MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
TRADUÇÃO
NULIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
ESTADO REQUERENTE
RECUSA FACULTATIVA
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
Sumário


I - Dispõe o n.º 6 do art.º 3º da Diretiva 2010/64/UE, de 20 de Outubro, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao direito a interpretação e tradução em Processo Penal, que, nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.
II - E acrescenta no n.º 7, do mesmo preceito legal, que a título de excepção, podem ser facultados, uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais, em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo.
III - Não sendo absolutamente obrigatória a tradução escrita do MDE e demais documentos ou elementos que o acompanhem na língua materna da pessoa procurada, tendo ao detido sido nomeado interprete que reconheceu falar a língua árabe que ele falava, tendo sido nomeada defensora oficiosa que assistiu e o acompanhou em todos os actos processuais, presididos por magistrado judicial que sequencialmente lhe foi explicando tudo quanto se estava a passar o que ele foi entendendo plenamente, podendo conferenciar com a sua defensora em privado, todos o momentos do processo decorreram de acordo com a Lei, não foi cometida qualquer irregularidade ou nulidade ou inconstitucionalidade.
IV - A recusa facultativa de execução do MDE, prevista no art.º 12º al. g) da Lei 65/2003, de 23.08 – quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal – é, apenas, aplicável às situações em que o mandado de detenção foi emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometer a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.
V - O mandado de detenção europeu constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo, confiando os Estados Membros que os sistemas jurídicos e respectivos processos, garantem a qualidade suficiente às decisões, tomadas por autoridades competentes, que dão lugar à execução nos seus territórios.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1.No presente processo n.º 3011/24.7YRLSB.S1, nos termos do art.º 16º n.º 1 da Lei 65/2003, de 23.08, promoveu o Ministério Público a execução de mandado de detenção europeu – MDE – emitido pelas autoridades judiciárias de França, e apresentou para audição, no Tribunal da Relação de Lisboa, o requerido AA, nascido a ... de ... de 1989, de nacionalidade marroquina, titular do passaporte n° ...46, válido até 26 de Maio de 2026, que também se identifica como BB, nascido a ... de ... de 1990, de nacionalidade líbia, residente em Portugal na Rua ... ....

O requerido foi detido em Portugal pela autoridade policial portuguesa em Lisboa, no dia 7 de outubro de 2024, pelas 09h00, em virtude de existir uma indicação ao abrigo do art.º 26.°, da Decisão 2007/533/JAI do Conselho, de 12 de junho de 2007, no sistema de informação Schengen, (SIS/II) com o n.° ...01 de Mandado de Detenção Europeu (MDE) para efeitos de detenção e entrega às autoridades francesas.

O MDE foi emitido pelo Juiz de Instrução, no Tribunal da comarca de ..., França, com data de 23 de Outubro de 2023, tendo em vista a detenção e entrega do requerido AA, nascido a ... de ... de 1989, de nacionalidade marroquina, titular do passaporte n° ...46, válido até 26 de Maio de 2026, que também se identifica como BB, nascido a ... de ... de 1990, de nacionalidade líbia, à autoridade judiciária francesa, para efeitos de procedimento criminal.

O recorrente é procurado pela prática de factos ocorridos na noite de 8 para 9 de outubro de 2022, em França, susceptíveis de integrar o crime de homicídio voluntário, previsto e punido pelos art.ºs. 221° nºs 1, 8, 9, 9-1 e 131° nº 26-2 do Código Penal francês, a que corresponde a pena máxima de 30 anos de prisão;

A autoridade judiciária de emissão inclui os crimes praticados na lista de infracções previstas no art.º 2º, n.º 2, al. h) e i) da Lei 65/2003, de 23 de Agosto, crime de homicídio, o que dispensa o controlo da dupla incriminação.

Apesar disso, também as infrações são puníveis pela Lei Penal Portuguesa, nomeadamente nos artigos 131º e 132º do CP, punível com pena de prisão de 8 a 16 anos de prisão ou de 12 a 25 anos de prisão, respectivamente.

O requerido foi ouvido a 08 de Outubro de 2024, nos termos do artigo 18º, da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto (Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu – RJMDE), com a assistência da Intérprete CC, de língua árabe e da sua Defensora, Dra. DD, tendo então declarado opor-se à execução do MDE e não renunciar à regra da especialidade.

1.2. Tendo requerido prazo para o efeito, veio o requerido, em requerimentos datados de 22.10.2024 e 23.10.2024 (ref.ªs Citius ...23 e ...67), apresentar os fundamentos da sua oposição, à qual o Ministério Publico respondeu.

Juntou documentos e requereu outras diligências probatórias.

1.3. Em 09.10.2024 foi junto aos autos o MDE emitido pelas autoridades judiciárias de França, bem como a tradução em língua portuguesa, o qual foi notificada ao requerido em 15.10.2024 (ref.ª Citius ...77 ).

1.4. Por acórdão de 15.01.2025, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

Nestes termos acordam os juízes que integram o tribunal colectivo no Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a oposição deduzida pelo requerido AA, determinando o cumprimento do MDE emitido pela autoridade judicial francesa e, em consequência, determinam a entrega do requerido ao Tribunal Judicial da comarca de ..., França. …

Comunique, no mais curto prazo, a decisão à autoridade judiciária de emissão para efeitos da entrega do requerido, em conformidade com o previsto nos arts. 28° e 29º nº 1 da Lei 65/2003, de 23 de Agosto.

