ESTABELECIMENTO COMERCIAL
CLIENTELA
LIVRO DE RECLAMAÇÕES
PEDIDO
RECUSA
FUNCIONÁRIO
CONTRAORDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLETIVA
PRESSUPOSTOS
RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL
Sumário

I - O facto típico, quando praticado por funcionário ou trabalhador, só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva, se tiver agido no cumprimento de ordens desse órgão, ainda que genéricas. Na verdade, somente esta posição permite respeitar o critério orgânico da responsabilidade das pessoas coletivas claramente perfilhado pelo legislador no nº 2 do artigo 7º do RGCCO.
II - Assim, se o funcionário agir espontaneamente, sem estar a obedecer a ordens genéricas, ou num quadro de ação previamente definido pelos órgãos da sociedade, não é a esta entidade que pode imputar-se o facto, mas ao próprio agente.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo: 1469/24.3T8GDM.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I - Relatório

No âmbito dos autos de recurso de contraordenação que, sob o nº 1469/24.3T8GDM, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Gondomar, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (segue transcrição parcial):

«Nestes termos, decide-se julgar improcedente a impugnação de A..., LDA, devendo manter-se a decisão da entidade administrativa, nos seus precisos termos.

Ademais condenar a arguida, A..., LDA, nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s, cfr. art.º 93º, nº 3, do D.L. 433/82, de 27/10 e tabela III do RCP […]».

Inconformada com a decisão, dela interpôs recurso a arguida para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:

«1) A aqui arguida no âmbito dos presentes autos viu o Tribunal “a quo” considerar improcedente o seu recurso tendo o mesmo mantido a decisão recorrida que condenou a arguida numa coima única de € 7.500.

2) A aqui arguida no seu recurso de impugnação suscitou primeiramente a questão da nulidade do processo de contraordenação, por violação do vertido no artigo 58º do RGCO.

3) A recorrente alegou que da decisão impugnada não consta qualquer valoração e ou fundamentação e muito menos qualquer critério que permita à aqui arguida perceber as razões para a aplicação de uma coima a título de dolo.

4) Na verdade, conforme resulta da própria decisão administrativa não está de modo algum provado que a aqui arguida praticou os pretensos ilícitos com algum tipo de facto ou matéria que permita caraterizar o seu comportamento como doloso ou intencional.

5) Pelo que resulta claramente que a coima aplicada é excessiva dado que, sendo a arguida primária, e em face da reduzida culpa da mesma, deveria ser a mesma objeto de uma admoestação.

6) É manifesta a nulidade da sentença recorrida por violação do vertido na alínea c) do nº 1 do art.379º do CPP, o que se invoca para todos os efeitos legais.

7) Na verdade, o tribunal “a quo” na sua fundamentação não justifica nem analisa verdadeiramente a questão suscitada pela aqui recorrente, qual seja, a se a autoridade administrativa fez uso dos critérios estatuídos para a aplicação da pena de admoestação, vertidos no art.60º do CP, limitando-se a referir que “(…) não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa (…)”, mas sem fazer um juízo explicativo e justificativo a tal respeito.

8) O que deixa a aqui recorrente extremamente confusa uma vez que os pressupostos vertidos no artigo 60º do CP se encontram efetivamente cumpridos no caso concreto: Relativamente à aplicação de multa não superior a 240 dias, tal não tem cabimento no caso concreto mas da decisão administrativa consta que “(…) Este valor terá de ser pago de uma só vez, no prazo de 10 dias após o caráter definitivo da decisão.” e, para além disso, o valor máximo de multa previsto neste artigo perfaz € 120.000,00 (500€ por dia) pelo que, por analogia, e uma vez que o valor da coima se consubstancia em € 7.500,00, é o nosso entendimento que este requisito se encontra preenchido; Quanto à reparação do dano, este nem sequer existe, uma vez que a aqui arguida nunca recusou à cliente/reclamante o respetivo livro de reclamações e esta efetivamente lá escreveu; Por este meio realizam-se de forma adequada e suficiente as finalidades punitivas, uma vez que não existiu dolo por parte da aqui recorrente; A aqui arguida não foi condenada em qualquer pena nos 3 anos anteriores ao facto.

9) Violou assim a sentença recorrida o vertido no artigo 60º do Código Penal e o vertido na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.

10) Por outro lado, e sem prescindir, a aqui arguida alegou na sua impugnação que o vertido no n.º 1 do art.º 9º do Dec. Lei 156/2005 (na versão do Decreto Lei 74/2017) é manifestamente inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.

11) Isto, pois o artigo 13.º da CRP, significando igualdade dos cidadãos perante a lei, vedando-se privilégios e discriminações, devendo ser dado um tratamento igual a situações iguais e um tratamento desigual a situações desiguais, mas substancial e objetivamente desiguais e não criadas ou mantidas artificialmente pelo legislador.

12) O princípio da proporcionalidade está consagrado no artigo 18.º, nº 2, da CRP, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito). Como vem sendo entendido, a necessidade supõe a existência de um bem juridicamente protegido e de uma circunstância que imponha intervenção ou decisão. A adequação significa que a providência se mostra adequada ao objetivo almejado, se destina ao fim da norma e não a outro.

13) A racionalidade implica justa medida; que o órgão competente proceda a uma correta avaliação da providência em termos quantitativos (e não só qualitativos), que a providência não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido. A falta de necessidade ou de adequação traduz -se em arbítrio. A falta de racionalidade traduz-se em excesso — cf. Jorge Miranda/Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 148 -163, bem como Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, p. 144 -154, e ainda Santiago Mir Puig, in “O princípio da proporcionalidade enquanto fundamento constitucional de limites materiais do Direito Penal”, publicado na RPCC, Ano 19, n.º 1, Janeiro -Março 2009, Coimbra Editora, p. 7 -38.

14) Na verdade e para a mesma contra-ordenação, e só pelo facto de estarmos perante uma pessoa singular ou coletiva, a moldura abstrata da coima a ter em conta é muito diferente e muito mais grave (o mínimo passa de € 250,00 para € 1500,00 ou seja, passa para o sêxtuplo).

