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CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
SINAL EM DOBRO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RECUSA DE CUMPRIMENTO
DIREITO DE RETENÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
(da responsabilidade do relator (art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil)) I- Só com o incumprimento definitivo há lugar à resolução do contrato promessa e à possibilidade de restituição do sinal em dobro, nos termos no art.º 442º nº 2 do Código Civil. II- Mantendo-se em vigor o contrato promessa de compra e venda com eficácia obrigacional, decorre do art.º 102º do C.I.R.E. que o Administrador da insolvência, mesmo que tenha tido lugar a tradição da coisa, é livre de optar entre a execução e a recusa de cumprimento do negócio. III- O art.º 106º º 1 do C.I.R.E. é aplicável à situação em que o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e o insolvente é o promitente-vendedor. Neste caso, o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa. IV- O art.º 106º nº 2 do C.I.R.E. regula os restantes casos, em que falha qualquer dos três requisitos exigidos pelo nº 1, ou seja, os casos em que o contrato-promessa tem eficácia real mas não houve tradição da coisa ou em que, tendo havido tradição, o insolvente não é o promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real (tenha ou não havido tradição e seja o insolvente o promitente-vendedor ou o promitente-comprador). V- Assim: - Verificados os requisitos enunciados no art.º 106º nº 1 do C.I.R.E., o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas à outorga do contrato definitivo. Ou seja, estando em causa a insolvência do promitente-vendedor que tenha outorgado um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, o negócio não é afectado, caso o promitente-comprador, à data da declaração de insolvência, esteja na posse da coisa objecto do negócio. -Nas demais situações, e nos termos supra expostos, é permitido ao Administrador da Insolvência optar pela recusa do cumprimento. VI- De acordo com a doutrina fixada no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, de 20/3 (publicado no DR, I Série, de 19/5/2014), o promitente-comprador de um contrato promessa de compra e venda, sinalizado, que tenha beneficiado da tradição da coisa prometida vender, tem direito, em caso de recusa de cumprimento por banda do Administrador da Insolvência a indemnização. VII- Esse crédito é garantido pelo direito de retenção previsto no art.º 755º nº 1, al. f) do Código Civil, desde que o promitente-comprador tenha a qualidade de consumidor. VIII- É, actualmente, sancionável, a título de má fé, não apenas a lide dolosa, mas também aquela em que são violadas, com culpa grave ou erro grosseiro, as regras de conduta processual conformes com a boa-fé. IX- Deve o Tribunal ser prudente na apreciação da má fé, só devendo condenar a parte, como litigante de má fé no caso de se estar perante uma situação da qual não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – Relatório
1- Por apenso ao processo de insolvência, onde foi declarada insolvente a sociedade “Q… – Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A.”, veio A… T… intentar a presente acção de declarativa de condenação, com a forma de processo comum contra a Massa Insolvente da referida insolvente, pedindo que lhe seja reconhecido um crédito decorrente do incumprimento do contrato promessa de compra e venda que celebrou com a insolvente, no montante de 200.000 €, acrescido da respectiva indemnização legal de restituição do sinal em dobro, num total de 400.000 €, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
Peticiona, ainda, que este crédito seja reconhecido como dívida da massa insolvente e condenada esta no seu pagamento.
Para fundamentar tal pretensão alega, em síntese, que, no dia 3/11/2011, celebrou um contrato-promessa de compra e venda que teve por objecto a fracção autónoma identificada pela letra N, localizada no prédio urbano situado no Sítio…, freguesia do…, concelho de…, descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … e inscrita na matriz sob o artigo nº….
Nos termos do contrato celebrado, a insolvente prometeu vender-lhe tal fracção pelo preço de 653.840 €, englobando o mobiliário e equipamento da fracção e o direito de utilização de um ancoradouro para barco, localizado na Marina da …, por um período de dez anos.
Ficou acordado, relativamente ao pagamento do preço, que, a título de sinal e princípio de pagamento, seria pago 15% do valor global, correspondente à quantia de 100.000 €, até ao dia 10/11/2011, mais 15%, correspondente à quantia de 100.000 €, para reforço do sinal, até 90 dias a contar do anterior prazo, e o remanescente na data da celebração da escritura pública de compra e venda.
No dia 10/11/2011, transferiu para a conta bancária da insolvente o valor de 100.000 € e no dia 30/1/2012 igual valor.
No início do ano de 2015, a fracção foi-lhe entregue, tendo sido destinada à sua habitação, quando se encontrava na Região ….
Mais alega que, após a declaração de insolvência, instaurou uma acção de verificação ulterior de créditos, reclamando um crédito decorrente do incumprimento do contrato promessa, no valor de 400.000 €, que veio a ser julgada improcedente.
Em 27/11/2020, interpelou o Administrador da Insolvência para cumprimento do contrato promessa, tendo sido marcada a realização da escritura para o dia 29/12/2020, pelas 12 horas e 30 minutos, no Cartório Notarial, tendo-o ainda informado que, se no dia e hora não comparecesse no Notário, perdia o interesse na realização do negócio.
Contudo, no dia e hora marcados para a realização da escritura, foi informado pelo Administrador da Insolvência da opção pelo não cumprimento do contrato, opção esta tomada pela comissão de credores.
Considera, assim, que o contrato promessa foi incumprido, reclamando um crédito, no montante de 400.000 €.
2- Regularmente citada, veio a R. contestar, defendendo a improcedência da acção, a absolvição do pedido e a condenação da A. como litigante de má-fé.
Para o efeito alega, em resumo, que com a comunicação da opção pela recusa do cumprimento do contrato promessa, no dia 29/12/2020, o Administrador da Insolvência reconheceu ao autor um crédito sobre a insolvência, com a natureza comum, no valor de 200.000 €.
Mais alega que, apenas no dia 13/12/2021 o A. interpôs a presente acção, não se tendo insurgido ou reclamado qualquer crédito sobre a massa insolvente até esta data.
E que, no âmbito da liquidação, a qual se mostra finda, o resort no qual se situa a fracção objecto destes autos foi vendido a um terceiro.
Alega ainda que, à data da declaração de insolvência, assim como na data da instauração da acção de verificação ulterior de créditos, o contrato promessa não havia sido incumprido por qualquer das partes, encontrando-se suspenso.
No âmbito da acção de verificação ulterior de créditos expressamente se referiu que:
“Caberá ao Sr. Administrador da Insolvência pronunciar-se nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 102º, nº1, in fine, do C.I.R.E.”, pelo que impugna que nesta se tenha considerado que este optou pelo cumprimento do contrato-promessa.
Conclui que, tendo o Administrador da Insolvência comparecido na data designada no Cartório Notarial e declarado optar pela recusa do cumprimento do contrato promessa, com o reconhecimento de um crédito ao A., sobre a insolvência, com natureza comum, este optou válida e legitimamente por tal incumprimento.
Por último, invoca, ainda, o abuso de direito e a litigância de má-fé do A. na pretensão deduzida.
Conclui pela improcedência da acção e absolvição do pedido e condenação do autor como litigante de má-fé.
3- O A. apresentou articulado de resposta.
4- Teve lugar uma audiência prévia.
5- Posteriormente foi proferida Sentença, a julgar a acção improcedente, constando da sua parcela decisória: “Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a Massa Insolvente da Q… – Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A. do pedido. * Nos termos do art.º 297º, nº 1 do Código de Processo Civil fixo o valor da causa em 400.000,00 (quatrocentos mil euros). * Custas pelo autor, nos termos do art.º 527º do Código de Processo Civil. * Registe e Notifique”.
6- Inconformado com tal decisão, dela recorreu o A., para tanto apresentando as suas alegações com as seguintes conclusões: “1. No entender do Recorrente impunha-se uma apreciação dos factos dados como provados e, dos factos dados como não provados, diversa da proferida, impugnando-se a matéria de facto, e consequentemente impondo-se a reapreciação da prova gravada no processo de verificação ulterior de créditos que correu termos sob o Apenso 1, tendo a sentença a quo consequentemente aplicado incorrectamente os preceitos legais atinentes, com fundamento em erro de aplicação do direito. 2. Por discordar da decisão proferida pelo tribunal o quo sobre a matéria de facto, reclama a recorrente o seu reexame, ao abrigo do disposto no artigo 6629 do Código de Processo Civil. 3. O Recorrente não aceita a factualidade dada como provada nos pontos 16 e 17. 4. Tais matérias estão incorrectamente julgadas, com fundamento em erro na apreciação da prova produzida nos autos e da aplicação do direito. 5. A decisão do tribunal a quo, quanto à factualidade dada como provada no ponto 16, é redutora considerando que foi produzida prova bastante para que deva ter-se por provados mais factos sobre a improcedência do pedido deduzido pelo Autor, ora Recorrente. 6. Quanto ao facto 17 dado como provado, a decisão do tribunal o é igualmente redutora considerando que foi produzida prova bastante para que deva ter-se por provados mais factos sobre a improcedência da apelação deduzida pelo Autor, ora Recorrente. 7. Quanto ao julgamento desta matéria de facto, o Tribunal a quo não fez a correta e necessária avaliação e ponderação dos factos alegados constantes da prova documental carreada para os autos pelas partes. 8. No que concerne, à matéria atinente ao fim a que se destinava a aquisição da prometida fração, ficou provado que o ora Recorrente pretendeu adquirir a unidade de alojamento identificada pela letra N, no denominado Resort Q…, na freguesia do…, concelho de…, para ocupação e uso pessoal exclusivo – cfr. considerando J) do referido contrato promessa de compra e venda – destaque nosso. 9. No que tange ao ora Recorrente, este, conforme já demonstrado, pretendeu adquirir a fração para uso particular, ou seja, nas vestes de consumidor. 10. Em consequência, com relevância para a decisão da causa, do elenco dos factos dados como provados, deve ser alterada a redação dos pontos 16 e 17, passando deles a constar que:
“16- Por sentença proferida a 23 de novembro de 2020, a ação foi julgada totalmente improcedente e absolvidos os réus do pedido, dado não existir qualquer facto que permita concluir pelo incumprimento definitivo, ilícito e culposo da Insolvente, que fundamenta o crédito reclamado pelo Autor, sem prejuízo de o Autor poder converter a mora em incumprimento definitivo ou proceder à celebração do contrato promessa”. “17- Apresentado recurso, por acórdão proferido a 8 de junho de 2021, a apelação foi julgada improcedente, dado não ser o recorrente titular do direito ao pagamento do sinal em dobro e do direito de retenção nos termos e para os efeitos do art.º 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil, desde logo, por falta de verificação do indicado pressuposto legal – titularidade por parte do beneficiário do contrato promessa de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato”. 11. Por outro lado, a decisão do Tribunal a quo é redutora considerando que foi produzida prova bastante para que deva ter-se por provados mais factos alegados com interesse para a decisão a proferir. 12. Andou mal, neste particular, o Tribunal a quo ao não fazer uma correta e necessária avaliação e ponderação dos factos alegados constantes da prova documental carreada para os autos pelas partes, bem como dos atos praticados pela secretaria do tribunal. 13. Em consequência, tendo sido produzida, prova bastante para que deva ter-se por provada, resultante da sentença proferida no processo de verificação ulterior de créditos e do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao elenco dos factos dados como provados há que adicionar os seguintes factos:
“20- Declarada a insolvência da promitente-vendedora, nos termos do art.º 102º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o cumprimento do contrato ficou suspenso até que o administrador da insolvência declarasse optar pela execução ou recusar o cumprimento (refira-se que, no caso, o administrador da insolvência declarou pretender o cumprimento do contrato)”.
