentes da via com que se cruzou, veio a concretizar a especial censurabilidade daquele homicídio.
II - A utilização do veículo para o cometimento do crime de homicídio na forma tentada, com a massa física do mesmo com uma velocidade superior a 50km/h em aceleração subsume o meio particularmente perigoso.
III - No âmbito do princípio nemo tenetur o arguido que prestando declarações negue parte relevante dos factos, que se vêm a provar, a sua atitude haverá de ser valorada quer no âmbito da prova, quer em sede de medida da pena, pesando sobre o mesmo, o continuo afastamento ao direito.”
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Acordam, em conferência, os juízes da 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
No Juízo Central Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo proferiu-se acórdão que condenou o arguido da seguinte forma:
“Em face do exposto:
I – Julga-se procedente a Acusação deduzida pelo MºPº e, em consequência, decide-se condenar o arguido AA, pela prática em autoria material e concurso real de:
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do D.L. 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 ano de prisão;
- Um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º 2, do C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelo art.º 131º, 132º, n.º 1 e 2, al. g) e h) e 22º e 23º, do C.P. (em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado, p.p. pelos art.º 291º, n.º 1, al. b), 69º, n.º1, al. a), 294º, n.º 3, e 285ºpor referência ao art.º 144º, al. d), do C.P. e 24º, n.º1, 103º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), c) e e), 146º, al. a), l) e o), do C.E., na pena de 4 anos de prisão:
Notifique.”
A. A matéria de facto colocada sob a impugnação visa, como fim último, a absolvição do arguido da prática do crime de resistência e coação e do crime de homicídio tentado.
B. A alteração da matéria de facto, que se impõe, resulta, para cada um dos pontos elencados, do seguinte:
C. Relativamente ao Facto 4 – na afirmação que “o arguido virou à esquerda na direção do referido Agente da PSP, sem qualquer cuidado ou preocupação de embater no corpo deste, o qual só não foi atropelado porque se desviou imediata e rapidamente da trajetória do veículo de matrícula ..-UR-..”.
D. Para considerar este facto como provado o Tribunal baseia-se única e exclusivamente nas declarações do agente visado – BB, que reputa de “claríssimas”.
E. No entanto, além do agente BB estava também presente o Agente CC, que se encontrando atrás da viatura do arguido, por conseguinte com uma visão privilegiada sobre o que se passava à sua frente, nada refere a esse respeito (depoimento da testemunha CC na sessão de 10.04.2024 prestado entre as 11.27 e as 11.38).
F. Ora, resulta das regras da experiência, que apesar de os agentes terem várias ocorrências, uma em que o seu colega tivesse estado em “perigo de vida”, certamente lhe ficaria na memória.
G. Sendo que, tendo em conta as dificuldades de memória da testemunha, o MP, ao abrigo do artigo 356, nº 3 do CPP, requereu a leitura das declarações prestadas perante magistrado do MP em 9 de novembro de 2022, que o mesmo confirmou corresponderem à verdade sendi que em momento algum refere ter o arguido tentado atingir o corpo do colega, certamente esta testemunha teria mencionado esse facto, o que não fez.
H. Ora, da conjugação da análise da prova supra resulta que a intenção do arguido foi obviamente a fuga à autoridade, nunca atingir de alguma forma a integridade física do agente pelo que o facto 4 deve passar a constar dos factos não provados sendo o arguido, em consequência, absolvido do crime pelo qual vinha acusado.
J. E o Facto 8 – Na descrição sequencial dos acontecimentos ao afirmar: “De seguida, embateu com o pneu e com a parte lateral esquerda da viatura de matrícula do veículo de matrícula ..-UR-.. na guia do passeio situado no lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido Este-Oeste, derrubou o semáforo para peões e a placa vertical para ciclistas existentes na parte central da Avenida 1..., assim como um dos pilaretes colocado no início dessa pista…
K. Quanto à velocidade a que seguia a viatura do arguido, não temos nenhum elemento de prova objetivo que nos indique a que velocidade o mesmo seguia. Objetivo é o facto de os airbags não terem disparado como se pode comprovar, nomeadamente a fls. 106 e 107 dos autos.
L. Dada a dinâmica dos acontecimentos, será certamente seguro afirmar que o arguido seguia acima da velocidade máxima permitida – 50 km/hora, mas afirmar que seguia a mais de 70 km/hora, não tem a mínima sustentação com a prova constante dos autos.
M. Aspeto fulcral dos presentes autos é o facto de o tribunal ter dado como provado que a viatura do arguido embateu em primeiro lugar no corpo do assistente.
N. Para fundamentar este facto o acórdão refere: “Na verdade, nas fotografias de fls. 102, frente e verso, e 105, verso – é visível que a passadeira em que circulava o peão - por referência ao sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, antes do embate - surge antes do semáforo e demais sinais derrubados o que, claramente, impõe, que aquele tenha sofrido, em primeiro lugar, o impacto do veículo”.
O. Salvo o devido respeito, as fotos constantes das folhas mencionadas não levam necessariamente a essa conclusão pois veja-se que onde está a seta é o local onde a viatura do arguido galga o passeio e logo a seguir vêm-se os destroços do semáforo e da placa vertical de ciclistas que ali existia – seta vermelha.
P. E a passadeira onde estava o peão é onde se vê o agente, ou seja, depois do embate nos semáforo e placa vertical.
Q. Também em sentido contrário ao considerado provado pelo Tribunal a quo, temos o depoimento de duas testemunhas que presenciaram os factos de um local privilegiado, uma vez que estavam parados no semáforo do cruzamento onde os factos ocorreram em sentido descendente da Avenida 1....
R. E estes depoimentos são claríssimos ao afirmar que a viatura do arguido embate primeiro nos postes e só depois no assistente (depoimento da testemunha DD, inquirida na sessão de 10.04.2024, entre as 11h38 e as 11h49 e depoimento da testemunha EE, prestado na sessão de 10.04.2024, entre as 11h49 e as 11h53).
S. Não se entende como a decisão ora colocada em crise ignora completamente estes dois depoimentos, prestados de forma totalmente isenta, de quem nada tem a ganhar ou a perder com o desfecho do processo, e decide dar como provado exatamente o contrário do que foi descrito pelas testemunhas.
T. Assim, os factos provados 7 e 8 deverão passar a ter a seguinte redação:
7 - Logo após, imprimindo velocidade excessiva, o arguido perdeu o controle do veículo de matrícula ..-UR-.. e embateu com o pneu e com a parte lateral esquerda da viatura de matrícula do veículo de matrícula ..-UR-.. na guia do passeio situado no lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido Este - Oeste, derrubou o semáforo para peões e a placa vertical para ciclistas existentes na parte central da Avenida 1..., assim como um dos pilaretes colocado no início dessa pista, e invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito automóvel em sentido contrário, qual seja, Oeste - Este.
8 – De seguida embateu com o referido veículo no corpo do Assistente, que se encontrava na passadeira a meio da Avenida 1... cujo semáforo para peões aí existente exibia a luz verde.
V. Também quanto a este facto, o Tribunal ignorou completamente o depoimento das duas testemunhas oculares, que estavam na faixa da esquerda do sentido descendente da Avenida 1..., com visão privilegiada para os acontecimentos (vejam-se depoimentos da testemunha DD, inquirida na sessão de 10.04.2024, entre as 11h38 e as 11h49 - Do minuto 07.15 ao minuto 8.10 e da testemunha EE já tinha dito que se apercebe de” algo a deslizar no carro”, que este volta a arrancar e para mais à frente).
W. Não se esquece que das fotos constantes do processo se percebe que efetivamente o assistente não ficou no sítio onde foi atropelado, mas também não se pode concluir, com a certeza necessária a quantos metros de distância ficou, uma vez que, na verdade, ninguém consegue precisar o exato ponto onde ocorreu o embate com a viatura do arguido.
X. E como é do conhecimento comum e também foi referido pelas testemunhas, a passadeira nesse local é enorme e composta por, pelos menos, três partes.
Y. Nestes termos não pode ser dado como provado o conteúdo dos factos 11 e 12 relativamente à distância a que o assistente ficou após o embate.
AA. Consta dos autos, a fls. 406, um pedido urgente ao INML no sentido de ser indicado se o ofendido esteve ou não em perigo de vida entre 18-08-2022 e 14-07-2023, conforme consta o relatório pericial nº ... em que é afirmado “O examinado não esteve em perigo de vida entre 18-08-2022 e 14-07-2023 por prestação do tratamento adequado atempadamente”.
CC. No que tange com a integridade física do agente BB, resulta cristalino do acima exposto que na posição em que o agente estava – junto ao vidro do condutor – o arguido ao inverter a marcha da viatura nunca podia atingir o corpo do agente, não colocando assim, nunca, a integridade física do mesmo.
DD. O arguido como já tinha uma condenação por conduzir sem habilitação legal, teve medo e fugiu.
EE. Não exerceu qualquer tipo de violência sobre o agente, limitando-se a inverter o sentido da marcha da viatura, numa avenida larga, para não ser detido, como sabia que ia acontecer.
FF. E foram sempre neste sentido as declarações prestadas pelo arguido quer em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o ora recorrente, perante a Mmª JIC, (Sessão do dia 19/08/2022 entre as 17h10 e as 18h16- Do minuto 2.12 ao minuto 3.18) quer em audiência de julgamento (Sessão do dia 10/4/2024 entre as 10h07 e as 10h50 - Do minuto 6.08 ao minuto ao. minuto 7.3).
GG. Embora V. Exas. não tenham a possibilidade de ver o arguido, certamente ao ouvirem tão só este excerto perceberão que se trata de um jovem ..., que estava cheio de medo de ser apanhado e o seu único instinto foi fugir.
HH. Tem um défice de aprendizagem e registou inúmeras retenções por absentismo decorrente de doença crónica que lhe veio a ser diagnosticada. Foi sido alvo de intervenção por parte dos competentes serviços de promoção e proteção e integrado em cursos de educação e formação (CEF), mas sem sucesso – cfr. factos provados.
II. Face ao exposto, terá necessariamente de ser considerado não provado que o arguido colocou em causa a integridade física do agente BB.
KK. Uma vez corrigida a decisão no sentido que vimos propugnado, isto é, com a alteração obrigatória da matéria de facto dada como provada, estes artigos “caiem” por si só, pelo seguinte:
h) O arguido está parado na Avª 2... no sentido …-... e é abordado pelo agente BB que lhe bate no vidro da janela
i) Cheio de medo porque já tinha uma condenação por condução sem habilitação legal, inverte a marcha e coloca-se em fuga
j) desce a Avenida 2... em direção à Avenida 1... e ultrapassa as viaturas que estão imobilizadas, pela esquerda, em contramão e vira à direita na direção descendente da Avenida 1...
k) seja pela velocidade, seja pela sua imperícia, ao fazer a curva embate no passeio, derruba um semáforo, uns postes, e perde o controle da viatura
l) por este motivo acaba por atingir o assistente que se encontrava na passadeira no sentido ... a meio das faixas
m) ainda derruba alguns outros mecos e postes e acaba por imobilizar a viatura mais à frente
n) mesmo apeado, ainda tenta fugir às autoridades
LL. Salvo o devido respeito, parece-nos, no mínimo, parca a justificação apresentada pelo Tribunal a quo para considerar que o arguido atuou com dolo eventual.
MM. Porém, não há nos autos qualquer elemento que nos possa levar a concluir de forma segura que o arguido previu que poderia atropelar alguém e ainda assim prosseguiu na sua conduta.
NN. Naturalmente que qualquer condutor pode sempre pensar que se conduzir em excesso de velocidade, ou não respeitar um semáforo, existirá sempre uma possibilidade de atingir um peão.
OO. Mas para que exista dolo (eventual), não basta esta simples confabulação: estamos a falar de culpa, de comportamento culposo do agente ainda que na modalidade mais leve.
PP. Quando falamos de dolo, temos de considerar dois elementos: por um lado o elemento cognitivo ou intelectual do dolo, que pressupõe o conhecimento por parte do agente dos elementos essenciais que constituem o tipo legal que a sua conduta preenche;
Por outro lado, é necessário considerar o chamado elemento volitivo do dolo, ou seja, de modo simples, há uma vontade do agente em levar a cabo determinada conduta ou obter certo resultado.
Mas como este elemento não tem sempre a mesma configuração, é necessário distinguir entre três tipos de dolo: direto, necessário e eventual.
