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CRIME DE USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
CRIME DE DIFAMAÇÃO
CONCURSO
Sumário
I - A apresentação de uma denúncia, sem fundamento, é suscetível de beliscar a honra e consideração do visado (a denúncia é caluniosa) – pois é-lhe imputada, falsamente, a prática de um ilícito criminal. II – Porém, o teor da própria denúncia pode sobrepassar esse efeito colateral inevitável, tendo em conta os concretos termos utilizados e, nesta medida, não se esgotar naquele plano da ilicitude e na tutela essencial da boa administração da justiça e apelar, de forma autónoma e verdadeiramente concursal, à intervenção da norma que tutela a honra do visado.
(Da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
Proc. n.º 3491/20.0T9PRT.P1
Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. I.1
Nos autos de processo comum n.º 3491/20.0T9PRT, que correu termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por acórdão de 09.07.2024, decidiu-se, além do mais (transcrição): A) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão. B) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, 182.º e 184.º, por referência ao disposto no 132º, nº 2, al. l), todos do Código Penal do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão. C) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art.º 358.º, al. b), do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão. D) Em cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas, decide-se condenar o arguido AA na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão efectiva, a cumprir em regime de obrigação de permanência na habitação, com meios de controlo à distância. (…) F) Mais se decide, ao abrigo do disposto nos art.ºs 7.º, n.ºs 1 e 3 e 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, declarar perdida a Perda de Vantagens a favor do Estado a quantia de € 300,00 e condenar o arguido a entregá-la ao Estado, acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação do pedido e até efectivo e integral pagamento. G) Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente e, em consequência, condenar o demandado AA a pagar ao demandante BB a quantia de € 1.000,00, a título de danos não patrimoniais. H) Não aplicar o perdão de penas a que alude a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, por não estarem preenchidos os requisitos legais, conforme decorre dos art.ºs 2.º, n.º 1, da mesma Lei.
(…)
*
I.2
Inconformado, veio o arguido AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 40152370) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve: 1 - Veio a ser proferida Decisão que condenou o Arguido / Recorrente AA pela prática: - de um crime de crime de denúncia caluniosa, p.p. pelo art. 365.º, n.º 1 do Cód. Penal, na pena de 1 ano de prisão; - de um crime de difamação agravado, p.p. pelos art.ºs 180, n.º 1, 182º e 184º, por referência ao disposto no art. 132, n.º 2, al. l), todos do Cód. Penal, na pena de 6 meses de prisão; - um crime de usurpações de funções, p.p. pelo art. 358.º, al. b) e 110º, n.º 1, al. b) e n.º 4 do Cód. Penal, na pena de 1 ano de prisão. 2 - Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, foi o arguido condenado na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva, a cumprir em regime de obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica. 3 - O Recorrente não se conforma com a matéria de facto provada, no que tange, à valoração da prova produzida no que toca à autoria do Recorrente dos crimes de denúncia caluniosa e difamação. Não foi produzida prova suficiente, de que este, tenha sido autor da prática de qualquer crime. 4 - Errou o Tribunal a quo ao não entender não preenchido o tipo legal de crime, uma vez que o arguido atuou ao abrigo do direito de liberdade de expressão e de acesso ao direito e tutela jurisdicional dos seus interesses. 5 - Não se entendendo pela absolvição, decidiu-se mal ao não considerar verificada um concurso aparente de crimes, no que respeita à denúncia caluniosa e difamação. 6 - Foram incorretamente julgados os factos constantes dos Pontos 4, 46 a 48, 51, 53 a 55, da matéria de facto provada. 7 - Estes factos deviam constar dos “Factos não provados”. 8 - Na fundamentação de facto constante do Acórdão proferido é notória a falta de fundamentação relativa ao ora Recorrente e aos motivos e provas que deram origem à convicção do Tribunal para elaborar juízo condenatório. 9 - A Decisão recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, prevista nos arts. 379, n.º 1 al. a) e 374.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal. 10 - A fundamentação não se satisfaz com a enumeração dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento e dos que serviram para fundamentar a sentença. É ainda necessário um exame crítico desses meios, que servirá para convencer os interessados e a comunidade em geral da correcta aplicação da justiça no caso concreto. 11 - O Douto Acórdão Recorrido, olvidou de todo, fundamentar qual o raciocínio que esteve na base do juízo do julgador, mormente, no que tange à autoria dos crimes praticados pelo Recorrente, no que respeita ao raciocínio para aferir a intenção do arguido, a consciência da falsidade, a consciência da ilicitude e vontade de ferir a honra e consideração do Assistente. 12 – De igual forma, o Tribunal a quo fez uma errónea interpretação da prova. 13 - A prova produzida em sede de Julgamento, é manifestamente insuficiente para condenar o ora Recorrente, pela prática dos factos constantes dos pontos 4, 46 a 48, 51, 53 a 55 dos factos provados. 14 - O Tribunal a quo atendeu apenas e só à constatação e transcrição da denúncia apresentada pelo arguido, conjugada com as declarações e reflexos que o assistente afirma lhe terem sido provocados. 15 - Foi completamente desconsiderado o que o arguido apresenta como explicitação e motivação que o levou a agir como agiu. 16 - A motivação, intencionalidade, vontade apenas e só decorrem da explicação constante das declarações do arguido. O arguido não apenas acabou por admitir algum exagero, não apenas se tentou desculpar do exagero perante o assistente. De facto, de forma cabal e coerente explicou o motivo que o levou a atuar como atuou. 17 – O arguido convicto de possuir razão, sentia-se revoltado, é da opinião que o relatório do assistente merecia toda a sua crítica e reação. 18 - O arguido explicou de forma clara - o que entendia errado no relatório do assistente; - o porquê de entender errado - o que entendia ser injusto e com sérias implicações na sua pessoa - a opinião e consciência de ter razão nas críticas que fez - a motivação que o levou a apresentar a queixa e até a mantê-la. 19 - Não decorre de qualquer elemento probatório a consciência da ilicitude, a intenção de atingir a pessoa do assistente, a consciência, vontade ou sequer desconfiança de poder estar a cometer qualquer crime. 20 - Moveu o arguido apenas a injustiça e gravidade e implicações retratadas no narrado no relatório da assistente, seguro que estava da sua inocência. 21 – Deverá assim ser a final proferida DECISÃO QUE ABSOLVA O ARGUIDO DA PRÁTICA DOS CRIMES DE DENÚNCIA CALUNIOSA E DIFAMAÇÃO PELOS QUAIS FOI CONDENADO, DEVENDO OS FACTOS IMPUGNADOS (pontos 4, 46 a 48, 51, 53 a 55), PASSAREM A CONSTAR COMO NÃO PROVADOS. 22 - Não se encontra verificado o preenchimento do tipo legal de ilícito por que foi o arguido condenado. 23 - O crime de denúncia caluniosa tem como seu indispensável elemento subjetivo o dolo específico que se traduz na intenção de que seja instaurado procedimento contra o visado com base em imputações que o denunciante tinha consciência de serem falsas. 24 - O arguido reagiu e pretendia reagir em defesa da sua inocência em processo judicial, contra si pendente, com consequências gravosas. 25 - O Recorrente reagiu ao relatório produzido pelo assistente. O arguido não apresentou a sua denúncia contra o assistente por este ser o Sr. Inspetor BB. Reagiu sim contra o inspetor responsável pela elaboração do relatório. 26 - O arguido, ao contrário do decidido, estava absolutamente convencido de que as suas críticas, comentários, observações eram verdadeiras. Sempre esteve convencido da sua inocência e por isso lutou. 27 - O documento de denúncia apresentado pelo arguido não é um documento descontextualizado. Com razão ou sem razão, o arguido explicita o porquê de considerar o relatório produzido pelo assistente errado. 28 - Não existe qualquer ataque à pessoa do assistente. Existe sim um ataque, uma crítica (ainda que mais dura) ao trabalho (relatório) produzido pelo assistente. 29 – A condenação do arguido encerra em si uma violação clara do princípio da liberdade de expressão e do direito de denúncia, consagrados no art. 37.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa. 30 - O arguido agiu no exercício dos direitos de acesso aos tribunais e a uma efetiva tutela jurisdicional efetiva e de liberdade de expressão e opinião, constitucionalmente consagrados, os quais prevalecem sobre a tutela da honra e consideração. 31 - O arguido não afirma ou imputa factos inverídicos. Quanto muito o que o arguido fez foi formular um juízo de valor ao trabalho realizado pelo assistente. As expressões do arguido não se apresentam como uma reação dirigida e intencional à pessoa do assistente. Concretamente, o Recorrente reage, manifesta a sua discordância, critica, qualifica o trabalho desenvolvido pelo assistente. 32 - A real intenção do arguido não era que o assistente fosse alvo de um procedimento criminal. Pretendia, isso sim, desacreditar o relatório elaborado, para sustentar a sua defesa. 33 - De igual forma, as expressões e palavras usadas pelo Recorrente e dadas como provadas, não constituem objetivamente uma ofensa. São, na verdade, absolutamente inócuas do ponto de vista penal. 34 - O arguido, apenas e só, manifesta o desagrado, discordância, a opinião, a crítica do arguido, convencido da sua inocência, em reação a (ao que considera) um mau trabalho. 35 - O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. A liberdade de expressão não é absoluta ou ilimitada, mas, estando em conflito com outros direitos, só deve ceder excecionalmente. 36 - O arguido apenas se limitou a tornar pública a sua opinião, envolta em tristeza e frustração e ansiedade, a fazer crítica pura, objetiva sobre o relatório produzido pelo assistente. No exercício do direito (constitucional) à liberdade de expressão, fez um juízo de valor. Não pretendeu rebaixar ou humilhar o visado. 37 - Uma expressão degradante só assume o carater de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objetiva das questões, mas antes o enxovalho das pessoas. 38 - “Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva”. 39 - Tem sido destacado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que “aqueles que exercem cargos com relevância/expressão pública têm um qualificado dever de suportar as críticas inerentes à sua atividade, por muito duras – ou mesmo infundadas – que sejam”. 40 - O arguido apenas criticou o trabalho do assistente (que por acaso se trata do Sr. Inspetor BB). 41 - O arguido agiu em consequência da frustração, do que entendia falta de rigor e desconsiderações que imputava graves e lesivas da sua pessoa, plasmadas no relatório produzido. Ainda que possa ter exagerado na terminologia e adjetivação da análise crítica que teceu à conduta/trabalho do assistente, ainda assim a liberdade de expressão e opinião não lhe pode ser coartada. 42 - A reação do arguido tem uma explicação, foca-se no relatório produzido pelo assistente, decorre do sobressalto emocional que uma acusação sobre si existia. 43 - Não se encontram preenchidos o elemento objetivo do crime, quer de denúncia caluniosa, quer de difamação, em face da falta de dignidade penal das expressões usadas pelo arguido, bem como estarem as mesmas protegidas ao abrigo da liberdade de expressão e direito de acesso à justiça e aos tribunais para defesa de interesses legalmente protegidos do arguido – art. 18.º, 20.º e 37.º da Constituição da República Portuguesa. Sem prescindir, 44 - Entre o crime de denúncia caluniosa e o crime de difamação existe uma relação de concurso aparente, sendo este consumido por aquele. 45 - É entendimento da jurisprudência que o crime de denúncia caluniosa tutela não só o bem jurídico da administração ou realização da justiça, mas também a honra do denunciado. Assim, o bem jurídico tutelado pelo crime de difamação (honra) acaba por se encontrar igualmente protegido na incriminação por denúncia caluniosa. 46 - O arguido deveria ter sido condenado apenas pela prática do crime de denúncia caluniosa e não também pelo crime de difamação. 47 - A respeito do julgamento do crime de usurpação de funções, entende o Recorrente, ter havido erro de julgamento. Existe, claramente, um erro notório na apreciação da prova. 48 - O arguido compareceu a julgamento e depôs de forma clara, coerente e verdadeira, permitindo a correção da grande confusão de datas e acontecimentos constantes da acusação pública. 49 - São tantas e tamanhas as imprecisões e contradições que, no mínimo, deveria levar a operar, a favor do arguido, o princípio in dubio pro reu. 50 - Foram incorretamente julgados os factos constantes dos Pontos 75, 77, 79, 80, 82, 83, da matéria de facto provada. 51 - Não existe prova produzida que possa levar a considerar como provados os factos supra. 52 - O arguido atuou sempre: - na qualidade de “sócio” e “gerente de facto” da sociedade A... – conforme decorre do facto provado 107. - em colaboração com o Agente de Execução CC. 53 - Decorre dos factos provados (nomeadamente 93,94,95,103 e 107) que o Arguido sempre atuou na qualidade de sócio e gerente da sociedade Exequente. O arguido tinha um interesse pessoal e económico na (também) sua sociedade. 54 – O credor interpelar ou abordar um devedor, mesmo na pendência de processo executivo. 55 - O arguido manteve sempre autorização e nunca foi suspenso do exercício de funções como solicitador. Não lhe está vedado agir enquanto auxiliar de agente de execução. 56 – O facto provado 75 demonstra que o arguido não agiu enquanto agente de execução, mas como colaborador de agente de execução nomeado nos autos. 57 - Das declarações prestadas pela Testemunha DD em nenhum lugar consta o facto de o Recorrente se ter arrogado agente de execução. 58 - A Testemunha/Executada sempre lidou com o Arguido/Recorrente, simplesmente pelo facto de lhe terem sido dadas indicações de que era o responsável pelo processo. 59 - A aceitação da possibilidade e termos de um acordo de pagamento não cabem nas funções do agente de execução. É o credor que tem o poder de aceitar ou não a formalização de acordo de pagamento e os seus termos. 60 - As declarações do arguido são claras, precisas e elucidativas da forma como atuava, apenas e só, em representação da sociedade A..., Lda.. 61 – Das suas declarações sobressai a explicação da conduta do arguido, em que qualidade, com que finalidade. Nunca atuou arrogando-se agente de execução. 62 - A Testemunha DD em nenhum momento refere ter sido arrogada a qualidade de agente de execução por parte do arguido. 63 - E as Testemunhas EE e CC nada esclarecem a propósito dos factos relacionados com este processo de cobrança em específico. 64 - Pelo que, não tinha elementos de prova o Tribunal a quo para decidir como decidiu, existindo erro notório na apreciação da prova. 65 - É absolutamente errado o facto provado de que o Arguido/Recorrente fez suas quaisquer quantias. Tal afirmação contradiz, em absoluto, o constante no facto provado 95.º. 66 - A conduta do arguido apenas e só pode ser avaliada em função da defesa dos interesses da sociedade que partilhava com o EE. 67 - Erra o Tribunal a quo ao referir que à data da prática dos factos entre o Arguido e o EE se tinha verificado a rutura, operando-se a “desvinculação” daquele da sociedade A..., Lda. (facto 107). 68 - O Arguido/Recorrente, na qualidade de “sócio” e “gerente de facto”, firmou um acordo de pagamento em prestações com a Executada/Testemunha DD, em data anterior, que iniciou o cumprimento em 8/2/2017. 69 – Sendo que, a rutura entre o Arguido e o EE e o Agente de Execução CC se deu em finais de Março de 2017. 70 - Importa de avaliar bem o facto dado como provado em 105.º. Facilmente se conclui que, em Fevereiro de 2017 (início do cumprimento do acordo de pagamento com a Testemunha DD) não havia ainda qualquer corte de relações, não havia nada que expressa ou tacitamente impedisse o Arguido/Recorrente de atuar, na convicção de, como “sócio” ou “gerente de facto”, em defesa dos interesses da sociedade credora e Exequente. 71 - O Tribunal a quo ignorou o depoimento da testemunha (FF) que, com conhecimento de causa, com conhecimento direto, de amigo e familiar, deixou claro o momento em que o conflito que aconteceu, passou a ter reflexos na potencial ilegitimidade da conduta do Arguido. 72 – De igual forma, o Arguido/Recorrente explica que no momento da celebração do acordo de pagamento em questão, não se tinha ainda dado qualquer rutura na relação com o EE, que pudesse sustentar a “desvinculação” do arguido da sociedade A..., Lda.. 73 - Não decorre de qualquer elemento probatório o facto de o Arguido/Recorrente ter atuado arrogando uma qualidade que não possuía – a de agente de execução. 74 - O arguido “era”, atuou como, «sócio» e «gerente de facto» da sociedade A..., Lda., como credora. 75 - As declarações da Testemunha DD são claras quando afirma que “sempre contactou o Sr. AA”, por “indicação do escritório” e por ser o “responsável” do processo. 76 - Não ocorre, pois, crime de usurpação, dado que o arguido, no limite, agiu na qualidade de colaborador do agente de execução CC. 77 – Deverá, assim, ser a final proferida DECISÃO QUE ABSOLVA O ARGUIDO DA PRÁTICA DO CRIME DE USURPAÇÃO DE FUNÇÕES PELO QUAL FOI CONDENADO, DEVENDO OS FACTOS IMPUGNADOS (Factos 75, 77, 79, 80 e 83), PASSAREM A CONSTAR COMO NÃO PROVADOS. 78 - Por fim, entendendo verificar a existência de crimes, andou mal o Tribunal a quo ao não determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. 79 - A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma pena autónoma. Tal pena deve ser preferida à efetiva execução da prisão se responderem aos requisitos que decorrem do art. 50º, n.º 1 do Cód. Penal. 80 - Tal modalidade de execução da pena obriga a um juízo de prognose favorável em relação ao arguido, desde que se conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 81 - Os presentes Autos impunham a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, pelo que deverá ser revogado o douto Acórdão proferido. 82 - Não decorre dos Autos que o arguido não reconheça a legalidade ou ilegalidade das suas condutas. O arguido “tentou-se desculpar” com o assistente, referindo, e bem, o Tribunal a quo que o arguido reconheceu” globalmente os factos cometidos contra o ofendido BB”. Explicou e detalhou todas as razões e explicações que o moveram. 83 - O arguido está profissionalmente inserido de forma sólida e familiarmente integrado, sendo bem visto no meio onde reside e “vive desafogadamente”. Não foi a necessidade ou ânsia de benefício económico que moveu o arguido. 84 – O arguido trava há anos uma luta perante o que considera a injustiça de não ver reconhecida a sua qualidade de sócio, da sociedade A..., Lda.. 85 - Desde a prática dos factos constantes das acusações distam quase 5 e 7 anos. 86 – O Arguido não desconsidera os seus antecedentes criminais, mas o grosso das condenações decorre da sua conduta como agente de execução ou em consequência de tal qualificação profissional, sendo certo que das 9 condenações, 6 decorrem do conflito relacionado com a sociedade A..., Lda.. 87 - Foi já aplicada ao arguido a pena de suspensão de execução da pena de prisão e durante esse período de suspensão não é conhecido ao arguido qualquer comportamento criminoso. 88 - A pena disciplinar de suspensão de execução do exercício de funções de agente de execução já terminou, e o arguido não mais retomou, nem pretende retomar a atividade. Nem mesmo a de solicitador. 89 - A factualidade apurada decorre do conflito gerado pelo conflito que opõe o Arguido com o seu amigo EE, com todas as implicações daí decorrentes. 90 - Tudo devidamente ponderado, permitiria avaliar como suficiente e justa a ameaça da prisão no que respeita à realização das finalidades da punição. 91 - Pelo que deveria o Tribunal a quo ter optado pela suspensão da execução da pena de prisão, violando assim o art. 50.º do Cód. Penal. 92 - Nestes termos, o Arguido/Recorrente entende que a decisão proferida no âmbito do processo comum perante tribunal coletivo, que correu seus termos junto do Juiz 5 do Juízo Central Criminal do Porto, enferma, claramente, da nulidade invocada, erro de julgamento e de erro de apreciação na prova, que levou a consequências gravosas na esfera jurídica do arguido. 93 - Solicitando agora, ao Venerando Tribunal da Relação do Porto a correção dos vícios apontados e a reapreciação da prova produzida, como forma de alterando o rol da matéria de facto dada como provada, seja substituída a decisão do tribunal a quo por outra que seja consentânea com a absolvição do arguido pela prática dos crimes a que foi condenado, com as devidas consequências ao nível da medida da pena e do pedido de indemnização civil. 94 – Não se entendendo assim, deverá ser revogado o Acórdão proferido, determinando-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. DAS NORMAS VIOLADAS: Artigo 180º, 365º e 358º, al. b) do Código Penal; Artigo 13º, 14º, 17º, 30º, 31º, 50º e 70º do Código Penal; Artigo 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; Artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa Artigo 20º e 37º da Constituição da República Portuguesa Artigo 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal; Artigo 127º do Código de Processo Penal; Artigo 374º e 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal; Artigos 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa Termos em que deve o presente recurso ser julgado e considerado procedente, devendo a douta decisão do Tribunal “a quo” ser alterada, no sentido preconizado supra, com as inerentes consequências a nível da decisão final, e assim fazendo Vossas Excelências inteira, costumada e sã. JUSTIÇA!