“21- O Autor contratualizou a projetada aquisição da fração identificada com vista à “ocupação e uso pessoal exclusivo, não disponibilizando no imediato nem a curto prazo a unidade de alojamento para um Acordo de Locação de Propriedade, tal como resulta do considerando J) do escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, de 3 de novembro de 2011, celebrado entre o Autor e a Insolvente”.
“22- A partir do momento em que a construção da fração identificada no contrato promessa ficou concluída e ali foi instalado o respetivo equipamento, o que teve lugar em data não concretamente apurada, o A. quando se deslocava à Madeira ficava instalado na mesma”. 14. Acresce que, a ação em apreço tem em vista o reconhecimento do crédito do Autor como dívida da Massa Insolvente e condenando esta no seu pagamento resultante do incumprimento definitivo do contrato imputável à massa insolvente. 15. Ora, salvo o devido respeito, sempre se dirá que, a sentença a quo interpreta incorretamente a opção pelo não cumprimento da promessa de compra e venda por parte do administrador de insolvência, ao apreciar e julgar improcedentes o pedido deduzido pelo ora Recorrente. 16. O ora Recorrente instaurou uma ação de verificação ulterior de créditos por apenso ao processo de insolvência da Q… – Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A.. 17. Por sentença proferida em 23/11/2020 pelo Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, e confirmada por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 08/06/2021 a ação foi julgada improcedente. 18. A convicção do tribunal, relativamente à matéria de facto provada, tal como resulta da sentença proferida no processo de verificação ulterior de créditos, assentou nas declarações do senhor administrador da insolvência ao declarar “... que a massa insolvente mantém interesse na celebração do contrato promessa”. 19. Tendo o tribunal enfatizado, a opção exercida pelo senhor administrador da insolvência pelo cumprimento do contrato promessa, na sentença “refira-se que, no caso, o administrador da insolvência declarou pretender o cumprimento do contrato”. 20. O que, aliás, foi plasmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao reapreciar a matéria de facto, quando refere que “o administrador de insolvência, ouvido em declarações de parte, declarou que,... a fração não foi incluída no anúncio para venda dada a existência do contrato promessa e que a massa insolvente está interessada em cumprir o contrato, do qual só teve conhecimento aquando da instauração da presente acção...”. 21. E que de resto, está em consonância com o alegado pela ilustre mandatária da massa Insolvente, e pelos ilustres mandatários do credor hipotecário – Banco B…, S.A. e do credor hipotecário – A.L…, e que consta dos respetivos registos fonográficos das sessões de audiência de julgamento do processo de verificação ulterior de créditos que constitui o Apenso 1. 22. Aliás, sempre se dirá que, a sentença a quo interpreta incorretamente a matéria de facto julgada, incorrendo em erro na apreciação da prova testemunhal gravada, na prova documental junta aos autos e da aplicação do direito. 23. Por outro lado, no enquadramento jurídico legal da sentença a quo, o tribunal alega que “... quer na pendência da mesma o administrador da insolvência, quer em sede de tentativa de conciliação quer nas suas declarações de parte afirmou que a massa insolvente estava interessada em cumprir o contrato”. 24. Mais alegando que, “é certo que, nas suas declarações, na acção de verificação ulterior de créditos, o senhor administrador da insolvência revelou que havia interesse da massa insolvente no cumprimento do contrato promessa. Todavia, também não é menos certo que o Autor, no âmbito daquela acção, recusou a celebração do contrato promessa, pretendendo prosseguir com a acção e ver reconhecido o crédito que ali reclamava. Neste contexto, tais posições não produziram efeitos jurídicos”. 25. Com efeito, os autos forneciam elementos que permitiam ao Tribunal a quo, ter decidido no sentido de concluir com a necessária certeza e segurança que o senhor administrador da insolvência, sufragado, em sede de alegações pelo seu maior credor hipotecário – A.L…, e, simultaneamente, presidente da comissão de credores, proferiu na audiência de julgamento, uma verdadeira declaração negocial de opção pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda. 26. Tratou-se de uma declaração negocial livre, espontânea e sem qualquer condição, imposição ou limite temporal, consubstanciada no exercício de um direto potestativo do senhor administrador da insolvência de optar pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda. 27. De tal forma, e dada a sua relevância para os autos, que a meritíssima juíza valorizou a importância e relevância da referida declaração negociai e fez constar a mesma no dispositivo da sentença proferida no processo de verificação ulterior de créditos. 28. De igual modo, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão proferido, também destacou a relevância da referida declaração fazendo constar explicitamente tal facto. 29. Assim sendo, e ao contrário do preconizado pela sentença a quo, a referida declaração negocial produzida em sede de audiência de julgamento, tem obrigatoriamente de produzir efeitos jurídicos. 30. Andou mal, neste particular o tribunal a quo, pois a exercitação por parte do senhor administrador da insolvência da opção pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda nem sequer exige forma expressa, aplicando-se-lhe o disposto nos artigos 217º e 218ºdo Código Civil, no que tange à manifestação da declaração negocial. 31. Com efeito, o exercício do direito de opção do senhor administrador da insolvência tanto pode ser feito por escrito como verbalmente, não estando sujeito a nenhum meio de prova em particular, conforme decorre da liberdade de forma consagrada no art.9 219º do Código Civil. 32. Não restam dúvidas de que o senhor administrador da insolvência, em sede de audiência de julgamento, em declarações de parte perante a Meritíssima Juíza, conforme a mesma deixou plasmado na douta sentença proferida no processo de verificação ulterior de créditos, exerceu a faculdade de executar o cumprimento do contrato. 33. É pois manifesto, que o comportamento do senhor administrador da insolvência implica que o mesmo declarou optar pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda. 34. E por tal facto, em 27 de Novembro de 2020, o ora Recorrente interpelou, por escrito, o senhor administrador da insolvência, fixando-lhe prazo para a outorga do contrato definitivo de compra e venda da fração identificada pela letra “N”, aprazando-a para o dia 29 de Dezembro de 2020, pelas 12h30, no Cartório Notarial do …, sito … – conforme resulta da matéria dos factos provados identificada sob o nº 18.
