I - O facto típico, quando praticado por funcionário ou trabalhador, só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva, se tiver agido no cumprimento de ordens desse órgão, ainda que genéricas. Na verdade, somente esta posição permite respeitar o critério orgânico da responsabilidade das pessoas coletivas claramente perfilhado pelo legislador no nº 2 do artigo 7º do RGCCO.
II - Assim, se o funcionário agir espontaneamente, sem estar a obedecer a ordens genéricas, ou num quadro de ação previamente definido pelos órgãos da sociedade, não é a esta entidade que pode imputar-se o facto, mas ao próprio agente.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
I - Relatório
No âmbito dos autos de recurso de contraordenação que, sob o nº 1469/24.3T8GDM, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Gondomar, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (segue transcrição parcial):
«Nestes termos, decide-se julgar improcedente a impugnação de A..., LDA, devendo manter-se a decisão da entidade administrativa, nos seus precisos termos.
Ademais condenar a arguida, A..., LDA, nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s, cfr. art.º 93º, nº 3, do D.L. 433/82, de 27/10 e tabela III do RCP […]».
Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a arguida para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
«1) A aqui arguida no âmbito dos presentes autos viu o Tribunal “a quo” considerar improcedente o seu recurso tendo o mesmo mantido a decisão recorrida que condenou a arguida numa coima única de € 7.500.
2) A aqui arguida no seu recurso de impugnação suscitou primeiramente a questão da nulidade do processo de contraordenação, por violação do vertido no artigo 58º do RGCO.
3) A recorrente alegou que da decisão impugnada não consta qualquer valoração e ou fundamentação e muito menos qualquer critério que permita à aqui arguida perceber as razões para a aplicação de uma coima a título de dolo.
4) Na verdade, conforme resulta da própria decisão administrativa não está de modo algum provado que a aqui arguida praticou os pretensos ilícitos com algum tipo de facto ou matéria que permita caraterizar o seu comportamento como doloso ou intencional.
5) Pelo que resulta claramente que a coima aplicada é excessiva dado que, sendo a arguida primária, e em face da reduzida culpa da mesma, deveria ser a mesma objeto de uma admoestação.
6) É manifesta a nulidade da sentença recorrida por violação do vertido na alínea c) do nº 1 do art.379º do CPP, o que se invoca para todos os efeitos legais.
7) Na verdade, o tribunal “a quo” na sua fundamentação não justifica nem analisa verdadeiramente a questão suscitada pela aqui recorrente, qual seja, a se a autoridade administrativa fez uso dos critérios estatuídos para a aplicação da pena de admoestação, vertidos no art.60º do CP, limitando-se a referir que “(…) não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa (…)”, mas sem fazer um juízo explicativo e justificativo a tal respeito.
8) O que deixa a aqui recorrente extremamente confusa uma vez que os pressupostos vertidos no artigo 60º do CP se encontram efetivamente cumpridos no caso concreto: Relativamente à aplicação de multa não superior a 240 dias, tal não tem cabimento no caso concreto mas da decisão administrativa consta que “(…) Este valor terá de ser pago de uma só vez, no prazo de 10 dias após o caráter definitivo da decisão.” e, para além disso, o valor máximo de multa previsto neste artigo perfaz € 120.000,00 (500€ por dia) pelo que, por analogia, e uma vez que o valor da coima se consubstancia em € 7.500,00, é o nosso entendimento que este requisito se encontra preenchido; Quanto à reparação do dano, este nem sequer existe, uma vez que a aqui arguida nunca recusou à cliente/reclamante o respetivo livro de reclamações e esta efetivamente lá escreveu; Por este meio realizam-se de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas, uma vez que não existiu dolo por parte da aqui recorrente; A aqui arguida não foi condenada em qualquer pena nos 3 anos anteriores ao facto.