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I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, o Ministério Público apresentou as suas alegações de resposta (Ref.ª 40458355), pugnando pela improcedência da pretensão recursória.
Refere, em conclusões: 1. Após as Mªs Juízas terem plasmado os princípios gerais como formularam a sua convicção na apreciação da prova, disseram porque deram os factos como provados e formularam as suas convicções ao referirem que, foi com base em todos os documentos, designadamente de fls. 15 a 252; no manual de instruções do GRA de fls. 539 a 604, que contempla os procedimentos que os Inspetores devem adotar na elaboração da investigação que lhes compete e que o ofendido e as restantes testemunhas de acusação asseveram ter sido cumprido; no relatório final do GRA que deu origem à reação do arguido contra o ofendido, que se encontra a fls. 605 a 604; na certidão do acórdão do processo ... de fls. 274 a 309, bem como no acórdão da relação que sobre aquele recaiu em recurso, de fls. 679 a 700; que deu razão ao parecer do GRA, ainda que por um valor muito menor; bem como o acórdão de fls. 483 a 512, que declarou uma perda no valor de € 4.604,33 + € 88.161,49, no CRC quanto aos seus antecedentes criminais, nas declarações do assistente BB e demais testemunhas; 2. O arguido prestou declarações, tendo admitido os factos cometidos na pessoa do ofendido BB e que possa ter exagerado, mas tentou-se desculpar, revelando que não compreendeu integralmente que a sua conduta foi censurável, não tendo, por isso, revelado arrependimento; 3. O assistente BB e as testemunhas GG, Inspectora da PJ e Chefe do assistente, confirmaram que foram cumpridos todos os procedimentos que orientam os pareceres que elaboram e, o assistente, atestou as consequências que os atos cometidos pelo arguido tiveram si, bem como as testemunhas asseveraram que o ofendido é um profissional muito responsável, bom colega, conhecimentos que detém porque trabalham diariamente juntos e supervisiona o trabalho do ofendido. Foi igualmente atendido o depoimento do Inspector da PJ, colega de trabalho do ofendido, HH, explicou que efetuam, por delegação do Ministério Público a execução dos cálculos e a vantagem congruente e que o fazem habitualmente sem conhecer os visados, pelo que confirmou o que referiu o ofendido, no sentido de que não este não conhecia o arguido e que nada tinha contra o mesmo; 4. Os depoimentos prestados pelo assistente e pelas testemunhas foram sérios, isentos, objetivos e credíveis, sendo certo que nenhuma das testemunhas referiu conhecerem o arguido, sem que qualquer dúvida se suscitou quanto ao modo e forma como os factos foram cometidos, bem como quanto à sua autoria; 5. Quanto aos factos vertidos na acusação, no inquérito nº ... – A, o arguido prestou declarações orientadas no sentido de que efetivamente fez um acordo com a ofendida II para pagamento da quantia exequenda, mas na qualidade de gerente de facto da A..., Lda., sociedade que adquiriu o crédito da executada DD, negando que tivesse usado o título de agente de acusação; 6. Ora, as suas declarações, foram contrariadas pelo depoimento da ofendida DD, porquanto a mesma asseverou que fez um acordo com o arguido para pagamento a prestações da quantia em dívida porque aquele lhe disse que se tinha desvinculado do agente de execução CC e que deveria desconsiderar o NIB anterior e passar a fazer as transferências bancárias para o número de conta do arguido, que não era o número de conta identificado no processo executivo. Por sua vez as testemunhas EE e CC referiram que à data dos factos o arguido já não era gerente da sociedade A..., Lda. desde finais de 2016/inícios de 2017 e, assim sendo, nunca o arguido poderia ter atuado em representação daquela sociedade porque sabia que já não era gerente de facto da sociedade porque o acordo é posterior; 7. Por outro lado, o arguido, ao admitir que fez o acordo com a ofendida DD, para receber o pagamento à margem daquela sociedade, infere-se que atuou tacitamente na qualidade de agente de execução, quando não o era, já que o recebimento de dinheiro no contexto de uma execução constitui um ato próprio de um agente de execução, já que o arguido era pessoa experiente e que era agente de execução suspenso, à data dos factos, no âmbito de procedimento disciplinar, conforme resulta de toda a documentação junta aos autos; 8. Foi ainda relevante e determinante para a prova dos factos, a documentação com a conjugação do depoimento de DD e confirmação por esta testemunha dos factos contidos no email de fls. 88 e 89, que aquela escreveu para a apresentação da queixa à Ordem dos Agentes de Execução, quando concatenada com os demais documentos relativos a outros processos em que o arguido agiu igualmente como Agente de execução, quando já estava suspenso – cfr. certidão da CAAJ, decisão final de suspensão por 5 anos datada de 14-03-2016, de fls. 52 a 85; 9. Foi também, nesta parte, relevante o depoimento da ofendida DD que atestou que o arguido lhe ligou a dizer que a sociedade com o Dr. CC se havia dissolvido e que tinha dividido os processos daquele. Para prova dos valores transferidos pela ofendida, o tribunal atendeu à ficha de assinaturas da conta do arguido de fls. 44 a 49 e os extratos dessa conta onde se identificam as transferências que a ofendida fez por conta do acordo de pagamento que fez com o arguido e que estão a fls. 169 a 182; 10. Todos os referidos meios de prova foram, ainda, conjugados com a cópia do processo executivo da ofendida constante de fls. ..., do Juízo de Execução do Porto (J3), onde figura como exequente a A..., Lda e executada a ofendida DD e a comprovar que o arguido obtinha pagamentos nos processos da A..., Lda, o teor dos documentos de fls. 719 a 729 e 740, onde consta interpelação para pagamento enviada pelo próprio; 11. Quanto às circunstâncias relacionadas com a constituição da A..., Lda e com a intervenção do arguido no seio dessa sociedade resultaram do depoimento das testemunhas EE e FF, cujo teor foi de molde a confirmar os factos provados em sede de contestação, designadamente, de cujo conteúdo resultou demonstrado que à data da negociação do arguido com a ofendida, este já não geria os destinos daquela sociedade da qual já estava desvinculado por determinação dos sócios formais daquela sociedade; 12. Destarte, o padrão de comportamento do arguido, quando associado às demais ações, comprovadas no âmbito deste processo, relacionadas com as regras da experiência comum, ditadas neste caso pelo estilo de vida do arguido, pela atividade que exerceu noutros processos executivos e os seus antecedentes criminais, tudo concatenado, o Tribunal concluiu que os factos que lhe eram imputados na acusação foram perpetrados pelo próprio; 13. Por outro lado, a matéria respeitante ao dolo da atuação, porque se situa no campo da subjetividade, é sempre de difícil discernimento, pelo que tem que se inferir dos factos objetivos em causa, a luz das regras da experiência comum; 14. Assim, se quem atua não esclarece qual o estado de alma em que atuou, ou quando o faz se contraria a demais prova, tal como fez o arguido, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objetivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a sua atuação; 15. Ora, foi com base na prova carreada para os autos, testemunhal e documental, que as Mªs Juízas, concluíram, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, estatuído no art.º 127º do Código de Processo Penal, que o arguido agiu com a intenção concretizada, deliberada e consciente, de desencadear a instauração de um processo-crime contra o Ofendido, bem ciente que estava da falsidade da verificação dos factos subsumíveis a verificação dos crimes de prevaricação e de abuso de poder, pretendendo que fosse instaurado procedimento criminal pondo em causa o bom nome profissional do Ofendido, imputando-lhe factos e comportamentos que consubstanciavam uma carga pejorativa ao bom nome do Ofendido, atingindo-o no seu bom nome, credibilidade, dignidade e honra, bem como, invocando junto da executada DD, a qualidade de solicitador e agente de execução, o arguido sabia que não o podia fazer por aquela data, por não reunir as condições para a prática de actos próprios da profissão de agente de execução, em consequência da pena de suspensão do exercício de funções que lhe foi imposta pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, mas não obstante fê-lo. 16. Quanto à nulidade decisória é consabido que as sentenças judiciais, constituindo atos decisórios necessariamente fundamentados – arts. 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 97º n.ºs 1 a) e 5, do Código de Processo Penal -, devem especificar os motivos de facto e de direito que lhes servem de sustentação e observar os demais requisitos fixados no art.º 374º, do citado Código; 17. A indicação e o exame crítico das provas decorre da necessidade de potenciar a adesão dos destinatários e comunidade em geral ao teor da decisão criminal e de garantir a observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, postergando a mera arbitrariedade em benefício do legítimo e fundado exercício da livre convicção, servindo de garante a um processo equitativo; 18. Em consequência, o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui um elemento indispensável para assegurar o efetivo exercício do direito ao recurso, constitucionalmente garantido pelo art.º 32º n.º 1, da nossa Lei Fundamental (Constituição da República Portuguesa) e tornar funcional a relação entre o primeiro e o segundo graus de jurisdição; 19. Como é bom de ver e facilmente se conclui do anteriormente exposto não é o facto de o recorrente discordar da valoração probatória realizada pelo tribunal a quo, no que concerne á analise da prova e a falta de dolo no cometimento do crime, que determina a ocorrência de nulidade por falta ou insuficiência de fundamentação; 20. Assim sendo, como é bom de ver, o exame crítico só não será suficiente quando deixe de exteriorizar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com o erro de julgamento ou os vícios decisórios, prevenidos no n.º 2, do já citado art.º 410º, cujo âmbito, finalidades e consequências são muito distintos, o que não é o caso do Ac.; 21. O recorrente invoca, ainda, a aplicação do princípio in dúbio pro reo, este afirma-se como um princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal; 22. Trata-se da emanação da garantia constitucional da presunção de inocência do arguido, enquanto dirigido à apreciação dos factos objetos de um processo penal leva a que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor do arguido; 23. Ora, as Mªs Juízas, pela prova produzida e devidamente valorada, não ficaram com qualquer dúvida que o arguido praticou a factualidade que foi dada como provada pelo que tal princípio é inaplicável no caso concreto; 24. Do enquadramento jurídico-penal, entendemos, tal como o Tribunal a quo, que a factualidade dada como provada, consubstancia a prática dos crimes de denúncia caluniosa, um crime de difamação agravado e um crime de usurpações de funções, pelos quais o arguido veio a ser condenado; 25. Não existe, como o alegado pelo recorrente, um concurso aparente entre o crime de denúncia caluniosa e o crime de difamação, por tutelarem bens jurídicos diferentes; 26. No crime de denúncia caluniosa o bem jurídico protegido, como é possível interpretar pela sua inserção lógico-sistemática, e tem vindo a ser considerado pela jurisprudência dominante, é o interesse do Estado na boa administração da justiça; 27. Quanto ao elemento volitivo do crime, importava apurar se o arguido estava convicto do carácter falso das imputações e que tinha a intenção de que contra o ofendido fosse instaurado o correspondente procedimento criminal; 28. No que respeita ao tipo subjetivo do ilícito do crime de denúncia caluniosa, exige-se que a conduta seja dolosa, apenas se admitindo o dolo direto e o dolo necessário, ficando afastado o dolo eventual, sendo do conhecimento do arguido a falsidade da imputação ao ofendido, uma vez que sabia que sobre si aquele não tinha efetuado qualquer imputação e, mesmo assim, quis apresenta a queixa, apesar de estar convicto do carácter falso das imputações; 29. No que concerne ao crime de difamação é necessário que o agente, dirigindo-se a terceiro, formule sobre uma determinada pessoa um juízo ou lhe impute factos, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da honra ou consideração dessa pessoa, pelo que o bem jurídico é diferente do crime anterior; 30. A Constituição da República Portuguesa tutela tanto o direito à honra, como o direito à liberdade de expressão e informação, sem que, contudo, se estabeleça uma hierarquia entre ambos; 31. Assim, por forma a auxiliar-nos nessa apreciação, conforme estatuído no art.º 16.º, n.º 2, teremos também do nos recorrer instrumentos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma vez que impõe a interpretação dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais à luz daquele diploma, dado que a DUDH, nos seus arts. 2.º, 7.º, 12.º e 19.º, também tutela a honra e reputação das pessoas, por um lado, e a sua liberdade de opinião e expressão, por outro, mais uma vez sem hierarquizar ou definir como compatibilizar o âmbito de proteção desses direitos; 32. Para além da DUDH, temos também que nos socorrer da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e o expendido na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre tal matéria; 33. Porém, a CEDH, ao contrário dos outros instrumentos mencionados, não tutela, no plano geral, o direito à honra, prevendo-o apenas como uma das restrições à liberdade de expressão no seu nº 2 do art.º 10.º; 34. O certo é que também não nos podemos esquecer que o direito à liberdade de expressão, tal como muitos outros, não é um direito absoluto e que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada, existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões, podendo a sua violação conduzir à responsabilização do seu autor, nomeadamente a nível criminal, tal como referido naquele preceito normativo; 35. Assim, ainda que proibida toda e qualquer forma de censura (cfr. art.º 37.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), é, no entanto, lícita a repressão dos abusos da liberdade de expressão, quando necessária à garantia do respeito por outros direitos e bens jurídicos penalmente tutelados; 36. Deve assim, deve apreciar-se: 1. se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei”, 2. se prossegue um “objetivo legítimo” e 3. se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática” (“Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio”, João Gomes de Sousa - CEJ, 5 de fevereiro de 2021, disponível online; 37. Destarte, a factualidade dada como provada, extravasa o referido direito de liberdade de expressão, como pugnado pelo Recorrente; 38. O Ac. sob recurso descreve de forma exaustiva, em termos doutrinários e jurisprudenciais, os princípios que norteiam a fixação da medida concreta da pena; 39. Para a aferição da medida concreta da pena há que considerar em primeiro lugar a delimitação rigorosa da moldura penal abstratamente aplicável aos crimes e ao caso concreto, a fixação do grau de culpa do agente, que figurará como limite máximo da moldura penal, acima do qual a imposição de qualquer pena viola o princípio da culpa e, simultaneamente, a dignidade humana constitucionalmente protegida e, por último, a equação das exigências de prevenção social e especial que auxiliarão o julgador no âmbito da qualificação penal; 40. Por sua vez o art.º 70º do Código Penal enuncia os critérios de opção pela pena privativa de liberdade ou não e o art.