No dolo direto é pacificamente entendido que o agente atua com vista á realização de um facto típico, tem “intenção”, daí a redação no nº 1 do artigo 14º do Código Penal;
No dolo necessário, o objetivo do agente não é a realização do facto típico, mas outro facto, contudo ao querer o segundo facto o agente representa como consequência necessária da sua conduta o facto típico, aceitando, ao atuar essa mesma consequência. (nº 2 do artigo 14º do
CP) Por último no dolo eventual, existe também a possibilidade da produção do facto típico, mas com menor intensidade na aceitação da produção desse facto. (n.º 3 do artigo 14 CP). enquanto no dolo necessário há uma aceitação de uma “fatalidade”, no dolo eventual há tão só a aceitação de uma possibilidade.
QQ. Tudo isto para nos levar, sem margem para dúvida que o arguido AA, pretendia era a fuga às autoridades, e nunca sequer equacionou como possível o facto de poder atropelar alguém nessa fuga e muito menos se confirmou com esse resultado.
RR. Tal resulta não só do que não foi provado, como das declarações do próprio, pelo que a atuação do arguido tem necessariamente de ser enquadrada no regime da negligência, por ser essa figura que retrata a realidade dos factos.
SS. Nestes termos deveria o arguido ter sido condenado pelo crime previsto e punido pelo artigo 137.º do Código Penal.
TT. Ainda que se entenda que o arguido deva ser condenado pelo crime de homicídio na forma dolosa, nunca serão de aplicar as qualificativas indicadas.
UU. A acusação deduzida imputa, erradamente, ao arguido as agravantes previstas nas alíneas g) e h) do artigo 132.º do CP, sendo que o acórdão segue esta posição e confirma a verificação destas duas agravantes.
VV. Em primeiro lugar convém relembrar que tal como é sabido, as circunstâncias enumeradas no n. 2 do artigo 132 do Código Penal não são taxativas nem automáticas, não implicando por si só a qualificação do crime. É necessário que sejam reveladoras no caso concreto de uma especial censurabilidade ou perversidade.
WW. Colocada de lado a perversidade na atuação do arguido, parece-nos, salvo o devido respeito, que a sua conduta não merece uma especial censurabilidade que se revela quando as circunstâncias em que a morte foi perpetrada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
XX. Não nos parece que a conduta do arguido mereça essa especial censurabilidade exigida para a qualificação do crime.
YY. Ainda assim e quanto à qualificativa prevista na alínea g) “ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;” na realidade o “crime” a encobrir é a fuga aos agentes da PSP – ora é a própria fuga que preenche um dos requisitos do crime de desobediência, pelo que não se vislumbra como tal comportamento se enquadra na alínea g) do artigo 132.º.
ZZ. E não se diga que visava facilitar a fuga, pois foi precisamente pelo facto de o arguido per perdido o controle da viatura ao embater no semáforo e nos postes, que veio a embater no assistente, acabando a viatura por se imobilizar.
AAA. Quanto à agravante da alínea h) do artigo 132.º, refere o acórdão que “Ademais, o modo com conduzia aquele veículo, com violação das regras estradais previstas nos art.ºs 13º, 24º, n.º 1, 103º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), c) e e) e 146º, al. a), l) e o), do C.E. consubstanciam a prática de um crime de perigo comum, p.p. pelos art.º 291º, n.º 1, al. b), n.º 1, al. b), 294º, n.º 3, e 285º, por referência ao art.º 144º, al. d), do C.P. vistas as consequências daí resultantes para o peão”.
BBB. A jurisprudência é unanime em considerar que os crimes de perigo comum a que se refere a alínea g) do artigo 132.º do CP, são os como tal denominados no CP, ou seja os previstos 272º a 286º do CP (refiram-se a título de exemplo: Acórdão do STJ de 15/10/2003, no processo 03P2024, em que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar e o Acórdão do STJ de 29/6/2023, no processo 15/11.3PEALM.L5.S1, em que foi Relator o Sr. Juiz Conselheiro Lopes da Mota)
CCC. Não tendo o arguido praticado o crime com mais pessoas e não sendo a viatura automóvel, neste quadro fático, um meio particularmente perigoso, teremos necessariamente de concluir pela não verificação desta agravante.
EEE. O Tribunal a quo, na ponderação que faz, sobre a eventual suspensão da pena de prisão, conclui de forma negativa, apresentando a seguinte justificação:
“No caso em apreço, atendendo à gravidade dos factos praticados, ao antecedente criminal, à gravidade da conduta globalmente avaliada, que eleva sobremaneira as necessidades de prevenção geral, não obstante a idade do arguido e a circunstância de este já estra habilitado a conduzir veículos automóveis, afigura-se-nos que a ressocialização em liberdade ficaria aquém das necessidades de prevenção geral, não se mostrando suficiente e adequada à sua satisfação a suspensão da execução da pena ora determinada”.
FFF. Não refere naturalmente a prevenção especial, uma vez que o arguido já tem carta de condução. Baseia-se assim a não suspensão da pena de prisão apenas em necessidades de prevenção geral.
GGG. Com todo o respeito por esta decisão em fase de inquérito, não pode a comunidade em geral e o arguido em particular, ficar com a sensação que de alguma forma “pesou” contra si a qualidade profissional do ofendido.
HHH. É certo que a prevenção geral é elevada no crime de condução sem habilitação legal, mas do nosso ordenamento jurídico, tendo a pena uma dupla finalidade de prevenção especial e geral, exige-se que esta prevenção geral seja pela “positiva”, ou seja “faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e pelo outro no restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens tutelados”; (Ac. TRC de 10/03/2010 no processo 1452/09.9PCCBR.C1.
III. Condenar um jovem de 24 anos, inserido familiar, laboral e socialmente, que já é possuidor de carta de condução, por factos ocorridos há dois anos, a entrar num estabelecimento prisional, ainda que fosse apenas um dia, é claramente extravasar a medida da culpa, que estabelece sempre o limite da pena a aplicar.
JJJ. Desde o primeiro interrogatório que o arguido colaborou, assumiu a sua culpa, manifestou o seu profundo pesar pela situação do ofendido e na realidade não há nos autos nada que não permita ao tribunal efetuar um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do arguido que impeça que a pena em que necessariamente tem de ser condenado seja suspensa na sua execução.
KKK. O Tribunal a quo não atendeu, assim, em nosso entender, como devia: à personalidade do recorrente que resulta dos factos provados e do seu relatório social de fls…, as consequências do seu acto, o grau de ilicitude e de culpa, a confissão e o arrependimento, e acima de tudo a sua capacidade de interiorizar a pena como ressocializante e justa, e nunca repressiva e desmoralizante, pelo que se entende como justa, adequada e proporcional ser de suspender na sua execução a pena única em que veio a ser o arguido condenado.
Princípios e disposições legais violadas ou incorretamente aplicadas:
* artigo 347.º do Código Penal;
*Artigo 14.º n.º 2 e 3 do Código Penal;
*Artigo 132.º n.º 2 alínea g) e h) do Código Penal;
* Artigos 40.º, 43.º, 50.º, 52.º, 53.º, 54.º, 70.º, 71.º, 72.º, 73.º e 77.ºdo Código Penal;
* Artigo 410.º n.º 1 e 2 alínea c) do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de direito, que V. Exas. Doutamente melhor suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser alterada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que contemple as conclusões atrás aduzidas, tudo com as legais consequências.
O recorrente mais requer, nos termos do disposto no número 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, a realização de audiência no Tribunal Superior, com vista a debater a matéria de facto que infra se impugna.
Decidindo deste modo, farão V. Exas., aliás como sempre um ato de
INTEIRA E SÃ JUSTIÇA
Admitido o recurso, respondeu-lhe o MP junto da primeira instância, pugnando pela respetiva improcedência pelo seguinte modo:
O recorrente, nas conclusões que formula, apresenta, em síntese e na essência, a sua discordância relativamente aos seguintes pontos:
- Existência de erro de julgamento, pelo que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos amplos do art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, mais concretamente, os pontos da matéria de facto provada com os nºs 4, 7, 8, 11, 12, 17, 25, 26, 27 e 29.
- Sustenta que, corretamente fixada a matéria de facto, o arguido deve então ser condenado pela prática do crime previsto no art. 137º, do CP.
- Sem prescindir, defende que, ainda que se mantenha a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na forma dolosa, nunca serão de aplicar as qualificativas indicadas nas alíneas g) e h) do artigo 132.º do CP.
- Finalmente, sustenta que a pena de prisão imposta deveria ser suspensa na respetiva execução.
O recurso incide, assim, sobre matéria de facto e de direito.
B – Da motivação (strictu sensu) da resposta.
1 – Do dispositivo.
O tribunal a quo decidiu condenar o arguido/recorrente, pela prática de:
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º 1
e 2, do D.L. 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 1 ano de prisão;
- Um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º 2,
do C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelo art.º 131º, 132º, n.º 1 e 2, al. g) e h) e 22º e 23º, do C.P. (em concurso aparente com o crime de condução perigosa de veiculo rodoviário agravado, p.p. pelos art.º 291º, n.º 1, al. b), 69º, n.º1, al. a), 294º, n.º 3, e 285º por referência ao art.º 144º, al. d), do C.P. e 24º, n.º1, 103º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), c) e e), 146º, al. a), l) e o), do C.E.), na pena de 4 anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi imposta a pena única de 4 anos e 10 meses de prisão efetiva.
2 – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
O recurso procura degradar diversos meios de prova valorados pelo tribunal.
Vejamos.
Facto provado 4.
Aqui o recurso pretende, sem fundamento, diminuir o valor probatório das declarações do agente BB, que o tribunal reputou de “claríssimas”;
Procura contrapor às declarações do primeiro as da testemunha, e agente da PSP, CC.
Sucede que esta testemunha adiantou que não viu o arguido a virar à esquerda na direção do colega Agente BB.
Aliás, esta testemunha, como se depreende do próprio teor do recurso, já não se recordava com precisão do ocorrido.
Naturalmente, o agente da PSP BB, contra quem a viatura foi dirigida, terá uma recordação impressiva desse facto.
Atente-se no seguinte extrato da decisão em crise: “Foram claríssimas as declarações da testemunha BB no que respeita à posição que assumiu junto do veículo conduzido pelo arguido, à manobra efetuada por este de inversão do sentido de marcha e ao embate iminente no seu corpo, a que obstou, desviando-se da trajetória iniciada”.
O tribunal valorou o depoimento da testemunha BB, considerou-a, obviamente, credível. Da fundamentação do recurso nada se extrai que permita afastar essa credibilidade.
Facto provado 7.
Afirma o recorrente que “Quanto à velocidade a que seguia a viatura do arguido, não temos nenhum elemento de prova objetivo que nos indique a que velocidade o mesmo seguia.”
O tribunal, quanto à questão da determinação da velocidade, face à inexistência de registos objetivos, exatos, socorreu-se do depoimento da testemunha CC: “Esta testemunha, assegurou que o arguido imprimia ao veículo uma velocidade superior a 50 Km/h, o que é compatível com os vestígios deixados no local e com o local de imobilização do veículo, mormente se considerarmos o embate anterior no semáforo para peões referido na matéria de facto”.
Concede-se, assim, que o tribunal recorrido deveria ter dado como provado, face à motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, que o veículo conduzido pelo arguido seguia a uma velocidade indeterminada, superior a 50 km/h.
De todo o modo, essa correção da matéria de facto dada como provada em nada altera a decisão de direito.
É que, tratando-se de uma localidade, o limite de velocidade máximo permitido era de 50 km/h, de acordo com o estatuído no art. 27º, do Código da Estrada, ou seja, o arguido sempre estava a infringir a lei, a transitar com velocidade excessiva para o local.
Deve, pois, nesta parte proceder parcialmente o recurso, e ser corrigido o facto provado nº 7, passando a constar do mesmo que: “Logo após, imprimindo sempre velocidade indeterminada, mas superior a 50 Km/hora, o arguido perdeu o controle do veículo de matrícula ..-UR-.. e embateu com o referido veículo no corpo do Assistente, o qual, nesse momento, atravessava a Avenida 1... na passadeira, cujo semáforo para peões aí existente exibia a luz verde.”
Facto provado 8.
Neste concreta ponto o recurso parte de uma premissa distinta da decisão em crise, pois coloca o peão na passadeira errada, melhor, no segmento da passadeira errado.
Atente-se no decidido: “A dinâmica do acidente afirmada pelo arguido é desmentida pela configuração do local. Na verdade, nas fotografias de fls. 102, frente e verso, e 105, verso – é visível que a passadeira em que circulava o peão - por referência ao sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, antes do embate - surge antes do semáforo e demais sinais derrubados o que, claramente, impõe, que aquele tenha sofrido, em primeiro lugar, o impacto do veículo”.
O peão não foi colhido, contrariamente ao alegado no douto recurso, na passadeira “onde se vê o agente, ou seja, depois do embate nos semáforo e placa vertical” (cfr. ponto 38 do recurso, com referência à ilustração 9).