35. Importa realçar, que o Autor imbuído do espírito de boa fé e acreditando nas declarações sérias e sem reserva proferidas pelo senhor administrador da insolvência, bem como, da mandatária da massa insolvente e do mandatário do maior credor hipotecário – A.L…, quanto à vontade de cumprir com o contrato promessa de compra e venda, faz, explicitamente, referência a essa motivação, na comunicação de interpelação, datada de 27 de Novembro de 2020, que efetuou para o cumprimento do negocio, nos seguintes termos: “e tendo V. Ex.a, na qualidade de administrador de insolvência, declarado nos autos do processo de verificação ulterior de créditos, número 5626/17.0T8FNC.1, que corre termos no Tribunal judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Comércio do Funchal – Juiz 3, que a Massa Insolvente pretende o cumprimento do contrato prometido, deverá remeter ao referido cartório notarial, com o contacto telefónico nº…, e e-mail … toda a documentação necessária para a outorga da escritura de compra e venda da identificada fração, livre de quaisquer ónus e encargos” – conforme resulta da matéria dos factos provados identificada sob o nº 18. 36. Ocorre que, no dia da escritura – 29 de Dezembro de 2020, o senhor administrador de insolvência, que compareceu pessoalmente ao acto, alegou não ser possível celebrar a escritura definitiva, por ter recebido neste mesmo (no dia 29 de Dezembro de 2020), uma orientação da comissão de credores, que em reunião, deliberou que a massa insolvente opta pelo não cumprimento do contrato - conforme resulta da matéria dos factos provados identificada sob o nº 19. 37. E assim, o senhor administrador de Insolvência não procedeu à realização do contrato definitivo, como era sua obrigação, após ter declarado optar pelo cumprimento do contrato prometido (cfr. artigo 102º, nº 1 do CIRE), 38. Assim sendo, afigura-se-nos estarmos na presença de um incumprimento culposo por parte do senhor administrador de insolvência, da massa insolvente e da comissão de credores, por manifesto abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, beneficiando, deste modo, o ora Recorrente do direito de retenção uma vez que se verificam os pressupostos do artigo 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil. 39. Importa ressalvar que o crédito do ora Recorrente é constituído no decurso do processo de insolvência, devendo ser qualificado juridicamente como dívida da massa insolvente - cfr. resulta do artigo 51º do CIRE.. 40. Em tese, a obrigação correspondente ao período posterior passa a constituir dívida da massa, nos termos do art.º 51º, nº 1, alínea e), f) e g) do CIRE. 41. Com efeito, tem o ora Recorrente o direito a exigir da Massa Insolvente a restituição do sinal em dobro, por incumprimento do contrato-promessa de compra e venda da fração identificada pela letra “N”, nos termos do artigo 442º, nº 2 do C. Civil, acrescido dos juros moratórios vencidos e vincendos. 42. Por outro lado, no enquadramento jurídico legal da sentença o quo, o tribunal alega “Perante o que se vem dizendo, esta opção é válida, produzindo os seus efeitos, designadamente o previsto no art.º 102º, nº 3, alínea c), do Código de Insolvência e da Recuperação de empresas, ou seja, o reconhecimento ao autor, como crédito sobre a insolvência, da quantia de € 200.000,00”. 43. Andou mal, também, neste particular o tribunal a quo, pois a conclusão que antecede extravasa a prova produzida e ignorando por completo a inexistência de qualquer suporte na prova produzido. 44. Pois, não resulta provado nos autos do processo de insolvência que ao Autor tenha sido reconhecido o referido crédito sobre a insolvência no montante de 200.000,00€, ou sequer que tenha sido comunicado aos autos pelo senhor administrador de insolvência esse reconhecimento. 45. Por outro lado, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, de 20 de março de 2014, estatui que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”, ou seja, um dos pressupostos da uniformização constante de tal segmento é, repete-se, não ter sido o contrato-promessa cumprido pelo administrador de insolvência e, como é evidente, só se pode dizer que um AI não cumpre o contrato- promessa quando o AI ainda está em condições de o poder cumprir. 46. E sendo apenas em relação aos contratos/negócios ainda não integralmente cumpridos, mas que ainda são passíveis de o poder ser (por, designadamente, não estarem resolvidos) – e em que seja lícita a recusa do cumprimento por parte do AI, que se dirige a uniformização jurisprudencial do AUJ 4/2014. 47. Em poucas palavras, em linha com a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal de Justiça: a uniformização de jurisprudência constante do AUJ 4/2014 é diretamente aplicável à situação em que estamos, como sucede no caso dos autos, perante contrato-promessa que não foi resolvido antes da declaração de insolvência da promitente-vendedora. 48. Ora, no caso dos autos ficou demonstrado actos concretos de exercício do poder de facto sobre a fracção prometida vender por parte do Autor, ora recorrente. 49. Não existem dúvidas nos autos que o Autor, ora recorrente, passou a exercer o poder de facto no seu próprio interesse, porque é no seu interesse que retém a coisa. De mero detentor elava-se a possuidor. 50. Por outro lado, vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que para efeitos do artigo 1251 do Código Civil, dá-se a tradição da coisa quando o poder de facto sobre ela deixa de ser exercido pelo que promete transmitir a coisa para passar a ser exercido pelo beneficiário da promessa, independentemente do “animus” com que é exercido. 51. O que, por directa aplicação do AUJ 4/2014, deve ser reconhecido o direito de retenção ao ora Recorrente, na qualidade de promitente-comprador nos termos do art.º 755º/l/f) do C. Civil, com a preferência “absoluta” aplicável pelo disposto no art.º 759º/2 do C. Civil. 52. E no caso, ao ser reconhecido que assiste ao senhor administrador da insolvência, à massa insolvente e à comissão de credores o direito a optar pelo não cumprimento do contrato promessa de compra e venda, mesmo após ter declarado em uníssono que pretendiam o cumprimento do referido contrato promessa de compra e venda – o que não se admite, nem se concede, e apenas a título de mera hipótese – não pode deixar de considerar-se que a conduta destes foi exercida em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico dominante, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social e económico, isto é, em abuso de direito (art.º 334º do Código Civil). 53. O senhor administrador da insolvência, sufragado pela massa insolvente e o seu maior credor hipotecário – A.L…, simultaneamente, presidente da comissão de credores, proferiu em sede de audiência de julgamento, uma verdadeira declaração negocial de opção pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda. 54. Tendo a referida declaração sido proferida de forma formal e solene, constando a mesma do registo fonográfico do tribunal a quo, e transcrita para a sentença proferida no processo de verificação ulterior de créditos e para o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ficando apenas dependente da vontade do ora Recorrente em querer cumprir o contrato promessa de compra e venda. 55. Deste modo, da análise crítica das provas, resulta provado, que o ora Recorrente, acreditando na boa fé das declarações sérias e sem reserva proferidas pelo senhor administrador da insolvência, bem como, pela mandatária da massa insolvente e pelo mandatário do maior credor hipotecário – A.L…, quanto à vontade de cumprir com o contrato promessa de compra e venda, aceitou cumprir o contrato promessa de compra e venda, tendo para o efeito, interpelado, por escrito, o senhor administrador da insolvência, fixando-lhe prazo para a outorga do contrato definitivo de compra e venda da fração identificada pela letra “N”, e aprazando-a para o dia 29 de dezembro de 2020, pelas 12h30, no Cartório Notarial do …, sito … – conforme resulta da matéria dos factos provados identificada sob o nº 18. 56. Ocorre que, no dia da escritura – 29 de dezembro de 2020, o senhor administrador de insolvência, que compareceu pessoalmente ao ato, alegou não ser possível celebrar a escritura definitiva, porque recebeu neste mesmo dia (29 de dezembro de 2020), uma orientação da comissão de credores, que em reunião, deliberou que a massa insolvente optava pelo não cumprimento do contrato – conforme resulta da matéria dos factos provados identificada sob o nº 19.
57. Ora, é amplamente aceita na jurisprudência e na doutrina, que em face da declaração negocial proferida em audiência de julgamento pelo senhor administrador da insolvência, no sentido de optar pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda, o mesmo ao agir no sentido de no dia da escritura optar agora pelo não cumprimento do contrato, configura abuso de direito. 58. Ora, tal conduta atinge proporções juridicamente intoleráveis, traduzindo-se em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adotado pelo titular do direito. 59. Pois, o senhor administrador da insolvência, o maior credor hipotecário – A.L… por sinal, também presidente da comissão de credores, e a massa insolvente, criaram no ora Recorrente uma fundada convicção de que o contrato promessa de compra e venda era para cumprir. 60. O abuso de direito é um dos institutos gerais suscetíveis de proteção jurídica da confiança, a qual assenta na presença de quatro pressupostos: Situação de confiança justificada pela boa fé, que leva uma pessoa a acreditar, estavelmente, em conduta alheia – no factum proprium determinante de aquisição de uma posição jurídica; - Justificação da confiança; - Investimento dessa confiança como orientação de vida, desenvolvendo atividade na crença do factum proprium, atividade que depois se vê destruída pelo venire, com o correlativo regresso injusto à situação anterior; - Imputação da confiança (cfr. Meneses Cordeiro in Teoria Geral do Direito, 1.ª Edição, págs. 390 a 394) – todos bem patentes e elucidativos nos factos vertidos nesta contestação e sumariamente descrito no artigo anterior e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos de lei. 61. É, ainda, uma forma de antijuridicidade ou ilicitude. As consequências, portanto, do comportamento abusivo têm de ser as mesmas de qualquer atuação sem direito de todo o ato, ou omissão, ilícito (vide, entre muitos outros, Abílio Neto in Código Civil anotado, 12ª Edição, pags. 232 e 233). 62. Neste sentido, a conduta do senhor administrador da insolvência, do maior credor hipotecário – A.L… por sinal, também presidente da comissão de credores, e massa insolvente, configura abuso de direito na modalidade do venire contra factum proprium, dado que existem condutas contraditórias dos seus titulares a frustrar a confiança criada pela outra parte (o ora Recorrente) em relação a situação jurídica futura. 63. O que configura uma violação qualificada do princípio da confiança. 64. Assim, deve o crédito peticionado pelo ora Recorrente ser reconhecido como dívida da massa insolvente e esta condenada no seu pagamento, pelo facto da sua conduta ter excedido os limites impostos pela boa fé. 65. Do exposto, resulta que existiu, por parte do tribunal a quo um erro notório na apreciação da prova que levou a uma conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum, desconhecedor dos meandros jurídicos. 66. O tribunal tem o dever de efetuar um juízo de inferência, dentro da lógica da experiência e da vida. 67. Deste modo, o Tribunal a quo, na sentença que proferiu, violou o disposto nos artigos 217º, nº 1, 218º e 219º, 334º, 442º e 755º, nº 1, al. f), 759º, nº 2 do Código Civil, 417º, 466º, nº 1º a 3º do Código Processo Civil, Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência nº 4/2014 de 20 de Março de 2014, e nº 4/2019 de 27 de Julho de 2019, artigos 51º, nº 1, alínea e), f) e g), 102º nº 1 e 106º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 68. Os factos supra melhor expostos, são por si suficientes para eliminar os pretensos fundamentos da improcedência do pedido contra o réu deduzido pelo Recorrente. 69. Deste modo, o Tribunal a quo, ao proferir a decisão de que agora se recorre, prejudicou gravemente os interesses da recorrente, e descurou de forma grosseira a salvaguarda do princípio da busca da verdade material, da equidade e da igualdade entre as partes. Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. sabiamente saberão suprir, deve ser julgado procedente o presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida com as legais consequências. V. Exas. farão, como sempre, inteira Justiça”.
7- A R. apresentou contra alegações, onde conclui pela improcedência do recurso e pela confirmação da Sentença apelada.
* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto dada como provada em 1ª instância foi a seguinte:
1- No dia 23/7/2018, foi declarada a insolvência da sociedade “Q… – Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A.”.
2- A Sentença de declaração de insolvência foi confirmada por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 19/12/2018.
3- Foi designado Administrador da Insolvência o Sr. Dr. E. T. G..
4- Na assembleia de credores, realizada no dia 20/9/2018, foi deliberado o prosseguimento dos autos para a fase de liquidação, com suspensão da liquidação, e a manutenção da actividade da insolvente.
5- E que a administração da insolvente, durante a sua actividade, seria realizada pelo Administrador da Insolvência.
6- No dia 3/11/2011, o A. e a insolvente, por escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda” acordaram na aquisição pelo A. da unidade de alojamento correspondente às fracções autónomas identificadas pela letra “N” da propriedade urbana descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº… na freguesia do …, livre de quaisquer ónus e encargos, com a isenção dos decorrentes do Decreto-Lei nº 39/2008, de 7/3, à insolvente, que a prometeu vender ao A..
7- O A. e a insolvente acordaram no preço de venda de 653.840 €.
8- E que este valor incluía o mobiliário e equipamento da unidade de alojamento e o direito de utilização de um ancoradouro para um barco de quinze metros, localizado na Marina da Q… /Resort da Q…, por um período de dez anos a contar da escritura final.