9) Violou assim a sentença recorrida o vertido no artigo 60º do Código Penal e o vertido na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
10) Por outro lado, e sem prescindir, a aqui arguida alegou na sua impugnação que o vertido no n.º 1 do art.º 9º do Dec. Lei 156/2005 (na versão do Decreto Lei 74/2017) é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
11) Isto, pois o artigo 13.º da CRP, significando igualdade dos cidadãos perante a lei, vedando-se privilégios e discriminações, devendo ser dado um tratamento igual a situações iguais e um tratamento desigual a situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador.
12) O princípio da proporcionalidade está consagrado no artigo 18.º, nº 2, da CRP, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito). Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão. A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objetivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro.
13) A racionalidade implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido. A falta de necessidade ou de adequação traduz -se em arbítrio. A falta de racionalidade traduz-se em excesso — cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 148 -163, bem como Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 144 -154, e ainda Santiago Mir Puig, in “O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional de limites materiais do Direito Penal”, publicado na RPCC, Ano 19, n.º 1, Janeiro -Março 2009, Coimbra Editora, p. 7 -38.
14) Na verdade e para a mesma contra-ordenação, e só pelo facto de estarmos perante uma pessoa singular ou coletiva, a moldura abstrata da coima a ter em conta é muito diferente e muito mais grave (o mínimo passa de € 250,00 para € 1500,00 ou seja, passa para o sêxtuplo).
15) Sendo certo que hoje em dia existem pessoas coletivas com capital social de € 1,00 ! Não existe qualquer racionalidade, adequação ou sentido num agravamento da moldura da coima pelo facto de estarmos perante uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular.
16) E também não se pode confundir a moldura abstrata das coimas com os critérios para definir a sua medida concreta e em cada caso concreto. A moldura abstrata da coima não se pode confundir com a aplicação em concreto e a respetiva medida concreta.
17) A sanção imposta tem de ser proporcional à infração cometida. Mesmo no âmbito do Código Penal as agravações das penas aí previstas não são tão amplas e elevadas como no citado n.º 2 do artigo 98º A agravação da pena normalmente é de apenas um terço do limite mínimo — cf. os arts. 76.º, 141.º, 147.º, l77.º, 183.º, 184.º e 197.º, todos do Código Penal.
18) Entendemos que não é assim constitucionalmente justificada a norma do n.º 1 do artigo 9.º do citado Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, por violação expressa dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.
19) A este respeito o tribunal “a quo” apenas refere “(…) Importa, ainda, referir que se refuta o entendimento da verificação de qualquer interpretação inconstitucional das normas aplicada. (…)”.
20) Por último, e sem prescindir, levanta-se ainda uma outra questão relativamente à responsabilidade da pessoa coletiva (in casu, a aqui arguida) pela atuação dos seus funcionários.
21) Ora, a acusação em causa foi dirigida contra a Recorrente, pessoa coletiva, sendo que inexiste a identificação dos concretos órgãos ou representantes legais que agiram ou deixaram de agir livremente, no caso concreto.
22) As pessoas coletivas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos ou agentes ou representantes no exercício das suas funções, tal como prescreve o nº 2 do artigo 7º do RGCOC.
23) A infração imputada à ora Recorrente terá sido alegadamente praticada por seu funcionário, não identificado nos autos, exercendo este as funções englobadas na sua categoria profissional, não tendo quaisquer outras funções ou responsabilidades na Recorrente, não fazendo parte dos órgãos da sociedade comercial, não sendo seu representante legal, ou até comercial.
24) Cita-se nas motivações de recurso e a este propósito o acórdão do TRP de 24/01/2007, Processo 0643899 in www.dgsi.pt.
25) No preenchimento do conceito, a generalidade da doutrina aponta para pessoas que estatutariamente ou de facto praticam atos imputáveis à pessoa coletiva ou, por outras palavras, que integrem a vontade da pessoa coletiva. Ou seja, as pessoas físicas que integram «os centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objetivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa coletiva».”.