A vítima encontrava-se, de acordo com a decisão judicial recorrida, no segmento da passadeira que se encontra precisamente à direita na fotografia referida, e por isso o tribunal, naturalmente, concluiu que, primeiro o peão é embatido, só depois a viatura galga o separador e embate nos semáforos.
E também por isso o tribunal a quo considerou que “a trajetória do referido veículo, desenhada a partir da Avenida 2..., ao ponto de embate no peão, impõe a transposição da linha longitudinal continua separadora de sentidos de trânsito existente no local e infirma a afirmação do arguido de que se manteve sempre na via mais à direita daquela linha, tendo virado à direita, para passar a circular no sentido descendente da Avenida 1...”.
Factos provado 11 e 12.
Discorda o recorrente que se tenha dado como provado que o assistente foi projetado, na sequência do embate, a uma distância não inferior a 30 metros.
Tece a seguinte argumentação: “Não se esquece que das fotos constantes do processo se percebe que efetivamente o assistente não ficou no sítio onde foi atropelado, mas também não se pode concluir, com a certeza necessária a quantos metros de distância ficou, uma vez que, na verdade, ninguém consegue precisar o exato ponto onde ocorreu o embate com a viatura do arguido.”
Diríamos que a questão aqui é diversa da formulada pelo recorrente.
Percorrida a motivação do acórdão não se alcança com base em que elementos probatórios se deu como provado este concreto facto.
De todo o modo, de novo se constata que, ainda que se dê como não provado que “a vítima foi projetada, na sequência do embate, a uma distância não inferior a 30 metros”, tal circunstância não tem a virtualidade de alterar o sentido da decisão recorrida.
Trata-se de um facto lateral, não essencial.
A projeção da vítima, após embate, em nada contende com a conduta objetivamente prosseguida pelo arguido até esse momento, e que determina a colisão com o peão, em nada contende com a motivação subjacente a essa conduta até ao momento do impacto.
Ou seja, não afeta a decisão de direito encontrada pelo tribunal.
Assim, ainda que seja dado procedência ao recurso, neste concreto ponto, a decisão de direito manter-se-á inalterada.
Sempre se adiantará, no entanto, que, na essência, o recurso não merece adesão, pois a abundante prova produzida, designadamente a que se encontrava já pré-constituída no processo, impõe que sê dê como provado que “a vítima foi projetada, na sequência do embate, a uma distância não inferior a 30 metros
Basta atentar para a fotografia junta aos autos a fls. 29 para se perceber o decidido pelo tribunal, já que o local onde a vítima se encontrava a receber os primeiros socorros é claramente visível, sendo que, apesar do registo fotográfico apresentar um enquadramento bastante aberto, o mesmo não consegue sequer abarcar o local onde o semáforo foi arrancado do solo, o local onde a viatura galgou o separador central (guia), nem sequer a passadeira onde o sinistrado foi colhido.
Por outro lado, o recurso ignora de forma manifesta o documento junto a fls. 100, do qual se retira claramente, pois tem medições exatas, que a distância “superior a 30 metros” fixada pelo tribunal é correta.
Adite-se que dos registos fotográficos juntos a fls. 100 a 106 forçam idêntica conclusão, quanto à distância de 30 metros.
Facto provado 17.
O acórdão declara que o atropelamento colocou em perigo a vida do assistente, erradamente o faz, sustenta o recorrente, pois “O examinado não esteve em perigo de vida entre 18-08-2022 e 14-07-2023 por prestação do tratamento adequado atempadamente”.
Sucede que basta ver a extensão dos danos descritos no relatório pericial de avaliação do dano corporal, juntos fls. 401 a 404, provocados na vítima, para perceber a gravidade das lesões e a violência do atropelamento.
A realidade é, infelizmente, singela: se não tivesse sido prontamente assistido pelo INEM e submetido a cirurgia de imediato no A..., E.P.E., o assistente teria falecido.
Como se depreende da informação clínica junta a fls. 22 dos autos, datada de 19.08.2022, quando o assistente já se encontrava estabilizado, em pós-operatório, nos cuidados intermédios do A..., E.P.E.
politraumatisado, encontrava-se então “clinicamente estável (não apresentando perigo de vida no futuro imediato)”.
Sustentar que a conduta do arguido não colocou em perigo a vida do assistente é um argumento de natureza radical.
Basta realizar um simples exercício: retire-se da equação a pronta intervenção do INEM. Temos a vítima, então com 66 anos de idade, prostrada na estrada, politraumatizada na sequência do atropelamento, com fratura exposta na perna direita, fratura linear na apófise transversa esquerda de D1, com fratura linear no osso frontal à esquerda a interessar marginalmente a parede posterior do seio frontal da parede superior da órbita com perda de acuidade visual, focos dispersos de hemorragia, com lesão traumática do olho esquerdo. Sem a devida assistência médica de emergência, sem a urgente intervenção cirúrgica, o que pensa o recorrente que sucederia?
Temos por manifesto que a conduta do arguido colocou, naturalisticamente, em risco, a vida do arguido, e que esse risco foi afastado, esse perigo foi removido, pela pronta assistência médica de que beneficiou.
A argumentação desenvolvida pelo recorrente, levada às suas derradeiras consequências, permitiria concluir que, por um ofendido ter sido atingido de raspão na cabeça, por um disparo de arma de fogo, por alguém que o procurou liquidar, não correu perigo de vida, face às diminutas lesões físicas provocadas.
É, com o devido respetio, uma argumentação ilógica.
Facto provado 25.
Aqui o recorrente remete para as considerações já anteriormente adiantadas, e que, pelos argumentos também já adiantados em sede de resposta, entendemos que improcedem.
Factos 26, 27 e 29.
Estes factos reportam-se à materialização do elemento subjetivo dos vários crimes, a qual fica, naturalmente, dependente da procedência do recurso quanto à alteração dos factos objetivos impugnados que, reitera-se, deve improceder.
De todo o modo é de rejeitar o argumento que “Não há nos autos qualquer elemento que nos possa levar a concluir de forma segura que o arguido previu que poderia atropelar alguém e ainda assim prosseguiu na sua conduta”.
O arguido conduziu a viatura de forma absolutamente temerária, com um total desprezo pelas mais essenciais normas estradais (regras de circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à passagem de peões, ao limite de velocidade e à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita), pelo que a possibilidade de perder o controlo da viatura e de, na sequência, colher um peão, se apresentava também como evidente, manifesta, natural.
Que fez o arguido?
Conformou-se com esse provável e previsível resultado e prosseguiu com a condução de risco que vinha encetando, com o imediato objetivo de se furtar à atuação policial.
Bem andou, pois, o tribunal recorrido quando concluiu que o arguido atuou com dolo eventual: “Sobre o dolo, que considerámos eventual, importa referir que local representa um ponto nevrálgico da cidade do Porto, com constante movimento quer de veículos quer de pessoas, em especial se considerarmos um dia de Verão, como aquele em que ocorreram os factos, com céu limpo, o que impõe a previsão de um embate nos moldes ocorridos, circunstância com que o arguido se conformou, agindo de modo livre, deliberado e consciente.”
Não merece, em nosso entender, reparado o acórdão revidendo.
3 . Da não verificação das circunstâncias qualificativas.
Entende o recorrente que, ainda que se mantenha a condenação pela prática do crime de homicídio, nunca serão de aplicar as qualificativas indicadas nas alíneas g) e h) do nº2, artigo 132.º do CP.
Importa desde logo afirmar que a conduta do arguido é particularmente censurável: conduz um veículo sem ser possuidor de habilitação legal; tenta frustrar a atuação policial; dirige o veículo que conduz contra um agente policial, para obstar à fiscalização; coloca-se em fuga; conduz o veículo à revelia das mais básicas regras rodoviárias enquanto é perseguido pela PSP; despista-se; colhe o peão; sobe a guia separadora central; embate num semáforo; circula contra-a-mão na Avenida 1...; tenta de novo escapar à atuação policial quando o veículo se imobiliza.
Analisemos, contudo, a norma aplicada pelo tribunal, já que o arguido foi condenado pela prática de um crime homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs. 1 e 2, g) e h), 22º, a) e b) e 23º do Código Penal.
Estabelece o nº 2, do art. 132, do CP, que “É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”.
Em relação à al. g) é por demais evidente, pois o arguido o admitiu claramente em sede de julgamento, que tudo fez com o propósito de frustrar, pondo-se em fuga, a ação de fiscalização policial, dado que se encontrava conduzir veículo automóvel sem habilitação legal.
Acrescentaremos que não só o arguido atuou com a intenção de facilitar a fuga (a sua fuga), como atuou de acordo com outra das circunstâncias agravativas previstas na alínea g) em análise: agiu com o propósito de encobrir um crime, o de condução sem habilitação legal que se encontrava a praticar.
Não merece, assim, adesão a posição sustentada pelo recorrente.
Quanto à agravante da alínea h) do artigo 132.º, do CP, defende-se no douto recurso que a “jurisprudência é unanime em considerar que os crimes de perigo comum a que se refere a alínea g) do artigo 132.º do CP, são os como tal denominados no CP, ou seja os previstos 272º a 286º do CP (refiram-se a título de exemplo: Acórdão do STJ de 15/10/2003, no processo 03P2024, em que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar e o Acórdão do STJ de 29/6/2023, no processo 15/11.3PEALM.L5.S1, em que foi Relator o Sr. Juiz Conselheiro Lopes da Mota) CCC. Não tendo o arguido praticado o crime com mais pessoas e não sendo a viatura automóvel, neste quadro fático, um meio particularmente perigoso, teremos necessariamente de concluir pela não verificação desta agravante.”
O tribunal recorrido considerou o seguinte: “Ademais, o modo com conduzia
aquele veículo, com violação das regras estradais previstas nos art.ºs 13º, 24º, n.º 1, 103º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), c) e e) e 146º, al. a), l) e o), do C.E. consubstanciam a prática de um crime de perigo comum, p.p. pelos art.º 291º, n.º 1, al. b), n.º 1, al. b), 294º, n.º 3, e 285º, por referência ao art.º 144º, al. d), do C.P. vistas as consequências daí
resultantes para o peão. Tal factualidade é claramente enquadrável nas circunstâncias
agravante individualizadas na acusação”.
Propendemos, neste ponto, a concordar com o argumento apresentado pelo recorrente, que corresponde à posição assumida pelo Prof. Jorge Figueiredo Dias no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, em anotação à norma: crimes de perigo comum a considerar são apenas os plasmados nos arts. 272º a 286º do CP, ou seja, os previstos no Livro II, Título IV, Capítulo III, do Código Penal.
Estando o crime de condução perigosa de veículo rodoviário (que é um crime de perigo concreto) previsto no art. 291º, do CP, conclui-se, logicamente, que não está preenchida, in casu, a circunstância “prática de crime de perigo comum” prevista na al.h) do artigo 132.º do CP.
De todo modo, em nosso entender, com outro fundamento, a al. h), do nº 2, do art.132º, do CP, deve ser aplicada in casu.
É que a utilização de um veículo automóvel para cometer um crime de homicídio, configura a utilização de um meio particularmente perigoso.
Com efeito, o recurso a um veículo automóvel para prática de um crime de homicídio acarreta, objetivamente, um grau de perigosidade muito superior relativamente aos meios comummente utilizados para agredir letalmente, por exemplo, uma arma de fogo ou uma faca.
A utilização de um veículo automóvel apresenta uma perigosidade para além do comum, reduzindo fortemente a possibilidade de defesa da vítima.
Por outro lado, compromete, não só a vida daquele que se pretende atingir, como tem a virtualidade de colocar em risco, quer a vida, quer bens, de terceiros.
Ou seja, e regressando ao caso presente, não só a utilização do veículo, mas as concretas circunstâncias em que o mesmo foi utilizado, impõem que se considere que a execução do crime apresenta um grau de perigosidade que excede o normal, justificando, por isso, uma maior censura ao arguido.
Em consequência, deve sempre operar, in casu, a al. h), do nº 2, do art.132º, do CP, ainda que por fundamento distinto do considerado no douto acórdão agora em crise.
Donde, e uma vez mais, deve proceder, nesta concreta questão, o recurso, mantendo-se, de todo o modo, ainda que com fundamento diverso, a decisão prolata pelo tribunal a quo.
4. Da suspensão da execução da pena.
Pretende o recorrente que seja decretada pelo tribunal de recurso a suspensão da execução da pena de prisão.
Afirma que é possível formular um juízo de prognose favorável sobre a conduta futura do arguido.
Sucede que o tribunal recorrido não chegou sequer ao momento em poderia analisar se era possível, ou não, formular em relação ao condenado um juízo de prognose favorável, já que rejeitou a aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena, por esta se apresentar como absolutamente inadequada.