15) Sendo certo que hoje em dia existem pessoas coletivas com capital social de € 1,00 ! Não existe qualquer racionalidade, adequação ou sentido num agravamento da moldura da coima pelo facto de estarmos perante uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular.

16) E também não se pode confundir a moldura abstrata das coimas com os critérios para definir a sua medida concreta e em cada caso concreto. A moldura abstrata da coima não se pode confundir com a aplicação em concreto e a respetiva medida concreta.

17) A sanção imposta tem de ser proporcional à infração cometida. Mesmo no âmbito do Código Penal as agravações das penas aí previstas não são tão amplas e elevadas como no citado n.º 2 do artigo 98º A agravação da pena normalmente é de apenas um terço do limite mínimo — cf. os arts. 76.º, 141.º, 147.º, l77.º, 183.º, 184.º e 197.º, todos do Código Penal.

18) Entendemos que não é assim constitucionalmente justificada a norma do n.º 1 do artigo 9.º do citado Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, por violação expressa dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

19) A este respeito o tribunal “a quo” apenas refere “(…) Importa, ainda, referir que se refuta o entendimento da verificação de qualquer interpretação inconstitucional das normas aplicada. (…)”.

20) Por último, e sem prescindir, levanta-se ainda uma outra questão relativamente à responsabilidade da pessoa coletiva (in casu, a aqui arguida) pela atuação dos seus funcionários.

21) Ora, a acusação em causa foi dirigida contra a Recorrente, pessoa coletiva, sendo que inexiste a identificação dos concretos órgãos ou representantes legais que agiram ou deixaram de agir livremente, no caso concreto.

22) As pessoas coletivas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos ou agentes ou representantes no exercício das suas funções, tal como prescreve o nº 2 do artigo 7º do RGCOC.

23) A infração imputada à ora Recorrente terá sido alegadamente praticada por seu funcionário, não identificado nos autos, exercendo este as funções englobadas na sua categoria profissional, não tendo quaisquer outras funções ou responsabilidades na Recorrente, não fazendo parte dos órgãos da sociedade comercial, não sendo seu representante legal, ou até comercial.

24) Cita-se nas motivações de recurso e a este propósito o acórdão do TRP de 24/01/2007, Processo 0643899 in www.dgsi.pt.

25) No preenchimento do conceito, a generalidade da doutrina aponta para pessoas que estatutariamente ou de facto praticam atos imputáveis à pessoa coletiva ou, por outras palavras, que integrem a vontade da pessoa coletiva. Ou seja, as pessoas físicas que integram «os centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer pelo indivíduo ou colégio de indivíduos que nele estiverem providos com o objetivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa coletiva».”.

26) O nº 2 do art.7º do RGCOC ao referir "os seus órgãos" exclui, desde logo, os seus funcionários, dado que estes não representam a sua vontade, caso contrário a pessoa coletiva seria sempre responsável por atos no domínio funcional da empresa independentemente da vontade e do seu conhecimento dos seus órgãos ou representantes.

27) Os funcionários são de facto e de Direito, sujeitos autónomos, com personalidade jurídica distinta entre si, e por isso mesmo, responsáveis pelos seus atos e/ou omissões pois, caso assim se não entendesse, fácil seria hoje em dia trabalhar em qualquer empresa, sem qualquer tipo de responsabilidade emergente da sua prestação de trabalho, pois a culpa ou negligência seria sempre da entidade patronal!

28) Por conseguinte, ao aparecer a Recorrente sozinha em juízo a ratio daquela norma é totalmente contrariada. Efetivamente, para que a Recorrente, pessoa coletiva, fosse responsável haveria sempre que haver simultaneamente uma pessoa individual responsável pela prática da mesma contraordenação, o que não ocorre, e impossibilita, assim, que a Arguida possa ser punida.

29) Acresce que, se não resulta da matéria de facto provada que o funcionário tivesse atuado contra ordens ou instruções expressas da Arguida, também é certo que não ficou dado como provado que tivesse agido segundo as suas instruções.

30) Este funcionário, por não fazer parte dos órgãos da empresa, não integra o conceito de órgão do redito artigo 7º, n.º 2 do DL 433/82, pelo que a Recorrente não pode ser responsabilizada pela conduta do mesmo.

31) O funcionário em questão não é gerente da sociedade (a quem compete a representação da sociedade – art.252º Cód. Sociedades Comerciais), e estes – gerentes – é que são as pessoas físicas que integram os órgãos das pessoas coletivas.

32) O funcionário não é gerente de Direito, nem tão pouco de facto, pelo que nunca poderia ter sido considerado um órgão da sociedade ora Recorrente.

33) É igualmente este o entendimento do Ac. da Relação de Guimarães de 24/09/2018, proc. nº 722/18.0T8BRG.G1

34) O Tribunal ao decidir condenar a Arguida Recorrente enquanto ente coletivo responsável único pela prática daquela contraordenação violou o estatuído no nº2 do art. 7º do DL 433/82, de 27/10, pelo que deve a decisão ser revogada, o que se requer.

35) Acresce que, ao assim atuar, violou igualmente e por esta via os Princípios da Legalidade e da Tipicidade, em clara violação do Princípio da Legalidade estatuído no nº1 do art.29º da CRP., o que desde já se alega e invoca com as devidas e legais consequências e efeitos.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso,

A BEM DA JUSTIÇA E DA LEGALIDADE».