9- Mais acordaram que o valor seria pago, mediante transferência bancária para a conta da insolvente com o IBAN …, da seguinte forma:
a) 15% do valor global estipulado, mediante depósito e início de pagamento, até ao dia 10/11/2012.
b) 15%, mediante aumento do depósito, no prazo máximo obrigatório de 90 dias do término do prazo previsto no parágrafo anterior e,
c) O restante valor na data da celebração da escritura pública de compra e venda.
10- E que a escritura de compra e venda devia ser assinada no prazo de 45 dias a contar da data conclusão definitiva das obras de construção do empreendimento turístico e/de resort turístico e a obtenção das autorizações e das licenças exigidas por lei, que deverá suceder por volta de Abril de 2012, na data, hora e local a serem indicados pela insolvente, com pelo menos vinte dias de antecedência.
11- E que na data de celebração da escritura de compra e venda o A. assinaria também um contrato de exploração turística com a insolvente respeitante às unidades de alojamento, objecto deste contrato, nos termos do Decreto-Lei nº 39/2008, de 7/3, declarando o A. que tinha conhecimento e aceitava os termos e condições correspondentes às disposições do Anexo III.
12- As partes acordaram ainda que, caso o A. perca objectivamente interesse na compra e venda prometida, como consequência da introdução de alterações substanciais nas unidades de alojamento e/ou características e regulamentos do complexo turístico e/ou resort turístico a ser criado, em também em caso de atraso na conclusão das obras correspondentes e/ou na emissão de licenças e/ou autorizações necessárias para a execução da escritura de compra e venda, terá o direito a rescindir este contrato unilateralmente, quando a insolvente estiver sujeita a uma obrigação de devolver apenas as quantias pagas pelo autor por meio de depósito e pagamento adicional de preço.
13- No dia 10/11/2011, o A. transferiu para a conta bancária da insolvente o valor de 100.000 €.
14- No dia 30/1/2012, o A. transferiu para a conta bancária da insolvente o valor de 100.000 €.
15- No dia 10/7/2019, o A. instaurou acção de verificação ulterior de créditos, que correu termos sob o Apenso 1, peticionando “créditos privilegiados na importância de 400.000,00 €, acrescido de juros vincendos à taxa legal, desde a presente data até integral pagamento, declarando-se que possuem e exercem o direito de retenção sobre a fracção autónoma identificada no artigo 1, graduando-se e pagando-se o crédito do reclamante, no lugar que lhe couber, em função da garantia (direito de retenção) de que beneficia, acrescido de juros, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da sua adjudicação até efectivo e integral pagamento”.
16- Por sentença proferida a 23/11/2020, a acção foi julgada totalmente improcedente e absolvidos os réus do pedido.
17- Apresentado recurso, por Acórdão proferido a 8/6/2021, a apelação foi julgada improcedente.
18- Por comunicação datada de 27/11/2020, com o assunto “interpelação admonitória – contrato prometido celebrado em 3 de Novembro de 2011, entre A… T… e a Q…, Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A.”, o A. comunicou ao Administrador da Insolvência o seguinte:
“(…) vem, (…) interpelar a Massa Insolvente da Q…, Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A. nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 808º, nº 1, do Código Civil, comunicando que foi marcada para o dia 29 de Dezembro de 2020, pelas 12:30 horas, no cartório notarial do …, a outorga da escritura prometida de compra e venda da unidade de alojamento correspondente à fracção autónoma identificada pela letra N da propriedade urbana, apartamento tipo T-dois, localizada no piso dois do “Edifício A01”, com duas varandas e o estacionamento nº 30, no piso menos três no Parque Praça Central, do conjunto urbanístico Resort Q…, situado em …, e descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº…, da freguesia do …, concelho de …, livre de quaisquer ónus e encargos.
Reportando-nos ao contrato promessa de compra e venda de 3 de Novembro de 2011, no qual a insolvente Q…, Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A. é promitente vendedora e o Sr. A… T… promitente comprador, até ao presente, e não obstante os nossos insistentes pedidos, ainda não foi celebrada a escritura de compra e venda da referida fracção autónoma.
Para o efeito, e tendo V. Exa., na qualidade de administrador de insolvência, declarado nos autos do processo de verificação ulterior de créditos, nº 5626/17.0T8FNC.1, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo de Comércio do Funchal – Juiz 3, que a Massa Insolvente pretende o cumprimento do contrato prometido, deverá remeter ao referido cartório notarial (…) toda a documentação necessária para a outorga da escritura de compra e venda da identificada fracção, livre de quaisquer ónus e encargos.
Assim, vimos conceder-lhes uma última oportunidade para a realização da escritura do contrato prometido, sob pena de, não a fazendo, considerarmos para todos os efeitos não cumprida a obrigação, convertendo-se a mora em incumprimento definitivo, e resolvido o contrato promessa referido supra, imputando-vos todas as consequências do não cumprimento.
Mais declaramos que, no caso da Massa Insolvente não comparecer no Cartório para a realização da escritura pública, na hora, dia e local supra identificado, o Sr. A… T… perde o interesse que tinha no negócio, e consequentemente deixa de lhe interessar a realização do contrato prometido”.
19- No dia 29/12/2020, pelas 12 horas e 30 minutos, compareceram no Cartório Notarial do …, localizado na …, o Administrador da Insolvência e TCSC, em representação e como gestora de negócios do A., tendo sido declarado que:
“Não foi possível lavrar esta escritura uma vez que:
O representante da parte vendedora declarou o seguinte: “O declarante faz referência à carta do promitente comprador de vinte e sete de Novembro de dois mil e vinte, expedida a trinta de Novembro de dois mil e vinte e recebida a dez de Dezembro de dois mil e vinte.
Conforme orientação recebida no dia de hoje, a comissão de credores, em reunião, deliberou que : “Por referência à mesma e ao seu teor, e tendo presente, nomeadamente, (i) que a promitente vendedora se encontra em situação de insolvência (proc. Nº 5626/17TFNC do Juízo 3 de Comércio do Funchal ; (ii) que o contrato promessa em causa não se mostra resolvido por qualquer das partes ; e (iii) que o Sr. A… T… não detém a posse do imóvel objecto do contrato promessa de compra e venda (e, logo, nunca existiu tradição da coisa a favor do promitente comprador), como ficou claro da prova produzida e da douta decisão proferida na acção de verificação ulterior de créditos, apensa aos supra referidos autos de insolvência com o nº 5626/17.0T0FNC.1, a Massa Insolvente opta pelo não cumprimento do contrato, nos termos e para efeitos, entre outros, do disposto nos art.ºs 106º, nº 2, 104º, nº 5 e 102º, nº 3, alínea c), todos do CIRE. Em conformidade, e por aplicação daquele mesmo regime legal, que afasta o previsto no nº 2 do art.º 442º do Código Civil, mais comunico a V. Exa. que vou reconhecer como crédito, comum sobre a insolvente, o valor de € 200.000,00, que foi reconhecido naquela acção de verificação ulterior de créditos como entregue a título de sinal. Esta qualificação resulta (…)”
A representante do comprador declarou o seguinte:
“A transmissão do imóvel conforme decorre do contrato promessa de compra e venda deveria ocorrer livre de ónus e encargos, o que não se verifica no caso, conforme certidão de registo predial que se junta. Ora tal era da responsabilidade do promitente vendedor. Neste sentido, o promitente comprador declara perder interesse no negócio, considerando estar na presença de um incumprimento definitivo, em que se converteu a mora do promitente vendedor.
Nos autos do processo judicial 5626/17.0T8FNC.1 que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira – Juízo de Comércio do Funchal – Juiz 3, o administrador da insolvência declarou que optava pelo cumprimento do contrato de promessa conforme orientação da comissão de credores.
No dia de hoje a comissão de credores dá o dito por não dito. Ora, a actuação dos membros da comissão de credores consubstancia litigância de má fé, tendo prestado falsas declarações na audiência de julgamento do processo de verificação ulterior de créditos supra identificada, a merecer, desde já, o mais veemente protesto, o que motivará participação criminal no Ministério Público contra os seus membros, bem como a sua responsabilização pelos prejuízos causados ao promitente comprador, nos termos do art.º 59º, nº 4, ex vi no art.º 70º, ambos do CIRE, bem como uma participação disciplinar à Ordem dos Advogados pela conduta dos respectivos mandatários.
Neste sentido, estamos na presença do incumprimento definitivo, ilícito e culposa da Comissão de Credores”.
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b) Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente, as questões em recurso consistem em determinar:
-Se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
-Se é lícita a opção do Administrador da Insolvência pelo não cumprimento do contrato promessa de compra e venda do imóvel.
-Se essa posição do Administrador da Insolvência constitui abuso de Direito.
-Se foi reconhecido ao A. um crédito sobre a R..
-Se deve o recorrente ser considerado como consumidor e quais as consequências de tal.
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c) Passemos, em primeiro lugar, a verificar se existem motivos para alterar a matéria de facto dada como provada na 1ª instância.
Ora, de acordo com o disposto no art.º 640º nº 1 do Código de Processo Civil, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar:
- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
- Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do art.º 690º-A (posteriormente art.º 685º-B e, actualmente, art.º 640º) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
De qualquer modo, há que não esquecer que continua a vigorar entre nós o sistema da livre apreciação da prova conforme resulta do art.º 607º nº 5 do Código de Processo Civil, o qual dispõe que “o Juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
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d) Entende o recorrente que devem ser alterados os Factos Provados 16. e 17..
Mais defende que se aditem três novos factos provados.
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e) Quanto aos Factos Provados 16. e 17..
Consta dos mesmos:
“16- Por sentença proferida a 23/11/2020, a acção foi julgada totalmente improcedente e absolvidos os réus do pedido”.
“17- Apresentado recurso, por Acórdão proferido a 8/6/2021, a apelação foi julgada improcedente”.
Diz o recorrente que tais factos não levaram em consideração a totalidade da prova produzida nas decisões neles constantes.
Assim, sugere que a sua redacção passe a ser a seguinte:
“16- Por sentença proferida a 23 de novembro de 2020, a acção foi julgada totalmente improcedente e absolvidos os réus do pedido, dado não existir qualquer facto que permita concluir pelo incumprimento definitivo, ilícito e culposo da Insolvente, que fundamenta o crédito reclamado pelo Autor, sem prejuízo de o Autor poder converter a mora em incumprimento definitivo ou proceder à celebração do contrato promessa”.