“No caso em apreço, atendendo à gravidade dos factos praticados, ao antecedente criminal, à gravidade da conduta globalmente avaliada, que eleva sobremaneira as necessidades de prevenção geral, não obstante a idade do arguido e a circunstância de este já estra habilitado a conduzir veículos automóveis, afigura-se-nos que a ressocialização em liberdade ficaria aquém das necessidades de prevenção geral, não se mostrando suficiente e adequada à sua satisfação a suspensão da execução da pena ora determinada.”
Ou seja, ainda que o tribunal recorrido tivesse formulado um juízo de prognose favorável (o que não sucedeu), face à gravidade da conduta do arguido a opção pela suspensão de execução da pena de prisão colocaria em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade.
Como refere Figueiredo Dias (As consequências jurídicas do crime, 1993, § 518), a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, ainda que o tribunal formule um juízo de prognose favorável.
In casu a suspensão da execução da pena sempre será de rejeitar, face às ponderosas exigências que se fazem sentir ao nível da prevenção geral, sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Releva, ainda, a seguinte circunstância: o recurso não ataca o concreto fundamento da decisão, já que o tribunal, no processo decisório, ficou aquém do momento em que teria de apreciar a questão do “juízo de prognose favorável”.
Em síntese, ainda que o arguido tivesse beneficiado de um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro (o que não ocorreu), dado que a pena prevista no art. 5oº, do CP, não pode colocar em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos, sempre será de negar a aplicação da pretendida pena de substituição, pois essa aplicação defraudará as expectativas comunitárias de reposição/estabilização da ordem jurídica, da confiança na validade da norma violada e no cumprimento do direito.
Resulta, do que precede, que o recurso deve improceder, neste ponto:
- Pois não incide, em bom rigor, sobre o fundamento que determinou a rejeição da aplicação da pena de suspensão da execução da pena de prisão;
- O sentido da decisão não merece reparo.
C – Conclusões.
1 - O recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, pela via mais ampla consagrada no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, sustentando a existência de erro de julgamento relativamente aos factos dados como provados com os nºs 4, 7, 8, 11, 12, 17, 25, 26, 27 e 29.
2 – Não indica, contudo, prova que imponha decisão diversa da recorrida relativamente aos factos nºs 4, 8, 11, 12, 17, 25, 26, 27 e 29.
3 – Já quanto ao facto provado 7, deve o mesmo ser alterado, passando a constar:
“Logo após, imprimindo sempre velocidade indeterminada, mas superior a 50 Km/hora, o arguido perdeu o controle do veículo de matrícula ..-UR-.. e embateu com o referido veículo no corpo do Assistente, o qual, nesse momento, atravessava a Avenida 1... na passadeira, cujo semáforo para peões aí existente exibia a luz verde.”
4 – De todo o modo, a referida alteração do quadro factual em nada altera o sentido da decisão proferida pelo tribunal recorrido, pois o que releva é que o arguido circulava a uma velocidade que excedia o limite máximo de 50km/h legalmente estabelecido pelo art. 27º, do Código da Estrada, para o local.
5 – Discorda o recorrente da aplicação das qualificativas indicadas nas alíneas g) e h) do nº2, artigo 132.º do CP.
6 – Sucede que, relativamente à al. g), não só o arguido admitiu que se colocou em fuga, de forma a obstar à ação de fiscalização policial, como se verifica outra das circunstâncias agravativas previstas na referida alínea: agiu com o propósito de encobrir um crime, o de condução sem habilitação legal, que se encontrava a praticar.
7 – Já quanto a circunstância “prática de crime de perigo comum” prevista na al.h) do artigo 132.º do CP, deve o recurso ser considerado procedente, pois o crime de condução perigosa de veículo rodoviário (que é um crime de perigo concreto), consagrado no art. 291º, do CP, não integra o elenco de ilícitos previstos nos arts. 272º a 286º do CP.
8 - De todo o modo, em nosso entender, com outro fundamento, a al. h), do nº 2, do art.132º, do CP, deve ser aplicada in casu, já que a utilização de um veículo automóvel para cometer um crime de homicídio configura a utilização de meio particularmente perigoso.
9 – Mais argumenta o recorrente, sem prescindir, que a suspensão da execução da pena deve ser determinada, por ser viável a produção de um juízo de prognose favorável.
10 – Ocorre que a rejeição, por parte do tribunal recorrido, do instituto da suspensão, não se baseou na rejeição de um juízo de prognose favorável, mas sim na inadmissibilidade da aplicação de tal pena de substituição, por a mesma não permitir a realização, de forma adequada e suficiente, das finalidades da punição.
11 – Em consequência, nesta parte, o recurso deve improceder, desde logo por não incidir sobre o fundamento que determinou a rejeição da aplicação da pena de suspensão da execução da prisão e, por outro lado, por o sentido da decisão não merecer reparo.
Nestes termos, e nos demais de direito, que V.Exas. Venerandos Desembargadores suprirão, deve proceder, parcialmente, o douto recurso, mantendo-se, no entanto, o dispositivo da decisão recorrida, ainda que com distinto fundamento.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. Conforme dessas conclusões se colhe, as matérias neste caso relevantes são as seguintes:
- impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos amplos do art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, nos pontos da matéria de facto provada com os nºs 4, 7, 8, 11, 12, 17, 25, 26, 27 e 29.
- não poderá o arguido ser condenado pelo crime de resistência e coação a funcionário;
- Sustenta que o arguido deverá ser condenado pela prática do crime previsto no art.137º, do CP.
- Sem prescindir, defende que, caso se mantenha a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na forma dolosa, nunca serão de aplicar as qualificativas indicadas nas alíneas g) e h) do artigo 132.º do CP.
- Finalmente, sustenta que a pena de prisão imposta deveria ser suspensa na respetiva execução.
O acórdão recorrido
“Acordam os juízes que constituem este Tribunal Colectivo
No processo comum n.º 341/22.6PDPRT, do Juízo Central Criminal do Porto ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, para julgamento com intervenção de Tribunal Colectivo, o Ministério Público acusou:
- AA, solteiro, feirante, nascido em ../../2000, natural de ..., Porto, filho de FF e de GG, residente na Rua ..., Bloco ..., Entrada ..., Casa ..., no Bairro ..., no Porto, titular do B. I. /C.C. nº. ...83;
Imputando-lhe a prática em autoria material e concurso real de:
- Um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 3º, nºs. 1 e 2, do DL 2/98, de 3 de janeiro;
- Um crime homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nºs. 1 e 2, g) e h), 22º, a) e b) e 23º do Código Penal, em concurso aparente com um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, b), 69°, nº 1, a), 294º, nº. 3 e 285º, por referência ao artigo 144º, d), do Código Penal, e aos artigos 24°, n.°1, 103°, n.º 1, 145°, n.º 1, a), c) e e), 146°, a), l) e o) do Código da Estrada.
- Um crime de resistência e coação sobre funcionário, na forma consumada, p. e p. pelo artigo 347º, nº. 2, do Código Penal.
Arrolou testemunhas e requereu a realização de prova pericial.
Arrolou prova testemunhal e documental.
2.1 - Matéria de facto provada:
1º No dia 18 de agosto de 2022, cerca das 10.30 horas, o arguido encontrava-se sozinho no lugar do condutor do veículo automóvel de marca ..., modelo ... de matrícula ..-UR-.., na Avenida 2..., no Porto, no sentido Sul - Norte, ou seja, Avenida 1... - Rua ..., junto ao semáforo existente no cruzamento com a Rua ....
2º Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o Agente da PSP BB, com a matrícula nº. ...54, no exercício das suas funções de patrulhamento e fiscalização, bateu na janela do lado do condutor do referido veículo automóvel, identificou- se perante o arguido como Agente da PSP, exibindo-lhe a respetiva carteira profissional, e deu-lhe ordem verbal e gestual de paragem, a fim de proceder a ação de fiscalização de rotina.
3º O arguido, não obstante ter visto e ficado ciente da referida ordem de paragem, que sabia ser-lhe dirigida por Agente da PSP, não abriu a janela do lado do condutor e, sem nada dizer, a fim de se furtar à ação de fiscalização policial, iniciou brusca e repentinamente a marcha do veículo de matrícula ..-UR-.., imprimindo-lhe velocidade concretamente não apurada, mas superior a 50 Km/hora, e inverteu o sentido de marcha desse veículo, transpondo a linha longitudinal contínua separadora de sentidos de trânsito existente na Avenida 2..., no Porto, visível e devidamente delimitada no pavimento, passando a circular no sentido Norte - Sul, ou seja, Rua ....
4º Aquando da realização da referida manobra de inversão de marcha, o arguido virou à esquerda na direção do referido Agente da PSP, sem qualquer cuidado ou preocupação de embater no corpo deste, o qual só não foi atropelado porque se desviou imediata e rapidamente da trajetória do veículo de matrícula ..-UR-...
5º De seguida, o arguido prosseguiu a marcha do veículo de matrícula ..-UR-.., que conduzia, em direção à Avenida 1..., a velocidade concretamente não apurada mas seguramente superior a 50 Km/hora, sendo perseguido por Agentes da PSP em veículo afeto a essa autoridade policial com as luzes rotativas de emergência acionadas.
6º Nessas circunstâncias, quando se encontrava ainda na Avenida 2..., mas a poucos metros do cruzamento dessa via com a Avenida 1..., o arguido, aumentando a velocidade do veículo de matrícula ..-UR-.., transpôs a linha longitudinal contínua separadora dos sentidos de trânsito, visível e devidamente delimitada no pavimento, ultrapassou uma fila formada por veículos automóveis que estavam parados em obediência ao sinal vermelho que o semáforo existente nesse cruzamento exibia e, ao aproximar-se desse semáforo, que ostentava a luz vermelha, não parou, nem abrandou a velocidade que imprimia ao referido veículo e, ao invés, desrespeitou a obrigação de paragem imposta por esse sinal, virou à sua direita e passou a circular na Avenida 1..., no sentido Este - Oeste.
7º Logo após, imprimindo sempre velocidade superior a 70 Km/hora, o arguido perdeu o controle do veículo de matrícula ..-UR-.. e embateu com o referido veículo no corpo do Assistente, o qual, nesse momento, atravessava a Avenida 1... na passadeira, cujo semáforo para peões aí existente exibia a luz verde.
8º De seguida, embateu com o pneu e com a parte lateral esquerda da viatura de matrícula do veículo de matrícula ..-UR-.. na guia do passeio situado no lado esquerdo da faixa de rodagem, atento o sentido Este - Oeste, derrubou o semáforo para peões e a placa vertical para ciclistas existentes na parte central da Avenida 1..., assim como um dos pilaretes colocado no início dessa pista, e invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito automóvel em sentido contrário, qual seja, Oeste - Este.
9º Por força dos referidos embates, o veículo de matrícula ..-UR-.. sofreu danos, nomeadamente na parte frontal, espelho lateral direito, tejadilho e forras pneumáticas anterior do lado esquerdo que impediram a respetiva circulação, pelo que ficou parado na Avenida 1..., na faixa destinada ao trânsito no sentido Oeste - Este, a cerca de 200 metros de distância do local onde o assistente ficou imobilizado após ser atropelado.
10º Ainda assim, o arguido saiu desse veículo e, apeado, tentou fugir desse local, o que só não logrou por ter sido perseguido e detido pela PSP após ter percorrido cerca de 150 metros.
11º Por força do atropelamento de que foi vítima, o Assistente foi projetado no ar, no solo e pelo ar por distância concretamente não apurada, mas não inferior a 30 (trinta) metros, acabando por ficar imobilizado e caído no pavimento da Avenida 1..., na faixa destinada ao trânsito no sentido Oeste - Este.
12º Como consequência direta e necessária do descrito atropelamento/embate e consequente projeção por cerca de 30 metros, o Assistente teve perda de consciência e sofreu inúmeras lesões descritas nos elementos clínicos nos relatórios de perícia de avaliação do dano corporal juntos aos autos, cujos teores que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, designadamente:
- Traumatismo Crânio Encefálico (TCE) ligeiro, com GCS 15, anisocoria midríase E»D, fratura linear frontal com aparente envolvimento da parede posterior do seio frontal à esquerda e parede superior da órbita e lesão traumática do olho esquerdo;
- Hematoma subdural, com coleções bilaterais, à direita, em topografia fronto - parieto - temporal com 23 mm de maior espessura na região frontal; à esquerda, em topografia fronto - parietal, com 17 mm de maior espessura na região frontal, efeito de massa sobre parênquima adjacente, ligeira hipodensidade da substância branca do hemisfério cerebral direito a nível do centro semioval, sugestivo de edema vasogénico associado a efeito de massa das coleções subdurais;
- Ferida no couro cabeludo e orelha esquerda;
- Hematoma orbitário esquerdo;
- Fratura exposta grau II do terço distal da perna direita;
- Fratura linear sem desvio na apófise transversa esquerda de D1;
- Rotura do olho esquerdo e catarata traumática, com corectopia, hifema e pigmento subconjuntival;
- Esfacelamento da face.