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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida, nos termos constantes do respetivo articulado e cujo teor aqui damos por reproduzido.
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer no sentido de «os autos serem remetidos ao tribunal a quo para que esclareça a matéria que se vem de referir, de harmonia com o disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal», por considerar que a decisão recorrida padece do vício previsto no art.º 410.º, n.º 2, a), do CPP, invocando, para fundamentar a sua posição, o seguinte (segue transcrição parcial):
«Ora, ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, afigura-se que a matéria de facto constante dos autos não logrou esclarecer em que medida a atuação do funcionário/responsável/“gerente de facto”(?) que interveio na situação que deu origem aos presentes autos resultou de uma atuação que se possa considerar abrangida pelo previsão normativa constante do n.º 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contra Ordenações que, de forma cristalina, dispõe que “As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”.
Tendo-se como (aparentemente, pelo menos) adquirido que o aludido elemento não integrará nenhum órgão da pessoa coletiva ora recorrente, crê-se que não será de seguir a corrente que, baseando-se numa interpretação extensiva do conceito que se vem de referir, entende que a expressão “órgão no exercício das funções” inclui os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas; não obstante, a responsabilidade da pessoa coletiva seria excluída caso o trabalhador praticasse o facto contra as respetivas ordens ou instruções. Não se ignora que tal entendimento se mostra, para além do mais, sufragado no Parecer n.º 11/2013, datado de 10 de Julho, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, em cuja conclusão 4.º expressamente se consigna que “O preceito do número 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas”.
Sempre ressalvado o devido respeito, crê-se ser antes de acolher o entendimento expressamente assumido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão invocado pela Recorrente, segundo o qual “… julgamos que tal entendimento não pode ser seguido, uma vez que, …, o conceito de trabalhador não se confunde com o de órgão, sendo conceitos substancialmente distintos, o que conduz não a uma interpretação extensiva, mas sim a uma aplicação analógica da norma, que a lei não permite”, assim se assumindo, conforme jurisprudência e doutrina invocados também no mesmo aresto que “… o facto típico, quando praticado por funcionário ou trabalhador, só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva se tiver agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas”, pois que “… somente esta posição permite respeitar o critério orgânico da responsabilidade das pessoas coletivas claramente perfilhado pelo legislador no nº 2 do artigo 7º do RGCCO.” (destaque e sublinhados do signatário).
A esta luz importa referir que não se consegue vislumbrar na douta decisão recorrida se o “funcionário” que interveio na situação que deu origem aos presentes autos era apenas um “funcionário indiferenciado” dos vinte e um funcionários que, à data dos factos ora em apreço, integrava a estrutura da Recorrente, ou se, de facto, desempenhava funções que o distinguiam naquela estrutura, tendo poderes de facto para atuar como “gerente”, “sendo a face” da Recorrente e, assim, de alguma forma e pelo menos aos olhos dos respetivos clientes, surgir como “gerente” da Recorrente; de igual modo, nada na mesma decisão permite concluir se o mesmo funcionário atuou da forma descrita nos autos, em obediência a ordens/instruções, ainda que genéricas, imputáveis/emanadas dos órgãos da Recorrente socialmente competentes para tal.
A este propósito importará reter que da mera leitura dos factos provados na decisão ora submetida à apreciação do Tribunal da Relação do Porto resulta que o funcionário em questão – AA – tanto é referido como “pessoa responsável pelo espaço”, “responsável do estabelecimento” ou “representante” (da Recorrente), sem que se vislumbrem elementos que suportem essas distintas designações ou estatutos funcionais.
Assim sendo, e tendo-se em atenção o disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, quer-se crer que a decisão recorrida, pese embora douta, não contém elementos com a densidade suficiente/necessária/adequada para suportar a condenação da Recorrente, sendo que tal vício resulta evidente do próprio texto daquela mesma decisão […]».

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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes [2]:
a) Nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP).
b) Inconstitucionalidade da norma contida no art.º 9º, n.º 1 do Dec. Lei 156/2005, de 15/9.
c) Verificação dos pressupostos da responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva.


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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a sentença proferida.

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Factos provados e não provados; motivação da decisão de facto (segue transcrição):

«1. No dia 4 de janeiro de 2020, pelas 22h e 40m, BB solicitou o livro de reclamações do estabelecimento de restauração e bebidas B..., sita na Rua ..., em ..., à pessoa responsável pelo espaço, AA, o qual não entregou imediatamente o livro de reclamações, tendo sido chamada a PSP da Esquadra ..., pela reclamante.

2. O Livro é só foi disponibilizado (“…colocada em cima do balcão de atendimento…”) quando AA se apercebe de que a reclamante tinha telefonado para a autoridade, tendo sido a reclamação redigida por esta após a chegada da autoridade.

3. Naquela data o livro de reclamações foi recusado, pelo responsável do estabelecimento, assim que é solicitado pela reclamante, com o argumento “...não tinha motivo para reclamar…”

4. Por esse motivo foi a autoridade policial chamada ao estabelecimento pela reclamante e foi só na presença desta que a cliente exerceu o seu direito de reclamação.

5. A arguida, na pessoa do seu representante, sabia que devia fornecer o livro de reclamações logo que o mesmo fosse solicitado,

6. Todavia optou por não o fazer, conformando-se com as consequências da sua recusa.


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IV – Factos não provados:

- Não existem factos por provar.


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O demais alegado é meramente conclusivo ou repetição do já expresso ou ainda matéria de direito».

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V – MOTIVAÇÃO DE FACTO

Fundou o Tribunal a sua convicção quer no conjunto da prova testemunhal e declarações produzidas em julgamento, quer nos documentos juntos aos autos, conjugados com regras de experiência comum (cfr. art.º 127º do C.P.P.).

Assim, e relativamente à prova junta aos autos e considerada para a formação da convicção do Tribunal, foi relevante o auto de notícia de fls.5 e ss, que motivou a abertura do presente processo de contra-ordenação e, bem assim, o teor dos demais documentos, como certidão comercial, entre o mais.

Depois e, como referido, baseou-se aquela convicção numa apreciação livre das declarações prestadas e da prova testemunhal, tal qual a mesma se produziu em sede de audiência de julgamento, na qual se deu relevância ao conhecimento pessoal e direto dos factos perguntados, a postura denotada pelas testemunhas, bem como a convicção e transparência dos depoimentos.