“17- Apresentado recurso, por acórdão proferido a 8 de junho de 2021, a apelação foi julgada improcedente, dado não ser o recorrente titular do direito ao pagamento do sinal em dobro e do direito de retenção nos termos e para os efeitos do art.º 755º, nº 1, alínea f) do Código Civil, desde logo, por falta de verificação do indicado pressuposto legal – titularidade por parte do beneficiário do contrato promessa de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato”.
Ora, se bem que as duas decisões mencionadas nos aludidos Factos Provados tenham sido proferidas num outro apenso aos autos de insolvência, são as mesmas relevantes para os presentes autos, até porque há que atender ao princípio da aquisição processual (cf. art.º 413º do Código de Processo Civil), segundo o qual o Tribunal, no julgamento da matéria de facto, deve ter em consideração todas as provas produzidas no processo.
Assim, as duas decisões são relevantes na sua globalidade e serão atendidas na apreciação da matéria de Direito nos presentes autos, tendo este Tribunal, em devida consideração, as mesmas na sua globalidade.
Aliás, na decisão recorrida, apesar da forma como os factos em causa foram enunciados, o Tribunal “a quo” não deixou de ter em atenção as questões que foram expostas nas decisões constantes do Apenso “1”.
Dir-se-á até que, levando o raciocínio do recorrente até às últimas consequências, teria a decisão recorrida que transcrever na íntegra a Sentença e o Acórdão do Apenso “1”, o que seria perfeitamente ilógico.
Deste modo, bem andou o Tribunal de 1ª instância na forma como enunciou os Factos Provados 16. e 17., razão pela qual o recurso improcede neste ponto.
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f) Os factos que o apelante pretende ver aditados são os seguintes:
-“20- Declarada a insolvência da promitente-vendedora, nos termos do art.º 102º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o cumprimento do contrato ficou suspenso até que o administrador da insolvência declarasse optar pela execução ou recusar o cumprimento (refira-se que, no caso, o administrador da insolvência declarou pretender o cumprimento do contrato)”.
-“21-O Autor contratualizou a projetada aquisição da fração identificada com vista à “ocupação e uso pessoal exclusivo, não disponibilizando no imediato nem a curto prazo a unidade de alojamento para um Acordo de Locação de Propriedade, tal como resulta do considerando J) do escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, de 3 de novembro de 2011, celebrado entre o Autor e a Insolvente”.
-“22-A partir do momento em que a construção da fração identificada no contrato promessa ficou concluída e ali foi instalado o respetivo equipamento, o que teve lugar em data não concretamente apurada, o A. quando se deslocava à Madeira ficava instalado na mesma”.
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g) No que ao primeiro “facto” diz respeito, trata-se de uma mera transcrição do art.º 102º do C.I.R.E.. Ora, resulta do artigo 607º nº 4 do Código de Processo Civil que, na Sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que não julga provados, “a contrario” se extraindo que da decisão de facto não devem constar nem juízos conclusivos nem conceitos normativo-jurídicos, enquanto segmentos integrantes da Sentença.
Assim sendo, e porque o recorrente pretende verter na decisão sobre a matéria de facto a transcrição de um preceito legal, e não podendo o mesmo ser incluído em tal sede, é manifesto que não iremos aditar o Facto Não Provado sugerido, improcedendo o recurso nesta parte.
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h) Quanto ao segundo dos factos sugeridos, mais não é o mesmo do que a transcrição do ponto “J” do contrato promessa a que se alude nos Factos Provados 6. a 12..
Tratando-se de documento junto aos autos com a petição inicial, é manifesto que, atendendo ao acima citado princípio da aquisição processual, o Tribunal, aquando da decisão da matéria de Direito, terá o mesmo em consideração na sua totalidade, incluindo o ponto em causa, tornando-se desnecessária a sua transcrição em facto autónomo.
Deste modo, não iremos aditar o facto sugerido.
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i) Finalmente, quanto ao terceiro facto sugerido, dir-se-á que a matéria de facto relevante para o efeito jurídico que o recorrente dele pretende retirar (a entrega ao promitente comprador da fracção prometida vender), foi já dada como provada na Apenso “1”, nos seus Factos Provados 15. e 16. que, no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 8/6/2021.
Ou seja, aí deu-se como provado:
“15- A partir do momento em que a construção da fracção identificada no contrato promessa ficou concluída e ali foi instalado o respectivo equipamento, o que teve lugar em data não concretamente apurada, o A. quando se deslocava à Madeira ficava instalado na mesma”.
“16- Aquando das deslocações do A. à Madeira, para efeitos do acesso à fracção por parte do mesmo, era-lhe entregue pela insolvente um cartão magnético”.
São esses factos que o Tribunal irá ter em consideração, sem necessidade da sua transcrição nesta sede.
Assim, não iremos aditar o facto agora sugerido pelo apelante.
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j) Improcedendo na totalidade o recurso incidente sobre a matéria de facto, será, pois, com base na factualidade fixada pelo Tribunal “a quo” que importa doravante trabalhar no âmbito da análise das restantes questões trazidas em sede de recurso.
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k) Quanto ao Direito, vejamos se é lícita a opção do Administrador da Insolvência pelo não cumprimento do contrato promessa de compra e venda do imóvel e se tal constitui abuso de Direito.
Dúvidas não restam, em face das posições das partes, de que estamos perante um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel.
O art.º 410º nº 1 do Código Civil define o contrato-promessa como a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato”.
Nas palavras de Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pg. 308), trata-se de uma “convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos a celebrar determinado contrato”.
Atento o disposto no art.º 406º nº 2 do Código Civil, o contrato-promessa produz, à partida, efeitos meramente obrigacionais (“inter partes”), não sendo, portanto, oponível a terceiros.
Contudo, o art.º 413º nº 1 do Código Civil oferece às partes a possibilidade de atribuírem eficácia real à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis ou bens móveis sujeitos a registo. Para tal, a lei estabelece três requisitos:
1º- “Declaração expressa” (das partes);
2º- “Inscrição no registo” (art.º 413º nº 1 do Código Civil):
3º- O contrato-promessa com eficácia real deve ser celebrado por escritura pública (caso seja essa a forma exigida para o negócio definitivo) ou documento particular autenticado (caso o negócio prometido não exija qualquer formalidade) – art.º 413º nº 2 do Código Civil.
Na situação de o conteúdo do contrato-promessa versar sobre bens imóveis, o registo do mesmo é efectuado, com carácter definitivo, nos termos do art.º 2º nº 1, al. f) do Código do Registo Predial. Caso os requisitos referidos se encontrem cumpridos, o contrato-promessa adquire eficácia absoluta após o seu registo, passando os direitos de crédito que dele derivam a ser oponíveis a terceiros que sejam titulares de direitos sobre o mesmo objecto não registados em data anterior.
Em caso de incumprimento do contrato-promessa, o lesado pode socorrer-se do mecanismo de resolução contratual, mas pode recorrer à execução específica para obter a entrega da coisa sobre a qual versa o contrato-promessa, desde que verificados os respectivos requisitos.
Estabelece o art.º 830 nº 1 do Código Civil que, “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
Atento o preceituado no art.º 830º nº 3, o direito à execução específica não pode ser afastado pelas partes nas promessas a que se refere art.º 410º nº 3 do Código Civil, isto é, no caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, que é precisamente o caso da situação “sub judice”.
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l) Por outro lado, “in casu” assume particular relevância o estatuído no art.º 106º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.), onde no seu nº 1 se dispõe que, “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”. E acrescenta o nº 2 do mesmo normativo que “à recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no nº 5 do artigo 104º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.
Assim, é este preceito aplicável à situação em que o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e o insolvente é o promitente-vendedor. Neste caso, o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa.
O nº 2 do art.º 106º do C.I.R.E. regula os restantes casos, em que falha qualquer dos três requisitos exigidos pelo nº 1, ou seja, os casos em que o contrato-promessa tem eficácia real mas não houve tradição da coisa ou em que, tendo havido tradição, o insolvente não é o promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real (tenha ou não havido tradição e seja o insolvente o promitente-vendedor ou o promitente-comprador).
Estabelece, pois, a regra geral, aplicável à grande maioria dos contratos-promessa: Nestes casos, ao contrário do caso regulado no nº 1, o Administrador da Insolvência pode recusar o cumprimento, aplicando-se então, por remissão o nº 2 do art.º 106º do C.I.R.E., o art.º 104º nº 5 do C.I.R.E. e, finalmente, por remissão deste último, o nº 3 do art.º 102º do C.I.R.E..
Assim sendo, neste ponto podemos concluir que:
1º- Verificados os requisitos enunciados no art.º 106º nº 1 do C.I.R.E., o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas à outorga do contrato definitivo. Ou seja, estando em causa a insolvência do promitente-vendedor que tenha outorgado um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, o negócio não é afectado, caso o promitente-comprador, à data da declaração de insolvência, esteja na posse da coisa objecto do negócio.
2º- Nas demais situações, e nos termos supra expostos, é permitido ao Administrador da Insolvência optar pela recusa do cumprimento.
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m) No que ao caso concreto diz respeito, apurou-se que, no dia 3/11/2011, o recorrente e a insolvente “Q… – Promoção e Exploração de Empreendimentos Desportivos e Turísticos, S.A.”, por escrito particular denominado “contrato promessa de compra e venda” acordaram na aquisição pelo recorrente da unidade de alojamento correspondente às fracções autónomas identificadas pela letra “N” da propriedade urbana descrita na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº… na freguesia do …, livre de quaisquer ónus e encargos, com a isenção dos decorrentes do Decreto-Lei nº 39/2008, de 7/3, à insolvente, que a prometeu vender ao apelante.
O recorrente e a insolvente acordaram no preço de venda de 653.840 €, e que este valor seria pago, mediante transferência bancária para a conta da insolvente da seguinte forma:
-15% do valor global estipulado, mediante depósito e início de pagamento, até ao dia 10/11/2012.
-15%, mediante aumento do depósito, no prazo máximo obrigatório de 90 dias do término do prazo previsto no parágrafo anterior e,
-O restante valor na data da celebração da escritura pública de compra e venda.
Mais acordaram que a escritura de compra e venda devia ser assinada no prazo de 45 dias a contar da data conclusão definitiva das obras de construção do empreendimento turístico e/de resort turístico e a obtenção das autorizações e das licenças exigidas por lei, o que deveria suceder por volta de Abril de 2012, na data, hora e local a serem indicados pela insolvente, com pelo menos vinte dias de antecedência.