1.5. Inconformado com esta decisão dela recorre o requerido AA, formulando, a final, as seguintes conclusões:

“Requer-se a este Supremo Tribunal de Justiça que:

1. Admita o presente recurso, atribuindo-lhe efeito suspensivo; nos termos do artigo 408.º do Código de Processo Penal

2. Revogue toda a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa,

3. Recusa da execução do MDE nestes termos e nos demais de Direito;

A ausência de tradução escrita do processo dos documentos enviados pela República Francesa e das decisões relativas ao Mandado de Detenção Europeu (MDE) na língua materna do

requerido impede o exercício pleno do seu direito de defesa, violando o princípio do contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 92.º do Código de Processo Penal (CPP).

Tal omissão contraria ainda o disposto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e na Diretiva 2010/64/UE, impondo-se, por conseguinte, a recusa da execução do MDE A falta de tradução não está expressamente prevista no artigo 12.º como fundamento de recusa do MDE.

Porém com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º, pode-se invocar.

O artigo 3.º da Diretiva 2010/64/UE impõe aos Estados-Membros a obrigação de garantir a tradução de documentos fundamentais para que o requerido compreenda plenamente o conteúdo do processo.

4 - Da Recusa Facultativa da Entrega com Base na Residência do Requerido

Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 65/2003, pode ser recusada a execução do MDE quando o extraditando reside legalmente em Portugal:

-Compromete-se a defender-se processualmente do procedimento Criminal em solo português

-E a cumprir a pena em Portugal se for o caso.

-O Requerente reside legalmente em Portugal desde agosto de 2022;

-Vive em união de facto com a sua companheira;

-Trabalha como pedreiro na empresa B..., Lda.;

-Tem estabilidade social e profissional e manifesta interesse em cumprir eventual pena em Portugal.

5-Da Interpretação Restritiva Invocada pelo Tribunal da Relação em sede de MDE:

O Tribunal a quo não analisou nem explicitou com fundamentação destes direitos fundamentais limitando-se a uma interpretação restritiva sem considerar as particularidades do caso concreto nem sequer pediu garantias à República Francesa como estava obrigado.

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2022 reconhece que a entrega de um cidadão com vínculos em Portugal pode ser desproporcional e lesiva do seu direito à vida privada e familiar.

Nos termos do artigo 70.º da LTC, com fundamento em inconstitucionalidade;

b) o entendimento normativo que defende a interpretação nos artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003. quanto à execução do MDE pode sobrepor-se às garantias constitucionais, nomeadamente dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da CRP) princípio da, proporcionalidade (art.º 18.º da CRP); Proibição de tratamentos desumanos (art.º 25.º da CRP); Direito a um julgamento justo (art.º 20.º da CRP); Proteção contra extradição injustificada (art.º 33.º da CRP).

6-O Tribunal a quo não analisou nem explicitou com fundamentação destes direitos fundamentais limitando-se a uma interpretação restritiva sem considerar as particularidades do caso concreto nem sequer pediu garantias à República Francesa como estava obrigado

Ao não solicitar as garantias necessárias à República Francesa, como estava legalmente obrigado, violando o dever de assegurar que a entrega do requerido para que não resulte em tratamento desumano, desproporcional ou contrário aos princípios fundamentais do direito português, europeu e internacional.

Mesmo com a República Francesa o Tribunal A quo não pode demitir-se de ser um garante.

Estas são as interpretações corretas dos dispositivos legais e não as da douta sentença do acórdão recorrido.”

1.6. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação, concluindo do seguinte modo:

“1 .O conteúdo e forma do MDE vem prevista no art. 3º da L. nº 65/2003 de 23.08 – que confere com o que está nos autos - e encontra-se no processo nos idiomas que a lei prevê. No mais o requerido teve em três ocasiões distintas, magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, advogado, intérprete, oficial de justiça à sua disposição para dizer o que entendeu por bem, em árabe.

E em árabe foi informado do que tinha de ser.

2. Dado o disposto no artigo 12º nº 1 al. g) da lei do MDE, a não execução facultativa só pode ocorrer quando o MDE tem por finalidade o cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança de acordo com a lei portuguesa.

3. E dado o disposto no artigo 13º da Lei nº 65/2003 de 23.08, o pedido ao Estado emissor de garantias só pode ocorrer quando o MDE tem por finalidade o cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.

4. Nada disto se verifica porquanto o presente MDA tem como finalidade: procedimento criminal.

5. Por conseguinte, entendemos que o douto acórdão deve ser confirmado na totalidade, pois está conforme à lei e nenhum direito do requerido foi desrespeitado.”

1.6. Foram os autos aos vistos e à conferência (artigo 25.º n.º 2 da Lei n.º 65/2003).

2. Fundamentação

2.1. Factos

2.1.1. No Tribunal da Relação foram dados como provados os seguintes factos:

MATÉRIA DE FACTO PROVADA

I. AA/BB, foi detido em Lisboa, no dia 7 de outubro de 2024, pelas 09h00, em virtude de existir uma indicação ao abrigo do art. 26.°, da Decisão 2007/533/JAI do Conselho, de 12 de junho de 2007, no sistema de informação Schengen, de Mandado de Detenção Europeu (MDE) para efeitos de detenção e entrega às autoridades francesas;

2. O MDE foi emitido pelo Juiz de Instrução, no Tribunal da comarca de ..., França, com data de 23 de Outubro de 2023, tendo em vista a detenção e entrega do Requerido AA, nascido a ... de ... de 1989, de nacionalidade marroquina, titular do passaporte n° ...46, válido até 26 de Maio de 2026, que também se identifica como BB, nascido a ... de ... de 1990, de nacionalidade líbia, à autoridade judiciária francesa, para efeitos de procedimento criminal;