Desde logo, sustentou-se, na apreciação global do conjunto da prova em audiência, designadamente, nas declarações do representante legal da empresa arguida, CC, que não assistiu aos factos que são imputados à empresa por via do processo em apreço, contudo, sabe do que se trata. Desde logo, quis fazer crer que a cliente consumiu determinado produto, mas não queria pagar e pediu o livro de reclamações. O empregado tentou demovê-la a fazê-lo. Mas entregaram o livro.

Por seu turno, o depoimento da testemunha, DD, casado, nascido em ../../1977, Agente da P.S.P. autuante, que relatou de forma minuciosa como se deslocou ao local em causa. Confere que não tinha sido disponibilizado o livro de reclamações à cliente que o havia pedido.

Confrontado com o auto, o agente confirma o seu teor.

De seguida, foi considerado o depoimento de BB, casada, nascida em ../../1977, lojista de flores, cliente reclamante no caso a que a reporta os presentes autos.

Num discurso bastante minucioso, direto, objetivo, ajudando a criar a convicção deste Tribunal, ressalta que que após ter sido pedido o livro de reclamações, o mesmo não lho foi facultado.

Aliás, é perentória em afirmar que era cliente, já há vários anos daquele restaurante, conhecia bem todos e vice-versa, que após reclamar, pessoalmente, do serviço, pediu o livro de reclamações ao responsável AA e este perentoriamente lho negou.

Adrede, foi, ainda, considerado o depoimento da testemunha de defesa da arguida, EE, nascido em ../../1960, divorciado, reformado e que aos costumes disse conhecer o recorrente porque foi empregado do mesmo durante 24 anos.

De relevante, nada disse, porque não se apercebeu da situação em concreto 8º que sabe é de ouvir dizer).

Face à prova produzida, aos documentos juntos e, bem assim, aos factos dados como provados, não se suscitaram dúvidas ao presente Tribunal que efetivamente, a empresa arguida não entregou à cliente, quando esta pediu, o livro de reclamações de acordo com a legislação em vigor.

Facto que relevou para o apuramento do elemento subjetivo.

Da prova produzida em audiência de julgamento não soçobram dúvidas que logrou demonstrar-se a existência de dolo, enquanto conhecimento e consciência de infringir um comando legal, querendo-o fazer».


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Apreciação dos fundamentos do recurso.
I) Nulidade da sentença (art.º 379.º, n.º 1, c), do CPP).

Considera a recorrente que a decisão recorrida encontra-se insuficientemente fundamentada, argumentando que o tribunal a quo, na fundamentação da sentença, «não justifica nem analisa verdadeiramente a questão suscitada» no recurso de impugnação judicial, em concreto a de saber «se a autoridade administrativa fez uso dos critérios estatuídos para a aplicação da pena de admoestação, vertidos no art.60º do CP, limitando-se a referir que “(…) não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa (…)”, mas sem fazer um juízo explicativo e justificativo a tal respeito».

Vejamos, então, se assiste razão á recorrente na crítica dirigida à decisão objeto do presente recurso.

Decorre do disposto no n.º 2, do art.º 374.º do CPP – que regula os requisitos da sentença – que ao relatório segue-se a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Como é salientado no acórdão do STJ, de 21/3/2007 [3], «A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão, pois que as decisões judiciais não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 289)».

A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspetiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo.[4]

Efetuada a delimitação da questão que nos ocupa, importa reproduzir o que se escreveu, a propósito da questão enunciada pelo recorrente (possibilidade de aplicação de pena de admoestação), na sentença recorrida (segue transcrição):

«Feito pela forma supra descrita o enquadramento jurídico-contra-ordenacional da conduta da arguida importa, antes de mais, determinar da possibilidade de substituir a coima por mera admoestação:

De harmonia com o disposto no art. 18º, nº 1, do Decreto-lei nº 433/82, de 27 de Outubro, (regime geral das contra-ordenações), a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.

O art. 51º do RGCO prevê a aplicação pela entidade competente de uma admoestação ao arguido, em caso de reduzida gravidade da infração e da culpa do agente, a qual deverá ser proferida por escrito.

A admoestação, consiste numa solene censura feita ao agente, por escrito (artigo 51º, nº 2 do Decreto-Lei nº 433/82).

O artigo 51º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, prescreve “Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação”.

Parece, no entanto, que a admoestação aí prevista tem apenas aplicação em sede administrativa, atento o seu regime.

Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa referem, a este propósito, que «...a admoestação escrita prevista neste art. 51.° é aplicável apenas na fase administrativa do processo contra-ordenacional, como resulta do seu enquadramento neste diploma. Por isso, se a admoestação relativa à contra-ordenação for decidida pelo tribunal, nos casos em que é este a decidir a condenação, será aplicável a admoestação oral, prevista naquele art. 60.°, n.° 4, do Código Penal, aplicável por força do preceituado no art. 32.° do R.G.C.O.» - “in” Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2ª edição, 2002, Visilis Editores, pág. 317.

Ora, concordando com este entendimento, há que averiguar se estão reunidos os pressupostos de a que alude o artº.60º do diploma citado. Nunca olvidando que conforme resulta do mecanismo legal ínsito naquele preceito, que primeiro se deve aplicar uma pena de multa (no caso em concreto de uma coima) e em substituição (na eventualidade dos requisitos estarem reunidos) dessa pena de multa, uma pena de admoestação.

Assim, nos termos do art.º 60º do Código Penal são os seguintes os pressupostos (a verificar no momento da decisão) de que a lei faz depender a possibilidade (e obrigatoriedade) da aplicação ao arguido da pena de admoestação:

- um pressuposto formal, ou seja, que a pena concreta aplicada seja de multa não superior a 240 dias;

- que haja reparação do dano;

- que decorrente de um favorável juízo de prognose, com a admoestação seja razoável concluir pela realização bastante das finalidades punitivas.

-inexistência, em princípio, de anterior condenação em qualquer pena.

Veja-se, nesse sentido, que os requisitos são cumulativos e que se exige que inexista anterior condenação em qualquer pena.