Sucede que o conflito entre as partes teve já uma apreciação no Apenso “1” (Verificação Ulterior de Créditos), no qual o apelante ali peticionou a devolução do sinal em dobro, por incumprimento definitivo do contrato imputável à insolvente, ou seja, o valor de 400.000 € (200.000 € de sinal x 2), mais pedindo que o seu crédito fosse reconhecido como privilegiado, invocando o direito de retenção.
Saliente-se que naquela acção o agora recorrente não peticionou a realização da escritura definitiva de compra e venda.
Tal processo foi julgado improcedente e, subindo os autos em recurso, foi proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, em 8/6/2021, Acórdão a confirmar a decisão da primeira instância, constando dos termos de tal aresto:
“Assim e não tendo, desde logo, o contrato promessa em causa nestes autos eficácia real, pode o administrador da insolvência optar pela execução ou recusar o cumprimento, sendo que não resulta dos autos que o A. tenha fixado ao mesmo um prazo razoável para este exercer a sua opção e findo pudesse considerar que teve lugar a recusa do cumprimento”.
“Nestes termos, conclui-se não ser o recorrente titular do direito ao pagamento do sinal em dobro e do direito de retenção nos termos e para os efeitos do art.º 755º, nº 1, alínea. f) do Código Civil, desde logo, por falta de verificação do indicado pressuposto legal – titularidade por parte do beneficiário do contrato promessa de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento definitivo do contrato”.
“Caberá ao Sr. Administrador da Insolvência pronunciar-se nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 102º, nº 1, in fine, do C.I.R.E.”.
Ou seja, foi declarado, com valor de trânsito em julgado, que inexistiu incumprimento definitivo do contrato promessa em causa.
Saliente-se, ainda, que na pendência do Apenso “1” o Administrador da Insolvência declarou que a massa insolvente estava interessada em cumprir o contrato.
E, como acertadamente se refere na decisão recorrida, em face do incumprimento definitivo do contrato promessa, ficou “esta relação contratual dependente da pronúncia do senhor administrador da insolvência sobre o cumprimento ou não do contrato promessa, nos termos previstos no art.º 102º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Assim sendo, a partir do Acórdão proferido em 8/6/2021, teria o Administrador da Insolvência que optar pela execução do contrato ou recusar o seu cumprimento, nos termos do art.º 102º nº 1 do C.I.R.E..
E não se nos afigura defensável a posição do recorrente, quando refere que o Administrador da Insolvência ao declarar verbalmente no Apenso “1” que a recorrida Massa Insolvente estava interessada em cumprir o contrato, produziu uma declaração negocial livre, espontânea e incondicional que o vinculou ao cumprimento contratual.
Com efeito, o cumprimento do contrato fica suspenso, sendo atribuídas ao Administrador duas faculdades potestativas, em alternativa (cumprir o contrato ou recusar o seu cumprimento). Ou seja, o Administrador é, em princípio, livre de escolher qualquer das soluções que a lei põe ao seu dispor.
Defende Alexandre de Soveral Martins (in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, pgs. 173 e 174), que se estabelece no art.º 102º nº 1 do C.I.R.E. que o “cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare que opta pela execução do contrato ou pela recusa do cumprimento”, sendo que, no exercício de tal direito de optar “o administrador da insolvência deve necessariamente olhar para o que é vantajoso para a massa insolvente e para o conjunto dos credores”.
Todavia, apesar da enunciação de um princípio geral de aplicabilidade aos negócios em curso, o âmbito normativo circunscreve-se aos “contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento por qualquer das partes”, dependendo, assim, a sua aplicação “da verificação de um requisito positivo e de um requisito negativo. O requisito positivo é a existência de um contrato bilateral celebrado entre o insolvente e um terceiro. O requisito negativo é o de, à data da declaração de insolvência, não ter ainda havido cumprimento total por parte de nenhum dos contraentes”.
Tal direito de escolha ou de opção do Administrador da Insolvência (efectivar ou recusar o cumprimento do contrato), “apesar de potestativo, não é um direito de exercício livre ou acriterioso, devendo o Administrador optar, em cada caso, pela solução que melhor servir as finalidades do processo de insolvência – o que equivale a dizer : a solução que maximizar o valor da massa insolvente e, dessa forma, as probabilidades de satisfação dos credores” (cf. Catarina Serra, in “Lições de Direito da Insolvência”, 2018, pgs. 225 a 227)
Em idêntico sentido, refere Luís de Menezes Leitão (in “Direito da Insolvência”, 8ª Ed., pgs. 185 e 186) que a aplicação deste preceito restringe-se aos “contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento, nem pelo insolvente, nem pela outra parte”. E acrescenta que “como o cumprimento desses contratos pode ser conveniente aos interesses da massa, concede-se ao administrador a possibilidade de optar entre o cumprimento do contrato e a sua recusa, consoante for ou não conveniente para a massa. Assim se consegue conciliar os interesses da massa e a tutela da igualdade dos credores com o regime característico dos contratos bilaterais”.
Assim, verifica-se que a lei atribui ao Administrador da Insolvência, no que diz respeito aos contratos bilaterais ainda não totalmente cumpridos, nem pela insolvente nem pela contraparte, e após um primeiro momento de suspensão contratual, um direito potestativo de optar pela execução do contrato (caso em que se mantêm os termos contratuais), ou recusar o cumprimento (caso em que a contraparte fica com um crédito sobre a insolvência).
“In casu”, é manifesto que o Administrador da Insolvência, pese embora a declaração inicial (que em caso algum o vinculou), optou por não cumprir, isto é, por não celebrar o contrato definitivo, tendo em conta na sua reflexão (apenas e só) os interesses dos credores da insolvente, até porque o objecto do C.I.R.E. é não tanto a recuperação do insolvente, mas a protecção dos credores, daí que a opção do Administrador da Insolvência não esteja de olhos postos na situação do insolvente, mas no interesse dos credores sendo essa a bússola que lhe apontará caminho a trilhar no que respeita à opção relativamente aos contratos em curso de execução à data da insolvência.
Temos, assim, de concluir, que não assiste razão ao recorrente quando defende que o Administrador da Insolvência optou por cumprir o contrato promessa em causa.
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n) O Recorrente defende ainda que agiu o Administrador da Insolvência com abuso de direito.
Ora, nos termos do art.º 334º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Para que se verifique uma situação de abuso de direito é necessário que se desrespeitem os limites éticos e axiológicos impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O abuso do direito pressupõe um exercício de tal modo excessivo por parte do seu titular que os direitos de terceiro se vêm reduzidos para além do que seria razoável ou, como se afirmava no Acórdão do S.T.J, de 8/11/1984 (in B.M.J, nº 341, pg. 418) verifica-se uma situação de abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.
Da redacção deste preceito retira-se que para haver abuso do direito não é suficiente que o titular do direito exceda ou abuse dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Para que ocorra abuso do direito torna-se necessário algo mais.
É preciso que aqueles limites sejam manifestamente excedidos, ou seja que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos.
Se o instituto do abuso do direito tem o seu campo de aplicação sempre que o titular de um direito, baseando-se nesse mesmo direito, o use de forma a violar a própria ideia de justiça, o certo é que o mesmo não pode ser usado de forma indiscriminada abrangendo situações em que apesar do exercício de um direito ser excessivo o mesmo não possa ser classificado como manifestamente excessivo.
Podemos afirmar que o instituto do abuso do direito é um instituto de última “ratio”, para situações de clamorosa injustiça.
Muitas têm sido as abordagens ao conceito e à noção de “Abuso do Direito”.
J. M. Coutinho define o Abuso do Direito da seguinte forma: “Há abuso do direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem” (cf. “Do Abuso de Direito”, 1983, pgs. 42 e ss.).
Relativamente à figura do Abuso do Direito, Cunha e Sá considera que “abusa-se da estrutura formal desse direito, quando numa certa e determinada situação concreta se coloca essa estrutura ao serviço de um valor diverso ou oposto do fundamento axiológico que lhe está imanente ou que lhe é interno” (cf. “O Abuso do Direito”, pg. 456).
Segundo o Prof. Antunes Varela, para haver Abuso do Direito “é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”. “Com a fórmula manifesto excesso dos limites impostos pelo fim económico ou social do direito tem o artigo 334º especialmente em vista os casos de exercício reprovável daqueles direitos quem, como o poder paternal, o poder do tutor (...), são muito marcados pela função social a que se encontram adstritos”. A fórmula manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos em que a doutrina e a jurisprudência condenam sob a rubrica do “venire contra factum proprium” (cf. “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 9ª ed., pgs. 563 e 564).
O Prof. Vaz Serra, refere que há abuso do direito se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado e sustenta que a palavra “direito” é de entender em sentido muito lato, abrangendo a liberdade de contratar. Refere ainda que não há motivo para excluir o exercício de meras faculdades do âmbito de aplicação do art.º 334º do Código Civil (cf. Rev. Leg. Jur. Ano 111, pg. 296).
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela “exige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os Tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações” (cf. “Código Civil Anotado”, Vol. I, pg. 277).
Vaz Serra, entende que é necessário que o excesso cometido seja manifesto, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante (cf. “Abuso do Direito”, B.M.J. nº 85, pg. 253).
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o) Diz o apelante nas suas alegações de recurso que ocorre abuso de direito por parte da recorrida, uma vez que “o senhor administrador de insolvência não procedeu à realização do contrato definitivo, como era sua obrigação, após ter declarado optar pelo cumprimento prometido”. E “assim sendo, afigura-se-nos estarmos na presença de um incumprimento culposo por parte do senhor administrador de insolvente, da massa insolvente e da comissão de credores, por manifesto abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium”.
Ora, como já acima salientámos, o abuso do direito pressupõe um exercício de tal modo excessivo por parte do seu titular que os direitos de terceiro se vêm reduzidos para além do que seria razoável, ou seja, verifica-se uma situação de abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da Justiça, quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente o sentimento jurídico dominante.
No caso em apreço não se apurou que o Administrador da Insolvência tenha optado pelo cumprimento do contrato promessa de uma forma definitiva, antes tendo reservado a sua decisão para momento posterior.