26) O nº 2 do art.7º do RGCOC ao referir "os seus órgãos" exclui, desde logo, os seus funcionários, dado que estes não representam a sua vontade, caso contrário a pessoa coletiva seria sempre responsável por atos no domínio funcional da empresa independentemente da vontade e do seu conhecimento dos seus órgãos ou representantes.
27) Os funcionários são de facto e de Direito, sujeitos autónomos, com personalidade jurídica distinta entre si, e por isso mesmo, responsáveis pelos seus atos e/ou omissões pois, caso assim se não entendesse, fácil seria hoje em dia trabalhar em qualquer empresa, sem qualquer tipo de responsabilidade emergente da sua prestação de trabalho, pois a culpa ou negligência seria sempre da entidade patronal!
28) Por conseguinte, ao aparecer a Recorrente sozinha em juízo a ratio daquela norma é totalmente contrariada. Efetivamente, para que a Recorrente, pessoa coletiva, fosse responsável haveria sempre que haver simultaneamente uma pessoa individual responsável pela prática da mesma contraordenação, o que não ocorre, e impossibilita, assim, que a Arguida possa ser punida.
29) Acresce que, se não resulta da matéria de facto provada que o funcionário tivesse atuado contra ordens ou instruções expressas da Arguida, também é certo que não ficou dado como provado que tivesse agido segundo as suas instruções.
30) Este funcionário, por não fazer parte dos órgãos da empresa, não integra o conceito de órgão do redito artigo 7º, n.º 2 do DL 433/82, pelo que a Recorrente não pode ser responsabilizada pela conduta do mesmo.
31) O funcionário em questão não é gerente da sociedade (a quem compete a representação da sociedade – art.252º Cód. Sociedades Comerciais), e estes – gerentes – é que são as pessoas físicas que integram os órgãos das pessoas coletivas.
32) O funcionário não é gerente de Direito, nem tão pouco de facto, pelo que nunca poderia ter sido considerado um órgão da sociedade ora Recorrente.
33) É igualmente este o entendimento do Ac. da Relação de Guimarães de 24/09/2018, proc. nº 722/18.0T8BRG.G1
34) O Tribunal ao decidir condenar a Arguida Recorrente enquanto ente coletivo responsável único pela prática daquela contraordenação violou o estatuído no nº2 do art. 7º do DL 433/82, de 27/10, pelo que deve a decisão ser revogada, o que se requer.
35) Acresce que, ao assim atuar, violou igualmente e por esta via os Princípios da Legalidade e da Tipicidade, em clara violação do Princípio da Legalidade estatuído no nº1 do art.29º da CRP., o que desde já se alega e invoca com as devidas e legais consequências e efeitos.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso,
A BEM DA JUSTIÇA E DA LEGALIDADE».
Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [2]:
a) Nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP).
b) Inconstitucionalidade da norma contida no art.º 9º, n.º 1 do Dec. Lei 156/2005, de 15/9.
c) Verificação dos pressupostos da responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva.
«1. No dia 4 de janeiro de 2020, pelas 22h e 40m, BB solicitou o livro de reclamações do estabelecimento de restauração e bebidas B..., sita na Rua ..., em ..., à pessoa responsável pelo espaço, AA, o qual não entregou imediatamente o livro de reclamações, tendo sido chamada a PSP da Esquadra ..., pela reclamante.
2. O Livro é só foi disponibilizado (“…colocada em cima do balcão de atendimento…”) quando AA se apercebe de que a reclamante tinha telefonado para a autoridade, tendo sido a reclamação redigida por esta após a chegada da autoridade.
3. Naquela data o livro de reclamações foi recusado, pelo responsável do estabelecimento, assim que é solicitado pela reclamante, com o argumento “...não tinha motivo para reclamar…”
4. Por esse motivo foi a autoridade policial chamada ao estabelecimento pela reclamante e foi só na presença desta que a cliente exerceu o seu direito de reclamação.