º 71º, do mesmo diploma legal, manda que o Tribunal, no encontro da pena, que atue em função da culpa do agente, das exigências de prevenção e na ponderação das demais circunstâncias aí enumeradas e a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º do mesmo código) e que aquela visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; 41. Da análise do acórdão sob recurso, encontram-se de forma nítida verificados o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais o arguido foi condenado; 42. Tendo em conta as molduras penais abstratas dos referidos crimes, todas as circunstâncias que militam a favor e contra o arguido, devidamente elencadas no Ac. recorrido, sendo de realçar que à data dos factos descritos na acusação, já tinha sido condenado por decisões transitadas em julgado por: 2 crimes de ofensa à integridade física simples, 5 crimes de injúria simples e 1 crime de injúria agravada, 1 crime de desobediência, 1 crime de ameaça simples e 1 crime de ameaça agravada, 1 crime de difamação e 5 crimes de difamação agravada e 1 crime de peculato de uso, entendemos, à semelhança do Tribunal, que as penas parcelares pela prática do crime de denúncia caluniosa, a pena de 1 ano de prisão; pela prática do crime de difamação agravada, a pena de 6 meses de prisão e pela prática do crime de usurpação de funções, a pena de 1 ano de prisão, são as adequadas e proporcionais ao caso concreto; 43. Por fim, no que concerne à suspensão da execução da pena de prisão de 1 ano e 6 meses, diga-se, para além do referido em termos doutrinais e jurisprudências no Ac. recorrido, que a suspensão da execução da pena de prisão, mesmo que aconselhada à luz de razões de prevenção especial, não tem aplicação, se as razões de prevenção geral forem de tal modo intensas que desaconselhem a simples censura do facto e a ameaça da pena; 44. A suspensão da execução da pena constituí uma dessas medidas de conteúdo pedagógico e ressocializante que exige, para além da moldura concreta não superior a cinco anos de prisão, que o Tribunal formule um juízo de prognose favorável ao arguido, no sentido de considerar provável que a simples censura da sua conduta e a ameaça da pena são suficientes para que ele não volte a cometer crimes e para satisfazer as exigências de prevenção da criminalidade; 45. Do que se trata é de saber, se mantendo o autor do crime em liberdade, sujeito ou não a injunções e regras de conduta, como condições do não cumprimento efetivo da pena de prisão, destinadas, respetivamente, a reparar o mal do crime e a assegurar a inserção social do condenado, se mostra, em cada caso, adequado e suficiente para que interiorize o carácter ética e juridicamente reprovável da sua conduta e obste a que volte a praticar outros crimes; 46. Assim, a suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade; 47. São, sobretudo, as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena; 48. Aqui chegados, ao contrário do referido pelo recorrente, tal como se encontra plasmado no acórdão as Mªs Juízas elencaram de uma forma exaustiva das razões de facto e de direito porque no seu entendimento, à semelhança do nosso, decidiu aplicar a referida pena de prisão efetiva e 49. Numa imagem global do facto, verifica-se que a personalidade do arguido, face aos seus antecedentes criminais, apesar das advertências anteriores, manteve-se adepto de condutas censuráveis e voltou a cometer crimes da mesma natureza, pelo que as finalidades de prevenção geral e especial, devidamente elencadas no que concerne à fixação da medida concreta da pena, por se entender que a simples censura do facto e a ameaça da pena não bastarão para realizar as finalidades da punição, é de afastar, tal como fez o Tribunal, por não se poder formular um juízo de prognose social favorável, de que o mesmo sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime, é inaplicável o referido instituto. Destarte, optou bem o Tribunal a quo, pela aplicação das referidas penas parcelares e a pena única, que se mostra adequadamente fixada, uma vez que foram devidamente valorados todos os factos no seu conjunto e os critérios supra referidos, bem como a forma do seu cumprimento, pelo que o Ac. recorrido, além de aplicar o DIREITO ao caso concreto, cumprindo com as regras processuais penais legalmente admissíveis, fez também JUSTIÇA, ao condenar o arguido nos sobreditos termos pelo que deve ser mantido. Porém, Vossas Excelências farão a habitual JUSTIÇA!
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I.4
Neste Tribunal, a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do não provimento do recurso (Ref.ª 18784269), acompanhando as considerações expendidas em primeira instância.
Em síntese refere que o arguido, ora recorrente, apresentou uma queixa-crime contra o assistente e Inspetor da Polícia Judiciária, BB, imputando-lhe a prática de crimes de prevaricação e abuso de poder, com base na imputação de factos que sabia serem falsos, pretendendo, com isso, que fosse instaurado um processo-crime contra o denunciado. Ao utilizar expressões como "incompetente e dolosa", "má fé", "irreal, falsa, matreira", "errónea, maliciosa", "esquema acusatório fraudulento", o recorrente não se limitou a criticar o trabalho do denunciado, atacando, também, a sua pessoa e a sua honra, o que a invocada liberdade de expressão não lhe permite.
O recorrente estava suspenso do exercício de funções como agente de execução, continuando, não obstante, a atuar, nessa qualidade, junto da executada, convencendo-a a fazer depósitos na sua conta pessoal, estando, também, verificado o crime de usurpação de funções.
Embora o crime de denúncia caluniosa tutele, também, a honra do denunciado, as ações do recorrente extravasaram o "simples" propósito da denúncia caluniosa e integram, também e em concurso efetivo, um crime de difamação.
No que tange à pretendida suspensão da execução da pena de prisão entende a Digna Procuradora-Geral Adjunta que a mesma não se justifica, considerando o histórico criminal do arguido, que inclui diversas condenações por crimes similares, e a falta de arrependimento, não sendo a simples suspensão e a ameaça da prisão suficientes para dissuadir o arguido de cometer novos crimes.
Em conclusão e nos termos do Parecer, a decisão de primeira instância deve ser mantida, com a consequente improcedência do recurso.
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I.5
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso apreciar:
a) Dos vícios do acórdão;
b) Do erro de julgamento;
c) Da violação do princípio in dubio pro reo;
d) Da atipicidade da(s) conduta(s);
e) Do concurso aparente;
f) Da suspensão da execução da pena de prisão.
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III. III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor do acórdão posto em crise, na parte atinente à respetiva fundamentação: (…) II – FUNDAMENTAÇÃO A) FACTOS PROVADOS Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos: Das acusações: - 3491/20.0T9PRT: 1.º AA veio, por queixa-crime por si subscrita e apresentada neste Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, no dia 9 de Março de 2020, denunciar o Sr. Inspector da Polícia Judiciária, BB, e comissão de serviço no Gabinete de Recuperação de Activos/Norte da Directoria do Norte da Polícia Judiciária, imputando-lhe a prática de actos que, em abstracto, seriam, pelo menos, susceptíveis de integrarem a prática de crimes de prevaricação e de abuso de poder p. e p. pelos Artºs 369º, nºs 1 e 2 e 382º do Código Penal, respectivamente. 2.º Essa queixa-crime deu lugar à instauração deste inquérito com o NUIPC 3491/20.0T9PRT ... deste Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, ficando a constar como denunciante AA e denunciado, BB, identificando-se na capa do inquérito o crime “Abuso de poder.” 3.º Contudo, os factos, actos e postura imputados por AA enquanto denunciante ao Sr. Inspector da P.J. BB consubstanciadores de ilícitos criminais, como referido, não têm qualquer correspondência com a realidade. 4.º Não obstante estar ciente da falsidade dos factos, actos e postura que imputava ao Sr. Inspector da P.J. BB por não terem qualquer correspondência com a realidade, o AA apresentou a queixa-crime que deu causa à instauração deste inquérito, pretendendo, através deste meio, que contra o primeiro fosse aberto processo crime visto que o por si relatado consubstanciava a prática de ilícitos criminais e a apresentação de queixa neste DIAP constituía um instrumento idóneo a desencadear a instauração de procedimento criminal visando pessoa determinada. Ora: 5.º O inquérito com o NUIPC ... que correu termos pela 12.ª Secção deste DIAP foi instaurado contra o aqui arguido AA para investigação da prática de crimes de peculato no âmbito do exercício de funções de agente de execução que desempenhou em processos executivos para que foi designado. 6.º No decurso dessa investigação criminal foi determinada, a par, pelo Ministério Público, a realização de investigação patrimonial e financeira visando a análise ao património mobiliário, imobiliário e financeiro que se encontrava na esfera de disponibilidade do arguido AA, a fim de se proceder ao cálculo da vantagem da atividade criminosa para efeitos da aplicação do mecanismo de perda alargada, nos termos da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro e inerente arresto. 7.º Coube ao Sr. Inspector BB, colocado em comissão se serviço no Gabinete de Recuperação de Activos (GRA), Delegação Norte da Polícia Judiciária, o encargo de proceder à realização de tal investigação, em conformidade com o determinado pelo Ministério Público. 8.º Dessa forma, o Sr. Inspector aplicou na investigação a mesma metodologia e pressupostos que têm sido adoptados em todas as investigações patrimoniais e financeiras, devidamente sustentados no ‘Manual de Procedimentos’ desenvolvido pelo GRA – Delegação do Norte, e utilizado a nível nacional. 9.º No decurso dessa investigação, o Sr. Inspector analisou os movimentos a crédito que ocorreram nas contas do arguido, através de depósitos ou transferências bancárias, durante o período de investigação. 10.º Expurgou todos aqueles que foram possíveis detectar que ocorreram entre contas do arguido ou que a origem evidenciava a sua licitude, nomeadamente de estornos bancários e devoluções de cheques, de empréstimos bancários e outros créditos cuja entidade de origem estava devidamente identificada e não se tratava de rendimentos. 11.º Por outro lado, as duas contas profissionais tituladas pelo arguido, domiciliadas no Banco 1..., não foram consideradas para efeitos do cálculo da vantagem. 12.º Quanto aos veículos automóveis, foram considerados como património do arguido aqueles cuja propriedade se encontrava registada em seu nome. 13.º Por força da aplicação dessas ferramentas à matéria investigada e seguindo a metodologia corporizada no “Manual de Procedimentos” adoptada pelo GRA, o Sr. Inspector concluiu a sua investigação, elaborando relatório final, em que se quantificou em 421.297,64 Euros (quatrocentos e vinte e um mil duzentos e noventa e sete euros e sessenta e quatro cêntimos) a vantagem da actividade criminosa desenvolvida pelo arguido AA, respeitante aos cinco anos que antecederam a sua constituição como arguido nesse inquérito, ou seja, entre Dezembro de 2013 e Dezembro de 2018, à luz da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro. 14.º Encerrado o inquérito, na acusação formulada pelo Ministério Público, datada de 25 de Junho de 2019, foi imputada ao arguido AA a prática de dois crimes de peculato p. e p. pelo Artº 375º, nº 1 do Código Penal com referência ao Artº 386º, nº 1, al. d) do mesmo diploma legal. 15.º Foi também requerida a aplicação da pena acessória de proibição do exercício da função de agente de execução, com referência aos Artºs 66º, nºs 1, als. a) e c) e 5, 67º e 68º do Código Penal. 16.º Concomitantemente, com base na investigação patrimonial e financeira realizada pelo GRA, o Ministério Público apresentou, ao abrigo do preceituado nos Artºs 7º e 8º, nº 1 da Lei 5/2002 de 11/1, requerimento de liquidação para perda ampliada de bens a favor do Estado, no valor de 421.297,64 Euros (quatrocentos e vinte e um mil duzentos e noventa e sete euros e sessenta e quatro cêntimos), pedindo fosse declarado perdido a favor do Estado por respeitar ao montante do património incongruente com os rendimentos lícitos declarados (fiscalmente) pelo arguido. 17.º A par, foi ainda pedida a condenação do arguido a pagar ao Estado o valor de 17.500,00 Euros correspondente ao valor da vantagem por aquele obtida com a prática dos concretos crimes que lhe foram imputados, ao abrigo do disposto nos Artºs 110º, nºs 1, al. b) e 4 do Código Penal. 18.º Em sede de julgamento, foi proferido Acordão datado de 20 de Outubro de 2020, foi o arguido absolvido da prática dos dois crimes de peculato e, por efeito de convolação, condenado na prática de um crime de peculato de uso p. e p. pelo Artº 376º, nº 1 do Código Penal, na pena de 7 meses de prisão suspensa na execução pelo período de 1 ano mediante a condição de, no prazo da suspensão, repor na conta-cliente de onde foi retirada, a quantia de 10.000,00 Euros. 19.º Em face dessa condenação, por o crime de peculato de uso não constar do catálogo de crimes previsto no art.º 1º da Lei nº 5/20002 de 11/1, que permite desencadear o mecanismo ablativo de perda alargada, foi julgado improcedente o respectivo incidente. 20.º Interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto, foi proferido Acordão, datado de 21 de Maio de 2021, que julgou parcialmente procedente o recurso e, em consequência: - confirmou a absolvição do arguido quanto a um dos crimes de peculato; - alterou a matéria fáctica relativamente ao elemento subjectivo dos factos atinentes a um dos processos executivos e perda de vantagem respectiva e condenou o arguido pela prática de um crime de peculato p. e p. pelo Artº 375º do Código Penal na pena de dois anos e três meses de prisão suspensa na execução por igual período condicionada à entrega da quantia de 6.000,00 Euros; - declarou perdida a favor do Estado a vantagem económica obtida com a prática do crime em apreço, condenando o arguido no pagamento ao Estado do valor de 4.604,33 Euros, nos termos do art.º 111.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código Penal, na versão vigente à data da prática dos factos a que corresponde o art.º 110.º, n.ºs 1, al. b) e 4 na actual versão do Código Penal; - julgou parcialmente procedente, por parcialmente provado, o incidente de declaração de perda ampliada deduzido pelo Ministério Público, nos termos da Lei 5/2002 de 11/1, declarando perdido a favor do Estado o valor de 88.161, 49 Euros (oitenta e oito mil, cento e sessenta e um euros e quarenta e nove cêntimos). - não aplicar sanção acessória de proibição do exercício de função. 21.º Inconformado, o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. 22.º Todavia, tal recurso não foi admitido por despacho datado de 18 de Junho de 2021, ao abrigo do disposto no Artº 400º, nº 1, al. e) do C.P.P. 23.º Apresentou, então, reclamação do despacho de não admissão do Recurso junto do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, por decisão de 27 de Setembro de 2021, foi indeferida. 24.º Em momento algum do processo foi questionada pelo Tribunal a metodologia e pressupostos empregues na realização da investigação patrimonial e financeira a cargo do Sr. Inspector BB nem as conclusões extraídas. 29.º A diferença encontrada a final na fixação do valor respeitante ao património incongruente resultou da elisão da presunção legal prevista no art.º 9º, nºs 2 e 3 da Lei 5/2002 de 11/1, demonstrando-se que, apesar das aparências, determinado património não era incongruente. 30.º Avulta, de igual modo, do processo que no âmbito da investigação patrimonial e financeira realizada, o Sr. Inspector cumpriu os deveres de isenção e imparcialidade inerentes às suas funções como, de resto, lhe era exigível, fazendo-o despojadamente, sem intuito de prejudicar ou beneficiar quem quer que fosse, honrando, com a sua prestação profissional, a credibilidade e autoridade reconhecidas ao Estado na boa administração da Justiça. 31.º Desta forma, quando, na denúncia apresentada, AA refere valores sem quaisquer referências, sem datas, descritivos ou documentação de suporte, pretendeu unicamente distorcer toda a investigação que o visou, tendo em vista fazer desacreditar o trabalho desenvolvido, descrevendo-o como resultado de flagrante violação dos deveres funcionais de que estava incumbido o Sr. Inspector da P.J. 32.º Com efeito, na denúncia, reportando-se à actuação profissional do Sr. Inspector BB, o arguido afirma que: - “…mais grave foi a incompetente e dolosa acção do denunciado” – art.º 12.º. 33.º E que agiu: - “…de má fé, dolosa…”, acrescentado que “a forma como foi feita a investigação, é irreal, falsa, matreira…” – art.º 13.º. 34.º De seguida, reitera que: - “…a atuação do denunciado foi errónea, maliciosa, e de completa má fé e dolosa” – art.º 14.º. 35.º E, no art.º seguinte, afirma que: - “…o denunciado usou de um esquema acusatório baseado em suposições, fraudulento, sem lógica, sem verdade, e usando o estatuto de uma polícia criminal para falsamente incriminar o aqui denunciante, ao arrepio de qualquer princípio legal e constitucional” – art.º 15.º. 36.º Mais adiante, refere que: - “…tais resultados apresentados, não podem ser considerados de mera incompetência, mas têm obviamente de ser considerados de má fé, com intenção de prejudicar, e resultantes de atuação dolosa e criminosa.” – art.º 26.º. 37.º Avançando que: - “será de questionar a motivação do denunciado” - acrescentando - “O porquê de querer prejudicar o denunciante.” – art.º 27.º. 38.º Refere ainda que: - “o denunciado é subalterno à entidade que o tutela, tem interesse pessoal em apresentar resultados, provas, sabe-se lá a que custo.” – art.º 31.º. 39.