13º Para tratamento das referidas lesões traumáticas e logo após as ter sofrido, o Assistente foi conduzido, pelo INEM, ao Hospital ..., no Porto, onde esteve internado e foi submetido às seguintes intervenções médico cirúrgicas:
- Em 18 de agosto de 2022, a cirurgia ao membro inferior direito;
- Em 18 de agosto de 2022, a reparação cirúrgica primária no globo do olho esquerdo com sutura da esclera e, posteriormente, em 10 de outubro de 2022, a cirurgia com facoemulsificação e introdução de lente intraocular.
- Em 18 de novembro de 2022, a neurocirurgia a hematoma subdural.
14º Para tratamento das referidas lesões físicas e traumáticas, o Assistente esteve ininterruptamente internado nos cuidados intensivos, nos cuidados intermédios continuados e na enfermaria do Hospital ..., no Porto, desde 18 de agosto até 7 de setembro do mesmo ano, e desde 18 de novembro de 2022 até ao dia 22 de novembro desse ano.
15º No período de internamento compreendido entre os dias 18 e 7 de setembro de 2022, o Assistente e sofreu as seguintes intercorrências:
- Insuficiência respiratória tipo 1, com edema agudo do pulmão hipertensivo, infeção respiratória nosocomial, contusões pulmonares infetadas e síndrome ansioso.
16º Após a cirurgia a que foi submetido por força da fratura da tíbia direita que padeceu, por apresentar limitação de todos os movimentos da tibiotársica e da subtalar e limitação de marcha, que apenas conseguia realizar com andarilho, o Assistente teve de frequentar tratamentos de fisioterapia desde 14 de outubro de 2022 até 22 de fevereiro de 2023.
17º As lesões acima descritas, que o Assistente padeceu por força do atropelamento/embate e projeção por cerca de 30 metros de que foi vítima por parte do arguido, colocaram em perigo a sua vida e determinaram-lhe direta e necessariamente 330 (trezentos e trinta) dias para a consolidação médio legal, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral.
18º Das referidas lesões resultaram para o Assistente as seguintes sequelas permanentes, as quais não lhe condicionam graves desfiguração, afetação da sua capacidade de trabalho, nem da funcionalidade do seu corpo:
- Marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas;
- No crânio: cicatriz com 2 cm de comprimento no pavilhão auricular esquerdo, com perda de substância em forma de V no arco superior do pavilhão auricular; cicatriz de tipo cirúrgico com 4 cm de comprimento e 1,5 cm de largura na região frontal à direita; área cicatricial hiperpigmentada com 1,5 cm de diâmetro junto da cauda da sobrancelha direita;
- Na face: perda do dente canino inferior à esquerda; espessamento e coloração arroxeada da conjuntiva ocular nos quadrantes internos do globo ocular esquerdo;
- No membro superior direito: área hipopigmentada com 6 cm por 1,5 cm de maiores dimensões no terço médio da face posterior do antebraço;
- No membro superior esquerdo: área hipopigmentada com 7 cm por 7 cm de maiores dimensões na metade superior da face posterior do antebraço;
- No membro inferior direito:
a) cicatriz de tipo cirúrgico com 5 cm por 2 cm na face anterior do joelho:
b) cicatriz do tipo cirúrgico com 7 cm por 2 cm no terço inferior da face anterior da perna, com halo hiperpigmentado com 7 cm de diâmetro;
c) cicatriz com 2 cm de comprimento no terço superior da face lateral da perna;
d) cicatriz com 5 cm por 2 cm no terço inferior da face lateral da perna, com halo hiperpigmentado com 5 cm de diâmetro;
e) Rotação medial do pé;
f) Atrofia de 2 cm da coxa a 10 cm do pólo superior da rótula;
g) Rotação interna da tíbia, distalmente ao foco da fratura.
- No membro inferior esquerdo: cicatriz hiperpigmentada, oblíqua, com 10 cm por 1 cm na metade superior da face lateral da perna.
19º A Avenida 2... e a Avenida 1..., por onde o arguido conduziu o veículo de matrícula ..-UR-.. da forma descrita, são ladeadas por edificações e situam-se na cidade e localidade do Porto, pelo que a velocidade máxima permitida para a circulação de veículos automóveis era, e é, de 50 Km /hora.
20º A Avenida 1..., no local dos factos acima descritos, forma um cruzamento com a Avenida 2..., com boa visibilidade.
21º À data e no local dos factos, o pavimento era constituído por aglomerado asfáltico, estava seco e em bom estado de conservação, existia boa visibilidade em toda a sua largura e extensão e inexistiam quaisquer obstáculos.
22º À data dos factos supra descritos, o arguido não possuía habilitação legal para conduzir veículos automóveis da categoria B.
23º Ao conduzir o aludido veículo automóvel pela forma descrita, o arguido quis e violou as regras de circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à passagem de peões, ao limite de velocidade e à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita.
24º O arguido conhecia as características e as potencialidades letais do veículo de matrícula ..-UR-.., quis e logrou conduzir esse veículo nos moldes supra descritos, estando ciente das normas que regulavam a circulação rodoviária nas vias por onde circulou em desrespeito das referidas regras, bem sabendo era obrigado a cumpri-las.
25º Ao proceder da forma descrita, o arguido colocou em perigo a integridade física do Agente da PSP BB, com a matrícula nº. ...54, bem provocou lesões físicas e pôs em perigo a vida do Assistente.
26º O arguido agiu o propósito concretizado de conduzir o veículo de matrícula ..-UR-.. da forma como o fez, admitindo a possibilidade de atingir o corpo do Agente da PSP BB, com a matrícula nº. ...54, assim como de atingir com esse veículo o corpo de pessoas que circulassem pelas vias por onde tripulou, designadamente do Assistente, provocando-lhes ferimentos graves e até as próprias mortes.
27º Não obstante, conformou-se com tais possibilidades e não deixou de conduzir o veículo de matrícula ..-UR-.. pela forma que o fez, motivo pelo qual atropelou o Assistente, provocando-lhe, direta e necessariamente, as lesões físicas e traumáticas acima referidas, que puseram em perigo a sua vida e só não determinaram a sua morte por circunstâncias alheias à vontade do arguido, ou seja, pelo facto de o Assistente ter sido rapidamente socorrido e recebido pronto e adequado tratamento médico.
28º O arguido agiu com o intuito de se furtar à fiscalização policial e à responsabilidade criminal em que incorria por conduzir veículo ligeiro de passageiros sem habilitação legal.
29º O arguido agiu com total indiferença pela integridade física e vida humana, bem como pelos especiais deveres de respeito e de cooperação que sabia serem devidos para com os agentes da PSP, cuja qualidade conhecia e sabia que se encontravam no exercício das suas funções.
30º O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
31º Por sentença proferida a 13 de Abril de 2022, no processo sumário n.º ..., Porto - JL P. Criminalidade - juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, transitada em julgado a 19 de Maio de 2022, foi o arguido condenado na pena de 120 dias de multa, pela prática a 28 de Março de 2022, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal.
32º O agregado familiar do arguido é constituído pelo progenitor FF, 43 anos, inativo, GG mãe 42 feirante, II irmã 14 estudante, JJ irmã 7 estudante.
Descrevem uma dinâmica familiar positiva e marcada por espirito de entreajuda, orientados pelos usos e costumes do seu grupo de pertença.
Residem num apartamento social, com condições de saneamento básico, conforto e privacidade, inserido num meio social problemático.
Desde há cerca de 3 / 4 anos que o agregado se encontra a residir na morada constante do presente processo (bairro ...) onde foram realojados em apartamento de tipologia 3, maior do que aquele onde residiam, no Bairro ....
Relativamente à data dos factos constantes nos autos a situação era idêntica à descrita.
O arguido registou inúmeras retenções por absentismo decorrente de doença crónica que lhe veio a ser diagnosticada. Foi sido alvo de intervenção por parte dos competentes serviços de promoção e proteção e integrado em cursos de educação e formação (CEF), mas sem sucesso.
Desde que completou os 18 anos de idade que o arguido passou a acompanhar a mãe para as feiras, exercendo a profissão de vendedor. O arguido expressa agrado por esta atividade, que decorre em três feiras (..., ... e ...) onde refere que familiares dispõem de banca fixa e que lhes permitem a partilha do espaço.
Situação económica
Valor dos rendimentos líquidos do arguido(a): desconhecido
Valor dos rendimentos líquidos do agregado: 859,67 Euros
Valor total das despesas/encargos fixos do agregado: 205 Euros
A mãe do arguido não soube quantificar qual o montante que auferem com a atividade de venda em feiras, a qual desde há cerca de dois anos é assumida por si com o apoio do arguido e filho mais velho (já autónomo). Contudo informou que o apuro é canalizado para a alimentação do agregado, descrevendo uma situação de suficiência económica. Como rendimentos fixos mensais foi indicado o RSI (609,67 Euros) e o abono de família para crianças e jovens, referente às filhas mais novas (250 Euros).
O arguido refere que a sua subsistência é assegurada pela família e sempre que necessita a mãe dispensa-lhe o necessário para gastos pessoais.
O arguido mantém um quotidiano que decorre no apoio à família, quer na atividade de venda em feiras, quer acompanhando a mãe aos armazéns em ... onde aquela compra o material para vender, quer na condução do pai para os tratamentos de hemodiálise que efetua três vezes por semana.
AA expressa satisfação com a sua situação pessoal e familiar, considerando que são uma família muito unida e que o seu maior amigo é um primo, com quem normalmente sai para passear.
Segundo referiu, por influência materna, frequenta o culto da Igreja ..., perspetivando para breve que o irmão mais velho assuma a função de pastor, do qual refere orgulhar-se.
Tanto a mãe como a avó paterna descreveram o arguido como assumindo atitude de timidez no relacionamento interpessoal, mas assumindo atitude educada para com a generalidade das pessoas, revelando-se afetuoso.
O arguido desde criança que tem diagnóstico de “doença de Crohn", com frequentes episódios de dor abdominal muito forte e necessidade de recurso ao hospital. É acompanhado em consulta da especialidade, tendo indicação para ser submetido a cirurgia, possibilidade que vem recusando, segundo refere, por medo das consequências.
O arguido à titular da Carta de Condução n.º P. ...43, de 28 de agosto de 2023.
Da discussão da causa em audiência não ficaram por provar quaisquer factos.
O Tribunal formou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e constante dos autos, analisada criticamente, de acordo com o princípio da livre apreciação - art.º 127º do CPP - e segundo juízos de experiência comum, nomeadamente:
Foram valoradas as declarações do arguido que confessou, parcialmente, a matéria de facto descrita na acusação. Concretizando o arguido confessou a condução do veículo, sem habilitação, nas circunstâncias de tempo e lugar ali descritas, a fuga aos agentes policiais e o embate no peão.
Negou a intenção de atingir o agente policial com o veículo que conduzia, afirmando apenas o desejo de fugir à acção de fiscalização; a violação do sinal luminoso de proibição; a transposição da linha longitudinal continua separadora dos sentidos de trânsito e justificou o embate no peão com a perda do domínio da marcha do veículo, na sequência do embate no semáforo para peões aí existente.
A dinâmica do acidente afirmada pelo arguido é desmentida pela configuração do local. Na verdade, nas fotografias de fls. 102, frente e verso, e 105, verso – é visivel que a passadeira em que circulava o peão - por referência ao sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, antes do embate - surge antes do semáforo e demais sinais derrubados o que, claramente, impõe, que aquele tenha sofrido, em primeiro lugar, o impacto do veículo.
Do mesmo modo, a trajectória do referido veículo, desenhada a partir da Avenida 2..., ao ponto de embate no peão, impõe a transposição da linha longitudinal continua separadora de sentidos de trânsito existente no local e infirma a afirmação do arguido de que se manteve sempre na via mais à direita daquela linha, tendo virado à direita, para passar a circular no sentido descendente da Avenida 1....
Ainda sobre a dinâmica do acidente foram relevantes as declarações das testemunhas BB, agente policial, que seguia em perseguição do arguido e viu a projecção do corpo do assistente no ar e a subsequente queda sobre o capot do veiculo, bem como a manobra de ultrapassagem, pela esquerda, dos veículos que aguardavam a passagem a verde do sinal luminoso existente na Avenida 2...; DD e EE que se encontravam dentro de um veículo parado no semáforo que antecede o cruzamento da Avenida 2... com a Avenida 1..., no sentido descendente, e afirmaram a entrada, em contra mão, na Avenida 1... do veículo conduzido pelo arguido.