5. A arguida, na pessoa do seu representante, sabia que devia fornecer o livro de reclamações logo que o mesmo fosse solicitado,
6. Todavia optou por não o fazer, conformando-se com as consequências da sua recusa.
- Não existem factos por provar.
Fundou o Tribunal a sua convicção quer no conjunto da prova testemunhal e declarações produzidas em julgamento, quer nos documentos juntos aos autos, conjugados com regras de experiência comum (cfr. art.º 127º do C.P.P.).
Assim, e relativamente à prova junta aos autos e considerada para a formação da convicção do Tribunal, foi relevante o auto de notícia de fls.5 e ss, que motivou a abertura do presente processo de contra-ordenação e, bem assim, o teor dos demais documentos, como certidão comercial, entre o mais.
Depois e, como referido, baseou-se aquela convicção numa apreciação livre das declarações prestadas e da prova testemunhal, tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de julgamento, na qual se deu relevância ao conhecimento pessoal e direto dos factos perguntados, a postura denotada pelas testemunhas, bem como a convicção e transparência dos depoimentos.
Desde logo, sustentou-se, na apreciação global do conjunto da prova em audiência, designadamente, nas declarações do representante legal da empresa arguida, CC, que não assistiu aos factos que são imputados à empresa por via do processo em apreço, contudo, sabe do que se trata. Desde logo, quis fazer crer que a cliente consumiu determinado produto, mas não queria pagar e pediu o livro de reclamações. O empregado tentou demovê-la a fazê-lo. Mas entregaram o livro.
Por seu turno, o depoimento da testemunha, DD, casado, nascido em ../../1977, Agente da P.S.P. autuante, que relatou de forma minuciosa como se deslocou ao local em causa. Confere que não tinha sido disponibilizado o livro de reclamações à cliente que o havia pedido.
Confrontado com o auto, o agente confirma o seu teor.
De seguida, foi considerado o depoimento de BB, casada, nascida em ../../1977, lojista de flores, cliente reclamante no caso a que a reporta os presentes autos.
Num discurso bastante minucioso, direto, objetivo, ajudando a criar a convicção deste Tribunal, ressalta que que após ter sido pedido o livro de reclamações, o mesmo não lho foi facultado.
Aliás, é perentória em afirmar que era cliente, já há vários anos daquele restaurante, conhecia bem todos e vice-versa, que após reclamar, pessoalmente, do serviço, pediu o livro de reclamações ao responsável AA e este perentoriamente lho negou.
Adrede, foi, ainda, considerado o depoimento da testemunha de defesa da arguida, EE, nascido em ../../1960, divorciado, reformado e que aos costumes disse conhecer o recorrente porque foi empregado do mesmo durante 24 anos.
De relevante, nada disse, porque não se apercebeu da situação em concreto 8º que sabe é de ouvir dizer).
Face à prova produzida, aos documentos juntos e, bem assim, aos factos dados como provados, não se suscitaram dúvidas ao presente Tribunal que efetivamente, a empresa arguida não entregou à cliente, quando esta pediu, o livro de reclamações de acordo com a legislação em vigor.
Facto que relevou para o apuramento do elemento subjetivo.
Da prova produzida em audiência de julgamento não soçobram dúvidas que logrou demonstrar-se a existência de dolo, enquanto conhecimento e consciência de infringir um comando legal, querendo-o fazer».
Considera a recorrente que a decisão recorrida encontra-se insuficientemente fundamentada, argumentando que o tribunal a quo, na fundamentação da sentença, «não justifica nem analisa verdadeiramente a questão suscitada» no recurso de impugnação judicial, em concreto a de saber «se a autoridade administrativa fez uso dos critérios estatuídos para a aplicação da pena de admoestação, vertidos no art.60º do CP, limitando-se a referir que “(…) não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa (…)”, mas sem fazer um juízo explicativo e justificativo a tal respeito».
Vejamos, então, se assiste razão á recorrente na crítica dirigida à decisão objeto do presente recurso.
Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [3], «A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289)».