º Em suma, afirma que o Sr. Inspector actuou - “apenas com o objectivo acusatório”, sendo os resultados apresentados como “património incongruente”, “falaciosos” e “impossíveis de serem a verdade dos factos”. 40.º No desenrolar da denúncia dá conta que o Sr. Inspector, “usou” o estatuto de uma “polícia criminal” para “falsamente incriminar” o denunciante “ao arrepio de qualquer princípio legal e constitucional”. 41.º E que sendo o Sr. Inspector “um agente da PJ, supostamente altamente qualificado”, tem de ser “severamente censurada” a sua actuação, pois, que os resultados apresentados nem “aos olhos de um leigo” seriam aceites. 42.º Todos os factos, actos e postura imputados pelo arguido ao Sr. Inspector da P.J. BB são inverídicos porque sem correspondência com a realidade. 43.º Estava ciente que a queixa-crime que elaborou contra o Sr. Inspector BB era idónea a desencadear a instauração de um processo crime, como, de facto, ocorreu através do presente inquérito. 44.º Ao actuar da forma supra descrita, o arguido estava ciente da falsidade da verificação dos factos subsumíveis à verificação dos crimes de prevaricação e de abuso de poder p. e p. pelos Artºs 369º, nºs 1 e 2 e 382º do Código Penal, respectivamente, e consequente imputação ao atrás identificado, tendo pretendido que contra este fosse instaurado procedimento criminal, não desconhecendo que o meio escolhido era idóneo à concretização desse propósito. Mais: 45.º Ao contrário do inserto pelo arguido na queixa-crime, o Sr. Inspector da P.J. exerceu as suas funções de forma absolutamente honesta e séria. 46.º Ao referir-se ao Sr. Inspector da P.J., imputando-lhe factos, comportamentos e formulando juízos de valor que encerravam uma carga ofensiva para a honra e consideração quer pessoais quer profissionais daquele, atingiu-o no seu bom nome, credibilidade, dignidade, prestígio, confiança e honorabilidade. 47.º O arguido estava ciente que as afirmações e juízos de valor que fez constar da queixa-crime não tinham qualquer correspondência com a verdade; contudo, não se absteve de as produzir nos moldes constantes desse documento ciente de que assim afrontava a honra e a consideração profissionais e pessoais do ofendido, propósito que concretizou. 48.º Agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Da acusação particular: 49.º Resultou ainda provado que o arguido escreveu na queixa crime que apresentou contra o Ofendido que: ".. mais grave foi a incompetente e dolosa acção do denunciado'; ".. de má fé, dolosa (...) a forma como foi feita a investigação, e irreal, falsa, matreira..."; ".. a atuação do denunciado foi errónea, maliciosa, e c/e completa má fé e dolosa"; ".. o denunciado usou de um esquema acusatório baseado em suposições, fraudulento, sem lógica, sem verdade, e usando o estatuto de uma polícia criminal para falsamente incriminar o aqui denunciante, ao arrepio de qualquer princípio legal e constitucional' “.. tais resultados apresentados, não podem ser considerados de mera, Incompetência, mas tem obviamente de ser considerados de má fé, com intenção de prejudicar, e resultantes de atuação dolosa e criminosa" “será de questionar a motivação do denunciado. (...) O porquê de querer prejudicar o denunciante." "o denunciado é subalterno à entidade que o tutela, tem interesse pessoal em apresentar resultados, provas, sabe-se la a que custo." 50.º Não obstante, os atos imputados ao Ofendido não encontram qualquer correspondência com a realidade, como bem sabia o Arguido, que alegou ainda que o Ofendido usou o estatuto de uma "polícia criminal” para “falsamente incriminar o denunciante/Arguido" ao arrepio de qualquer princípio legal e constitucional." 51.º O Arguido quis desencadear a instauração de um processo-crime contra o aqui Ofendido, bem ciente que estava da falsidade da verificação dos factos subsumíveis a verificação dos crimes de prevaricação e de abuso de poder, pretendendo que fosse instaurado procedimento criminal pondo em causa o bom nome profissional do Ofendido. 52.° O Ofendido, contrariamente ao referido pelo Arguido, exerceu as suas funções de forma honesta e séria, 53.° Pelo que, imputando-lhe factos e comportamentos que consubstanciavam uma carga pejorativa ao bom nome do Ofendido, o Arguido atingiu-o no seu bom nome, credibilidade, dignidade e honra. 54.° O Arguido estava ciente que as acusações que fez constar na sua queixa-crime não tinham qualquer correspondência com a realidade, não se abstendo, ainda assim, de as produzir nos moldes em que o fez, bem ciente de que ofendia a honra e a dignidade profissional do Ofendido. 55.º O Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, Do pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido BB: 56.° O Ofendido é um profissional competente, trabalhador e zeloso, gozando de boa reputação junto dos seus colegas e superiores hierárquicos. 57.° É pessoa de bem e educada, sendo estimado por todos aqueles que consigo privam. 58.º Com os factos cometidos pelo arguido, acima descritos, o Demandante sentiu-se incomodado e perturbado, ficando, sentindo um sentimento de revolta e vergonha. 59.º Alias, o Ofendido quando tomou conhecimento havia sido apresentada uma queixa-crime contra si, esteve vários dias sem conseguir dormir, sem conseguir conceber qual o motivo de ter sido tão fortemente ofendido no trabalho que havia desenvolvido no âmbito do inquérito em que o denunciante era arguido. 60.º Mais sentiu que a sua honra, carácter e o trabalho, que tão zelosamente desenvolve há tantos anos enquanto investigador, tinham sido colocados em causa, de forma vexatória, caluniosa, visando denegrir a sua dignidade enquanto investigador, mas, sobretudo, a sua índole. 61.º O conhecimento da queixa-crime apresentada contra o Ofendido, coincidiu com o primeiro confinamento originado pela pandemia. 62.° A forma como foi tratado pelo arguido, fez gerar no Ofendido sentimentos de raiva e mal-estar, que abalou o seu seio familiar, já por si bastante desafiante pelo contexto pandémico, tendo de conciliar o teletrabalho, com o acompanhamento dos dois filhos, com 10 e 7 anos, que estavam a ter aulas a distância, tudo isto debaixo de um forte sentimento de angústia. 63.º Detinha a seu cargo investigações urgentes, com diligências inadiáveis, tendo consciência de que entrou numa espiral descendente, negativa, que o conduziu a um estado depressivo com episódios de ansiedade generalizada. 64.º Durante tal período, andava frustrado e sem qualquer vontade para manter as rotinas diárias, tendo deixado, em absoluto, de fazer desporto, e, durante alguns dias, de sequer querer alimentar-se. 65.° Preferia manter-se isolado, evitando manter a sua rotina normal, estando deprimido e indisponível para a família, sobretudo, para as solicitações contínuas e crescentes dos filhos. 66.° Tal situação veio a agudizar-se uma vez notificado para prestar depoimento no âmbito do inquérito crime que foi instaurado devido a queixa-crime contra si apresentada, voltando a ampliar todas as suas angústias e receios, retornando aos períodos de insónias. 67.° Devido a caluniosa e difamatória queixa-crime contra si apresentada, o Ofendido manteve-se em permanente estado de vigilância (e até receio e medo, ainda que plenamente seguro da conduta conforme as suas funções) sobre o que iria suceder ate ao momento do desfecho da decisão proferida em sede de inquérito, durante mais de dois anos, temendo pelo seu bom nome profissional e pela sua estabilidade emocional e familiar. 68.º Esta, portanto, aqui em causa a honra do Demandante, na perspetiva da sua autoconsiderarão e reputação, consideração dos outros, na qual se reflete a dignidade humana. 69.º Sendo certo que todos estes danos de natureza não patrimonial sofridos pelo Demandante foram causados exclusivamente pelo Demandado. 70.º Uma vez que, não fosse a conduta do Demandado, jamais, o Demandante teria sofrido esses danos, ou lesões dos seus direitos, os quais lhe provocaram, e consubstanciam, verdadeiros prejuízos. - ... – A: 71.º O arguido é solicitador e está inscrito na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, sendo portador da cédula profissional com o n.º ...22 e tem como domicílio profissional a Rua ..., ..., Porto. 72.º O arguido esteve também inscrito na Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, enquanto agente de execução. 73.º Na sequência do processo disciplinar n.º ..../2012, em 14 de Março de 2016, o arguido foi alvo da sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções pelo período de 5 anos, conforme despacho n.º 64/2016 da Direcção da Comissão de Disciplina da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, transitado em julgado. 74.º Desse despacho foi o arguido notificado no dia 30 de Março de 2016. 75.º No exercício das suas funções, o arguido colaborou com o solicitador de execução CC em alguns dos processos em que este foi nomeado solicitador ou agente de execução. 76.º Assim aconteceu no processo de execução sumária n.º ... que correu termos pelo Juízo de Execução do Porto Juiz 3 no qual é executada DD e foi nomeado agente de execução, CC. 77.º Acontece que apesar de saber estar suspenso do exercício das suas funções como agente de execução, o arguido continuou a utilizar essa qualidade profissional junto da executada DD, para a convencer a proceder a depósitos bancários na sua conta pessoal, com o intuito de se apropriar de tais quantias, tornando-as suas e usando-as em benefício próprio. 78.º Assim, o arguido ao tomar conhecimento que DD, executada no processo de execução ... que correu termos pelo Juiz 3 do Juízo de Execução do Porto Tribunal Judicial da Comarca da Porto, não tinha procedido ao pagamento da prestação acordada nesse processo e relativa ao mês de Dezembro de 2016, disse-lhe que tinha cessado a sua colaboração com o agente de execução CC e que a referência bancária que lhe tinha fornecido anteriormente tinha sido cancelada, pelo que deveria proceder aos depósitos na conta bancária cujo NIB lhe indicou, a saber ...05 – do Banco 1... e disse-lhe que fizesse os depósitos das prestações do plano de pagamento acordado naquela conta. 79.º Acreditando estar a proceder ao pagamento das prestações conforme plano acordado no referido processo de execução ... e que o arguido, na qualidade de solicitador e agente de execução as faria chegar ao processo executivo, a DD procedeu à transferência das quantias de €75,00 (setenta e cinco euros), de cada vez, para a conta indicada pelo arguido, que as recebeu na referida conta nos dias 08.02.2017, 08.03.2017, 07.04.2017, 09.05.2017, perfazendo o valor global de €300,00 (trezentos euros). 80.º Acontece que a conta bancária com o NIB ...05, do Banco 1..., sedeada no balcão de ..., no Porto, pertence ao arguido que não fez chegar tais quantias, que lhe haviam sido entregues pela DD para depósito à ordem do processo executivo, aquele processo e delas se apropriou, fazendo-as suas e usando-as em benefício próprio. 81.º O arguido agiu de livre, deliberada e consciente. 82.º Ao agir da forma descrita, invocando junto da executada DD, a qualidade de solicitador e agente de execução, o arguido sabia que não o podia fazer por aquela data, por não reunir as condições para a prática de actos próprios da profissão de agente de execução, em consequência da pena de suspensão do exercício de funções que lhe foi imposta pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, mas não obstante fê-lo. 83.º Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu com o propósito conseguido de integrar no seu património, como o fez, o montante de €300,00 (trezentos euros), que sabia ter-lhe sido entregue pela sua condição de solicitador e agente de execução, bem sabendo que se achava obrigado a entregá-lo no processo executivo ..., causando à ofendida DD o correspondente prejuízo. 84.º O arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei. Do confisco das vantagens da actividade criminosa (...): 85.º O arguido com a conduta adoptada obteve um benefício económico de €300,00 (trezentos euros), correspondente ao montante global das quantias de que se apropriou. 86.º Alcançou assim o arguido, um incremento patrimonial no valor de €300,00 (trezentos euros), que fez seu. 87.º Atendendo a que o arguido deu aos referidos montantes destino não concretamente apurado, não foi possível garantir a sua apropriação em espécie. Da contestação do processo ... – A: 88.º O Arguido exerceu funções de Agente de Execução desde 2009 até Novembro de 2015 e, desde tal data, é, apenas e só, Solicitador portador da Céd. Prof. nº. ...22 e domicílio profissional na Rua ..., ..., PORTO. 89.º Em 18/07/2014, o EE formalizou a aquisição do capital social da Sociedade comercial A..., Lda., sem que o Arguido titulasse qualquer quota nominal ou fosse outorgante do contrato de cessão de quotas. 90.º Assim, em 06/08/2014, o Arguido requereu o registo dessas cessões: i. Da quota de € 150.000,00, transmitida por JJ a favor da mãe do EE; e ii. Da quota de € 150.000,00, transmitida por KK a favor do EE. 92.º Arguido e EE combinaram daquele modo a distribuição do capital social da A..., Lda. porque era do interesse de ambos que o capital social da sociedade comercial não corresse qualquer risco de vir a ser adquirido por terceiros. 93.º Arguido e EE tinham absoluta confiança mútua nos destinos da sua sociedade (A..., Lda.) em nome de uma amizade fraternal e, assim: i. O Arguido ficou responsável pela gestão corrente da A..., Lda, pelo pagamento de salários dos trabalhadores, pela gestão e recuperação de créditos, cobranças e avaliações de créditos, etc.; e ii. O EE, oficialmente, pela gestão da A..., Lda. na relação institucional com a banca, administração tributária, contabilidade, etc. 94.º Assim: a) Os processos executivos eram intentados pelos mandatários (a título de exemplo: a B...-Advogados, Sociedade de Advogados e Dra. LL) que indicavam nos requerimentos executivos o número de identificação bancária (NIB) da conta bancária pessoal do Arguido para liquidação das quantias exequendas; b) O Agente de Execução, Dr. CC, recuperava as quantias exequendas e transferia-as para a conta bancária identificada nos requerimentos executivos, isto é, para a conta bancária do Arguido; c) Com os montantes transferidos para a conta bancária do Arguido relativos aos créditos recuperados, este liquidava todas as despesas correntes da A..., Lda. (salários dos trabalhadores, avenças dos mandatários, do agente de execução CC e da contabilidade, taxas de justiça e bens e serviços contratados); d) Os valores remanescentes líquidos, isto é, os lucros, eram divididos entre a A..., Lda. e o Arguido. 95.º Quando os devedores/executados realizavam acordos de pagamento com a A..., Lda., o Arguido comunicava ao EE e ao Agente de Execução Dr. CC a liquidação daquelas quantias para a sua conta bancária. 96.º Era através da conta bancária pessoal do Arguido que a A..., Lda. recebia dividendos e realizava pagamentos, inclusive, os resultantes das cobranças realizadas pelo Agente de Execução, Dr. CC, identificação da conta bancária do Arguido que era indicado pelos mandatários da A..., Lda. nos seus requerimentos executivos e demais documentos; 97.º Em 28/08/2015, sem que o Autor soubesse, EE cedeu a quota que titulava de € 150.000,00 ao seu filho menor, tendo procedido ao seu pedido de registo a Dra. MM, que era sócia da B... – Sociedade de Advogados, avençada da A..., Lda.. 98.º EE decidiu apresentar a A..., Lda. a Processo Especial de Revitalização (Processo nº. ...). 99.º A Dra. MM – em representação da B... – Sociedade de Advogados – só interveio nos processos da A..., Lda., em resultado da recomendação do irmão do EE, FF ao Arguido. 100.º Em finais de 2016, quando o Arguido manifestou o seu desejo ao EE de lhe ser reconhecida a titularidade de metade do capital social da A..., Lda., pedido que este se negou a satisfazer, visto que, no seu entender, “não era oportuna tal mudança no pacto social da A..., Lda.” deram-se início aos desconfortos, desentendimentos e desconfianças naquilo que era uma amizade, sociedade e parceria sem mácula, até então. 101.º A acritude culminou com o EE, em finais de 2016/início de 2017, a proceder à mudança de instalações da A..., Lda. para morada desconhecida do Arguido, sendo que até aí a A..., Lda. funcionava no escritório do Arguido, sito na Rua ..., ..., Porto. 102.º No mesmo momento, o EE deu indicações aos mandatários da A..., Lda., ao Dr. NN e à B... – Sociedade de Advogados, representada pela Dra. MM, para que os processos que o Arguido tinha à sua responsabilidade deixassem de o estar, atenta a sua falta de poderes do Arguido para a representar, segundo a certidão permanente da A..., Lda.. 103.