Ora, da análise dos pressupostos em causa, conjugado com a factualidade dada como provada, desde logo, não nos parece que se possa afirmar pelo preenchimento dos requisitos da aplicação da admoestação, até pelo montante da coima em causa, pelo que se indefere tal pretensão».

Com relevância para aferir da correção do segmento decisório imediatamente atrás transcrito, importa assinalar que só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial. [5]

No presente caso, é manifesta a inexistência ou, sequer, a insuficiência da fundamentação, encontrando-se enunciados, especificadamente, não só os meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também as razões de direito que levaram o tribunal a considerar inaplicável a pena de admoestação. Permitindo a fundamentação compreender de forma suficientemente clara e precisa – e com a amplitude adequada à complexidade da causa - os motivos e a construção do percurso lógico da decisão, mostra-se observado o ónus imposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP.

No fundo, a crítica dirigida à decisão recorrida assenta na discordância da recorrente quanto à forma como o tribunal interpretou as normas legais em apreço, concluindo pela inadequação da pena de admoestação. Contudo, tal discordância de modo nenhum se confunde com a patologia invocada que, claramente, não se verifica no presente caso e, por isso, em nada contende com a validade formal da decisão em análise.

Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso.


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II) Inconstitucionalidade do art.º 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15/9.

Invoca a recorrente que a norma contida no art.º 9.º, n.º 1, do DL n.º 156/2005, de 15/9, é inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, argumentando que «não existe qualquer racionalidade, adequação ou sentido num agravamento da moldura da coima pelo facto de estarmos perante uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular», sendo que, no caso concreto, «a moldura abstrata da coima a ter em conta é muito diferente e muito mais grave (o mínimo passa de € 250,00 para € 1500,00 ou seja, passa para o sêxtuplo)».

Vejamos.

De acordo com o disposto no art.º 9.º, n.º 1, do DL n.º 156/2005, de 15/9, na versão do DL n.º 74/2017, de 21/6 (em vigor à data da prática do ilícito contraordenacional em análise), «Constituem contraordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De (euro) 250 a (euro) 3500 e de (euro) 1500 a (euro) 15 000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º, no n.º 3 do artigo 5.º-A, nos n.ºs 1 a 3 do artigo 5.º-B e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 8.º».

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é violado, como vem sendo assinalado, de modo reiterado e uniforme, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, quando as medidas legislativas, contendo diferenciações de tratamento, se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.

Com efeito, a Constituição da República não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:

«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º.

Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados».

A diferenciação estabelecida pelo legislador entre os limites mínimos e máximos das coimas em função da natureza singular ou coletiva do respetivo infrator encontra plena justificação na circunstância de ser, por regra e em abstrato, mais elevado o grau de ilicitude das infrações quando cometidas por pessoas coletivas, acentuando as inerentes exigências preventivas (ao nível da prevenção geral, considerando a repercussão na comunidade dos comportamentos ilícitos, e da prevenção especial, atendendo ao risco incrementado de reincidência no cometimento de novas infrações, em face da natureza colegial do respetivo agente). Além disso, o legislador presume uma maior capacidade económica da pessoa coletiva, por comparação com a dos agentes individuais.

Deste modo, e diversamente do que sustenta a recorrente, não se descortina qualquer violação do princípio da igualdade ou da proporcionalidade, já que, como se afirma no acórdão do TC n.º 754/2024 (consultável em tribunalconstitucional.pt) «havendo tratamentos legais diferenciados, os mesmos só consubstanciam distinção arbitrária se não for possível encontrar um “motivo razoável”, decorrente da “natureza das coisas”, ou que seja “concretamente compreensível” enquanto fundamento da distinção».

A diferenciação estabelecida pelo legislador encontra-se materialmente fundada, não se revelando, por isso, arbitrária [6], razão pela qual também improcede o presente fundamento do recurso.


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III) Responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva.

Defende-se no recurso que, não se tendo provado que a contraordenação imputada à recorrente foi praticada por um seu órgão no exercício das suas funções, não poderia esta ter sido condenada, já que existe uma norma especial relativa à responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas, ou equiparadas, da qual resulta que tal responsabilidade não tem carácter objetivo, exigindo-se, pois, a prática de um facto ilícito pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

A propósito desta problemática estabelece o art.º 7.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, que institui o ilícito de mera ordenação social e respetivo processo (doravante RGCCO), que: 1. As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidade jurídica; 2. As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

Alega-se no recurso que o funcionário em questão, identificado como “AA”, não é gerente, nem sequer “de facto”, da sociedade recorrente.

Analisada a matéria de facto constante da sentença recorrida, verificamos que o tribunal a quo considerou demonstrado que a entrega imediata do livro de reclamações à cliente que solicitou a sua entrega foi recusada pelo «responsável do estabelecimento», AA (também designado de «pessoa responsável pelo espaço»).

Contudo, AA não era gerente da sociedade, como se extrai do conteúdo da certidão permanente constante de fls. 13 e seguintes dos autos, identificando o tribunal a quo na motivação da decisão de facto o representante legal da sociedade arguida pelo nome «CC» que, nessa qualidade, aliás, prestou declarações na audiência de julgamento.

Tudo indica, assim, que AA fosse um funcionário da sociedade arguida, como esta alega, desconhecendo-se, porém, se lhe havia sido atribuída uma função diferenciada e, para o que nos particularmente ocupa, poder de representação da pessoa coletiva em causa.

Como bem assinala o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, não se consegue vislumbrar na decisão recorrida se o “funcionário” que interveio na situação que deu origem aos presentes autos era apenas um “funcionário indiferenciado” dos vinte e um funcionários que, à data dos factos ora em apreço, integrava a estrutura da recorrente, ou se desempenhava funções que o distinguiam naquela estrutura, tendo poderes de facto para atuar como “gerente”, sendo “a face” da recorrente e, assim, de alguma forma e pelo menos aos olhos dos respetivos clientes, surgir como o respetivo “gerente”; de igual modo, nada na mesma decisão permite concluir se o mesmo funcionário atuou da forma descrita nos autos, em obediência a ordens/instruções, ainda que genéricas, imputáveis/emanadas dos órgãos da recorrente socialmente competentes para tal.