A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[4]
Efetuada a delimitação da questão que nos ocupa, importa reproduzir o que se escreveu, a propósito da questão enunciada pelo recorrente (possibilidade de aplicação de pena de admoestação), na sentença recorrida (segue transcrição):
«Feito pela forma supra descrita o enquadramento jurídico-contra-ordenacional da conduta da arguida importa, antes de mais, determinar da possibilidade de substituir a coima por mera admoestação:
De harmonia com o disposto no art. 18º, nº 1, do Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro, (regime geral das contra-ordenações), a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
O art. 51º do RGCO prevê a aplicação pela entidade competente de uma admoestação ao arguido, em caso de reduzida gravidade da infração e da culpa do agente, a qual deverá ser proferida por escrito.
A admoestação, consiste numa solene censura feita ao agente, por escrito (artigo 51º, nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82).
O artigo 51º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, prescreve “Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.
Parece, no entanto, que a admoestação aí prevista tem apenas aplicação em sede administrativa, atento o seu regime.
Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa referem, a este propósito, que «...a admoestação escrita prevista neste art. 51.° é aplicável apenas na fase administrativa do processo contra-ordenacional, como resulta do seu enquadramento neste diploma. Por isso, se a admoestação relativa à contra-ordenação for decidida pelo tribunal, nos casos em que é este a decidir a condenação, será aplicável a admoestação oral, prevista naquele art. 60.°, n.° 4, do Código Penal, aplicável por força do preceituado no art. 32.° do R.G.C.O.» - “in” Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2ª edição, 2002, Visilis Editores, pág. 317.
Ora, concordando com este entendimento, há que averiguar se estão reunidos os pressupostos de a que alude o artº.60º do diploma citado. Nunca olvidando que conforme resulta do mecanismo legal ínsito naquele preceito, que primeiro se deve aplicar uma pena de multa (no caso em concreto de uma coima) e em substituição (na eventualidade dos requisitos estarem reunidos) dessa pena de multa, uma pena de admoestação.
Assim, nos termos do art.º 60º do Código Penal são os seguintes os pressupostos (a verificar no momento da decisão) de que a lei faz depender a possibilidade (e obrigatoriedade) da aplicação ao arguido da pena de admoestação:
- um pressuposto formal, ou seja, que a pena concreta aplicada seja de multa não superior a 240 dias;
- que haja reparação do dano;
- que decorrente de um favorável juízo de prognose, com a admoestação seja razoável concluir pela realização bastante das finalidades punitivas.
-inexistência, em princípio, de anterior condenação em qualquer pena.
Veja-se, nesse sentido, que os requisitos são cumulativos e que se exige que inexista anterior condenação em qualquer pena.
Ora, da análise dos pressupostos em causa, conjugado com a factualidade dada como provada, desde logo, não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa, pelo que se indefere tal pretensão».
Com relevância para aferir da correção do segmento decisório imediatamente atrás transcrito, importa assinalar que só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. [5]
No presente caso, é manifesta a inexistência ou, sequer, a insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, não só os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também as razões de direito que levaram o tribunal a considerar inaplicável a pena de admoestação. Permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, mostra-se observado o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
No fundo, a crítica dirigida à decisão recorrida assenta na discordância da recorrente quanto à forma como o tribunal interpretou as normas legais em apreço, concluindo pela inadequação da pena de admoestação. Contudo, tal discordância de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão em análise.
Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso.
Invoca a recorrente que a norma contida no art.º 9.º, n.º 1, do DL n.º 156/2005, de 15/9, é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, argumentando que «não existe qualquer racionalidade, adequação ou sentido num agravamento da moldura da coima pelo facto de estarmos perante uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular», sendo que, no caso concreto, «a moldura abstrata da coima a ter em conta é muito diferente e muito mais grave (o mínimo passa de € 250,00 para € 1500,00 ou seja, passa para o sêxtuplo)».
Vejamos.