º Malograda a resolução do diferendo entre Arguido e EE a propósito da sociedade no capital social da A..., Lda., o Arguido interpelou diversas vezes o EE para a regularização do contrato de sociedade e registo da sua participação social na A..., Lda., porém, sem sucesso, de modo que o Arguido recorreu aos Tribunais para reconhecimento da titularidade de 50% do capital social da A..., Lda., acção que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1 sob o Processo nº. .... 104.º O processo executivo nº. ... que corre termos no Juiz 3 do Juízo de Execução do Porto (Execução Sumária) teve início em 26/08/2014 no qual o mandatário Dr. OO indicou o Sr. Dr. Agente de Execução CC. 105.º Por requerimento de 18/07/2017, a Exequente, na pessoa do seu representante legal, EE, indicou o NIB (número de identificação bancária) para onde deveriam ser feitas as transferências bancárias relativamente ao cumprimento da obrigação exequenda. 106.º Nessa data, EE e Arguido já estavam desavindos em relação à titularidade do capital social da A..., Lda.. 107.º O Arguido acordou com a Executada DD, o pagamento voluntário da quantia exequenda a prestações, na qualidade de “sócio” e gerente de facto da A..., Lda., porém, à data, já estava desavindo com o EE e desvinculado daquela sociedade. Das condições sócio económicas do arguido. 108.º Do Relatório Social resultou provado que: Integrado no seu quadro familiar de origem, constituído pelos progenitores e uma irmã mais nova e radicado em contexto urbano da cidade do Porto, AA usufruiu de enquadramento sociofamiliar estruturado, com uma dinâmica ajustada e normativa e condições económicas favoráveis, sendo os rendimentos provenientes da atividade empresarial desenvolvida pelos progenitores, no setor do comércio têxtil. No sistema de ensino, AA registou uma progressão regular, com níveis adequados de desempenho, tendo completado o 12º ano de escolaridade. Acedeu a estabelecimento de ensino superior privado, mais concretamente ao curso de Gestão de Empresas, a que não deu continuidade, optando, em contrapartida, pela formação em Solicitadoria, que concluiu aos 24 anos (em 1990), no Instituto Superior ... (...). Manteve depois o exercício de funções de solicitador, em conformidade com a formação adquirida. A partir de 2006, com 40 anos, AA habilitou-se também para o exercício de funções de Agente de Execução e ampliou a sua atividade profissional, com abertura de diversos escritórios em diferentes localidades. Participou ainda, entre 2014 e 2017, na constituição e funcionamento da empresa A..., Lda, sedeada no Porto e da qual se desvinculou devido a desentendimentos com o sócio. Considera que o exercício profissional desenvolvido nestas circunstâncias proporcionou uma situação económica confortável, superior aos padrões médios. Ainda no plano laboral, AA foi alvo de procedimento disciplinar, que determinou a suspensão do exercício das funções de Agente de Execução, por um período de cinco anos – Despacho nº 64/2016, com efeito desde 14-03-2016. Acresce ainda a condenação na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, e com pena acessória de proibição do exercício de funções de Agente de Execução, durante 3 anos de 2 meses – Proc. nº ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 1, com trânsito em julgado em 19- 10-2020. No período relativo aos factos que estão na origem dos presentes autos, AA residia em apartamento próprio, de tipologia 2, situado em ..., e refere exercício laboral por conta própria, no setor do comércio imobiliário. Na sequência de relacionamento afetivo que persiste há cerca de três anos, AA tem registado temporadas prolongadas em ..., ..., junto da namorada, em morada que prefere não divulgar. Refere a colaboração regular com a namorada, na gestão de investimentos imobiliários, em concreto no .... Para além dos empreendimentos no setor imobiliário, a namorada é também empresária no setor da indústria de calçado. Dedicava os tempos livres à prática desportiva regular, mais concretamente ao ténis, que iniciou durante a infância, sendo também preponderantes os momentos de convívio social e familiar, mantendo um relacionamento próximo e contactos frequentes com a sua família de origem, nomeadamente progenitores, irmã e sobrinhos. AA reside na freguesia ..., ..., desde 13-junho-2023, cumprindo desde então a pena de um ano e três meses de prisão, em regime de permanência na habitação, com vigilância eletrónica, à ordem do processo nº ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 4, no qual foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica. Está desde então confinado à habitação, de onde só se pode ausentar para assuntos de saúde ou diligências judiciais, mediante autorização prévia do tribunal competente. Até ao momento, o seu comportamento tem sido globalmente adequado às exigências da execução da pena, não havendo registo de situações de incumprimento. Reside sozinho, em moradia de construção antiga, que pertence aos progenitores. O espaço habitacional, de tipologia 4, distribui-se por dois pisos, dispondo de condições de condições de conforto e de jardim exterior situado nas traseiras, para momentos de descontração e laser. Relativamente à subsistência pessoal, AA refere autonomia económica e rendimentos próprios de investimentos concretizados ao longo do seu percurso, bem como da atividade que mantém no setor do comércio imobiliário e que refere como episódica e residual. Na área de residência atual a imagem social do arguido é favorável e associada à sua família de origem, não sendo mencionados conflitos ou sentimentos de animosidade na sua inserção comunitária. Com intervenção da DGRSP desde abril-2015, AA regista diversos contactos anteriores com o sistema de administração da justiça penal, e cumpre medidas de caráter probatório, em curso nesta equipa Porto Penal 5 – Extensão da ..., a saber: - por decisão transitada em julgado em 29-09-2022, no processo ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto - Juiz 10, AA foi condenado, pela prática de crimes de burla simples, procuradoria ilícita, peculato, violência doméstica e usurpação de funções, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e subordinada ao cumprimento de regime de prova, com termo previsto para 29-09-2027. - por decisão transitada em julgado em 25-01-2023, no processo ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal do Porto -o Juiz 13, foi condenado, pela prática de um crime de falsificação de documento e um crime de usurpação de funções, na pena única de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante o acompanhamento em regime de prova e com termo previsto para 25-11-2024. - por decisão transitada em julgado em 31-01-2023, no processo ..., do Juiz 2, de Competência Genérica do Entroncamento, foi condenado, pela prática de um crime de falsificação de documento, um crime de burla e um crime de usurpação de funções, na pena única de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, mediante acompanhamento em regime de prova e com termo previsto para 31-03- 2025. AA não identifica alterações significativas, no seu quotidiano e condições de inserção sociofamiliar, decorrentes da situação jurídico-penal, aguardando um desfecho favorável nos presente autos. Continua a usufruir da retaguarda, solidariedade e confiança dos familiares e da sua rede de relações sociais. Na análise da sua situação jurídico-penal, AA continua a apresentar diminuto questionamento pessoal e a manifestar sentimentos de injustiça, considerando-se vítima. Dos antecedentes criminais do arguido. 109.º O arguido já sofreu as seguintes condenações: - por sentença datada de 18/11/2004, transitada em julgado a 14/12/2004, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 10/09/1999, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €3, no montante global de €360, pena já extinta pelo pagamento; - por sentença datada de 20/07/2007, transitada em julgado a 04/09/2007, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 26/05/2004, de um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de injúria, na pena única de 185 dias de multa, à taxa diária de €20, no montante global de €3.300, pena já extinta pelo pagamento; - por sentença datada de 02/05/2012, transitada em julgado a 08/10/2012, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 03/11/2009, de um crime de injúria, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de €10, no montante global de €500, pena já extinta pelo pagamento; - por sentença datada de 12/12/2013, transitada em julgado a 24/01/2014, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 26/04/2012, de um crime de desobediência, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de €15, no montante global de €1.200, pena já extinta pelo pagamento; - por acórdão datado de 02/03/2016, transitado em julgado a 17/10/2016, proferido no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, nos anos de 2011 e 2012, de um crime de ameaça agravada, um crime de difamação, um crime de injúria agravada, 5 crimes de difamação agravada, 3 crimes de injúria e um crime de ameaça, na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, tendo sido posteriormente prorrogado o período da suspensão e mostrando-se já extinta tal pena; - por acórdão datado de 01/02/2017, transitado em julgado a 03/03/2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 6158/13.1TDPRT, foi o arguido condenado pela prática, em 24/04/2013, de um crime de peculato de uso, na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de €20, no montante global de €600, pena convertida em prisão subsidiária, cuja execução se suspendeu, mostrando-se já extinta; - por sentença datada de 10/12/2020, transitada em julgado a 31/01/2023, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 04/2017, de um crime de falsificação de documento, um crime de usurpação de funções e um crime de burla simples, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; - por sentença datada de 22/11/2019, transitada em julgado a 28/05/2020, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 07/11/2016, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regras de conduta; - por acórdão datado de 17/12/2019, transitado em julgado a 19/10/2020, proferido no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 2010, de um crime de peculato, na pena de 3 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a pena acessória de proibição do exercício de funções por igual tempo; - por sentença datada de 18/03/2021, transitada em julgado a 26/04/2021, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 06/11/2018, de dois crimes de ameaça, na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de €10, no montante global de €1.200, pena já extinta pelo pagamento; - por sentença datada de 30/09/2022, transitada em julgado a 13/03/2024, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 05/12/2017, de um crime de usurpação de funções e um crime de falsificação de documentos, na pena única de 12 meses de prisão, suspensa por 2 anos, condicionada ao pagamento de € 646,50; - por sentença datada de 07/11/2022, transitada em julgado a 03/05/2023, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 28/02/2019, de um crime de violência doméstica, na pena de 1 ano de prisão em regime de permanência na habitação com VE e nas penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e uso e porte de armas; - por sentença datada de 23/01/2023, transitada em julgado a 28/09/2023, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 30/10/2018, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 2 anos com Regime de Prova; - por acórdão datado de 13/12/2022, transitado em julgado a 25/01/2023, proferido no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 2018, de um crime de falsificação de documento e de um crime de usurpação de funções, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; - por sentença datada de 25/11/2020, transitada em julgado a 11/06/2021, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 23/10/2017, de um crime de usurpação de funções, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 12 meses, com sujeição a deveres; - por acórdão datado de 12/05/2021, transitado em julgado a 11/10/2021, proferido no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 01/2011, de um crime de peculato de uso, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a deveres; - por sentença datada de 17/06/2021, transitada em julgado a 05/01/2022, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 06/04/2018, de um crime de procuradoria ilícita e um crime de burla simples, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; - por acórdão cumulatório datado de 01/04/2022, transitado em julgado a 29/09/2022, proferido no âmbito do Proc. n.º ... (cúmulo das penas dos Procs. n.ºs ..., ..., ..., ..., ...), na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória de proibição do exercício de funções por 3 anos e 2 meses; a pena acessória foi julgada extinta por despacho de 18/01/2024; - por sentença datada de 11/07/2023, transitada em julgado a 19/02/2024, proferida no âmbito do Proc. n.º ..., foi o arguido condenado pela prática, em 2016, de um crime de usurpação de funções, na pena de 6 meses de prisão suspensa por um ano.
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B) FACTOS NÃO PROVADOS Resultaram como não provados os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa, tendo sido depurados os factos repetidos, os conclusivos e os de Direito: Apesar de constituírem factos instrumentais e irrelevantes para a boa decisão da causa, jugam-se como não provados os seguintes factos da contestação: A) Entre outros negócios, o identificado em 97.º dos factos provados, teve, única e exclusivamente, o fito de ocultar o património do EE dos processos judiciais em curso em que figura na qualidade de arguido, designadamente, no Processo nº. ..., tais como outras “negociatas”. A saber: i. A compra pela mãe do EE da participação social da € 7.500,00 de KK na 2ª Ré, em 02/06/2015; ii. A compra pela mãe do EE da participação social da € 7.500,00 de JJ na 2ª Ré, em 03/06/2015; iii. A compra pela mãe do EE da participação social de € 35.000,00 (montante que esta não tem nem tinha) da A..., Lda. na 2ª Ré, em 21/07/2015; iv. A compra pelo filho do EE da participação social de € 150.000,00 do EE na A..., Lda., em 28/08/2015; Tudo negócios nulos, por simulados. B) No processo de revitalização tenha sido admitido pela Dr. MM um falso crédito de € 300.000,00 sobre a A..., Lda. sem que esta alguma vez fosse contratada da A..., Lda., numa clara fraude, inultrapassável e inaceitável pelo Arguido, a qual desmitificou a causa da resistência do EE em regularizar a titularidade do capital social do Arguido na A..., Lda.. Tratava- se, assim, de um plano ilícito com vista a satisfação de interesses ilegais, atentos os activos da A..., Lda., mais do que aptos e suficientes para conduzir adiante os destinos da sociedade. C) EE, ao admitir o falso crédito daquela causídica, abriu a porta do capital social da A..., Lda. àquela Dra. MM através da eventual transformação do seu crédito em 50% do capital social da A..., Lda., facto com que o Arguido não se conforma ao se ver substituído pela Dra. MM na titularidade daqueles 50% do capital social da A..., Lda.. D) A Dra. MM nunca foi advogada mandatária directa da A..., Lda., era e é sócia da B... – Sociedade de Advogados, com quem a A..., Lda. mantinha uma avença e um “success fee” no fim de cada processo, juntamente com outros mandatários, pelo que nunca poderia deter qualquer crédito sobre a A..., Lda.. E) Aquelas cessões de quotas que o Arguido apresentou a registo, tal como as cessões de quotas que a Dra. MM apresentou a registo em 06/08/2014 e em 28/08/2015, respectivamente, são negócios simulados e, por conseguinte, nulos. F) Ora, há muito tempo que EE tem vindo a colocar todo o seu património em nome da sua mãe, a qual não dispõe de meios financeiros para tais movimentos financeiros e de investimento, visto ser pessoa que vive dos seus parcos meios resultantes da sua pensão de reforma. G) As transmissões do capital social da A..., Lda. à mãe e filho de EE prossegue o plano deste de ocultação de património, com o intuito de negar a existência da participação social do Arguido na A..., Lda. e ainda, com o fito de enganar terceiros, através de falsidade ideológica ou intelectual do EE, que tem a correr contra si o processo judicial criminal nº. ... no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, com grande probabilidade de vir a ser condenado pelo crime de que está acusado. H) Tanto que, face ao exposto, facilmente se conclui que que a mãe de EE é, somente, uma “testa de ferro” do EE, cujo plano visa evitar que o seu património seja arrestado, penhorado ou apreendido no âmbito de diversos processos judiciais em que está envolvido, nomeadamente, naquele em que é Arguido por indícios da prática de crimes relacionados com a venda de ouro, denominado “Operação ...”, em referência ao Processo nº. ....