3. E foi inserido no Sistema de Informação Schengen (SIS/II) com o n.° ...01;

4. O detido é procurado pela prática de factos ocorridos na noite de 8 para 9 de outubro de 2022, em França, susceptíveis de integrar o crime de homicídio voluntário, previsto e punido pelos arts. 221° nºs 1, 8, 9, 9-1 e 131° nº 26-2 do Código Penal francês, a que corresponde a pena máxima de 30 anos de prisão;

5. Os factos potencialmente integradores de tal crime são os seguintes:

No dia 14 de outubro de 2022 funcionários da autarquia local descobriram um cadáver no pântano de ... em ... (... — França), o qual veio a ser identificado como sendo EE,

A autópsia efetuada a 15 de outubro de 2022 concluiu que a morte não se ficou a dever a morte natural, devido, em especial, à presença de várias feridas de faca no corpo e golpes na cabeça,

A investigação preliminar revelou que na noite de 8 para 9 de outubro de 2022, EE tinha tido uma altercação física com FF, a quem tinha golpeado várias vezes com uma faca,

GG e AA, também conhecido por BB, foram identificados como tendo querido vingar-se de FF e, por isso, eram suspeitos de serem os autores da morte de EE,

6. Sendo-lhe imputada a prática do referido crime de homicídio, como cúmplice;

7. O requerido foi ouvido no dia 8 de Outubro de 2024, com a assistência da Intérprete CC, de língua árabe e do seu Defensor, Dra. DD;

8. A Exma. Juíza Desembargadora que presidiu à diligência informou o detido dos direitos que lhe assistem, mormente de que lhe assiste os direitos de estar pessoalmente presente em qualquer diligência que diretamente o afete, de ser assistido por defensor e de intérprete, de se remeter ao silêncio e ainda de recorrer de qualquer decisão que lhe seja desfavorável; 9. Pela Exma. Juiz Desembargadora foi preguntado ao requerido qual a variante árabe que fala, e tendo afirmado que compreende a variante de árabe falada pela Sra. Intérprete;

10. De seguida, pela Exma. Juiz Desembargadora foi dado conhecimento de todo o conteúdo da inserção correspondente ao mandado de detenção europeu (doravante - MDE), foi ainda explicado ao detido que com esta audiência não se procurava averiguar a veracidade dos factos constantes no MDE, mas apenas da legalidade do pedido formulado pelas autoridades francesas e da validade e eventual manutenção da sua detenção;

11. O detido foi, também, informado do direito que lhe assiste de se opor à execução do MDE ou consentir nela, e dos termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ou não renunciar ao benefício da regra da especialidade;

12. Nessa sequência, o requerido declarou que:

Não consente no cumprimento do presente MDE;

Não renuncia ao princípio da regra da especialidade;

13. O requerido identificou-se sempre, em todo este processo, como AA, de nacionalidade marroquina;

14. E é o cidadão cuja entrega foi requerida no Mandado de Detenção Europeu a que se referem os presentes autos;

15. O requerido vive em Portugal desde Agosto de 2022;

16. Pretende obter uma autorização de residência e viver e trabalhar em Portugal;

17. Tem uma companheira, HH de nacionalidade angolana e portuguesa, com quem vive há cerca de um ano em comunhão de vida;

18. Na Rua ... ...

19. Antes de ter sido detido, o requerido trabalhava ao serviço da empresa B..., Lda.

20. Como pedreiro da construção civil;

21. Tem autorização de Residência em Portugal.”

Deu-se como não provado:

“Que o requerido nunca se tenha chamado a si próprio e/ou usado assinar com o nome BB de nacionalidade Líbia;

Que o requerido nunca tenha estado em França;

Que o requerido tenha vivido com a sua companheira HH em união de facto, também em Espanha, antes de ter vindo para Portugal;

Que o requerido tenha toda a sua vida familiar em Portugal.”

Lê-se na motivação da decisão de facto que:

“A convicção do Tribunal quanto aos factos considerados provados teve por base os seguintes fundamentos:

No que se refere ao facto descrito em 1., o anexo 4 ao ofício com a referência Citius ...49 no qual a Polícia Judiciária dá notícia da detenção do requerido em cumprimento do pedido de cumprimento do MDE inserido no Sistema de Informação Schengen (SIS/II) com o n.° ...01;

Quanto aos factos descritos em 2 a 6, o MDE em versão original em língua francesa que integra o anexo 3 ao ofício com a referência Citius ...49 e correspondente tradução em língua portuguesa que constituí o anexo 1 ao mesmo ofício;

No que se refere aos descritos em 7 a 12, o auto de audição do requerido com a referência Citius ...44;

O facto descrito em 13, resulta da análise conjugada do auto de audição de 8 de Outubro de 2024, com a referência Citius ...44; da procuração forense junta com o requerimento com a referência Citius ...32; dos requerimentos de oposição com as referências Citius ...23 e ...67 e das actas de audiência de discussão e julgamento com as referências Citius ...68 e ...94;