De acordo com o disposto no art.º 9.º, n.º 1, do DL n.º 156/2005, de 15/9, na versão do DL n.º 74/2017, de 21/6 (em vigor à data da prática do ilícito contraordenacional em análise), «Constituem contraordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De (euro) 250 a (euro) 3500 e de (euro) 1500 a (euro) 15 000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º, no n.º 3 do artigo 5.º-A, nos n.ºs 1 a 3 do artigo 5.º-B e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 8.º».
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é violado, como vem sendo assinalado, de modo reiterado e uniforme, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, quando as medidas legislativas, contendo diferenciações de tratamento, se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.
Com efeito, a Constituição da República não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados».
A diferenciação estabelecida pelo legislador entre os limites mínimos e máximos das coimas em função da natureza singular ou coletiva do respetivo infrator encontra plena justificação na circunstância de ser, por regra e em abstrato, mais elevado o grau de ilicitude das infrações quando cometidas por pessoas coletivas, acentuando as inerentes exigências preventivas (ao nível da prevenção geral, considerando a repercussão na comunidade dos comportamentos ilícitos, e da prevenção especial, atendendo ao risco incrementado de reincidência no cometimento de novas infrações, em face da natureza colegial do respetivo agente). Além disso, o legislador presume uma maior capacidade económica da pessoa coletiva, por comparação com a dos agentes individuais.
Deste modo, e diversamente do que sustenta a recorrente, não se descortina qualquer violação do princípio da igualdade ou da proporcionalidade, já que, como se afirma no acórdão do TC n.º 754/2024 (consultável em tribunalconstitucional.pt) «havendo tratamentos legais diferenciados, os mesmos só consubstanciam distinção arbitrária se não for possível encontrar um “motivo razoável”, decorrente da “natureza das coisas”, ou que seja “concretamente compreensível” enquanto fundamento da distinção».
A diferenciação estabelecida pelo legislador encontra-se materialmente fundada, não se revelando, por isso, arbitrária [6], razão pela qual também improcede o presente fundamento do recurso.
Defende-se no recurso que, não se tendo provado que a contraordenação imputada à recorrente foi praticada por um seu órgão no exercício das suas funções, não poderia esta ter sido condenada, já que existe uma norma especial relativa à responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas, ou equiparadas, da qual resulta que tal responsabilidade não tem carácter objetivo, exigindo-se, pois, a prática de um facto ilícito pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
A propósito desta problemática estabelece o art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, que institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo (doravante RGCCO), que: 1. As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica; 2. As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.
Alega-se no recurso que o funcionário em questão, identificado como “AA”, não é gerente, nem sequer “de facto”, da sociedade recorrente.
Analisada a matéria de facto constante da sentença recorrida, verificamos que o tribunal a quo considerou demonstrado que a entrega imediata do livro de reclamações à cliente que solicitou a sua entrega foi recusada pelo «responsável do estabelecimento», AA (também designado de «pessoa responsável pelo espaço»).
Contudo, AA não era gerente da sociedade, como se extrai do conteúdo da certidão permanente constante de fls. 13 e seguintes dos autos, identificando o tribunal a quo na motivação da decisão de facto o representante legal da sociedade arguida pelo nome «CC» que, nessa qualidade, aliás, prestou declarações na audiência de julgamento.
Tudo indica, assim, que AA fosse um funcionário da sociedade arguida, como esta alega, desconhecendo-se, porém, se lhe havia sido atribuída uma função diferenciada e, para o que nos particularmente ocupa, poder de representação da pessoa coletiva em causa.
Como bem assinala o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, não se consegue vislumbrar na decisão recorrida se o “funcionário” que interveio na situação que deu origem aos presentes autos era apenas um “funcionário indiferenciado” dos vinte e um funcionários que, à data dos factos ora em apreço, integrava a estrutura da recorrente, ou se desempenhava funções que o distinguiam naquela estrutura, tendo poderes de facto para atuar como “gerente”, sendo “a face” da recorrente e, assim, de alguma forma e pelo menos aos olhos dos respetivos clientes, surgir como o respetivo “gerente”; de igual modo, nada na mesma decisão permite concluir se o mesmo funcionário atuou da forma descrita nos autos, em obediência a ordens/instruções, ainda que genéricas, imputáveis/emanadas dos órgãos da recorrente socialmente competentes para tal.