Na verdade, da mera leitura dos factos provados considerados na decisão recorrida resulta que o funcionário em questão – AA – tanto é referido como “pessoa responsável pelo espaço”, “responsável do estabelecimento” ou “representante” (da recorrente), sem que se vislumbrem elementos que suportem essas distintas designações ou estatutos funcionais.

Ora, sendo a recorrente uma sociedade por quotas, a sua administração e representação compete aos gerentes (cf. o art.º 252º CSC), que tenham sido designados no contrato social.

São eles pois as pessoas físicas que integram os órgãos da pessoa coletiva, sem prejuízo de se poder demonstrar a existência de verdadeiros “administradores de facto”, entendidos estes como as pessoas que, embora não estando formalmente designadas, ocupam de facto e com a aceitação da pessoa coletiva as funções atribuídas aos órgãos da mesma.

Realidade, porém, que o tribunal não indagou, referindo-se indistintamente à pessoa que recusou a entrega do livro de reclamações, logo que solicitado, como «funcionário», «responsável do estabelecimento» e, ainda, «representante» da sociedade arguida (cf. os pontos 1, 3, 5 e 6, para além do teor da motivação da decisão de facto), e concluindo, apesar de tal indeterminação e confusão terminológica, pelo preenchimento da totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão e, consequentemente, pela responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente.

A elucidação de tal matéria mostra-se necessária para o apuramento da responsabilidade contraordenacional imputada à sociedade arguida, pois, como assinala o TRG, no acórdão datado de 24/9/2018 [7], em face do artigo 7.º n.º 2 do RGCCO, a responsabilidade dos entes coletivos não existirá quando a contraordenação tenha sido praticada por pessoas que tão só mereçam a qualificação de agentes ou auxiliares.

Na verdade, como explica Manuel de Andrade, «Dos órgãos há que distinguir os simples agentes ou auxiliares, que só executam por incumbência ou ainda sob a direção dos órgãos deliberativos e principalmente dos representativos, determinadas operações materiais que interessam à pessoa coletiva»[8]. Ora, «São simples agentes ou auxiliares os operários, os empregados (que podem ser técnicos de alta qualificação) e outros profissionais a cujos serviços a pessoa coletiva ocasionalmente recorra, como mandatários, os advogados constituídos para quaisquer litígios em que a sociedade seja pleiteada, etc». [9]

Neste sentido se pronuncia a generalidade da doutrina, como nos dá conta o referido acórdão do TRG de 24/9/2018 [10], sendo de rejeitar a corrente jurisprudencial que tem seguido o entendimento de que a expressão “órgão no exercício das funções” do nº 2 do artigo 7º do RGCCO, inclui os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, com fundamento numa alegada interpretação extensiva do referido preceito legal [11]. A responsabilidade da pessoa coletiva seria, porém, excluída caso o trabalhador praticasse o facto contra as suas ordens ou instruções [12].

Julgamos que tal entendimento não pode ser seguido, uma vez que, como assinala o acórdão do TRG de 24/9/2018 - com o qual concordamos inteiramente e aqui seguimos de perto -, o conceito de trabalhador não se confunde com o de órgão, sendo conceitos substancialmente distintos, o que conduz uma aplicação analógica da norma, proibida pelo princípio da legalidade (cf. o art.º 2.º do RGCCO) [13].

Perfilhamos, antes, outro sector da jurisprudência, com apoio da doutrina, que defende o entendimento de que o facto típico, quando praticado por funcionário ou trabalhador, só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa coletiva, se tiver agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas. Na verdade, e como é observado no acórdão do TRG de 24/9/2018, somente esta posição permite respeitar o critério orgânico da responsabilidade das pessoas coletivas claramente perfilhado pelo legislador no nº 2 do artigo 7º do RGCCO.

Neste sentido, cf. o acórdão deste TRP, de 27/06/2012 [14], segundo o qual «Se o funcionário agir espontaneamente, sem estar a obedecer a ordens genéricas, ou num quadro de ação previamente definido pelos órgãos da sociedade, não é a esta entidade que pode imputar-se o facto, mas ao próprio agente».


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No âmbito dos recursos de contraordenação, e como resulta do disposto do n.º 1 do art.º 75.º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, por regra, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.

Contudo, a jurisprudência tem reconhecido que o Tribunal da Relação pode conhecer de facto, nas hipóteses que constam do art.º 410.º nºs 2 e 3 do CPP, aplicável ex vi dos artigos 41.º n.º 1 e 74.º n.º 4 do DL 433/82, desde que os vícios da matéria de facto resultem do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhes sejam externos.
O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal (art.º 410.º, n.º 2 do CPP), abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [15].
Assim, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

Em particular, o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão reporta-se a lacunas no elenco factual vertido na decisão, pelo que tal vício ocorre quando da leitura desta se evidencia a omissão de factos que podiam e deviam ter sido averiguados - por se mostrarem necessários à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição - e não o foram, em prejuízo do dever de descoberta da verdade e boa decisão da causa que incumbe ao tribunal, como nos dá conta o acórdão deste TRP, de 15/11/2018 [16].

Já o vício decisório previsto na referida alínea b), do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange, na verdade, dois vícios distintos:

- A contradição insanável da fundamentação; e

- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correta é impossível” [17].

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.

É de notar que, como se assinala no acórdão do TRL de 21/5/2015, [18] «A contradição a que se reporta a al. b) do art.º 410.º do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento».

No presente caso, já tivemos a oportunidade de concluir que o tribunal a quo não indagou – e, consequentemente, não esclareceu - a que título e por que forma atuou a pessoa que recusou a entrega do livro de reclamações, logo que solicitada, identificando-a como «funcionário», «responsável do estabelecimento» e, ainda, «representante» da sociedade arguida, e concluindo, apesar de tal indeterminação e confusão terminológica, pelo preenchimento da totalidade dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico em questão e, consequentemente, pela responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente.