O facto descrito em 14, resultou da fotografia inserta no anexo 3 ao ofício com a referência Citius ...49, contendo a versão original do MDE e da visualização comparativa da mesma fotografia e do arguido em pessoa, nas duas sessões da audiência de discussão e julgamento, pelos Juízes deste Colectivo, sendo notório que a pessoa que está fotografada no MDE é a mesma que esteve presente na audiência de julgamento, na qualidade de requerido e que do texto do MDE consta expresso que este mandado foi emitido para entrega à justiça francesa de AA, nascido a ... de ... de 1989, de nacionalidade marroquina, titular do passaporte n° ...46, válido até 26 de Maio de 2026, que também se identifica como BB, nascido a ... de ... de 1990, de nacionalidade líbia;

O facto descrito em 15., resultou das declarações do próprio requerido;

Os factos a que se referem os pontos 16. a 21., a análise conjugada das declarações do arguido, com os depoimentos das testemunhas HH, companheira do arguido com quem vive há cerca de um ano, II, Encarregado de Obra ao serviço da mesma empresa que o requerido e com quem trabalhou durante cerca de oito meses antes de este ter sido detido à ordem destes autos e JJ que é vigilante na obra de construção civil onde o requerido trabalhava conhecendo-se há cerca de um ano, tendo todas as testemunhas deposto de forma isenta, com preocupação de apenas afirmarem o que realmente sabiam e tendo revelado terem conhecimento directo dos mesmos, quanto aos factos que relataram, pelo que mereceram credibilidade.

Estes depoimentos foram, ainda, conjugados com o atestado de residência e com o contrato de arrendamento, no que se refere aos factos descritos em 15, 17, 18 e 21, e com o contrato de trabalho, em relação aos factos descritos em 19 e 20, documentos estes, que o requerido juntou com o requerimento de oposição com a referência Citius ...67), os quais não foram impugnados e não suscitam dúvidas algumas quanto à sua genuinidade.


*


Não se provaram quaisquer outros factos que estejam em contradição ou não se compaginem com a factualidade acima dada como provada, como é o caso do facto alegado nos artigos 7º e 8º do (segundo) requerimento de oposição, segundo o qual a pessoa procurada pela Justiça francesa e que determinou a emissão do presente MDE que se identifica como BB de nacionalidade Líbia não ser o requerente, face ao contrário que resultou acima demonstrado nos factos 2, 13 e 14; ou o de que antes de vir para Portugal já vivesse em união de facto com HH em Espanha, como alegado no artigo 17º do (segundo) requerimento de oposição, em face do que resultou nos factos 15 e 17.

Que o requerido nunca se tenha chamado a si próprio e/ou usado assinar com o nome BB de nacionalidade Líbia também não resulta provado, pois que o contrário consta do próprio texto do MDE e nenhuma das testemunhas inquiridas em audiência revelou ter conhecimento directo de outras identidades com que o requerido se tenha apresentado, do mesmo modo que não puderam garantir que tal nunca tenha acontecido.

Que o requerido nunca tenha vivido em França como alegado no artigo 10º do (segundo) requerimento de oposição também resulta não provado, porque o contrário foi esclarecido pelo próprio arguido que, em declarações prestadas na sessão do julgamento realizada em 18 de Dezembro de 2024, esclareceu ter vivido, primeiro, na Líbia durante cerca de quatro anos, após o que viveu em Itália, França e Espanha, antes de ter vindo para Portugal.

Também quanto à circunstância de ter toda a sua vida familiar em Portugal alegada no artigo 21º do segundo requerimento de oposição, porque o contrário resultou das declarações do próprio arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, especialmente, HH e JJ, do que resulta de forma unânime que o requerido não tem qualquer familiar a viver em Portugal.

Quanto a outros que tenham sido alegados, como seja o de que o arguido mede 1m,70 cm e não 1,75, no artigo 9º do (segundo) requerimento de oposição, ou de que aquando dos factos relatados no MDE estivesse a viver em Espanha, no artigo 10º do (segundo) requerimento de oposição, por falta de produção de prova esclarecedora e convincente.


*


Não se consideraram demonstrados quaisquer outros factos, porque não foram alegados quaisquer outros que tenham relevância ou interesse para a decisão da causa.”

2.2. Direito

2.2.1. É pelas conclusões que se afere o objecto do recurso (402º, 403º, 410º e 412º do CPP), sem prejuízo, dos poderes de conhecimento oficioso (artigo 410.º, n.º 2, do CPP, AFJ n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995, 410º, n.º 3 e artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

O recurso tem por objeto o acórdão proferido, em primeira instância, pelo Tribunal da Relação, que é o competente para conhecer do processo judicial de execução do mandado de detenção europeu - artigo 15.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

Levando em conta as conclusões do arguido recorrente, são questões a decidir, as seguintes (pela ordem indicada):

i)-recusa de execução pois o MDE e demais elementos deveriam ser traduzidos na língua materna do recorrente (árabe), não sendo respeitado o disposto no art.º 32º, 1 da CRP e art.º 92º do CPP, art.º 6º da CEDH e Directiva 2010/64/EU, e art.º 12º da Lei 65/2003, e art.º 3º da Directiva (conclusão 3);

(ii)-Recusa facultativa do MDE pois o recorrente tem residência em Portugal – art.º 12º, 1, f) da Lei 65/2003 (conclusão 4);

(iii)-O acórdão recorrido fez uma interpretação restritiva das normas legais, não pediu garantias ao Estado Francês como devia – Ac. do TC 312/2022, art.º 70º da LCT, art.ºs 11º, 12º e 12-A da Lei 65/2023, art.ºs 1º, 18º, 20º, 25º, 33º da CRP.