Na verdade, da mera leitura dos factos provados considerados na decisão recorrida resulta que o funcionário em questão – AA – tanto é referido como “pessoa responsável pelo espaço”, “responsável do estabelecimento” ou “representante” (da recorrente), sem que se vislumbrem elementos que suportem essas distintas designações ou estatutos funcionais.
Ora, sendo a recorrente uma sociedade por quotas, a sua administração e representação compete aos gerentes (cf. o art.º 252º CSC), que tenham sido designados no contrato social.
São eles pois as pessoas físicas que integram os órgãos da pessoa coletiva, sem prejuízo de se poder demonstrar a existência de verdadeiros “administradores de facto”, entendidos estes como as pessoas que, embora não estando formalmente designadas, ocupam de facto e com a aceitação da pessoa coletiva as funções atribuídas aos órgãos da mesma.
Realidade, porém, que o tribunal não indagou, referindo-se indistintamente à pessoa que recusou a entrega do livro de reclamações, logo que solicitado, como «funcionário», «responsável do estabelecimento» e, ainda, «representante» da sociedade arguida (cf. os pontos 1, 3, 5 e 6, para além do teor da motivação da decisão de facto), e concluindo, apesar de tal indeterminação e confusão terminológica, pelo preenchimento da totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão e, consequentemente, pela responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente.
A elucidação de tal matéria mostra-se necessária para o apuramento da responsabilidade contraordenacional imputada à sociedade arguida, pois, como assinala o TRG, no acórdão datado de 24/9/2018 [7], em face do artigo 7.º n.º 2 do RGCCO, a responsabilidade dos entes coletivos não existirá quando a contraordenação tenha sido praticada por pessoas que tão só mereçam a qualificação de agentes ou auxiliares.
Na verdade, como explica Manuel de Andrade, «Dos órgãos há que distinguir os simples agentes ou auxiliares, que só executam por incumbência ou ainda sob a direção dos órgãos deliberativos e principalmente dos representativos, determinadas operações materiais que interessam à pessoa coletiva»[8]. Ora, «São simples agentes ou auxiliares os operários, os empregados (que podem ser técnicos de alta qualificação) e outros profissionais a cujos serviços a pessoa coletiva ocasionalmente recorra, como mandatários, os advogados constituídos para quaisquer litígios em que a sociedade seja pleiteada, etc». [9]
Neste sentido se pronuncia a generalidade da doutrina, como nos dá conta o referido acórdão do TRG de 24/9/2018 [10], sendo de rejeitar a corrente jurisprudencial que tem seguido o entendimento de que a expressão “órgão no exercício das funções” do nº 2 do artigo 7º do RGCCO, inclui os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, com fundamento numa alegada interpretação extensiva do referido preceito legal [11]. A responsabilidade da pessoa coletiva seria, porém, excluída caso o trabalhador praticasse o facto contra as suas ordens ou instruções [12].
Julgamos que tal entendimento não pode ser seguido, uma vez que, como assinala o acórdão do TRG de 24/9/2018 - com o qual concordamos inteiramente e aqui seguimos de perto -, o conceito de trabalhador não se confunde com o de órgão, sendo conceitos substancialmente distintos, o que conduz uma aplicação analógica da norma, proibida pelo princípio da legalidade (cf. o art.º 2.º do RGCCO) [13].
Perfilhamos, antes, outro sector da jurisprudência, com apoio da doutrina, que defende o entendimento de que o facto típico, quando praticado por funcionário ou trabalhador, só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva, se tiver agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas. Na verdade, e como é observado no acórdão do TRG de 24/9/2018, somente esta posição permite respeitar o critério orgânico da responsabilidade das pessoas coletivas claramente perfilhado pelo legislador no nº 2 do artigo 7º do RGCCO.