A elucidação de tal matéria mostra-se necessária para o apuramento da responsabilidade contraordenacional imputada à sociedade arguida, pois, como já tivemos oportunidade de assinalar, em face do artigo 7.º n.º 2 do RGCCO, a responsabilidade dos entes coletivos não existirá quando a contraordenação tenha sido praticada por pessoas que tão só mereçam a qualificação de agentes ou auxiliares.

Observa-se no acórdão deste TRP, de 19/9/2012 [19], que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permitem integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixam espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência da matéria de facto tem de ser objetivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objeto do processo, e não na perspetiva subjetiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.

No presente caso, a materialidade averiguada não basta para alicerçar uma conclusão afirmativa ou negativa quanto à questão de saber se “AA” agiu (ou não) enquanto gerente ou representante de facto da sociedade arguida ou se, atuando como simples funcionário, agiu no cumprimento de ordens, ainda que genéricas, da sociedade arguida – sendo certo que, só nestas hipóteses, se poderá afirmar a responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente. Na verdade, faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados através dos meios probatórios pertinentes (designadamente, através da inquirição do mencionado “funcionário” e do “representante legal” estatutário da pessoa coletiva), não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

Incorreu, assim, o tribunal a quo, pelo menos, no vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410.º, n.º 2, do CPP), o qual decorre do próprio texto da decisão recorrida.

A verificação deste vício, não sendo sanável por este tribunal de recurso, determina o reenvio do processo para novo julgamento, com vista à elucidação das mencionadas questões, com reflexo na decisão dos factos constantes dos pontos 1), 3), 5) e 6) – relacionados com o preenchimento do tipo objetivo e subjetivo do ilícito contraordenacional e do tipo de culpa – e, consequentemente, no juízo de absolvição/condenação (cf. os artigos 410.º, n.º 2, 426.º, n.º 1 e 426.º-A, do CPP), ficando, naturalmente, prejudicado o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso [20].


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida, reconhecendo-se a verificação, na sentença recorrida, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e determinando-se o reenvio parcial do processo para novo julgamento, com vista ao esclarecimento das questões atrás enunciadas, com reflexo na decisão dos factos constantes dos pontos 1), 3), 5) e 6), e, consequentemente, no juízo de absolvição/condenação, nos termos previstos nos artigos 410.º, n.º 2, 426.º, n.º 1, 426.º-A e 40.º, todos do CPP.

Sem custas.

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente)