2.2.2. Tradução do MDE.

Nos termos do artigo 3.º da Lei 65/2003, de 23.08, sob a epigrafe “Conteúdo e forma do mandado de detenção europeu”, determina no seu n.º 2 que o mandado de detenção deve ser traduzido numa das línguas oficiais do Estado membro de execução, que será a língua a utilizar na realização de actos processuais, ou noutra língua oficial das instituições das Comunidades Europeias aceite por este Estado, mediante declaração depositada junto do Secretariado-Geral do Conselho, efectuada ao abrigo do artigo 8.º, n.º 2 da Decisão Quadro 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de junho.

No estado de execução, a pessoa procurada, nos termos do art.º 17º da Lei sobre os “direitos do detido”, é informada, quando for detida, da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como da possibilidade de consentir ou não consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão – n.º 1 – e tem direito a ser assistido por defensor e a ser informado sobre o direito a constituir advogado no Estado-Membro de emissão, para auxílio do defensor nomeado ou do advogado constituído em território nacional – n.º 2.

Quando não conheça ou não domine a língua portuguesa é nomeado, sem qualquer encargo para ele, intérprete idóneo – n.º 3 - devendo ser-lhe entregue, quando for detida, documento de que constem os direitos referidos nos números anteriores – n.º 4.

Nem do art.º 3º nem do art.º 17º consta que o MDE tenha de ser traduzido na língua materna da pessoa procurada.

Dispõe ao art.º 34.º da Lei 65/2003, sob a epigrafe “direito subsidiário”, que é aplicável, subsidiariamente, ao processo de execução do mandado de detenção europeu o Código de Processo Penal.

E defende o recorrente que não foi respeitado o disposto no art.º 92º do CPP.

O art.º 92º dispõe que nos actos processuais se utiliza a língua portuguesa, sob pena de nulidade, e quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado sem encargo para ela, interprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada, podendo ainda escolher sem encargo para ele, interprete diferente para traduzir as conversações entre ele e o seu defensor.

Ou seja, pode escolher dois interpretes diferentes, um para os actos processuais, oficiais, e um outro para intermediar e interpretar os contactos ou conversações entre si e o seu defensor, actos privados.

E é igualmente nomeado interprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada.

O conceito de interprete utilizado neste preceito legal - art.º 92º do CPP -, é, como se vê, um conceito amplo, que abrange quer as declarações prestadas oralmente quer aquelas que tenham de ser traduzidas e reduzidas a escrito1.

Não distingue este preceito legal os actos de interpretação e tradução como acontece com a Diretiva 2010/64/UE, referindo-se sempre ao intérprete, quer para assegurar a conversação ou interpretação oral, quer para quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada2.

Mas também deste preceito, tal como o art.º 17º da Lei, não conta o dever de traduzir e reduzir a escrito na língua materna do detido o MDE, ou quaisquer outros elementos dele constantes.

Também, a Diretiva 2010/64/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro relativa ao direito a interpretação e tradução em Processo Penal, prevê, no art.º 2º, n.º 7, que as autoridades competentes do Estado-Membro de execução devem assegurar a todas as pessoas sujeitas a mandados de detenção europeus que não falam nem compreendem a língua do processo, (i)o direito à interpretação, sem demora, durante o processo penal, perante as autoridades de investigação e as autoridades judiciais (inclusive durante os interrogatórios policiais, as audiências no tribunal e eventuais audiências intercalares que se revelem necessárias), (ii)o direito à assistência de um intérprete para as comunicações entre o suspeito ou acusado e o seu defensor legal, diretamente relacionadas com qualquer interrogatório ou audição no decurso do processo, com a interposição de um recurso ou com outros trâmites de caráter processual, (iii) o direito de contestar a decisão segundo a qual não é necessária interpretação e a possibilidade de apresentar queixa do facto de a qualidade da interpretação não ser suficiente para garantir a equidade do processo.

E dispõe o n.º 6 do art.º 3º da mesma Directiva, sobre o direito à tradução dos documentos essenciais3, ainda, que, nos processos de execução de mandados de detenção europeus, o Estado-Membro de execução assegura que as suas autoridades competentes facultem a tradução escrita do mandado de detenção europeu às pessoas submetidas a esses mandados que não compreendem a língua em que o mesmo é redigido ou a língua para a qual tenha sido traduzido pelo Estado-Membro de emissão.

A título de excepção, podem ser facultados uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo – n.º 7.

A tradução facultada nos termos deste preceito, deve ter a qualidade suficiente para garantir a equidade do processo, assegurando, designadamente, que o suspeito ou acusado tenha conhecimento das acusações e provas contra ele deduzidas e seja capaz de exercer o seu direito de defesa – n.º 94.

A Lei 65/2003 e sobretudo as normas do CPP deverão ser interpretadas de acordo com a Directiva EU 2010/64, ou ser esta mesmo directamente aplicável, se porventura o CPP não contemplar normas com a mesma amplitude e abrangência da Directiva5.

Ora, para além de o direito à tradução escrita dos documentos essências – art.º 3º n.º 8 -, como referido, é a própria Directiva – art.º 3º n.º 7 – que prevê a possibilidade, ainda que excepcional, de poder ser facultada uma tradução oral ou um resumo oral dos documentos essenciais em vez de uma tradução escrita, na condição de essa tradução oral ou esse resumo oral não prejudicarem a equidade do processo. A tradução escrita não é, pois, absolutamente obrigatória; admite excepções.

Com todas estas exigências e preocupações pretende a lei acautelar e garantir a existência de um processo equitativo e assegurar ao detido, à pessoa procurada, um efectivo direito de defesa - 32º da CRP.