A declaração inicial não vinculou, de todo, o Administrador da Insolvência.
E, como vimos, a recusa da recorrida em optar pelo cumprimento contratual encontra pleno respaldo legal nas regras constantes do art.º s. 790º nº 1 e art.º 795º nº 1 do Código Civil.º do C.I.R.E..
Assim, não se vê que, ao invocar a referida norma legal, o Administrador da Insolvência, em representação da apelada, tenha feito essa invocação de forma clamorosamente ofensiva da Justiça ou do sentimento jurídico dominante, antes o fazendo dentro dos limites legais.
Deste modo, não assiste razão ao recorrente neste ponto.
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p) Vejamos, agora, se foi reconhecido ao recorrente um crédito sobre a apelada.
Diz o apelante que o Tribunal “a quo”, na Sentença recorrida defende que a opção pelo incumprimento por parte do Administrador da Insolvência produz os efeitos previstos no art.º 102º nº 3, al. c) do C.I.R.E., ou seja, o reconhecimento ao recorrente de um crédito sobre a insolvência, no montante de 200.000 €.
E adianta o recorrente que “a conclusão que antecede, salvo o devido respeito, extravasa a prova produzida e ignorando por completo a inexistência de qualquer suporte na prova produzido”. “Pois, ao contrário do alegado pelo tribunal a quo não resulta provado nos autos do processo de insolvência que ao Autor tenha sido reconhecido o referido crédito sobre a insolvência no montante de 200.000,00€”. “Não constando o seu crédito da lista de créditos reconhecidos nos autos, ou sequer que tenha sido comunicado aos autos pelo senhor administrador de insolvência esse reconhecimento”.
Ora, no Facto Provado 19. consta expressamente que, no dia 29/12/2020, pelas 12 horas e 30 minutos, compareceram no Cartório Notarial do …, o Administrador da Insolvência e TCSC, em representação do recorrente.
Aí, foi lavrado documento onde consta que “não foi possível lavrar esta escritura”, e que “o representante da parte vendedora declarou” que “a Massa Insolvente opta pelo não cumprimento do contrato” e que “vou reconhecer como crédito, comum sobre a insolvente, o valor de € 200.000,00, que foi reconhecido naquela acção de verificação ulterior de créditos como entregue a título de sinal (…)”.
Ora, no Processo Principal (Insolvência), aquando do rateio e do pedido da sua suspensão, veio o Administrador da Insolvência opor-se a essa suspensão, referindo, em Requerimento datado de 22/9/2023, o seguinte: “9. Ora, como se verifica pela análise do processo de insolvência, foi proferida no âmbito do anexo “O” sentença que declarou improcedente o pedido de reconhecimento ao aqui Requerente de um crédito sobre a Massa Insolvente, no montante de € 400.000,00, com fundamento em incumprimento do contrato-promessa celebrado com a insolvente, que não se encontrava incumprido nem resolvido aquando da declaração de insolvência”. “10. Em suma, entendeu o Tribunal que a opção pela recusa do cumprimento do referido contrato-promessa pelo Senhor Administrador da Insolvência, a qual produz os efeitos previstos no CIRE, ou seja, o reconhecimento ao Requerente, como crédito sobre a insolvência, da quantia de € 200.000,00”. “11. Sucede que, o Requerente interpôs recurso da referida decisão judicial, visando a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que reconheça um crédito a seu favor sobre a massa insolvente, no montante de € 400.000,00 – o qual se encontra pendente junto do Tribunal da Relação de Lisboa”.
Temos assim de concluir que ocorreu um efectivo reconhecimento do crédito do recorrente por parte do Administrador da Insolvência, ainda que dependente da decisão final deste Apenso “O”.
Deste modo, não assiste razão ao apelante nesta sua pretensão.
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q) Vejamos, por fim, se deve o recorrente ser considerado como consumidor e quais as consequências de tal.
Defende o recorrente que é aplicável “in casu” o teor do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2014, de 20/3, uma vez que estamos perante um contrato-promessa que não foi resolvido antes da declaração de insolvência da promitente-vendedora. Assim, ainda segundo a sua posição, deve ser reconhecido o direito de retenção ao apelante, “na qualidade de promitente comprador nos termos do art.º 755º/1/f) do Código Civil, com a preferência “absoluta” aplicável pelo disposto no art.º 759º/2 do Código Civil”.
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r) Ora, previamente a essa questão, há que referir que, “in casu”, assume particular relevância o estatuído no art.º 106º do C.I.R.E., onde no seu nº 1 se dispõe que, “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”. E acrescenta o nº 2 do mesmo normativo que “à recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no nº 5 do artigo 104º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.
Assim, é este preceito aplicável à situação em que o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e o insolvente é o promitente-vendedor. Neste caso, o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa.
O nº 2 do art.º 106º do C.I.R.E. regula os restantes casos, em que falha qualquer dos três requisitos exigidos pelo nº 1, ou seja, os casos em que o contrato-promessa tem eficácia real mas não houve tradição da coisa ou em que, tendo havido tradição, o insolvente não é o promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real (tenha ou não havido tradição e seja o insolvente o promitente-vendedor ou o promitente-comprador).
Estabelece, pois, a regra geral, aplicável à grande maioria dos contratos-promessa: Nestes casos, ao contrário do caso regulado no nº 1, o Administrador da Insolvência pode recusar o cumprimento, aplicando-se então, por remissão o nº 2 do art.º 106º do C.I.R.E., o art.º 104º nº 5 do C.I.R.E. e, finalmente, por remissão deste último, o nº 3 do art.º 102º do C.I.R.E..
Assim sendo, neste ponto podemos concluir que:
1º- Verificados os requisitos enunciados no art.º 106º nº 1 do C.I.R.E., o Administrador da Insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato, antes ficando ambas as partes vinculadas à outorga do contrato definitivo. Ou seja, estando em causa a insolvência do promitente-vendedor que tenha outorgado um contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, o negócio não é afectado, caso o promitente-comprador, à data da declaração de insolvência, esteja na posse da coisa objecto do negócio.
2º- Nas demais situações, e nos termos supra expostos, é permitido ao Administrador da Insolvência optar pela recusa do cumprimento.
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s) Analisemos, então, o caso concreto.
Alega o recorrente, além do mais, que está provado que ocorreu a tradição da fracção autónoma para si, isto é, tem ele a posse daquela desde a data da assinatura dos contratos promessa de compra e venda. Em seu entender, tendo havido a tradição da coisa, tal deu origem à eficácia real dos contratos promessa em causa, além de que, antes de mais, goza ela do direito de retenção estatuído no art.º 755º nº 1 al. f) do Código Civil.
Porém, é manifesto que não assiste razão à recorrente, desde logo porque o contrato promessa em causa não é um contrato com eficácia real.
Com efeito, sendo o bem prometido vender no caso em apreço um bem imóvel, então, para que o contrato-promessa em causa nos autos fosse dotado de eficácia real, seria necessário que:
- Constasse de escritura pública.
- Os seus outorgantes declarassem expressamente que atribuíam eficácia real ao contrato.
- Se fizesse a inscrição no registo dos direitos emergentes da promessa.
Ora, no caso em apreço, o contrato-promessa não foi celebrado por escritura pública, nem no mesmo existe uma declaração expressa das partes no sentido de atribuição de eficácia real ao contrato.
Assim sendo, nos termos do já citado art.º 106º nº 2 do C.I.R.E., podia o Administrador da Insolvência optar pelo seu cumprimento ou recusar o respectivo cumprimento, sendo que no caso vertente, tomou esta última opção.
Pretendendo (talvez) colmatar a falta de preenchimento destes requisitos, invoca o apelante o facto de ter tomado posse da fracção, o que lhe conferiria, enquanto promitente comprador, invocar o direito de retenção da coisa prometida vender, nos termos do art.º 755º nº 1, al. f) do Código Civil.
Defende o apelante que tal direito pode ser por si invocado, até porque tem a qualidade de consumidor.
Verdadeiro direito real de garantia, o direito de retenção confere ao credor que tem em seu poder certa coisa pertencente ao devedor, não só a faculdade de se recusar a entregá-la enquanto o devedor não cumprir, como ainda a de executar a coisa e pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, comentário ao art.º 754º). Tal é o que resulta do disposto nos artºs. 754º, 758º e 759º do Código Civil.
Consagrada tal garantia desde a versão originária do Código, só com a entrada em vigor do Decreto-Lei 236/80, de 18/7, os promitentes-compradores passaram a beneficiar do direito de retenção, dispondo o art.º 442º nº 3 do Código Civil, na redacção resultante daquele diploma, que no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador gozava, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.
O regime jurídico do contrato promessa veio a ser alvo de alterações através do Decreto-Lei 379/86, de 11/11, que, todavia, manteve as soluções introduzidas pelo já referido Decreto-Lei 236/80, de 18/7, cujo objectivo principal, “foi acautelar a posição do promitente-comprador de edifícios, ou de fracções autónomas destes, sobretudo quando destinados a fins habitacionais” (cf. Preâmbulo do diploma em causa).
Mais se deixou aí referido que, tendo “o legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedido ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442º, nº 3), pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles”. Sob ponderação que nada justificava que o instituto ficasse confinado a tão estreitos limites, e assinalando que em diversas previsões do art.º 755º nº 1 do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o art.º 754º do Código Civil pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito, alargou-se a concessão de tal direito ao beneficiário de qualquer promessa com “traditio rei”.
Finalmente, e reconhecendo, embora, que o problema levantava “particulares motivos de reflexão, precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia : a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, “máxime” tomados de instituições de crédito”, dado que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (art.º 759º nº 2 do Código Civil), expressou o legislador de 1986 que “neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras. Persiste, em suma, o direito de retenção que funciona desde 1980”.
Assim, assente que nos termos do art.º 755º nº 1, al. f) do Código Civil goza de direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º”, a aplicação do assim preceituado no âmbito do processo de insolvência suscitou diversos problemas, sem que se lograsse obter consenso doutrinário e dando origem a decisões jurisprudenciais divergentes.
Reconhecendo a controvérsia instalada e a dispersão das decisões dos nossos Tribunais, veio o S.T.J. a proferir o Acórdão Uniformizador 4/2014, de 20/3 (publicado no DR, I-Série de 19/5/2014), fixando a seguinte doutrina : “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com “traditio”, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no art.º 755º, nº 1, al. f) do Código Civil”.