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Porto, 5 de fevereiro de 2025.
Liliana de Páris Dias
Fernanda Sintra Amaral
Paula Pires [com a declaração de voto que segue:
«A questão que vem posta em causa no presente recurso (e que levou à decisão concernente à insuficiência da matéria de facto para a decisão) não é nova e não tem merecido sempre o mesmo entendimento por parte da jurisprudência dos nossos tribunais.
Não desconhecendo a jurisprudência em que a recorrente se sustenta – e que mereceu acolhimento no douto acórdão - para pretender que a decisão administrativa padece da nulidade que lhe assaca, revemo-nos, porém, no entendimento de que em decisão condenatória proferida na fase administrativa de processo contraordenacional, não carecem, sequer, de ser indicadas as pessoas singulares representantes da pessoa coletiva infractora e responsáveis pelas infrações.
Vejamos, melhor e com todo o respeito pelo entendimento contrário.
Diz o artº 7º2 RGCO que: “As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”
Não surte contestação que a recorrente é pessoa colectiva, pelo que importa aferir quais são os seus órgãos para efeitos de pática de contrordenação.
O Ac R.P. 24/1/2007 In www.dgsi.pt/jtrp é apresentado com o seguinte sumário:
“Uma pessoa colectiva não pode ser responsabilizada pela prática de contraordenação que se preenche com a conduta de um seu funcionário, que actua por sua livre e espontânea vontade.” (sublinhado nosso).
E aí se escreve também que:
“A responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas ou equiparadas não tem carácter objectivo, já que pressupõe a prática do facto típico pelos seus «órgãos» no exercício das suas funções, ou seja, «uma mens rea e esta só tem sentido quando referida a pessoas singulares. Daí que a expressão “órgãos” deva ser identificada com as pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo»”.(sublinhado nosso)
Daqui parece desde logo resultar um sentido amplo do conceito de órgãos da pessoa colectiva, ou seja órgão é apenas aquele conjunto (ou não: órgão singular) de pessoas físicas, que exprimem a vontade do órgão (órgão executivo e deliberativo) ou abrange também aquelas pessoas físicas que executam a vontade da pessoa colectiva expressa pelo órgão?
Cremos que o conceito a adoptar é um conceito amplo que abrange toda aquela pessoa física que age em nome e em representação da pessoa colectiva e no exercício das funções que pela pessoa colectiva lhe foram cometidas, e cujos efeitos se repercutem na esfera jurídica daquela e não neste.
Entender de outro modo é, cremos, transformar sem sentido a norma.
É que o órgão sem um executor material da suas decisões, não interfere com a materialidade das coisas, e logo não pode cometer crime (contraodenação), tal como sem aquele executor nada pode fazer no mundo do concreto, do material, do real.
É nesse sentido cremos que Lopes da Rocha, Manuel António, A responsabilidade penal das pessoas colectivas – novas perspectivas, in Direito Penal Económico, CEJ, Ciclo de Estudos, Coimbra 1985, pág. 156 se pronuncia ao expressar que: “Daí que a expressão “órgãos” deva ser identificada com as pessoas físicas que, enquanto tais, actuam em nome do ente colectivo.
É à lei extrapenal que deve naturalmente recorrer-se para o preenchimento desse conceito, cuja generalidade aponta para pessoas que estatutariamente ou de facto praticam actos imputáveis à pessoa colectiva ou, por outras palavras que integrem a vontade desta” (…) “… a responsabilidade da pessoa colectiva só existirá quando a pessoa singular praticar o facto no exercício da suas funções, isto é no quadro de uma actividade que interessa ao ente a que tal pessoa está ligada por uma relação funcional”.
A nível penal (carácter subsidiário do RGCO e que por isso o completa) regula o artº 11º CP, cujo nº 6 aponta nesse sentido ao excluir a responsabilidade da pessoa colectiva apenas quando o agente “tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.” ou seja, o executor agiu contra as ordens do órgão que lhe deu as instruções”.
Ora no caso em apreço AA era, no momento, o “responsável pelo estabelecimento”; certamente seria um dos 21 funcionários da sociedade arguida (consta dos autos a certidão com identificação dos órgãos constitutivos e diretivos da sociedade arguida e ao sua identificação ali não consta); agiu em nome e no interesse da arguida, e no âmbito das funções que esta lhe cometera: era o seu representante no momento da prática dos factos.
A sociedade arguida em momento algum invoca que AA agiu contra ordens expressas de quem lhe dava instruções e que lhe tenha sido instaurado processo disciplinar. AA errou; mas esse erro repercute-se também na esfera jurídica da sua representada.
Julgamos não poder ser de outro modo.
Pretender que a acção de um trabalhador não se repercute na esfera jurídica da empresa para quem trabalha (a quem se encontra subordinada juridicamente), quando executa as funções para que foi contratado ou de que foi incumbido é cremos uma aberração jurídica nos tempos que correm, pois equivale a considerar que se a “acção é boa e dá lucro” é da empresa, se “é má e é lesiva” é do trabalhador.
É que o órgão não tem mãos, não anda, não tem actividade material, mas serve-se do agente para “agir” para “fazer”, e em cuja acção executa a vontade do órgão, vontade essa que é a da pessoa colectiva, e a torna responsável.
Assim, vista a actuação do trabalhador repercute-se esta na esfera jurídica da arguida tornando-a responsável.
Pelo que teríamos julgado totalmente improcedente o recurso.]
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[1] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] As questões que constituem o objeto do recurso serão conhecidas de acordo com as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (cf. o artigo 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 4.º do Código de Processo Penal).
[3] Relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] A garantia de fundamentação é indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial; o dever de o juiz respeitar e aplicar corretamente a lei seria afetado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz. A sua observância concorre para a garantia da imparcialidade da decisão; o juiz independente e imparcial só o é se a decisão resultar fundada num apuramento objetivo dos factos da causa e numa interpretação válida e imparcial da norma de direito (cf. Michele Taruffo, “Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, 1979, LV, págs. 31-32).
[5] Exatamente neste sentido, cf. o acórdão do TRG, de 2/11/2017 (relatado pelo Desembargador António Barroca Penha e disponível em www.dgsi.pt).
[6] É de notar que, como assinala o acórdão do TC n.º 754/2024, relatado pela Conselheira Dora Lucas Neto e atrás citado, «não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
‘[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”. O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal, que, contudo, se não repercuta no trato diverso – e desrazoavelmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Dito isto, o debate dos limites concretos da diferenciação estabelecida pelo legislador e criticada pela recorrente – o agravamento do limite mínimo da coima equivalente a um sêxtuplo quanto à pessoa coletiva – mostra-se irrelevante na perspetiva da conformação da norma ao princípio constitucional da igualdade.
[7] Relatado pelo Desembargador Armando da Rocha Azevedo, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[8] In «Teoria Geral da Relação Jurídica», 1º volume, Coimbra 1970, pág. 116, citado no mencionado acórdão do TRG de 24/9/2018.
[9] Cf. acórdão do TRP de 24/1/2007 (Relatado pela Desembargadora Isabel Pais Martins, in www.dgsi.pt). De acordo com este aresto «Uma pessoa coletiva não pode ser responsabilizada pela prática de contra-ordenação que se preenche com a conduta de um seu funcionário, que atua por sua livre e espontânea vontade».
[10] Embora, como aqui se observa, a doutrina não deixe de realçar a incompreensão de um tal regime (o previsto no art.º 7.º, n.º 2 do RGCCO), quando confrontado com a maior amplitude da responsabilidade criminal das pessoas coletivas nos termos do artigo 11.º do Código Penal.
[11] Neste sentido, cf., entre outros, o acórdão do TRC de 9/11/2011, relatado pela Desembargadora Alice Santos e consultável em www.dgsi.pt, segundo o qual segundo o qual “As pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, nestes se integrando os trabalhadores ao seu serviço, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas”.
[12] Esta orientação jurisprudencial não tem tido o apoio da doutrina em face do RGCCO, como nos dá conta o acórdão do TRG de 24/9/2018.
[13] Como observa António Beça Pereira (in «Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas anotado», em anotação ao artigo 2.º), do princípio da legalidade resulta, para além do mais, que a lei incriminadora não admite interpretação extensiva, nem as suas lacunas podem ser supridas por recurso à analogia, como sucede noutros ramos do direito.
[14] Relatado pela Desembargadora Élia São Pedro, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e consultável em www.dgsi.pt.
[16] Relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio e já citado.
Na formulação do acórdão do TRL, de 29/1/2020 (José Alfredo Costa, in www.dgsi.pt), «Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se constata que faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição».
Também no acórdão do TRP de 9/1/2020, relatado pelo Desembargador Nelson Fernandes e disponível em www.dgsi.pt, é referido que “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”.
[17] Veja-se, neste sentido, o acórdão do TRC de 13/5/2020, relatado por Jorge Jacob e disponível para consulta em www.dgsi.pt, citando o acórdão do STJ de 18/2/1998, nº convencional JSTJ00034535.
[18] Relatado pelo Desembargador Francisco Caramelo, in www.dgsi.pt.
[19] Relatado pelo Desembargador Ernesto Nascimento, consultável em www.dgsi.pt.
[20] Naturalmente, o apuramento e determinação das questões atrás enunciadas implicará o esclarecimento da qualidade e modo de atuação do funcionário “AA”, com reflexo na redação da matéria de facto da nova sentença a proferir, que deverá ser expurgada das expressões aparentemente conflituantes nele contidas.