O Assistente não soube descrever o acidente por não ter memória dele. Relatou as suas consequências, indo ao encontro dos registos clínicos e exames periciais juntos aos autos. Soube afirmar, com relevo, que nas referidas circunstâncias de tempo e lugar atravessava a Av. 1... em direcção à Av. 2..., usando a passagem para peões aí desenhada, enquanto se mantinha verde o sinal luminoso para peões aí existente. Esta circunstância, de o sinal para peões ostentar a luz verde, permite-nos concluir que o sinal luminoso existente na Avn. 2... ostentava a luz vermelha para os veículos que viessem a circular na Avn. 1....
Foram claríssimas as declarações da testemunha BB no que respeita à posição que assumiu junto do veículo conduzido pelo arguido, à manobra efectuada por este de inversão do sentido de marcha e ao embate iminente no seu corpo, a que obstou, desviando-se da trajectória iniciada. Esta testemunha, assegurou que o arguido imprimia ao veículo uma velocidade superior a 50 Km/h, o que é compatível com os vestígios deixados no local e com o local de imobilização do veículo, mormente se considerarmos o embate anterior no semáforo para peões referido na matéria de facto.
A testemunha KK abonou a favor da personalidade do arguido, seu sobrinho.
Sobre o dolo, que considerámos eventual, importa referir que local representa um ponto nevrálgico da cidade do Porto, com constante movimento quer de veículos quer de pessoas, em especial se considerarmos um dia de Verão, como aquele em que ocorreram os factos, com céu limpo, o que impõe a previsão de um embate nos moldes ocorridos, circunstância com que o arguido se conformou, agindo de modo livre, deliberado e consciente.
3.1. Enquadramento jurídico-penal
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material, em concurso efectivo, de:
Um crime de Homicídio Qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, nº. 1, 132º, nº. 1 e nº 2, alíneas g) e h), 22º e 23º todos do Código Penal;
Um crime de resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º 2, do C.P.
Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro.
Dispõe o art.º 131º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos”.
O artigo 131º constitui o tipo fundamental dos crimes contra a vida, sendo a partir dele que a lei edifica os restantes tipos de crimes contra a vida, designadamente o crime de homicídio qualificado (ainda que de forma tentada) que é imputado ao arguido.
É por demais evidente a razão de ser desta norma e o bem jurídico que a mesma protege: a vida do ser humano, independentemente da idade, sexo, raça, orientação sexual, viabilidade de vida, riqueza ou pobreza, profissão...
Pune-se, pois, o “matar outra pessoa”, o causar a morte a outrem, a outro ser humano, sendo irrelevante o modo ou o meio utilizado para concretizar tal resultado.
A acusação enquadrou a factualidade alegada nas al. g) e h), do n.º 2, do art.º 132º, do C.P.
Nos termos destes dipositivos: 1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;
h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
Da matéria de facto provada resulta que o atropelamento do assistente ocorreu porque o arguido se furtava à acção policial de fiscalização, pois sabia que não era titular de carta de condução e que a condução do veículo automóvel nessas condições era proibida e punida por lei penal. Queria, pois, com tal conduta de fuga, assegurar a sua impunidade. Ademais, o modo com conduzia aquele veículo, com violação das regras estradais previstas nos art.ºs 13º, 24º, n.º 1, 103º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), c) e e) e 146º, al. a), l) e o), do C.E. consubstanciam a prática de um crime de perigo comum, p.p. pelos art.º 291º, n.º 1, al. b), n.º 1, al. b), 294º, n.º 3, e 285º, por referência ao art.º 144º, al. d), do C.P. vistas as consequências daí resultantes para o peão. Tal factualidade é claramente enquadrável nas circunstâncias agravante individualizadas na acusação.
Ocorre que, pesem embora todos os actos praticados pelo arguido se possam afirmar como adequados a causar a morte do peão, certo é que esta não ocorreu, por razões alheias à vontade do mesmo.
Estatui o artigo 22º, nº. 1 do Código Penal que “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer sem que este chegue a consumar-se”.
Da redacção legal ora apontada resulta que a tentativa se “apresenta sempre como a negação de valores jurídico-criminais na forma de lesão ou perigo de lesão dos bens jurídicos protegidos, mas que há que adicionar o próprio plano do agente integrando a sua intencionalidade, volitivamente assumida” - (José de Faria Costa, Formas do Crime, in Jornadas de Direito Criminal do Centro de Estudos Judiciários, pág. 160). E na verdade, “como realização dolosa parcial de um tipo de ilícito objectivo ela representa uma violação do ordenamento social jurídico-penalmente relevante por meio da intranquilidade em que coloca bens jurídico-penais - (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, pág. 685).
Assim, “a incriminação da tentativa representa a extensão da punibilidade às realizações incompletas do tipo de crime que o agente se propunha realizar”, não se punindo a tentativa como crime autónomo já que “não há na lei um crime de tentativa, mas antes um tipo subordinado, como extensão do tipo principal, um crime tentado” - (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português: Parte Geral – Tomo II, Editorial Verbo, 1998, págs. 237 e 238).
Ressalta do artigo 22º, nº. 1 citado que os elementos da tentativa são constituídos, por um lado, pela resolução criminosa (a decisão de cometer o facto) e pela prática de actos de execução (de um crime que não chega a consumar-se).
Como já antecipámos, a matéria de facto provada contém os apontados elementos da tentativa do crime de homicídio (a decisão de cometer o facto, ainda que com dolo eventual), e a prática dos actos de execução (atropelamento), com graves consequências físicas para o assistente, mas sem que a morte venha a ocorrer.
Com a conduta descrita incorreu o arguido, na prática, em autoria material, de um crime de homicídio na forma tentada, p.p. pelo art.º 131º, 132º, n.º 1 e 2, al. h) e h) 22º, al. a) e b) e 23º, do C.P.
Nos termos do artigo 347º, n.º1 do Código Penal pratica o crime de resistência e coação sobre funcionário, «Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres».
Elemento objetivo relevante do tipo do ilícito, desde logo, o emprego de violência.
Violência a incluir as formas de violência psíquica e de ofensa à integridade física, uma vez que, como flui do normativo, a ameaça grave (vis compulsiva) e a ofensa à integridade física (vis phisica) são mencionadas, exatamente, como modalidades da violência.
Sem necessidade de uma abordagem exaustiva do que deva entender-se por ameaça grave, julga-se pertinente reter, pelo menos os seguintes fundamentos: (i) desde logo que a ameaça, enquanto meio do crime de coação, não pode deixar de assumir uma das suas principais características, vale dizer, o mal ameaçado tem de ser futuro, que o mesmo é dizer, ainda, “o mal objeto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respetivo ato violento, isto é, do respetivo mal”; (ii) constitui critério orientador da definição concreta do ‘mal importante’, a adequação da ameaça a constranger o ameaçado, que o mesmo será dizer: «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objetivo-individual: objetivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente as sub-capacidades (….) do ameaçado (….)» Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs,´. 343, 355 e 358.
Em termos simples, dir-se-ia que a violência supõe uma coação, em que, mais do que a própria ação, é o efeito coercitivo que assume caráter mais decisivo.
Importante é que o meio coercivo utilizado seja adequado/eficaz, tendo em vista o resultado pretendido.
Na conformidade do que fica já referido, para a consumação do crime “necessário se torna que a acção violenta ou ameaçadora seja idónea a atingir de facto o seu destinatário ou destinatários, isto é, que essas acções os possam impedir de concretizar a actividade por estes prosseguida”.
«Os meios utilizados – violência ou ameaça grave – devem ser entendidos, principalmente, do mesmo modo que no tipo legal de coação (…). Há-de considerar-se, em todo o caso, que os destinatários da coação possuem, nalgumas das hipóteses deste tipo legal, especiais qualidades no que diz respeito à capacidade de suportar pressões e estão munidos de instrumentos de defesa que vulgarmente não assistem ao cidadão comum. Membros da Forças Armadas, militarizadas ou de segurança não são, para efeitos de atemorização, homens médios. O grau de violência ou de ameaça necessários para que se possa considerar preenchido o tipo não há-de medir-se, por conseguinte, pela capacidade de afetar a liberdade física ou moral de ação de um homem comum. A utilização do critério objetivo-individual (…) há-se assentar na idoneidade dessa violência ou ameaça para perturbar a liberdade de ação do funcionário. Assim, será natural que uma mesma ação integre o conceito de violência relevante nos caos em que o sujeito passivo for mero funcionário e seja desvalorizada quando utilizada para defrontar, por exemplo, um militar. Ou seja, nalgumas hipóteses desta concreta coação que se considera, hão-de ter-se em conta não apenas as eventuais sub-capacidades do coagido ou ameaçado, mas talvez sobretudo as suas ‘sobre-capacidades» - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 341.
Esta valoração do grau de idoneidade não prescinde, como parece óbvio, das circunstâncias concretas concorrentes no caso.
No caso em apreço mostra-se provado que, nas circunstâncias de tempo e lugar dadas como provadas, apercebendo-se da abordagem do agente da PSP BB e ciente de que conduzia o veículo sem habilitação legal, crime por cuja prática havia já sofrido uma condenação, o arguido iniciou brusca e repentinamente a marcha do veículo de matrícula ..-UR-.., imprimindo-lhe velocidade concretamente não apurada mas superior a 50Km/h, inverteu o sentido de marcha desse veículo, transpondo a linha longitudinal contínua separadora dos sentidos de trânsito desenhada no pavimento, e passou a circular no sentido Norte-Sul. Ao efectuar tal manobra o arguido fê-lo ciente da proximidade do corpo daquele agente policial com o veículo – de pé, junto do lugar do condutor, a quem exibira a carteira profissional- e que tal manobra resultaria no atropelamento do referido agente, facto que só não veio a acontecer porque este se desviou imediata e rapidamente. Não obstante, por força desta manobra, o arguido logrou eximir-se ao controlo policial. Ao proceder da forma descrita, o arguido colocou em perigo, relevante, a integridade física do agente da PSP BB. Ao agir do modo descrito o arguido admitiu a possibilidade de atingir o corpo do Agente Policial, facto que sabia ser proibido e punido por lei, e actuou conformando-se com essa possibilidade.
Incorreu, pelo exposto, na prática, em autoria material, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º1, do C.P.
Nos termos do art.º 3º, n.º 1 e 2, do C.E. quem conduzir motociclo ou automóvel na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
O art.º 121º, n.º 1e 4, do C.E. estabelece que só pode conduzir veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito. (…) 4º- O documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos, automóveis e veículos agrícolas, exceto motocultivadores operados a pé, designa-se carta de condução.
Estamos em face de um crime de perigo abstracto, em que o bem jurídico protegido é a segurança de circulação rodoviária.
No caso em apreço, resulta da matéria de facto provada que, nas circunstâncias de tempo e lugar aí descritas o arguido conduziu um veículo a motor, numa via pública sem ser titular de carta de condução, sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, o que fez de modo livre, deliberado e consciente.
Incorreu, pelo exposto, na prática, em autoria material e concurso real de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º1 e 2, do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro.
O crime de homicídio qualificado, p.p. pelo art.º 131º, e 132º, n.º 1 e 2, al. g) e h), é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.
O crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelo art.º 341º, n.º1, do C.P. é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
O crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.
Dispõe o art.º 70º, do C.P. que:“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
O art.º 40º, do mesmo diploma, por seu turno, estabelece que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A protecção dos bens jurídicos alcança-se com a reafirmação da norma violada, face ás expectativas da comunidade na tutela daquele bem jurídico; a reintegração do agente na sociedade reforça a natureza não retributiva da pena e a recuperação do agente para o respeito pelos bens juridicamente relevantes e, consequentemente, tutelados por lei penal.
No caso em apreço, no que ao crime de condução de veículo sem habilitação legal respeita, são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, vista a constante violação da lei e as consequências para os bens jurídicos tutelados, resultantes da sua violação.
As necessidades de prevenção especial esbateram-se, relativamente ao crime em apreço, uma vez que o arguido é, agora, titular de carta de condução, encontrando-se habilitado a conduzir veículos automóveis.
Não obstante não podemos desenquadrar a factualidade relevante para este ilícito típico, do todo da conduta assumida pelo arguido, e das consequências dela decorrentes, no dia dos factos. O quadro geral em análise impõe, pela sua gravidade e pelo antecedente criminal, a condenação em pena privativa da liberdade. A condenação em pena não privativa defraudaria as expectativas comunitárias, fragilizando a validade da norma violada. Entendemos, pelo exposto, que só uma pena não privativa da liberdade satisfará as necessidades que in casu se impõem relativamente ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, pelo que será essa a pena aplicar.