Neste sentido, cf. o acórdão deste TRP, de 27/06/2012 [14], segundo o qual «Se o funcionário agir espontaneamente, sem estar a obedecer a ordens genéricas, ou num quadro de ação previamente definido pelos órgãos da sociedade, não é a esta entidade que pode imputar-se o facto, mas ao próprio agente».
Contudo, a jurisprudência tem reconhecido que o Tribunal da Relação pode conhecer de facto, nas hipóteses que constam do art.º 410.º nºs 2 e 3 do CPP, aplicável ex vi dos artigos 41.º n.º 1 e 74.º n.º 4 do DL 433/82, desde que os vícios da matéria de facto resultem do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhes sejam externos.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal (art.º 410.º, n.º 2 do CPP), abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [15].
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
Em particular, o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [16].
Já o vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [17].
Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
É de notar que, como se assinala no acórdão do TRL de 21/5/2015, [18] «A contradição a que se reporta a al. b) do art.º 410.º do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento».
No presente caso, já tivemos a oportunidade de concluir que o tribunal a quo não indagou – e, consequentemente, não esclareceu - a que título e por que forma atuou a pessoa que recusou a entrega do livro de reclamações, logo que solicitada, identificando-a como «funcionário», «responsável do estabelecimento» e, ainda, «representante» da sociedade arguida, e concluindo, apesar de tal indeterminação e confusão terminológica, pelo preenchimento da totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão e, consequentemente, pela responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente.
A elucidação de tal matéria mostra-se necessária para o apuramento da responsabilidade contraordenacional imputada à sociedade arguida, pois, como já tivemos oportunidade de assinalar, em face do artigo 7.º n.º 2 do RGCCO, a responsabilidade dos entes coletivos não existirá quando a contraordenação tenha sido praticada por pessoas que tão só mereçam a qualificação de agentes ou auxiliares.
Observa-se no acórdão deste TRP, de 19/9/2012 [19], que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permitem integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixam espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência da matéria de facto tem de ser objetivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.
No presente caso, a materialidade averiguada não basta para alicerçar uma conclusão afirmativa ou negativa quanto à questão de saber se “AA” agiu (ou não) enquanto gerente ou representante de facto da sociedade arguida ou se, atuando como simples funcionário, agiu no cumprimento de ordens, ainda que genéricas, da sociedade arguida – sendo certo que, só nestas hipóteses, se poderá afirmar a responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente. Na verdade, faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados através dos meios probatórios pertinentes (designadamente, através da inquirição do mencionado “funcionário” e do “representante legal” estatutário da pessoa coletiva), não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
Incorreu, assim, o tribunal a quo, pelo menos, no vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410.º, n.º 2, do CPP), o qual decorre do próprio texto da decisão recorrida.
A verificação deste vício, não sendo sanável por este tribunal de recurso, determina o reenvio do processo para novo julgamento, com vista à elucidação das mencionadas questões, com reflexo na decisão dos factos constantes dos pontos 1), 3), 5) e 6) – relacionados com o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do ilícito contraordenacional e do tipo de culpa – e, consequentemente, no juízo de absolvição/condenação (cf. os artigos 410.º, n.º 2, 426.º, n.º 1 e 426.º-A, do CPP), ficando, naturalmente, prejudicado o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso [20].
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Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida, reconhecendo-se a verificação, na sentença recorrida, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e determinando-se o reenvio parcial do processo para novo julgamento, com vista ao esclarecimento das questões atrás enunciadas, com reflexo na decisão dos factos constantes dos pontos 1), 3), 5) e 6), e, consequentemente, no juízo de absolvição/condenação, nos termos previstos nos artigos 410.º, n.º 2, 426.º, n.º 1, 426.º-A e 40.º, todos do CPP.
Sem custas.
Notifique.
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