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C) MOTIVAÇÃO O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento, valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente: - 3491/20.0T9PRT: O arguido quis prestar declarações, tendo admitido os factos cometidos na pessoa do ofendido BB e que possa ter exagerado, mas tentou-se desculpar, revelando que não compreendeu integralmente que a sua conduta foi censurável, não tendo, por isso, revelado arrependimento. Assim sendo, a prova dos factos da acusação assentou na prova seguinte prova documental, designadamente nos documentos de fls. 15 a 252; no manual de instruções do GRA de fls. 539 a 604, que contempla os procedimentos que os Inspectores devem adoptar na elaboração da investigação que lhes compete e que o ofendido e as restantes testemunhas de acusação asseveram ter sido cumprido; no relatório final do GRA que deu origem à reacção do arguido contra o ofendido, que se encontra a fls. 605 a 604; na certidão do acórdão do processo ... de fls. 274 a 309, bem como no acórdão da relação que sobre aquele recaiu em recurso, de fls. 679 a 700; que deu razão ao parecer do GRA, ainda que por um valor muito menor; bem como o acórdão de fls. 483 a 512, que declarou uma perda no valor de € 4.604,33 + € 88.161,49. Concatenando estes documentos, com as declarações do arguido, o depoimento do assistente BB e as testemunhas GG, Inspectora da PJ e Chefe do assistente, que confirmou que este cumpriu todos os procedimentos que orientam os pareceres que elaboram e atestou as consequências que os actos cometidos pelo arguido tiveram sobre o ofendido, bem como asseverou que o ofendido é um profissional muito responsável, bom colega, conhecimentos que detém porque trabalham diariamente juntos e supervisiona o trabalho do ofendido. Foi igualmente atendido o depoimento do Inspector da PJ, colega de trabalho do ofendido, HH, explicou que efectuam, por delegação do Ministério Público a execução dos cálculos e a vantagem congruente e que o fazem habitualmente sem conhecer os visados, pelo que confirmou o que referiu o ofendido, no sentido de que não este não conhecia o arguido e que nada tinha contra o mesmo. Atestou e descreveu os efeitos que a queixa apresentada teve sobre o ofendido; explicou os procedimentos que seguem nestes pareceres e que o ofendido é um trabalhador muito exigente, reconhecendo a qualidade do seu trabalho. Os depoimentos prestados pelo assistente e pelas testemunhas foram sérios, isentos, objectivos e credíveis, sendo certo que nenhuma das testemunhas conhecia o arguido. Desta forma foi possível confirmar integralmente os factos vertidos na acusação do processo principal, sem que qualquer dúvida se suscitasse quanto ao modo como foram cometidos, bem como quanto à sua autoria, donde a prova integral da acusação. Os factos do pedido de indemnização civil resultam das declarações do demandante e da confirmação congruente dos factos pelas testemunhas GG e HH, sendo certo que os danos resultantes dos factos cometidos pelo arguido são coerentes com as normas da experiência comum e do normal acontecer. - ... – A: Quanto aos factos vertidos na acusação acima identificada, o arguido prestou declarações orientadas no sentido de que efectivamente fez um acordo com a ofendida II para pagamento da quantia exequenda, mas na qualidade de gerente de facto da A..., Lda., sociedade que adquiriu o crédito da executada DD, negando que tivesse usado o título de agente de acusação. Ora, não foi isso que resultou do depoimento da ofendida DD, porquanto a mesma asseverou que fez um acordo com o arguido para pagamento a prestações da quantia em dívida porque aquele lhe disse que se tinha desvinculado do agente de execução CC (o agente de execução formalmente nomeado no processo da ofendida) e que deveria desconsiderar o NIB anterior e passar a fazer as transferências bancárias para o número de conta do arguido, que não era o número de conta identificado no processo executivo. Ora, desde logo, resultou das declarações das testemunhas EE e CC que à data dos factos o arguido já não era gerente da sociedade A..., Lda. desde finais de 2016/inícios de 2017 e, por conseguinte, concluímos que nunca o arguido poderia ter actuado em representação daquela porque sabia que já não era gerente de facto da sociedade porque o acordo é posterior. Por outro lado, o arguido, ao admitir que fez o acordo com a ofendida DD, admitiu indirectamente que o fez sem ser em representação daquela sociedade. Consequentemente, ao realizar um acordo e receber o pagamento à margem daquela sociedade, o arguido actuou tacitamente na qualidade de agente de execução. Na verdade, o recebimento de dinheiro no contexto de uma execução constitui um acto próprio de um agente de execução, facto que era do conhecimento do arguido, pessoa experiente e que era agente de execução suspenso, à data dos factos, no âmbito de procedimento disciplinar, conforme resulta de toda a documentação junta aos autos. Especificando tal documentação, a mais relevante e determinante para a prova dos factos, foi a conjugação do depoimento de DD e confirmação por esta testemunha dos factos contidos no email de fls. 88 e 89, que aquela escreveu para a presentação da queixa à Ordem dos Agentes de Execução. A sustentar a tese da ofendida DD, atendeu-se ainda aos documentos relativos a outros processos em que o arguido agiu igualmente como Agente de execução no processo de PP a fls. 93 (que contém um carimbo do arguido que contém a menção “agente de execução” em data em que estaria igualmente suspenso) e 145 e 146 (envio de carta na qualidade de sócio da A... num envelope que descreve que tem aposto “AA Agente de Execução”), no documento de fls. 144, em que apesar de não respeitarem à execução de DD atestam o procedimento que o arguido habitualmente adoptou naquela fase em que estava interdito de exercer a profissão. A confirmar que o arguido estava suspenso, considerou-se a certidão da CAAJ, decisão final de suspensão por 5 anos datada de 14/03/2016, de fls. 52 a 85. Considerou-se como credível o depoimento da ofendida DD que atestou que o arguido lhe ligou a dizer que a sociedade com o dr CC se havia dissolvido e que tinha dividido os processos daquele, o que determina desde logo que o arguido teria substituído as funções daquele como agente de execução. Para prova dos valores transferidos pela ofendida, o tribunal atendeu à ficha de assinaturas da conta do arguido de fls. 44 a 49 e os extractos dessa conta onde se identificam as transferências que a ofendida fez por conta do acordo de pagamento que fez com o arguido e que estão a fls. 169 a 182. Estes meios de prova foram ainda conjugados com a cópia do processo executivo da ofendida constante de fls. ..., do Juízo de Execução do Porto (J3), onde figura como exequente a A..., Lda e executada a ofendida DD. A comprovar que o arguido obtinha pagamentos nos processos da A..., Lda, o teor dos documentos de fls. 719 a 729 e 740, onde consta interpelação para pagamento enviada pelo arguido. As circunstâncias relacionadas com a constituição da A..., Lda e com a intervenção do arguido no seio dessa sociedade resultaram do depoimento das testemunhas EE e FF, cujo teor foi de molde a confirmar os factos provados em sede de contestação, designadamente, de cujo conteúdo resultou demonstrado que à data da negociação do arguido com a ofendida, este já não geria os destinos daquela sociedade da qual já estava desvinculado por determinação dos sócios formais daquela sociedade. Os factos da contestação que não se provaram, para além de constituírem factos instrumentais relativos à acusação, sobre os mesmos não foi produzida melhor prova. A prova assim produzida e avalizada à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer, foi de molde a confirmar que os factos ocorreram conforme consta da acusação e que o arguido foi o seu autor, designadamente que este actuou de modo consciente e com vontade esclarecida pois que era do seu conhecimento, à data dos factos, que já não mandava nos destinos da sociedade (da qual era apenas gerente de facto), nem podia exercer a profissão de solicitador de execução por estar suspenso da actividade (vd, ainda fls. 1001 a 1004). O padrão de comportamento a que nos referimos, quando associado às demais acções do arguido, comprovadas no âmbito deste processo, relacionadas com as regras da experiência comum, ditadas neste caso pelo estilo de vida do arguido, pela actividade que exerceu noutros processos executivos, tudo concatenado, levou-nos a concluir pela prova cabal dos factos inscritos na acusação. Não existem, assim, quaisquer factos não provados que assumam qualquer relevo para a boa decisão da causa. Para o apuramento das condições sócio económicas e familiares do arguido o tribunal ateve-se às suas próprias declarações que foram conciliadas com o relatório social elaborado pela DGRSP junto aos autos. Os antecedentes criminais do arguido resultam do teor do certificado de registo criminal junto aos autos.
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(…)
III.2. III.2.1
Da(s) nulidade(s) do acórdão
Procurando apreciar os fundamentos do recurso, pela ordem da sua precedência lógica, estabelecida em função dos reflexos da sua eventual procedência no decidido, neste segmento do objeto da pretensão afirma o recorrente, essencialmente, que, quanto aos crimes de denúncia caluniosa e difamação, o trecho da fundamentação da decisão de facto é insuficiente.
Concretamente, refere o recorrente que “(…) basta uma leitura, ainda que desatenta ao Douto Acórdão Recorrido, para verificarmos que o mesmo padece de total falta de fundamentação a respeito da verificação dos crimes de denúncia caluniosa e difamação. O Douto Acórdão Recorrido, olvidou de todo, fundamentar qual o raciocínio que esteve na base do juízo do julgador, mormente, no que tange à autoria dos crimes praticados pelo Recorrente, no que respeita ao raciocínio para aferir a intenção do arguido, a consciência da falsidade, a consciência da ilicitude e vontade de ferir a honra e consideração do Assistente. Ainda que tal, tivesse resultado provado, que a nosso ver não resultou, tal não prova de modo algum que o Arguido foi autor dos crimes em questão. Face ao supra exposto, e sem necessidade de mais considerandos, afigura-se-nos que a Decisão Recorrida padece da nulidade de falta de fundamentação.”.
Apreciando, sendo que as nulidades da sentença previstas no art.º 379.º, n.º 1 do C.P.P., são de conhecimento oficioso.
Dispõe o art.º 379.º do C.P.P., na sua al. a), que [É] nula a sentença: (a) que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374º (…).
Por sua vez e visto o preceito destinatário da remissão operada, sob a epígrafe Requisitos da sentença, verifica-se que a fundamentação de facto daquela peça se divide em duas componentes: (i) a enumeração dos factos provados e não provados, e a (ii) exposição concisa dos motivos que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Decompondo o inciso legal, a decisão deve expor o porquê da opção tomada nesta matéria, dando a conhecer as razões pelas quais foram valoradas ou não valoradas as provas, a forma como foram interpretadas, explicando os motivos que levaram o julgador a considerar uns meios de prova credíveis e outros nem tanto, numa exposição lógica e fundamentada dos critérios utilizados na apreciação que efetuou.
Porquê?
Dispõe o art.º 205.º da C.R.P. que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei cumprindo-se, por esta via e em regra, duas funções [cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 55/85, disponível em www. tribunalconstitucional.pt]: - Uma, de ordem endoprocessual, que visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso, designadamente no questionamento do raciocínio expresso pelo julgador e facilitando, ao Tribunal de recurso, a construção de um juízo concordante ou divergente.
A outra função, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma, transportando para o domínio do processo penal questões de ética relacionadas com a função estadual punitiva, com natural efeito na concordância prática a operar quanto aos interesses em confronto, já que a liberdade pessoal é um valor supremo que apenas poderá ser comprimido como consequência da prática de um facto com relevância criminal, cujo substrato demonstrativo se sedimentou, mediante um procedimento contraditório e garantístico, em resultado do qual se erigiu a verdade processual, desejavelmente próxima da verdade ontológica.
Nesta sequência, a descoberta da verdade não é um valor absoluto porquanto aquela verdade terá que ser objetivável e motivada, obtida a coberto de uma noção de fair trail compatível com a preservação da integridade constitucional de um Estado que se funda sob o axioma ético da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana.
O dever de fundamentação é, assim, uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático e um instrumento, pela sua probidade, de legitimação da decisão judicial e potenciador de um efetivo direito ao recurso.
Em poucas palavras e trabalhando sobre a ideia expressa por André Teixeira dos Santos [A imparcialidade do juiz de julgamento, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2021-I] o juiz, depois de convencido, terá, por via da fundamentação, que convencer e se estiver em causa – como no caso sucede – uma sentença condenatória, não podem sobejar dúvidas sobre as razões de facto e de direito pelas quais se condena e em que medida se condena.
Revertendo ao caso em apreço.
Em síntese apertada, refere o recorrente que o acórdão recorrido não “justifica” convenientemente a razão pela qual o Tribunal afirmou a existência de uma necessária “intencionalidade” na ação do arguido.
Nesta sede e retida a fundamentação, o que é relevante para o caso - conferindo substância ao constitucionalmente exigido dever de fundamentação e à correspetiva possibilidade de sindicância através do recurso - é que as destinatárias da obrigação de motivação, através da análise decomposta, combinada e crítica daqueles elementos enunciados, deem a conhecer aos intervenientes no processo (e à comunidade em geral) o seu processo interno de valoração e de formação da convicção, o que surge adiante através da denominação escolhida de “Motivação” e que deverá permitir, no caso ao arguido, o conhecimento da perceção das julgadoras e a razão pela qual determinados factos se provaram. Numa palavra, a forma como foi percecionada e interpretada a prova com arrimo para a realidade reconstruída.
Ora, quanto a nós, esse desiderato foi conseguido e o resultado apresentado é percetível e habilitante desse desvendar do iter interno, acomodando a efetivação do direito ao recurso.
A demonstração do cumprimento do proclamado dever de fundamentação é a circunstanciada discussão, glosa e afirmações de contundente dissídio que o recorrente dirige ao critério das julgadoras, não porque o não tenha percebido mas, tão só, porque não se conforma com esse mesmo critério e com as razões elencadas para afirmar a realidade do evento naturalístico. Só que isso, salvo o devido respeito, transporta-nos para outro plano e para outra dimensão de escrutínio – da impugnação da matéria de facto – a analisar ulteriormente infra.
A completude do dever legal de fundamentação não compele o juiz a exarar o conteúdo textual e intacto de todos os depoimentos prestados em audiência (ao jeito de assentada, quando o próprio legislador apela à concisão), estando a integralidade de tais depoimentos registada em gravação e disponível para consulta e confirmação, despistando qualquer desvirtuamento. O visto e analisado dever legal de fundamentação não impõe ao julgador a consignação, exaustiva, de todos os elementos alinhados para a formação da sua convicção, a incidir especificamente sobre cada um dos factos.
Ademais, a suficiência do dever legal de fundamentação é casuística, densificada por referência a cada processo (a à sua complexidade), dentro dos parâmetros definidos na lei, sendo a sua abastança ou míngua aferidas de acordo com a finalidade daquele dever, isto é, que o destinatário (e a comunidade) percebam a razão pela qual foram dados como provados, ou não provados, determinados factos e quais as provas que serviram de suporte a tal decisão.
A lei, com expressão no art.º 374.º, n.º 2 do C.P.P., de forma caraterizada como “tanto quanto possível completa, ainda que concisa”, exige a indicação das provas e o seu exame crítico com o fito de desvelar o processo de formação da convicção, o que, no plano concreto, foi conseguido.
Efetivamente as Mmas. Juízas consideraram os meios de prova que elencaram, alinhados no sentido preconizado na acusação, desconsiderando as declarações prestadas pelo arguido, que terá admitido os factos, mas procurando desculpabilizar-se, concluindo pela autoria e pela verificação dos factos o que, numa análise compreensiva, inclui os elementos reportados em falta, de ordem interna.
A nulidade a que se refere o art.º 379.º do C.P.P. pressupõe uma ausência de fundamentação, de análise crítica, e não uma análise deficiente ou controversa (estas suscetíveis de afetar a solidez e convencimento do decidido, mas a contestar por via da impugnação restrita ou ampla).
Se os elementos considerados no acórdão recorrido são suficientes para, com a assertividade e segurança necessárias, dar como verificados os correspondentes factos, aqui contestados, é algo que se prende com o acerto da decisão, o que analisaremos posteriormente.
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III.2.2
Invoca o recorrente, quanto ao crime de usurpação de funções, que “Existe, claramente, um erro notório na apreciação da prova”, pese embora não se identifique, como norma desconsiderada, o estatuído no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.
Apreciando.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a insuficiência determina a formação incorreta de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
No caso sub judice, salvo o devido respeito, inexiste erro notório, da forma como o mesmo é definido supra. Da própria argumentação recursória o que se depreende é que o recorrente contesta a forma e o sentido que o Tribunal a quo deu à prova produzida, que a seu ver seria conducente à não demonstração dos factos. Só que aqui, essa afirmada desconformidade, não pode ser apreciada à luz de qualquer vício decisório. Não há uma evidente desconformidade entre o decidido e uma qualquer regra de sentido comum, evidente a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida. O que perpassa da argumentação do recorrente é que, a luz da forma “correta” como a prova produzida deveria ter sido apreciada, a conclusão a extrair seria diversa, o que pode, evidentemente, afirmar, mas apenas em sede de erro de julgamento.