Também o recorrente defende que a ausência de tradução escrita do processo dos documentos enviados pela República Francesa e das decisões relativas ao Mandado de Detenção Europeu (MDE) na língua materna do requerido impede o exercício pleno do seu direito de defesa, violando o princípio do contraditório consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no artigo 92.º do Código de Processo Penal (CPP).

Tal omissão contraria ainda o disposto no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e na Diretiva 2010/64/UE, impondo-se, por conseguinte, a recusa da execução do MDE.

A falta de tradução não está expressamente prevista no artigo 12.º como fundamento de recusa do MDE. Porém com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º, pode-se invocar.

O artigo 3.º da Diretiva 2010/64/UE impõe aos Estados-Membros a obrigação de garantir a tradução de documentos fundamentais para que o requerido compreenda plenamente o conteúdo do processo.

Porém, no caso presente, ao recorrente, foi nomeada defensora oficiosa e ouvido sempre na sua presença.

Foi-lhe nomeado interprete que assistiu a todos os actos processuais praticados.

Foi sempre ouvido por magistrado judicial que presidiu aos actos processuais realizados.

Do auto de audição nos termos do art.º 18º da Lei 65/2003 de 23.08, vê-se que “a Exma. Juiz Desembargadora informou o detido dos direitos que lhe assistem, mormente de que lhe assiste os direitos de estar pessoalmente presente em qualquer diligência que diretamente o afete, de ser assistido por defensor e de intérprete, de se remeter ao silêncio e ainda de recorrer de qualquer decisão que lhe seja desfavorável.”

Ficou consignado em acta que “pela Exma. Juiz Desembargadora foi preguntado ao requerido qual a variante árabe que fala, e tendo afirmado que compreende a variante de árabe falada pela Sra. Intérprete.


*


Ainda e de seguida, pela Exma. Juiz Desembargadora foi dado conhecimento de todo o conteúdo da inserção correspondente ao mandado de detenção europeu (doravante - MDE), foi ainda explicado ao detido que com esta audiência não se procurava averiguar a veracidade dos factos constantes no MDE, mas apenas da legalidade do pedido formulado pelas autoridades francesas e da validade e eventual manutenção da sua detenção.

*


O detido foi, também, informado do direito que lhe assiste de se opor à execução do MDE ou consentir nela, e dos termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ou não renunciar ao benefício da regra da especialidade.

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Assim esclarecido declarou que nos termos do art.º 20.º n.º 2 da Lei 65/2003 de 23 agosto que:

Não consente no cumprimento do presente MDE;

Não renuncia ao princípio da regra da especialidade;


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E a Ilustre Defensora do requerido, concedida que lhe foi a palavra, no seu uso requereu prazo de 10 dias para deduzir oposição.

O que veio concretizar através dos requerimentos juntos a 22.10.2024 e 23.10.2024.

E, em sua defesa, não renunciou ao princípio da especialidade, deduziu oposição ao presente processo de execução do MDE, aduziu argumentos de facto e de direito com vista a obstar ao cumprimento do mesmo, juntou prova documental e arrolou testemunhas que foram inquiridas.

Donde facilmente se conclui que o direito de defesa do arguido em nada foi beliscado nem o recorrente refere nenhum aspecto que o concretize. Di-lo apenas em termos genéricos.

Em relação à obrigação de garantir a tradução de documentos fundamentais, é objectivo da lei que o requerido compreenda plenamente o conteúdo do processo.

Já se viu que o recorrente o entendeu completamente tanto que organizou toda a sua defesa e dos requerimentos feitos e argumentos aduzidos com facilidade se conclui que tentou atalhar ou explicar todos factos constantes do MDE, não havendo pormenor que não explicasse e tentasse contradizer (pese embora o facto de aqui se não poder conhecer deles)6

Em suma não sendo absolutamente obrigatória a tradução escrita do MDE e demais documentos ou elementos que o acompanhem na língua materna da pessoa procurada, tendo ao detido sido nomeado interprete que reconheceu falar a língua árabe que ele falava, tendo sido nomeada defensora oficiosa que assistiu e o acompanhou em todos os actos processuais, presididos por magistrado judicial que sequencialmente lhe foi explicando tudo quanto se estava a passar o que ele foi entendendo plenamente, podendo conferenciar com a sua defensora em privado, todos o momentos do processo decorreram de acordo com a Lei, não foi cometida qualquer irregularidade.

Muito menos nulidade que o recorrente nunca invocou no momento devido.

E muito menos inconstitucionalidade pois que não se levanta qualquer dúvida na interpretação das normas legais aplicáveis, que primam pela clareza e facilidade de entendimento e aplicação.

Muito menos, ainda, seria esta razão motivo de recusa – art.º 12º, n.º 1, al. g) da Lei 65/2003 - pois que o mandado de detenção não foi emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança, mas sim para procedimento criminal.

Não tem razão o recorrente improcedendo o recurso quanto a esta questão.

2.2.3. Defende depois o recorrente, sob o tema da Recusa Facultativa da Entrega com Base na Residência do Requerido que, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 65/2003, pode ser recusada a execução do MDE quando o extraditando reside legalmente em Portugal:

-Compromete-se a defender-se processualmente do procedimento Criminal em solo português

-E a cumprir a pena em Portugal se for o caso.

-O Requerente reside legalmente em Portugal desde agosto de 2022;

-Vive em união de facto com a sua companheira;

-Trabalha como pedreiro na empresa B..., Lda.;

-Tem estabilidade social e profissional e manifesta interesse em cumprir eventual pena em Portugal.