Assim, não há dúvida que, nos termos da doutrina fixada, o promitente-comprador tem, nestes casos, e na hipótese de recusa do administrador da insolvência, direito a indemnização calculada nos termos gerais prescritos no art.º 442º nº 2 do Código Civil, crédito este garantido pelo direito de retenção, desde que seja consumidor, pois só “interferindo a mencionada restrição podem ter cabimento e aplicação a ratio e teleologia convocadas para a aplicação dos correspondentes preceitos legais no âmbito do direito insolvencial” (cf. Acórdão do S.T.J. de 25/11/2014, consultado na “internet” em www.dgsi.pt, sem prejuízo da jurisprudência entretanto fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 3/2021, de 27/4, publicado no D.R., I Série, de 16/8/2021).
A qualidade de consumidor é, deste modo, elemento constitutivo essencial do direito de retenção, enquanto garantia real, impondo, consequentemente, ao reclamante que dele se pretende prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que se consubstancia tal qualidade (neste sentido, cf. Acórdão da Relação de Coimbra de 8/9/2015, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
No entanto, como já se referiu, apenas se apurou que, a partir do momento em que a construção da fracção objecto do contrato promessa ficou concluída e ali foi instalado o respectivo equipamento (o que teve lugar em data não concretamente apurada) o recorrente, que residia habitualmente no estrangeiro, quando se deslocava à Madeira ficava instalado na mesma. Mais se apurou que, aquando dessas deslocações, para efeitos do acesso à fracção por parte do apelante, era-lhe entregue pela insolvente um cartão magnético.
Estes factos são, a nosso ver, manifestamente insuficientes para concluir pela tradição do imóvel. Na realidade, para além das idas esporádicas do recorrente ao imóvel, o mesmo nunca dispôs das chaves de acesso ao mesmo, apenas lhe sendo entregue um cartão magnético para o efeito.
Tratava-se mais de uma situação de “hospedagem” do que de posse efectiva do imóvel, pelo que não se pode concluir pela verificação da “traditio”.
Deste modo, não havendo eficácia real do contrato promessa, nem existindo tradição do imóvel prometido vender, é manifesto que não pode o recorrente invocar a figura do direito de retenção sobre o mesmo.
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t) Assim sendo, conclui-se que a apelação não merece provimento, sendo de manter, na íntegra, a Sentença recorrida.
No entanto, sempre se dirá que ao recorrente, nos termos do art.º 102º nº 3, al. c) do C.I.R.E. deverá ser reconhecido um crédito sobre a insolvente no valor de 200.000 €, tendo tal crédito natureza comum, de acordo com o estipulado no art.º 47º nº 4, al. c) do C.I.R.E. (não beneficiando nem de garantia real, nem de privilégio geral, nem sendo subordinado).
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u) A recorrida defende a condenação do recorrente como litigante de má fé.
Ora, dispõe o art.º 542º nºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil que: “1- Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2- Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Acrescenta ainda o art.º 543º nºs. 1 a 3 do Código de Processo Civil que: “1- A indemnização pode consistir: a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos; b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência directa ou indirecta da má-fé. 2- O juiz opta pela indemnização que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, fixando-a sempre em quantia certa. 3- Se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização, serão ouvidas as partes e fixar-se-á depois, com prudente arbítrio, o que parecer razoável, podendo reduzir-se aos justos limites as verbas de despesas e de honorários apresentadas pela parte”.
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v) No Acórdão do S.T.J. de 11/12/2003 (Procº 03B294, Relator Lucas Coelho, consultado na “internet” em www.dgsi.pt), expendeu-se o seguinte: “O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do art.º 456º Código de Processo Civil, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a) e b), do nº 2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má-fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do Juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má-fé processual”.
Não basta, assim, para que se conclua pela litigância de má fé por alguma das partes no processo, a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta. Tal pode ter ocorrido por a parte se encontrar, embora incorrectamente, convencida da sua razão ou de que os factos se verificaram da forma que os descreve, hipótese em que inexistirá má fé. Impõe-se, pois, para que haja litigância de má fé, que a parte, ao deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, tenha actuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.
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w) Na evolução da figura da má fé processual, o conhecimento efectivo quanto à falta de fundamentação foi substituído pela exigibilidade desse conhecimento. É compreensível a razão da alteração. Pressupor, para a condenação da parte, que fosse dado como provado o facto de que esta sabia efectivamente que a pretensão ou defesa apresentadas careciam de fundamento equivaleria a inviabilizar praticamente o funcionamento da regra. Seriam, seguramente, escassas as situações em que, através de índices disponíveis, se pudesse inferir o conhecimento da parte quanto à falta de fundamento da pretensão ou da defesa.
“Ora, bastando-se a lei com a exigibilidade de conhecimento – e, com esta referência, fazendo apelo implícito a uma boa fé subjetiva porque dependente de um estado de conhecimento efetivo ou exigível do agente – a prova do facto pode ser feita a partir de índices externos, construídos sobre a parte média. Mesmo que a parte alegue a sua boa fé, entendida esta em sentido subjetivo, litigará de má fé se, não obstante não conhecer a falta de fundamento da pretensão ou da defesa, lhe fosse exigível que a conhecesse” (cf. Paula Costa e Silva, in “A Litigância de Má Fé”, 2008, Coimbra Editora, pg. 393).
Repare-se que, na redacção anterior à revisão de 1995/1996, a lei considerava designadamente litigante de má fé “o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava”. Com aquela revisão substituiu-se a necessária consciencialização da falta de fundamento traduzida na expressão “não ignorava” pela mencionada exigibilidade de consciencialização, evidenciada pela expressão “não devia ignorar”, o que constitui corolário da consagração pela lei da responsabilização como litigante de má fé não apenas daquele que agiu com dolo, mas também daquele que incorreu em negligência grave (ver art.º 456º nº 2 do Código de Processo Civil de 1961, a que corresponde o actual art.º 542º do Código de Processo Civil).
É certo que, na redacção do Código de Processo Civil de 1939, apesar de se referir que era considerado litigante de má fá aquele que “tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer”, expressão que inculcava a ideia de que a litigância de má fé se bastaria com a negligência grave, defendia Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, reimpressão de 1981, pgs. 262 e 263) que a boa fé no litígio é perfeitamente compatível com a lide simplesmente imprudente e também com a lide temerária (cf. Acórdão do S.T.J. de 20/3/2014, Procº 1063/11.9 TVLSB.L1.S1, Relator Salazar Casanova, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Com efeito, referia Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, reimpressão de 1981, pgs. 262 e 263), “mesmo no caso de culpa grave ou de erro grosseiro, o litigante está convencido de que tem razão; o que sucede é que não empregou a diligência, que devia empregar, para desfazer o seu erro. É em harmonia com esta doutrina que deve interpretar-se a frase “cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer”. Esse passo é mera explanação do estado de alma a que cabe a designação de má fé e deve, por isso, entender-se de acordo com o traço característico essencial: consciência de não ter razão. Não basta, pois, o erro grosseiro ou a culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o Tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada”.
Tal entendimento foi reiterado com a revisão de 1961 que visou dissipar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir com base na aludida expressão que foi substituída pelas palavras “cuja falta de fundamento não ignorava”, salientando Eurico Lopes Cardoso (in “Código de Processo Civil Anotado”, 1963, pg. 359, em anotação ao art.º 456º do Código de Processo Civil) que o alcance desta disposição “passou, por conseguinte, a ser diferente”, texto que se manteve até à revisão de 1995/1996 com a qual, declarada e vincadamente, se passou a afirmar a responsabilização do litigante de má fé que age com negligência grave.
Na revisão de 1961, a propósito do art.º 465º do Código de Processo Civil de 1939, correspondente ao art.º 456º do Código de Processo Civil de 1961, observou-se que se “retocou o nº 2, para deixar bem clara a ideia de que mesmo na 1ª das variantes abrangidas pela noção legal de má fé se exige um verdadeiro dolo, não bastando a simples culpa, por mais grave que seja” (ver “Código de Processo Civil. Revisão de 1961: Texto resultante da 1ª Revisão Ministerial, in B.M.J. nº 122, pg. 198).
Pode, assim, aproveitando-se a classificação das lides exposta por Alberto dos Reis em lides cautelosas, lides simplesmente imprudentes, lides temerárias e lides dolosas dizer-se que hoje a condenação como litigante de má fé deve ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária sendo esta última aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionado, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão, pois é suficiente a demonstração de lhe ser exigível essa consciencialização (cf. o já citado Acórdão do S.T.J. de 20/3/2014).
Assim, vem sendo entendido na Jurisprudência incidente sobre o Código de Processo Civil aprovado pela Lei 41/2013 de 26/6, que a conclusão da litigância de má fé é casuística, dependendo das circunstâncias do caso concreto, devendo o Tribunal ser prudente na sua apreciação, só devendo condenar a parte, como litigante de má fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 17/6/2014, Procº 313193/11.3 YIPRT.L1-7, Relatora Cristina Coelho, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
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x) Revertendo, agora, tais considerações para o caso “sub judice”, afigura-se-nos que não poderemos concluir que o recorrente tenha dirigido ao Tribunal uma pretensão com falta de fundamento e que tal era do seu conhecimento.
É certo que alegou ele factualidade que sabia já estar abrangida pelo caso julgado da acção de verificação ulterior de créditos (Apenso “1”).
Apresentou, porém, uma posição de Direito algo (até poderemos dizer bastante) temerária.
É manifesto o seu erro de Direito que podia ter sido evitado, mas não podemos confundir esse erro com má-fé.
E como acima se salientou, só se deve condenar a parte como litigante de má fé no caso de se estar perante uma situação onde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Dir-se-á ainda que se estivesse na dúvida se estávamos perante uma lide dolosa ou gravemente negligente, ou perante uma lide temerária, não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo ou negligência grave, a condenação como litigante de má-fé não deve operar.
Deste modo, entendemos que não existem elementos que, com inteira segurança, nos permitam concluir que o recorrente litigou com má-fé
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III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e, assim, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente (art.º 527º do Código do Processo Civil).
Processado em computador e revisto pelo relator
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2025 Pedro Brighton Nuno Teixeira Fátima Reis Silva