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III.3
Do erro de julgamento
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao e próprio do juiz a quo – sendo (…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto, ou à sua desconsideração, – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique, já que, na esteira do afirmado por Bacon, os depoimentos não se contam, pesam-se.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…)valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência, a coberto da livre apreciação consignada no art.º 127.º do C.P.P., cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação.
Neste percurso, note-se, não raras vezes louvar-se-á o julgador em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial sendo até, amiúde, o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores.
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar: - o Tribunal.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente expressa forte dissídio – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.), já analisada;
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
Neste último o caso, agora em apreciação – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada. Em síntese, no caso da impugnação ampla, esta pode visar o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida. Porém, ainda assim, não se trata, aqui, de um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e pela imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação ampla, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, (e não apenas acomodem, sugiram ou permitam outro entendimento) como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica do decidido ou a afirmação de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de novo julgamento, já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua.
Por tudo isto, impõe-se ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas, aquelas que convoca, impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido para se poder afirmar que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
Depreende-se do teor da argumentação expendida que o recorrente considera incorretamente julgados os factos 4, 46 a 48, 51e 53 a 55 (referentes aos imputados crimes de denúncia caluniosa e difamação) e 75, 77, 79, 80, 82 e 83 (reportados ao crime de usurpação de funções), todos considerados provados e que, na ótica do recorrente, deveriam transitar para os factos não provados.
No que tange ao primeiro núcleo de factos, refere o recorrente que “(…) não foi produzida prova de que a Recorrente tivesse tido querido praticar os factos conforme consta descrito na condenação. (…) Entende o ora Recorrente que nenhuma prova foi produzida de que o Arguido tivesse sido autor dos crimes de denúncia caluniosa e difamação (…) O Tribunal a quo atendeu apenas e só à constatação e transcrição da denúncia apresentada pelo arguido, conjugada com as declarações e reflexos que o assistente afirma lhe terem sido provocados. Resulta completamente desconsiderado o que o arguido apresenta como explicitação e motivação que o levou a agir como agiu. A motivação, intencionalidade, vontade apenas e só decorrem da explicação constante das declarações do arguido (…)”.
Como meios de prova impositivos de decisão diversa o arguido refere as suas próprias declarações, transcritas nos segmentos que julga relevantes e de onde resultará que “(…) explicou de forma clara - o que entendia errado no relatório do assistente; - o porquê de entender errado - o que entendia ser injusto e com sérias implicações na sua pessoa - a opinião e consciência de ter razão nas críticas que fez - a motivação que o levou a apresentar a queixa e até a mantê-la Não decorre de qualquer elemento probatório a consciência da ilicitude, a intenção de atingir a pessoa do assistente, a consciência, vontade ou sequer desconfiança de poder estar a cometer qualquer crime. Moveu o arguido apenas a injustiça e gravidade e implicações retratadas no narrado no relatório do assistente, seguro que estava da sua inocência.”.
No segundo conjunto de factos acima aludidos e que o impetrante considera incorretamente julgados, atinentes ao imputado crime de usurpação de funções, refere que: “O arguido atuou sempre: - na qualidade de “sócio” e “gerente de facto” da sociedade A..., Lda. – conforme decorre do facto provado 107. - em colaboração com o Agente de Execução CC. Decorre dos factos provados (nomeadamente 93, 94, 95, 103 e 107) que o Arguido sempre atuou na qualidade de sócio e gerente da sociedade Exequente. O arguido tinha um interesse pessoal e económico na (também considerava) sua sociedade. Diga-se, desde já, que em nenhum local se encontra vedado a um credor interpelar ou abordar um devedor, mesmo na pendência de processo executivo. Acresce que, O arguido manteve sempre autorização e nunca foi suspenso do exercício de funções como solicitador. De facto, a suspensão era apenas e exclusivamente para o exercício (em nome próprio) de agente de execução. Note-se que essa suspensão não impede o solicitador de agir enquanto auxiliar de agente de execução. De facto, os agentes de execução, no exercício de funções, podem e têm de se socorrer do serviço de auxiliares, na execução das suas tarefas. (…) o arguido não agiu enquanto agente de execução, mas como colaborador de agente de execução nomeado nos autos. (…)”.
Como elementos que implicarão, se convenientemente apreciados, decisão diversa, transcreve o recorrente trechos dos depoimentos das testemunhas DD, EE, CC e FF e bem assim, as suas próprias declarações.
Vejamos, pois.
No que concerne ao núcleo factual atinente aos imputados crimes de denúncia caluniosa e de difamação, o Tribunal considerou as declarações prestadas pelo arguido, que terá admitido os factos cometidos na pessoa do ofendido BB (aqui não se incluindo os factos atinentes ao preenchimento dos elementos subjetivos dos tipos em causa), os documentos constantes dos autos, “designadamente nos documentos de fls. 15 a 252; no manual de instruções do GRA de fls. 539 a 604, que contempla os procedimentos que os Inspectores devem adoptar na elaboração da investigação que lhes compete e que o ofendido e as restantes testemunhas de acusação asseveram ter sido cumprido; no relatório final do GRA que deu origem à reacção do arguido contra o ofendido, que se encontra a fls. 605 a 604; na certidão do acórdão do processo ... de fls. 274 a 309, bem como no acórdão da relação que sobre aquele recaiu em recurso, de fls. 679 a 700; que deu razão ao parecer do GRA, ainda que por um valor muito menor; bem como o acórdão de fls. 483 a 512, que declarou uma perda no valor de € 4.604,33 + € 88.161,49.”.
Concatenados aqueles elementos documentais com as declarações do arguido, do assistente BB e o depoimento das testemunhas GG, HH, o Tribunal considerou demonstrados os factos contestados.
No caso, entende o arguido que, ante as suas explicações e os elementos valorados pelo Tribunal, não existem elementos que permitissem demonstrar: - “não obstante estar ciente da falsidade dos factos, actos e postura que imputava” (4º), - “imputando-lhe factos, comportamentos e formulando juízos de valor que encerravam uma carga ofensiva para a honra e consideração quer pessoais quer profissionais daquele, atingiu-o no seu bom nome, credibilidade, dignidade, prestígio, confiança e honorabilidade” (46º) - “o arguido estava ciente que as afirmações e juízo de valor que fez constar… não tinham qualquer correspondência com a verdade… ciente de que assim afrontava a honra e a consideração profissionais e pessoais do ofendido, propósito que concretizou” (47º) - “agiu… sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” (48º) - “bem ciente que estava da falsidade” (51º) - “consubstanciavam uma carga pejorativa ao bom nome do Ofendido, o Arguido atingiu-o no seu bom nome, credibilidade, dignidade e honra” (53º) - “O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei” (54º)
Avaliada a argumentação recursória e os elementos de prova indicados – essencialmente as declarações do próprio recorrente – temos para nós que aquelas, certamente oferecendo uma explicação para a sua atuação, não são, no entanto, impositivas de decisão diversa, como é exigência legal para a reversão do decidido, conforme decorre do estatuído no art.º 412.º, n.º 3, al. b) do C.P.P., nem o Tribunal as considerou, nesta parte, credíveis.
Explicitando.
Conforme bem nota a Digna Procuradora-Geral Adjunta no seu Parecer, o recorrente apresentou queixa no D.I.A.P. do Porto onde, além do mais, refere: «AA, SOLICITADOR, (...) Vem apresentar QUEIXA CRIME Contra, BB, Inspetor da Polícia Judiciária, colocado no Gabinete de Recuperação de Ativos — Delegação do Norte», terminando tal exposição/participação com os dizeres: «PELO EXPOSTO, o denunciante deseja procedimento criminal contra o denunciado, pelos seguintes crimes: - Difamação punida pelo artigo 180 do Código Penal, agravada ao abrigo do artigo 184 do mesmo diploma - Denuncia Caluniosa punida pelo artigo 369 do Código Penal - Denegação de Justiça, punida pelo artigo 369 do Código Penal - Abuso de Poder, punida pelo artigo 352 do Código Penal. Pretende, a seu tempo, efectuar pedido de indemnização civil».
Do exposto resulta que o arguido, aqui recorrente, dirigiu o escrito em referência ao D.I.A.P. - e não ao Tribunal/processo onde fora produzido, pelo denunciado, o relatório contestado (como seria normal se aquele escrito materializasse uma mera manifestação de indignação ou contestação das conclusões) - e fê-lo utilizando termos técnicos e uma linguagem que, inequivocamente, permite concluir que pretendia que fosse instaurado procedimento criminal contra pessoa concreta e determinada, pelos factos que relatou, não fazendo sentido, neste segmento, afirmar-se que «A real intenção do arguido não era que o assistente fosse alvo de um procedimento criminal. Pretendia, isso sim, desacreditar o relatório elaborado, para sustentar a sua defesa». As palavras têm um valor facial e é o próprio arguido e referir desejar procedimento criminal…
Sendo os termos utilizados no documento em referência (e nos subsequentes, em que reiterou a sua intenção de pretender procedimento criminal) autoexplicativos quanto a uma efetiva intenção de que, contra o assistente, corresse um inquérito criminal (não se tratando, pois, de mera impugnação dos resultados do trabalho do assistente), apresentando denuncia contra pessoa que não conhecia e sem qualquer suporte factual consistente e objetivo, a afirmação do conhecimento da falsidade da imputação não surge de forma esdrúxula. Efetivamente, não obstante o trabalho desenvolvido pelo então denunciado (conforme resultou da prova testemunhal valorada pelo Tribunal a quo) ter seguido o Manual de Procedimentos, desenvolvido pelo GRA – Delegação do Norte, o arguido, aqui recorrente, imputa-lhe uma atuação parcial, pessoalmente interessada, com pressupostos falsos, imputando-lhe a comissão dos crimes que elenca.
Ante a não demonstração da imputada atuação criminosa do assistente e considerando os factos concretos que o arguido denunciou, os termos concretamente utilizados na denuncia e a intencionalidade assacada ao denunciado, ainda que o arguido não tenha confessado os elementos agora contestados, de ordem interna, os mesmos são extraídos da objetividade dos factos, em moldes que se nos afiguram sem mácula.
Como é bom de ver, a comprovação da vontade interna do agente dificilmente será tangível ao Tribunal por prova direta, salvo os casos de confissão. Assim, quando tal confissão não suceda – como no caso vertente – aqueles elementos são extraíveis por via indireta, lida a partir do comportamento exterior do agente, plasmado nos factos objetivos provados, por forma a perceber-se, em face dos mesmos, o modo como o agente se determinou.
Ora, pretendendo o arguido a instauração de procedimento criminal contra o assistente, imputando-lhe uma atuação suscetível de integrar a comissão de vários ilícitos criminais, sem uma fundamentação objetiva e de suporte que permitisse aferir da agora invocada boa fé, a afirmação, como provados, dos factos postos em crise, decorre legitimamente das regras da lógica e sustenta-se numa inferência correta a partir dos factos que, do ponto de vista externo, foram objetivamente praticados.
Contrapõe o arguido as suas próprias explicações que, a terem sido valoradas, implicariam conclusão diversa.
Em estimação geral, no essencial, o recorrente glosa criticamente o decidido, quanto à “qualidade” ou “suficiência” da prova produzida, numa dessintonia com a matéria de facto fixada de cariz adjetival, essencialmente centrada na inexistência de confissão ou prova direta, colocando o enfoque das questões suscitadas sob o prisma da “credibilidade”, o que é património próprio da imediação e da livre apreciação que assiste à primeira instância.
Efetivamente, mesmo que o arguido se tenha afirmado “indignado com a investigação”, que “não tenho nada contra o senhor inspector”, o certo é que apresentou uma queixa-crime contra sujeito determinado – aquele inspetor – e não se limitou a objetivar essa indignação com reporte a elementos que considerasse incorretos. Antes, adjetivou a atuação do sujeito concretamente denunciado, imputando-lhe uma atuação consciente, parcial, em benefício próprio, eivada de falsidades e com o intuito declarado de o prejudiciar, o que constitui coisa bem diversa e coloca a atuação do denunciado no plano da relevância criminal, como aliás refere e pretende.
Destarte e quanto a nós, nesta parte, retido o teor das declarações e depoimentos, a não valoração das declarações prestadas pelo arguido, pretensamente justificantes de uma atuação lisa e de boa fé, não constitui, quanto a nós e de per se, qualquer erro de julgamento.
Efetivamente, aqui estamos, tão só, no campo da convicção do Tribunal a quo, formada com o aporte exclusivo e irrepetível da imediação, declarações que, negando a intencionalidade pressuposta ou a consciência da falsidade das imputações, foram desconsideradas, por contrárias à demais prova produzida e valorada e ao teor objetivo da denuncia.
O meio de prova referido (as suas próprias declarações) não impõe, inexoravelmente, outra decisão. Este meio de prova e o que, na ótica do recorrente, dele deveria extrair-se, é apenas a manifestação da opinião do arguido, necessariamente subjetiva, mas não impositiva, como se disse e reitera, de decisão diversa.
Já no que tange à relevância penal dos factos, agora e nesta parte definitivamente fixados face à improcedência da impugnação, será tratada infra.
*
Ainda sob o enfoque do erro de julgamento, agora direcionado aos factos constitutivos do crime de usurpação de funções – pontos 75, 77, 79, 80, 82 e 83, da matéria de facto provada – entende o recorrente que a prova indicada, se devidamente valorada, conduziria à não demonstração dos sobreditos factos.
Sem razão, adianta-se.
Na lógica argumentativa do recorrente:
(i) - Decorre dos factos provados (nomeadamente 93, 94, 95, 103 e 107) que o arguido sempre atuou na qualidade de sócio e gerente da sociedade exequente, não tendo feito suas quaisquer quantias.
(ii) - O arguido nunca foi suspenso do exercício de funções como solicitador, nada o impedindo de, enquanto tal, agir como auxiliar de agente de execução, o que no caso fez;
(iii) – Do depoimento da testemunha e executada DD em lugar algum se extrai que o recorrente se tenha arrogado agente de execução;
(iv) - O arguido, como sócio e gerente da sociedade exequente, atuou no âmbito da celebração de um acordo de pagamento celebrado com a executada, aqui testemunha DD, o que é legítimo.
Apreciando.
Segundo a decisão recorrida - com a qual o recorrente mantém o dissídio acima referido no que concerne à reconstrução da verdade processual - o arguido admitiu que fez um acordo de pagamento da quantia exequenda com a ofendida II e que o fez na qualidade de gerente de facto da A..., Lda., sociedade que adquiriu o crédito exequendo.
O agente de execução designado nos autos de execução era CC, com o qual o arguido anteriormente colaborara. No entanto e ao momento relevante, resultou das declarações das testemunhas EE e CC que à data dos factos o arguido já não era gerente da sociedade A..., Lda. desde finais de 2016/inícios de 2017 e, por conseguinte, não poderia ter atuado em representação daquela e na qualidade de exequente.
Também não poderia fazê-lo na qualidade de agente de execução ou de colaborador do agente de execução nomeado porque, no primeiro caso, estava suspenso e, no segundo, já havia cessado a colaboração.
Assim, tendo o arguido indicado o seu NIB para o depósito das prestações, por parte da executada, a quem disse que havia dividido os processos outrora da responsabilidade de CC, a sua ação, junto daquela, enquadra-se nos atos próprios de agente de execução, qualidade que terá assumido noutros processos contemporâneos, conforme fls. 93 (que contém um carimbo do arguido que contém a menção “agente de execução” em data em que estaria igualmente suspenso) e 145 e 146 (envio de carta na qualidade de sócio da A... num envelope que descreve que tem aposto “AA Agente de Execução”), no documento de fls. 144, em que apesar de não respeitarem à execução de DD atestam o procedimento que o arguido habitualmente adotou naquela fase em que estava interdito de e exercer a profissão.
Destarte e perante a fundamentação constante da decisão recorrida, que segue os ditames da lógica e da experiência comum e de forma concordante com os meios de prova considerados, os elementos transcritos pelo recorrente não infirmam o juízo valorativo ali expresso, nem impõem, como é exigência legal, decisão diversa e em reversão do decidido.
*
III.4
Da violação do princípio in dubio pro reo
Alega o recorrente – para além do argumento da ausência de provas – a violação do princípio em referência (pelo menos quanto ao imputado crime de usurpação de funções).