Dispõe o art.º 12º, n.º 1, als. f) e g) da Lei 65/2003, que a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando:


f) A pessoa procurada tiver sido definitivamente julgada pelos mesmos factos por um Estado terceiro desde que, em caso de condenação, a pena tenha sido integralmente cumprida, esteja a ser executada ou já não possa ser cumprida segundo a lei do Estado da condenação.

g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida desegurança, de acordo com a lei portuguesa;

Embora refira a al. f) entende-se que seria a al. g) que se queria citar pois se refere ao facto de o recorrente residir em Portugal.

Como da mesma consta é pressuposto de apreciação e verificação desta hipótese que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

Ora nunca o Estado Português poderia comprometer-se a executar aquela pena ou medida de segurança de acordo com a lei portuguesa pois que o mandado de detenção não foi emitido para cumprimento de pena, mas antes para efeitos de procedimento criminal.

E a circunstância de se tratar de um mandado para efeitos de procedimento criminal, e não para cumprimento de pena ou medida de segurança, afasta por si só a possibilidade de recusa facultativa no âmbito do art.º 12º da Lei 65/20037.

A recusa facultativa de execução do MDE, prevista no art.º 12º al. g) da Lei 65/2003, de 23.08 – quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal – só se aplica às situações em que o mandado de detenção foi emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometer a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

Estando em causa um MDE cujo objectivo é o exercício do procedimento criminal, como é o caso dos autos, está arredada a possibilidade de recusa de execução prevista no referido preceito8.

Não assistindo razão ao recorrente, improcede, também, o recurso quanto a esta questão.

2.2.4. Por fim defende o recorrente sob o tema da Interpretação Restritiva Invocada pelo Tribunal da Relação em sede de MDE, que o Tribunal a quo não analisou nem explicitou com fundamentação destes direitos fundamentais limitando-se a uma interpretação restritiva sem considerar as particularidades do caso concreto nem sequer pediu garantias à República Francesa como estava obrigado.

O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 312/2022 reconhece que a entrega de um cidadão com vínculos em Portugal pode ser desproporcional e lesiva do seu direito à vida privada e familiar.

Nos termos do artigo 70.º da LTC, com fundamento em inconstitucionalidade;

b) o entendimento normativo que defende a interpretação nos artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003. quanto à execução do MDE pode sobrepor-se às garantias constitucionais, nomeadamente dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da CRP) princípio da proporcionalidade (art.º 18.º da CRP); Proibição de tratamentos desumanos (art.º 25.º da CRP); Direito a um julgamento justo (art.º 20.º da CRP); Proteção contra extradição injustificada (art.º 33.º da CRP).

O Tribunal a quo não analisou nem explicitou com fundamentação destes direitos fundamentais limitando-se a uma interpretação restritiva sem considerar as particularidades do caso concreto nem sequer pediu garantias à República Francesa como estava obrigado

Ao não solicitar as garantias necessárias à República Francesa, como estava legalmente obrigado, violando o dever de assegurar que a entrega do requerido para que não resulte em tratamento desumano, desproporcional ou contrário aos princípios fundamentais do direito português, europeu e internacional.

Mesmo com a República Francesa o Tribunal A quo não pode demitir-se de ser um garante.

Estas são as interpretações corretas dos dispositivos legais e não as da douta sentença do acórdão recorrido.”

Defende e repisa o recorrente a necessidade de terem sido pedidas garantias à República Francesa, como é legalmente obrigatório.

O regime jurídico do mandado de detenção europeu (em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho), foi aprovado pela Lei 65/2003, de 23 de Agosto, (actualizada pelas Leis 35/2015, de 04.05, 115/2019, de 12.09 e 52/2023, de 28.08).

Na elaboração da decisão quadro que conduziu à criação do mandado de detenção europeu foi determinante o objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça o que conduziu à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias9.

O Mandado de Detenção Europeu (doravante MDE), é, nos termos legais, uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade – art.º 1º n.º 1 da Lei 65/2003 – e cuja execução se baseia no princípio do reconhecimento mútuo, princípio que, com o Tratado de Lisboa, encontra expressão jurídica no art.º 82º, n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), como se lê no sumário do Ac. do STJ de 12.12.201810.

Previsto na Decisão-Quadro do Conselho n.º 2002/584/JAI, de 13 de Junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, transposto para a ordem jurídica interna pela Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, «constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de "pedra angular" da cooperação judiciária», sendo o seu mecanismo «baseado num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros», cuja execução só poderá ser suspensa em situações graves, excepcionais e limitadas.

Em termos procedimentais, toda a estrutura de cumprimento do mandado tem subjacente o propósito que de criar um instrumento ágil com base na confiança mútua, e num quadro de respeito por princípios fundamentais, como é o exercício do direito de defesa, que estão inscritos na matriz de criação da EU11.

Assim, “o MDE, como se lê no sumário do Ac. de 16.12.20204, há de ser encarado numa óptica de confiança mútua, no âmbito da qual não cabe à autoridade judiciária do Estado de execução “rever” a decisão proferida pelo Estado de emissão, antes lhe competindo encará-la como se tivesse sido por si produzida e, por isso, susceptível de execução nos exactos termos em que o são as decisões proferidas pelos tribunais nacionais12.