Escolhida a pena e conhecidas as molduras abstractas é tempo de determinar a medida concreta das penas a aplicar ao arguido.
Antes, porém, teremos a considerar, nas molduras abstrcatas, eventuais circunstâncias agravantes e/ou atenuantes que no caso se imponham.
Na moldura prevista para o crime de homicídio em que o arguido incorreu opera a atenuação especial da tentativa, p.p. pelo art.º 22º e 23º, do C.P.
Por força desta circunstância atenuante geral:
a) O limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço;
b) O limite mínimo da pena de prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior (art.º 73º, n.º1, al. a) e b), do C.P.).
Aplicando tais critérios à moldura abstracta temos a considerar uma moldura de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 9 meses de prisão.
Na determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro dos limites abstratos definidos na lei, há que ponderar todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o arguido, sendo aquela pena limitada pela culpa destes revelada nos factos e tendo a mesma de se mostrar adequada a assegurar as exigências de prevenção geral e especial (cf. artigos 40º, nºs. 1 e 2 e 71º, ambos do C.P.).
Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.
A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215), sendo tal principio expressamente afirmado no nº. 2 do artigo 40º do C.P.
Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos. Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.
Dando concretização aos mencionados vetores, o nº. 2 do artigo 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.
Assim, há que ponderar:
O grau de ilicitude dos factos, que se revela elevado, tendo em conta, o seu modo de execução.
O dolo do arguido, que reveste a forma de dolo direto, relativamente ao crime de condução de veículo sem habilitação legal e dolo eventual, quanto aos demais
Os antecedentes criminais.
As condições pessoais do arguido que resultaram provadas e que aqui se dão por reproduzidas;
De relevar a circunstância de o arguido já se encontrar habilitado ao exercício da condução;
Há, ainda, que ter em conta as exigências de prevenção geral que se mostram, prementes, já que como se sabe, o crime de condução de veículo sem habilitação legal, que deu azo a todo o comportamento subsequente do arguido, é frequentemente praticado, pretendendo-se com a proibição a salvaguarda dos bens e valores que foram violados com a conduta do arguido
Por tudo o exposto julga-se adequado condenar o arguido nas seguintes penas concretas:
-Pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. pelo art.º 131º, 132º, n.º 1 e 2, al. g) e h), do C.P. na pena de 4 anos de prisão;
- Pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º1, do C.P. na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
-Pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação pela, p.p. pelo art.º 3º, n.º1 e 2, do D.L. 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 1 ano de prisão;
Cabe proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares, aplicadas a cada um dos arguidos ao abrigo do disposto no artigo 77.º do Código Penal, cujo nº1 preceitua: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projeta nos factos e é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente. Mas, tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral e, especialmente na pena de concurso, os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente (vide Ac. do STJ de 14/09/2011, Proc. nº 322/10.2PBSTB.S1-A, in www.dgsi.pt).
Imprescindível na valoração global dos factos, para fins de determinação da pena de concurso, é analisar se entre eles existe conexão e qual o seu tipo; na avaliação da personalidade releva sobretudo se o conjunto global dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa, dando-se sinais de extrema dificuldade em manter conduta lícita, caso que exaspera a pena dentro da moldura de punição em nome de necessidades acrescidas de ressocialização do agente e do sentimento comunitário de reforço da eficácia da norma violada ou indagar se o facto se deve à simples tradução de comportamentos desviantes, meramente acidentes de percurso, que toleram intervenção punitiva de menor vigor, expressão de uma pluriocasionalidade, sem radicar na personalidade, tendo presente o efeito da pena sobre o seu comportamento futuro (Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005. p. 291, § 421).
O artigo 77.º, nº 2, do CP estabelece: “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
No caso em apreço, temos a considerar uma moldura de 4 anos a 6 anos e 6 meses de prisão.
A factualidade provada evidencia uma personalidade com fragilidades estruturais, no que respeita às normas e valores penais vigentes, na medida em que o arguido, pese embora anteriormente condenado, optou por voltar a praticar facto ilícitos da mesma natureza e, ao ver-se “detectado”, ao invés de assumir as consequências da sua conduta optou pela fuga, num crescendo de gravidade de condutas ilícitas típicas.
Nesta medida mostram-se relevantes a necessidades de prevenção especial. Tudo ponderado, julga-se adequado condenar o arguido na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão.
No caso em apreço, atendendo à gravidade dos factos praticados, ao antecedente criminal, à gravidade da conduta globalmente avaliada, que eleva sobremaneira as necessidades de prevenção geral, não obstante a idade do arguido e a circunstância de este já estra habilitado a conduzir veículos automóveis, afigura-se-nos que a ressocialização em liberdade ficaria aquém das necessidades de prevenção geral, não se mostrando suficiente e adequada à sua satisfação a suspensão da execução da pena ora determinada.
A lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, estabeleceu um perdão de penas que abrange a as sanções penais relativas a factos ilícitos praticados até às 00:00h de 19 de junho, por pessoas que tenham entre os 16 e 30 anos de idade.
Aquando dos factos o arguido tinha 22 anos de idade, tendo estes ocorrido em momento anterior a 19 de junho de 2023.
Ocorre que, nos termos do art.º 7º, n.º 1, al. i) e n.º 2, da referida lei, não beneficiam do perdão: “i) Crimes de homicídio e infanticídio, previstos nos artigos 131.º a 133.º e 136.º do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro; (…) 2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções De tais normativos resulta a exclusão do benefício do perdão relativamente aos crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p.p. pelo 131º, 132º, n.º 1 e 2, al. g) e h), 22º, e 23º, do D.L. 2793 de 3 de janeiro e resistência e coação sobre funcionário, p.p. pelo art.º 347º, n.º 2, do C.P.
Ao invés, beneficia do perdão, a pena relativa ao crime de condução de veículo sem habilitação legal, p.p. pelo art.º 3º, n.º 1 e 2, do D.L. 2/98 de 3 de Janeiro.
Apreciando o objeto do recurso interposto pelo arguido, concretamente a impugnação da matéria de facto nos termos do art.412º nº3 do CPP, a qual constitui o ponto central do objeto do recurso, cabe estabelecer os pressupostos dos poderes de cognição do Tribunal Superior
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita á indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril do corrente ano (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso, apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade, em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
O recorrente centra a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto na circunstância do Tribunal “A Quo” não ter julgado corretamente os pontos 4, 7, 8, 11, 12, 17, 25, 26, 27 e 29 dos factos provados, pretendendo que se julguem não provados, sustentando o arguido não dever ser condenado pelo crime em que o foi.
O Tribunal de recurso ouvidos os depoimentos das testemunhas LL, MM e NN, entende que, os aludidos depoimentos foram prestados com a versão que é traduzida pelo recorrente, com a razão de ciência que declaram, não tendo presenciado diretamente os factos.
No que concerne aos pontos 4, 25 (aqui não concerne ao perigo da integridade física do agente BB), 26º e 29 dos factos provados, cuja alteração pretende, o recorrente invoca o depoimento da testemunha CC, a qual, contudo, afirma não se recordar desse momento, referindo “não tenho essa memória”, sendo que a manobra de inversão de marcha em causa, dá-se repentinamente em escassos segundos, e é a própria testemunha que evidencia a sua falta de razão de ciência atendível, afirmando-se não recordar. Ora, é com este depoimento sem valor probatório, quanto a estes factos, que o recorrente pretende esclarecer a referida manobra do arguido e à direção que o mesmo toma, e que contrapõe ao depoimento do agente BB, o qual, inversamente, conforme este Tribunal de recurso constatou ouvida a gravação, depôs com razão de ciência direta, de forma coerente, isenta e objetiva, sem que o recorrente invoque qualquer circunstância que retire credibilidade a este mesmo depoimento, que fora credível. Com efeito, esta testemunha bem explicou que estando junto à janela do condutor para o interpelar, quando o arguido se apercebe da sua presença guina repentina e imediatamente para a esquerda, vendo a testemunha a massa física lateral do veículo a vir sobre si (em rotação), e se não se desvia de imediato (como se desviou), seria abalroado pelo mesmo, podendo os rodados traseiros passar sobre si. Assim, a impugnação movida ao apuramento destes factos não é procedente, dado que a manobra movida pelo arguido claramente colocou em perigo iminente a integridade física do agente ofendido, sendo igualmente inequívoca a intenção do arguido ao rodar o veículo à esquerda em inversão de marcha com a imediata presença física do agente policial, colocando-lhe em perigo a sua integridade física, isso querendo manifestamente, visando com isso obstar à ação policial da testemunha.
Acresce que, no que toca ao segmento do ponto 7º dos factos provados, respeitante à velocidade que o arguido empreendeu ao veículo, em aceleração, quando ultrapassa pela esquerda vira à direita para a Avª 1..., iria a uma velocidade “a muito mais que 50” referiu o depoente BB. Muito embora saibamos e se apure que a velocidade seria superior a 50 km/hora e em aceleração, contudo, as testemunhas naturalmente não conseguem quantificar a velocidade exceto no padrão superior s 50 km/hora.
Ainda quanto aos pontos, 7º e 8º dos factos provados na sua sucessão cronológica, o recorrente pretende se prove uma dinâmica inversa dos embates, primeiro no semáforo e somente depois no corpo do assistente.
Contudo, é a própria foto que o recorrente junta na sua motivação que indica o contrário do que pretende o recorrente. Pois, o que se observa é que o veículo provinha do sentido da ótica da câmara da foto, e após o embate no assistente que se encontrava no troço de passadeira imediatamente à frente da ótica da câmara fotográfica, é que então, o veículo do arguido embate nesse lado do lancil do passeio da placa central imediatamente a seguir, e depois embate no poste do semáforo adiante colocado, derrubando-o. De nada interessando a presença do agente policial sito no troço esquerdo da passadeira, além do semáforo, porque não fora aí que ocorre o embate (nem consta da legenda que o agente da foto pretendia significar um qualquer local, muito menos a presença do peão no momento do atropelamento, tal como também se confirma do croquis de fls.100).
A testemunha DD no seu depoimento, a determinado momento refere que o arguido bate os mecos, no semáforo, e no assistente, mas cremos que não o fez para definir essa ordem específica de embates. Até porque, quando no decurso do seu depoimento é confrontada com o teor do croquis de fls.100 confirma o local do atropelamento como situando-se na zona B aí representada num círculo e assim legendada, a qual determina que o assistente fora atropelado antes do derrube do poste do semáforo. Mais à frente, esta testemunha nunca refere que o semáforo fora derrubado previamente ao atropelamento do assistente. A este respeito o depoimento de EE não foi relevante porquanto não presenciara o momento do atropelamento.
Desse modo, não existindo razões probatórias para alterar a exata ordem dos embates (peão e poste do semáforo), devendo nessa medida, permanecer a redação do ponto 8º, sempre se dirá, que mesmo a ser inversa, a ordem dos acontecimentos (que não é), como pretende o recorrente, essa circunstância não alterava os termos da tentativa de homicídio com dolo eventual. Com efeito, e nesta parte, no que concerne ao que se apurou nos pontos 26º e 27º dos factos provados, considerando à velocidade que o arguido imprimiu em contra-mão, assumidamente em fuga, a uma velocidade superior a 50 Km/hora, em aceleração progressiva, usando a hemi-faixa de sentido contrário na Aª 2... para ultrapassar os 2 a 3 veículos parados no final dessa avenida, em obediência ao semáforo com vermelho naquele momento, na interceção com a Avª 1..., e aquele também desobedecendo a este semáforo vermelho, vira à direita, entrando na Avª 1... (tal como fora descrito pelo depoente BB), vindo a atropelar de forma exuberante o assistente em plena passadeira derrubando o poste do semáforo, e mesmo perante aquele resultado danoso, que foi exuberante à vista de todos, e claro, do arguido, que já havia aceite, este subalterniza esse atropelamento ao seu propósito principal da fuga, e com a mesma energia criminosa, prossegue essa fuga, agora em contra-mão na Avª 1..., somente se imobilizando a cerca de 200 metros adiante. Ora, é neste contexto que a asserção feita pelo Tribunal “A Quo” é irrepreensível quando sustenta o dolo eventual “Sobre o dolo, que considerámos eventual, importa referir que local representa um ponto nevrálgico da cidade do Porto, com constante movimento quer de veículos quer de pessoas, em especial se considerarmos um dia de Verão, como aquele em que ocorreram os factos, com céu limpo, o que impõe a previsão de um embate nos moldes ocorridos, circunstância com que o arguido se conformou, agindo de modo livre, deliberado e consciente.”.