Dispõe o artigo 13.º da Lei 65/2003, sob a epigrafe “garantias a fornecer pelo Estado-Membro de emissão em casos especiais”, que “a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado-Membro de emissão prestar uma das seguintes garantias:

a) Quando a infração que motiva a emissão do mandado de detenção europeu for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo, só será proferida decisão de entrega se estiver prevista no sistema jurídico do Estado-Membro de emissão uma revisão da pena aplicada, a pedido ou o mais tardar no prazo de 20 anos, ou a aplicação das medidas de clemência a que a pessoa procurada tenha direito nos termos do direito ou da prática do Estado-Membro de emissão, com vista a que tal pena ou medida não seja executada;

b) Quando a pessoa procurada para efeitos de procedimento penal for nacional ou residente no Estado-Membro de execução, a decisão de entrega pode ficar sujeita à condição de que a pessoa procurada, após ter sido ouvida, seja devolvida ao Estado-Membro de execução para nele cumprir a pena ou amedida de segurança privativas da liberdade a que foi condenada no Estado-Membro de emissão.”

Não se verificando a hipótese da al. a), só a da al. b) seria de ponderar. Referiu-se já que a recusa facultativa de execução do MDE, prevista no art.º 12º al. g) da Lei 65/2003, de 23.08 – quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal – só se aplica às situações em que o mandado de detenção foi emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometer a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

Não concretiza o recorrente as razões de facto que motivam a sua falta de confiança no sistema jurídico e judiciário do estado de emissão, da República Francesa.

Esta prestou as garantias que constam do item H do mesmo MDE.

Depois, o mandado de detenção europeu constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo, cujo núcleo essencial reside em que, «desde que uma decisão é tomada por uma autoridade judiciária competente, em virtude do direito do Estado membro de onde procede, em conformidade com o direito desse Estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União».

À luz deste princípio, as autoridades competentes do Estado membro requerido, no território do qual a decisão pode ser executada, devem prestar a sua colaboração à execução dessa decisão como se se tratasse de uma decisão tomada por uma autoridade competente deste Estado.

Como se lê, ainda no acórdão recorrido, “o princípio da confiança recíproca entre os Estados Membros da EU, por seu turno e em complemento do princípio do reconhecimento mútuo, postula uma presunção só elidível em circunstâncias muito excepcionais, de que todos e cada um dos Estados observam e fazem cumprir, nas suas ordens jurídicas nacionais e nos seus sistemas internos de justiça, o Direito da União, especialmente, em matéria de direitos, liberdades e garantias individuais consagrados na CEDH ou no seu direito nacional, incluindo o direito a um processo justo e equitativo e as garantias que dele decorrem, quanto às exigências de uma proteção jurisdicional efectiva, entre as quais figuram, além dos direitos de oposição e defesa, a independência e a imparcialidade dos correspectivos órgãos jurisdicionais, a fundamentação das decisões e o direito ao recurso.”

Os Estados membros confiam que os sistemas jurídicos e respectivos processos garantem a qualidade suficiente às decisões, tomadas por autoridades competentes, que dão lugar à execução nos seus territórios.

Não há razões para questionar a confiança no sistema jurídico e judiciário de França, nem o recorrente a concretiza ou indica uma qualquer razão que alimente essa desconfiança.

Aquilo que alega e refere são proclamações de princípios em termos genéricos que não assentam em razões concretas.

Assim, não lhe assiste razão, improcedendo o recurso, também, quanto a esta questão e com ela a totalidade do recurso do recorrente AA, que também se identifica como BB, e confirmando-se, antes, o acórdão recorrido.

3. Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça - 3ª secção criminal – em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA, mantendo-se o acórdão recorrido.

Sem tributação.


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Supremo Tribunal de Justiça, 05 de Fevereiro de 2024

António Augusto Manso (relator)

Jorge Raposo (Adjunto)

Antero Luis (Adjunto)

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1-Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, tomo I, p. 1035

2-idem, p. 1033.

3-O conceito de documentos essenciais é densificado no n.º 2, referindo expressamente que, pelo menos, serão assim considerados: 1) as decisões que imponham uma medida privativa de liberdade, 2) a acusação ou a pronúncia, e 3) as sentenças. V. Júlio Barbosa e Silva, A Directiva 2010/64/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Outubro de 2010, relativa ao direito à interpretação e tradução em processo penal, revista Julgar, on line Março de 2018, p. 23.)

4- Manual sobre a Emissão e execução de um MDE, Comissão Europeia, Bruxelas, p. 105.

5- Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, tomo I, p. 1036.

6- A execução de um mandado de detenção europeu não se confunde com o julgamento de mérito da questão de facto e de direito que lhe subjaz, julgamento esse a ter lugar, se for o caso, perante a jurisdição e sob a responsabilidade do Estado emissor, restando neste âmbito, ao Estado da execução, indagar da respectiva regularidade formal e dar-lhe execução, agindo nessa tarefa com base no princípio do reconhecimento mútuo (Lei 65/03, de 23-08, e Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13-06).Proc. 06P569Relator: Pereira Madeira.

7-Como pode ler-se no Ac. do STJ de 15.03.2006.

8-Ac do STJ de 19.07.2006, proc. 06P2835, Soreto de Barrros.

9-Ac. STJ de 18.02.2016, proferido no processon.º 207/15.6YRCBR.S1, www.dgsi.pt.

10-proferido no proc. n.º 94/18.2YRPRT.S2, in www.dgsi.pt.

11-Ac. STJ de 18.02.2016, proferido no processon.º 207/15.6YRCBR.S1, www.dgsi.pt.

12-Ac do STJ de 16.12.2020, proferido no proc. n.º 47/20.0YREVR.S1, www.dgsi.pt.