Nos pontos 11º e 12º dos factos provados, impugna o recorrente a projeção da vítima no ar, no solo e pelo ar, por cerca de 30 metros. A testemunha BB no seu depoimento afirma ter visto o assistente a ser projetado no ar, ainda o vendo a cair sobre o capô do carro, também vendo o posto do semáforo a ser projetado no ar, vindo o ofendido a ficar no pavimento à distância de alguns metros relativamente ao local do embate, contudo, esta testemunha estava a alguma distância do local, com veículos parados de permeio, não se podendo esclarecer pelo seu depoimento, que a projeção no ar e depois no solo, haja sido por 30 metros. O depoimento de DD assistiu ao atropelamento à sua frente, referindo que, a vítima cai em cima do capô do veículo, deslizando, vindo a mesma a ficar imobilizada na faixa alguns metros de distância. Cremos que existiu projeção do ofendido no ar, caindo sobre o capô, tão só. Não se apurando a projeção no ar e no solo pela distância de 30 metros, nessa medida devendo estes factos ser alterados.
Nos pontos 17 e 27º dos factos provados, a par do esclarecimento do perito junto a 11/09/2023 “O examinado não esteve em perigo de vida entre 18-08-2022 e 14-07-2023 por prestação do tratamento adequado atempadamente.”, desde logo, deve precisar-se que, não existindo tratamento adequado e atempado, o perigo poderia sobrevir, mas à parte deste relativismo, o certo é que o atropelamento da vítima com o veículo a uma velocidade superior a 50 Km/hora implica uma situação de perigo concreto para a vida. E se esse perigo, em si é um resultado, que independe das lesões que a vítima veio a sofrer, importa, por isso, uma reformulação na redação destes pontos da matéria de facto na concretização da esfera do perigo para a vida.
Em face do que se apreciou, este Tribunal de recurso determina que a redação dos pontos 7, 11, 12, 17 e 27º dos factos provados em parte deva ser reformulada, passando a ter a seguinte redação:
“7º - Logo após, imprimindo sempre velocidade superior a 50 Km/hora, o arguido perdeu o controle do veículo de matrícula ..-UR-.. e embateu com o referido veículo no corpo do Assistente, o qual, nesse momento, atravessava a Avenida 1... na passadeira, cujo semáforo para peões aí existente exibia a luz verde.
11º - Por força do atropelamento de que foi vítima, o Assistente foi projetado no ar, batendo no capô da viatura, acabando por ficar imobilizado e caído no pavimento da Avenida 1..., na faixa destinada ao trânsito no sentido Oeste – Este, a uma distância não apurada do local do atropelamento.
12º - Como consequência direta e necessária do descrito atropelamento/embate, o Assistente teve perda de consciência e sofreu inúmeras lesões descritas nos elementos clínicos nos relatórios de perícia de avaliação do dano corporal juntos aos autos, cujos teores que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, designadamente:
- Traumatismo Crânio Encefálico (TCE) ligeiro, com GCS 15, anisocoria midríase E»D, fratura linear frontal com aparente envolvimento da parede posterior do seio frontal à esquerda e parede superior da órbita e lesão traumática do olho esquerdo;
- Hematoma subdural, com coleções bilaterais, à direita, em topografia fronto - parieto - temporal com 23 mm de maior espessura na região frontal; à esquerda, em topografia fronto - parietal, com 17 mm de maior espessura na região frontal, efeito de massa sobre parênquima adjacente, ligeira hipodensidade da substância branca do hemisfério cerebral direito a nível do centro semioval, sugestivo de edema vasogénico associado a efeito de massa das coleções subdurais;
- Ferida no couro cabeludo e orelha esquerda;
- Hematoma orbitário esquerdo;
- Fratura exposta grau II do terço distal da perna direita;
- Fratura linear sem desvio na apófise transversa esquerda de D1;
- Rotura do olho esquerdo e catarata traumática, com corectopia, hifema e pigmento subconjuntival;
- Esfacelamento da face.
17º - O assistente por força do atropelamento/embate e projeção de que foi vítima por parte do arguido, colocaram em perigo a sua vida, e as lesões acimas descritas determinaram-lhe direta e necessariamente 330 (trezentos e trinta) dias para a consolidação médio legal, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral.”
27º - Não obstante, conformou-se com tais possibilidades e não deixou de conduzir o veículo de matrícula ..-UR-.. pela forma que o fez, motivo pelo qual atropelou o Assistente, provocando-lhe, direta e necessariamente, as lesões físicas e traumáticas acima referidas, sofrendo perigo a sua vida pelo atropelamento a uma velocidade superior a 50 km/hora, com projeção do corpo, só não determinando a sua morte por circunstâncias alheias à vontade do arguido.”
O Tribunal de recurso ouvidos os depoimentos das testemunhas em causa, assim como as imagens e documentos constantes dos autos, verifica que o Tribunal “A Quo” analisou corretamente esses depoimentos e elementos probatórios, realçando e inferindo os aspetos em que fundou a sua convicção, de forma apropriada de acordo com a lógica e as regras da experiência. Concorda-se com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção, exceto nos ajustes e acertos que se fizeram nos pontos de facto supra referidos, devendo deste modo, improceder no essencial a impugnação movida à decisão a matéria de facto.
A única questão de relevo a discutir será a conformidade entre a forma de dolo eventual (de menor intensidade volitiva) e a especial censurabilidade no plano da culpa nos termos do art.132º nº1 do CP. Contudo, o perfil dos factos apurados, não obstante o dolo eventual, não deixa margem para qualquer dúvida, sobre a exuberante intensidade da energia criminosa que o arguido empregou na sua virulenta atuação, onde expressou, como se referiu, uma poderosa vontade (embora quanto ao homicídio, na forma de dolo eventual), que, a bem dizer, com a sua conduta disseminou o perigo pelos utentes da via com que se cruzou, fossem condutores ou peões. E o perigo para a vida em que incorreu o assistente, marca bem a especial intensidade da sua conduta dolosa, entendendo o Tribunal de recurso que, a sua atitude é reveladora de especial censurabilidade, bem expressa na marcante intensidade delitual que nunca cessou (nem quando atropelou o assistente, o que impressiona deveras) até ser detido, devendo ser condenado pelo cometimento de homicídio qualificado na forma tentada, assim improcedendo as conclusões de recurso.
No caso sob apreciação e analisada a motivação do Douto acórdão, facilmente se depreende que foi feita uma ponderação de todos os fatores determinantes para a medida da pena, valorando-se as circunstâncias que, in casu, depõem a favor e contra o arguido.
A ilicitude tem uma gravidade bem expressiva, porquanto, o arguido conduzindo o veículo automóvel sem habilitação legal, incrementa com eficácia os restantes delitos que comete, seja a resistência e coação, seja o homicídio qualificado na forma tentada, exponenciado a dimensão da ilicitude, onde revela uma culpa grave.
Depois, tem o arguido antecedentes criminais de relevo porquanto, à data dos factos, haviam cerca de dois meses que transitara em julgado uma anterior condenação por condução ilegal sem carta, onde o arguido evidencia uma impressionante indiferença a essa censura, cometendo a sucessão de atos criminosos sem o menor rebuço. Sem que, em audiência de julgamento houvesse confessado os factos, o que a acontecer implicaria um ato de contrição e de aproximação aos múltiplos valores violados, atuando como atenuante. Contudo, preferiu, apresentar uma versão incongruente na descrição que fez da sua fuga, quer na resistência coação, quer depois, no percurso que fez e no ingresso na Avª 1..., procurando minimizar a sua conduta, mantendo-se por isso afastado do direito. A versão que apresentou, com o propósito permanente de escapar ao apuramento da densidade desvaliosa dos factos, está em consonância, aliás, com o egoísmo já demonstrado na sua conduta, procurando o seu proveito, a todo o custo.
O direito do arguido à não auto-incriminação, que se exerce máxime no direito ao silêncio cfr.art.61º nº1 alínea d) do CPP, e num ângulo mais lato na dimensão que nenhum arguido deve ser coagido a colaborar com a justiça em situações incriminatórias, de permeio costumam ser discutidas conforme Benja Satula “delimitação do âmbito objetivo do princípio nemo tenetur por referência à natureza da fonte de informação pretendida permite obter através da colaboração do visado, segundo a jurisprudência do TEDH, distinguir três categorias de casos: i) situações em que o uso de poderes coercivos se destina a que o acusado preste declarações, estando em causa o direito ao silêncio; ii) situações em que o uso dos poderes coercivos visa a obtenção de informações através da entrega de documentos pelo acusado; iii) situações em que o uso dos poderes coercivos se relaciona com a obtenção de material corpóreo do acusado para análise” in “Nemo tenetur se ipsum accusare Direito ou princípio?”
Porém, em quaisquer das dimensões desse direito, o mesmo não colide, com a obrigação do Tribunal valorar a versão dos factos que o arguido apresentou nas suas declarações, as quais como meio de prova, têm incidência na ponderação da prova, quando lhe falta credibilidade, ou é contraditório, mas também na medida da pena pela atitude demonstrada em audiência de julgamento cfr.art.71º nº2 do CP. Quando o arguido contribui ou pretende influir no processo probatório, prestando declarações, exerce com liberdade a sua defesa, mas as declarações prestadas adquirem autonomia, como meio de prova, e a atitude que o arguido assume que deve ser valorada pelo Tribunal, qualquer que seja o polo, positivo ou negativo, neste sentido ver Benja “As declarações são não já um meio de defesa, mas um meio de prova em sentido estrito, que não é incompatível de todo com a não autoincriminação” in op cit.
Como a opção pela mentira, não é desejada pelo Direito e não representa um valor ou um direito à mentira, apenas o mesmo dispõe do amplo de direito de se defender, que lhe permite em liberdade, argumentar “o seu ponto de vista”, porventura distinto da verdade, para isso podendo apresentando meios de prova, mas depois de produzidas as declarações haverão as mesmas de ser avaliadas na integralidade. E a justiça necessita da diversidade de pontos de vista para encontrar a verdade na discussão da prova.
Porém, apurando-se a verdade por outros meios de prova, a atitude do arguido que, em declarações, se furtou à verdade, haverá de ser pesada pelo Tribunal. Neste caso o direito de defesa foi plenamente exercido, porém, se o arguido optou por mentir, escolheu uma via que, não sendo anódina para a ordem jurídica, deve a mesma ser valorada, e daqui não vem lesão para a não auto-incriminação. O contrário seria ir longe de mais, conferindo à mentira, ao logro, e à produção de prova fictícia um estatuto e legitimidade, que são impróprios, e sobretudo atingir injustificadamente as declarações como meio de prova, posição que é, por inteiro, desproporcional ao processo penal.
Diversamente quanto opta pelo silêncio, este não poderá ser valorado negativamente, embora, neste caso, para além de não beneficiar da atenuante que representaria uma confissão, pode em audiência apurar-se (com outros meios de prova), quer a sua falta de arrependimento, quer o desinteresse ou a falta de reparação dos prejuízos e danos que causou.
No caso, ressuma das suas declarações a personalidade egoísta, não se provando qualquer arrependimento sincero, embora o houvesse verbalizado, apenas resultando o constrangimento de ter sido apanhado e estar a ser julgado, sendo que todo este contexto agrava a culpa e as exigências de prevenção especial. Deve sublinhar-se que este quadro, com pesadas exigências de prevenção especial, a que se associa o grave antecedente criminal, inquinam um juízo de prognose favorável nos termos do art.50º nº1 do CP, a que se somam as razões que o Tribunal “A Quo enfatizou sobre as pesadas razões de prevenção geral, onde a par da grave sinistralidade mortal em Portugal, foi exuberante o cometimento público dos factos praticados, influindo negativamente nessas exigências, sustentando o Tribunal que “No caso em apreço, atendendo à gravidade dos factos praticados, ao antecedente criminal, à gravidade da conduta globalmente avaliada, que eleva sobremaneira as necessidades de prevenção geral, não obstante a idade do arguido e a circunstância de este já estra habilitado a conduzir veículos automóveis, afigura-se-nos que a ressocialização em liberdade ficaria aquém das necessidades de prevenção geral, não se mostrando suficiente e adequada à sua satisfação a suspensão da execução da pena ora determinada.”, portanto, tal como fora decidido pelo Tribunal “A Quo”, não estão reunidos os pressupostos que permitam uma suspensão da pena de prisão no âmbito do art.50º nº1 do CP, devendo o arguido cumprir a pena de prisão efetiva.
Também aqui improcedem as conclusões do arguido, devendo a pena cominada ao recorrente ser mantida, e negado provimento ao recurso.
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, pese embora se determine a alteração da redação de alguns pontos da matéria de facto provada, nos termos supra referidos, contudo, sem influência na decisão, assim se mantendo a douta decisão do Tribunal a quo.
Custas do recurso pelo arguido, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta.
Notifique.
Porto, 26 de fevereiro de 2025.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Donas Botto