Apreciando.
A dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do predito princípio.
Revertendo ao caso em apreço e entroncando na improcedência, já apontada, da parte atinente à impugnação da matéria de facto, também aqui e em confluência lógica, não se verifica qualquer violação do proclamado princípio.
Efetivamente e lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão - porque desprovida de objeto - para resolvê-las a favor do arguido. O que na prática se verifica é que o recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas. Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou ou para que, face ao texto da motivação, fosse razoável que tivesse sido assaltado por tais dúvidas e que, ao decidir como decidiu, as tivesse resolvido em prejuízo da posição processual do arguido.
O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe, nem se aponta que, em face da argumentação utilizada, devesse ter existido.
Destarte não se verifica qualquer violação do sobredito princípio nem ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência.
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III.5
Da atipicidade das condutas
Prossegue o recorrente afirmando que, ainda que inalterados os factos provados, quanto ao crime de denuncia caluniosa o mesmo tem como seu indispensável elemento subjetivo o dolo específico, traduzido na intenção de que seja instaurado procedimento contra o visado com base em imputações que o denunciante tinha consciência de serem falsas, o que aqui não sucede.
No mais, a manter-se a condenação, a mesma encerra uma violação clara da liberdade de expressão e do direito de denúncia, consagrados nos art.ºs 37.º e 20.º da C.R.P.. O recorrente agiu no exercício dos direitos de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva e de liberdade de expressão e opinião, constitucionalmente consagrados, os quais prevalecem sobre a tutela da honra e consideração do visado.
As expressões consignadas pelo recorrente não constituem, em si mesmas, uma ofensa, sendo inócuas do ponto de vista penal, ainda que possam incomodar ou ferir a suscetibilidade do visado, sendo apenas a manifestação de um juízo de valor sobre o trabalho realizado pelo assistente.
Vejamos, pois.
Quanto ao imputado crime de denúncia caluniosa, protege-se, por via da incriminação, a boa administração da Justiça, visando salvaguarda-la de agir, inutilmente, com base em impulsos infundados e, bem assim, reflexamente, o interesse dos denunciados contra o prejuízo resultante de imputações sem razão e maliciosas, com sujeição ao vexame e provação de ser sujeito em processo de natureza criminal [Sobre a temática do bem jurídico protegido cfr. Manuel da Costa Andrade, em anotação ao art.º 365º, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 522 a 529. Em Espanha Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal – Parte Especial, 13ª ed., Tirant lo Blanch, Valência 2001, pág. 880 e ss.].
Traduzido dogmaticamente num crime de perigo concreto temos, analisando os elementos objetivos do tipo, uma conduta, que se traduz em denunciar ou lançar suspeita – por qualquer forma de comunicação, perante autoridade ou publicamente – relativa a determinado indivíduo, identificado ou identificável, atinente à prática de factos de conteúdo essencialmente falso, ilícito e suscetível, no caso que nos retém, de motivar perseguição criminal. Na vertente subjetiva a atuação do agente deverá ser dolosa, traduzida na consciência da falsidade da imputação e na intenção de que sobre o visado se instaure procedimento.
Em contraponto ao acabado de afirmar acrescenta-se que nem todas as queixas apresentadas, que não conduzam à dedução de acusação, são denúncias caluniosas. Na verdade, a ação penal está dependente, não raras vezes, da notícia do crime trazida por simples cidadãos, que se consideram ofendidos ou por verem lesados interesses comuns/coletivos e não será pelo facto de, a final, se concluir pelo arquivamento ou pela absolvição do denunciado que haverá, a montante, uma denúncia caluniosa.
Revertendo as considerações tecidas ao caso concreto e mesmo considerando que a ação do agente deverá ser dolosa e com a prévia aquisição da consciência da falsidade da imputação (não bastando, por isso, a mera leviandade ou a representação distante dessa falsidade) temos que o arguido, nos termos inarredavelmente dados como provados, tinha consciência da falsidade da imputação e pretendia, como reação à exposição dirigida à entidade competente, a instauração de procedimento criminal contra o denunciado. Neste enfoque não fará sequer sentido convocar o abrigo do direito constitucional de acesso à Justiça. Esse direito, inequivocamente, existe, mas não quando os factos denunciados são falsos e o denunciante disso tem conhecimento.
Temos, assim, por demonstrada a comissão do crime em causa, sendo que a argumentação desenvolvida em sinal contrário pressupunha, necessariamente, uma prévia alteração da matéria de facto dada como provada, o que não logrou fazer, conforme já analisado.
*
Quanto ao crime de difamação e à afirmada irrelevância criminal.
O bem jurídico protegido no crime de difamação é, como decorre da epígrafe do capítulo VI do título I do livro II do Cód. Penal, a honra. Ultrapassadas as conceções extremadas – fácticas e normativas – que tentaram precisar o conteúdo de tal bem [para um crítica às mesmas pode ver-se, Adelmo Manna, Tutella Penalle della Personalità, Società Editrice il Mulino, 1993, pp. 71 a 74; e, por todos, F. Mantovani, Diritto Penale. Delitti contro la persona, CEDAM, 1995, pp. 258 e 259.], hoje o mesmo deverá ser precisado como uma decorrência direta da dignidade da pessoa humana (com tutela no art.º 1º da C.R.P.) e, nessa medida, um conceito normativo, mas cuja concretização não dispensa o recurso ao mundo dos factos, com o que subscrevemos uma visão mista fáctico-normativa do conceito de honra [Neste sentido M. Alonso Alamo, Protección penal del honor. Sentido actual y limites constitucionales, ADPCP, tomo 36, fasc. I, 1983, pp. 150 e 151; Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, p. 86.].
Como afirmava Schoppenhauer, a honra e consideração são, "objetivamente, a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjetivamente o nosso receio diante dessa opinião.". A honra, enquanto bem jurídico integrante da personalidade moral do indivíduo, protegida quer do ponto de vista criminal, quer civil, quer administrativo e com assento constitucional, prefigura-se como a “(...) projeção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal” [Cfr Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra 1995, pág. 301] granjeando, por essa via, um património de consideração social a preservar.
Em qualquer dos casos importa reter que para a verificação do crime de difamação, necessário se torna a verificação dos seguintes pressupostos:
- Um elemento objectivo: - concretizado na ação, perante terceiros, de imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou formulação de juízos de valor, ofensivos da honra e consideração de determinada pessoa;
- Um elemento subjectivo: - concretizado no facto de o agente ter a consciência de que os factos são ofensivos da honra e consideração da pessoa visada e que a sua atuação é proibida por lei.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo doloso constitui a representação da situação objetiva por parte do agente. Exige-se, pois, que o agente tenha consciência e conhecimento da situação objetiva, tal como ela se apresenta, não sendo exigível que o agente atue com a intenção de atingir o património moral de outrem, bastando, genericamente, que configure essa circunstância como resultado da sua conduta [Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra, 1999, pág. 629].
Assim, considera-se preenchido quanto o agente atua com consciência de que a sua conduta, isto é, o facto ou juízo imputados, são objetivamente adequados a desacreditá-lo (…), sendo como tais compreendidos pelos destinatários [Augusto da Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, Estudos Monográficos da Parte Especial do Direito Penal: 3, AAFDL, 1989, pág. 21 e 22].
Todavia, como referia Beleza dos Santos [Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria, Revista de legislação e jurisprudência, Ano 92, n.º 3152, pág. 167-168], tem-se entendido que o conceito de honra, para efeitos do preenchimento do tipo objetivo, não protege sentimentos exagerados de amor próprio, nem o exclusivo valor que a opinião pública consagra a uma determinada pessoa e que pode não corresponder à sua real valia.
Por outro lado, o direito de livre expressão do pensamento (artigo 37.º da C.R.P.), por um lado, e o direito à honra, por outro, impõe que se pondere adequadamente, em face de cada recorte da vida, os limites imanentes de cada e a elasticidade que se deva reconhecer-lhes. Não no sentido de estabelecer hierarquias entre valores o que, dada a notória diversidade de referências axiológicas que subjazem a cada um, nem sequer fará sentido. Importará, parece-nos, sopesar, em cada caso particular, os limites de cada um daqueles redutos subjetivos e avaliar até onde o interesse legítimo de se expressar livremente pode ser levado e a partir de onde é que se ultrapassa o razoável e aceitável.
Por fim, enformando a análise que nos propomos fazer e tendo em conta a argumentação recursória, em tese, o Direito Penal deve sempre atuar como ultima ratio. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português – Parte Geral, Vol. I, Introdução e Teoria da Lei Penal, Verbo, 2001, 2ª Ed., pp. 15 e segs.] refere que no decurso da história da Ciência Penal a doutrina tem tentado conceitos materiais de direito penal e de crime, sendo as orientações de formulação mais moderna as que entendem o direito penal como a proteção de bens jurídicos especialmente relevantes para a vida em sociedade e, por isso, merecedores da tutela penal, sendo o crime comportamento humano que lesa ou põe em perigo de lesão tais bens.
O Direito Penal é considerado por todos os autores como um instrumento poderoso de intervenção social. Por tal, e pelo seu carácter aflitivo, só deve ser usado como medida extrema, porque as suas sanções afetam o que de mais precioso há no ser humano: - a liberdade e também a honra, pelo carácter simbólico de reprovação social que comporta a qualificação como “criminoso” de um dado comportamento humano.
Assim, num Estado de Direito democrático, as incriminações estabelecidas pelo Direito Penal são justificadas por razões materiais, de elevada e injustificada danosidade social do comportamento. O Direito Penal serve para ordenar a vida social conforme à Justiça ou, pelo menos, com pretensão de Justiça.
O Direito Penal não visa obter a conformidade dos comportamentos humanos com quaisquer imperativos morais, mas tão-só a sua conformação com os imperativos jurídicos que são determinados em razão da sua utilidade social e não para formar ou reforçar a consciência moral das pessoas.
Tal como também refere Germano Marques da Silva [Ob. cit., pp. 88-89.], importa ainda considerar que a vulgarização da intervenção penal enfraquece até a força preventiva do Direito Penal, importando reservar a incriminação para aqueles atos em que seja insuficiente a intervenção dos outros ramos do direito e, consequentemente, impõe-se a sua não intervenção sempre que a mesma não for nem justificada, nem útil, para que o direito penal retome o seu verdadeiro espaço de proteção de valores sociais absolutamente fundamentais, o crime seja entendido como facto insuportável e a pena como censura pública e solene aos criminosos.
Referiremos ainda que ao Direito Penal – devido ao seu carácter subsidiário e fragmentário – só deve recorrer-se como instrumento de tutela de bens jurídicos, quando a incriminação for não só necessária, mas também adequada.
Revertendo ao caso em apreço.
No caso dos autos entendeu o Tribunal que: “(…) Face à factualidade provada, dúvidas não restam de que o arguido propalou factos e imputações, através de uma peça processual escrita que dirigiu a um processo nos termos descritos nos factos provados, o que preenche os elementos objectivos constitutivos do crime de difamação agravada previsto nos art.ºs 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º, do Código Penal, sendo certo que o arguido tinha conhecimento de que o ofendido tinha a qualidade de Inspector da PJ e que tinha elaborado o relatório questionado pelo arguido nessa qualidade. Na verdade, provou-se que o arguido tinha conhecimento da falsidade das imputações e dos factos que por escrito divulgou ao tribunal, entidade para a qual o ofendido tinha elaborado o relatório pericial. Concluímos assim que a agravante se verificou. Para além disso, também se provou o elemento subjectivo do crime em questão, porquanto se provou que a intenção do arguido foi ofender a honra, o prestígio e a competência do assistente. As palavras dirigidas a terceiros terão que ser adequadas, em termos de normalidade social, para ofender a honra e consideração do visado, não se exigindo que, efectivamente, o visado se tenha sentido atingido na sua honra e consideração, ao saber das imputações feitas. Ao nível subjectivo, exige-se dolo por parte do agente, nos termos do artº 14.º do C.P. Tal dolo consiste no conhecimento e vontade de proferir palavras ofensivas da honra ou consideração da pessoa visada (artº 14º do C.P.). Face à factualidade provada, dúvidas não restam de que a conduta do arguido, retratada nos factos provados, preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação, e que as expressões utilizadas pelo arguido são adequadas a ofender a honra e consideração do visado, como o foram no caso concreto, uma vez que o assistente se sentiu ofendido e prejudicado na sua honra e consideração, designadamente, na qualidade em que actuou. Acresce que não se verificam no caso as circunstâncias que excluiriam a punibilidade, uma vez que o arguido não exercia um qualquer interesse legítimo, nem logrou provar a verdade das imputações, nem que tivesse fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira (cfr. art.º 180.º, n.º 2 e 4), sendo certo que conforme decorre da própria norma que era ao arguido a quem incumbia fazer a prova de tais circunstâncias. Deste modo, porque não se verificam quaisquer causas que excluam a ilicitude do facto ou a culpa do agente, importa concluir que o arguido AA cometeu, em concurso real, um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artºs 180.º, n.º 1, 182.º e 184.º do Código Penal, tendo actuado com dolo directo (art.º 14º do C.P.).”
Em sustento do decidido e para a necessária operação subsuntiva, importa reter os factos dados como provados, designadamente:
“…mais grave foi a incompetente e dolosa acção do denunciado” que agiu “…de má fé, dolosa…”, acrescentado que “a forma como foi feita a investigação, é irreal, falsa, matreira…”. “…a atuação do denunciado foi (…) maliciosa, e de completa má fé e dolosa”, “…o denunciado usou de um esquema acusatório (…) fraudulento, (…) usando o estatuto de uma polícia criminal para falsamente incriminar o aqui denunciante (…)”.
Mais adiante, refere que: - “…tais resultados apresentados, não podem ser considerados de mera incompetência, mas têm obviamente de ser considerados de má fé, com intenção de prejudicar, e resultantes de atuação dolosa e criminosa.”. “o denunciado é subalterno à entidade que o tutela, tem interesse pessoal em apresentar resultados, provas, sabe-se lá a que custo.”, tendo atuado “apenas com o objectivo acusatório”.
Quanto à relevância criminal dos juízos e imputações, e na senda da argumentação recursória, colocar-se-á, como contraponto, a liberdade de expressão, quer do ponto de vista da imputação de factos, quer na vertente crítica, de valoração e opinião integrantes de juízos de valor, combinado com a faculdade, que assiste ao arguido, de poder criticar a atuação do assistente, não obliterando que essa margem de liberdade deve ter como correspetivo o dever de agir com sentido crítico e responsabilizante.
Efetivamente, também a liberdade de expressão tem limites, devendo conter-se no relevante para exercício do direito à crítica, privando-se do objetivamente injurioso e focando-se em imputação de factos verdadeiros e formulação de juízos de valor nucleares da opinião manifestada, não devendo eventuais considerações, mais contundentes, centralizarem-se na própria pessoa do visado, antes criticando determinada questão em apreciação, destacável do ser íntimo do criticado.
Hodiernamente e cada vez mais, em Estados pluralistas e democráticos “(...) sobem de número e de tom as vozes apostadas em denunciar uma indevida salamização e erosão da tutela jurídica da honra (...)” [palavras de Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma Perspectiva Jurídico-Criminal, 1996, pág. 271].
Voltando ao caso dos autos, no art.º 180º C.P. pune-se a actuação daquele que, dirigindo-se a terceiro, imputar a uma pessoa, mesmo sobre a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo ofensivos da sua honra ou consideração, não sendo exigível que o agente actue com a intenção velada ou exclusiva de atingir o património moral de outrem (isto é, com animus diffamandi) bastando genericamente, como já se disse, que configure essa circunstância como resultado da sua conduta.
Em contraponto, com assento constitucional no art.º 37º, consagra-se o direito de expressão do pensamento, de grande amplitude em regimes democráticos, como o vigente no nosso país, limitado, contudo, pela salvaguarda do direito reconhecido aos cidadãos à sua integridade moral, ao bom-nome e consideração [Cfr. a este propósito J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., vol. I, pág. 232 e ss.].
Por remissão do art.º 181º n.º 2 do C.P., nos termos do art.º 180º n.º 2 do mesmo diploma legal, na existência de imputações, estas poderão não ser puníveis quando forem feitas para realizar interesses legítimos e o agente provar a mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar de verdadeira. As penas aplicáveis são agravadas no circunstancialismo previsto no art.º 184º do mesmo diploma legal.
Face ao supra exposto, no caso de uma imputação, objectivamente injuriosa, será possível a prova da exceptio veritatis, cujo ónus impende sobre o acusado.
No caso vertente, porém, não há demonstração da veracidade das imputações que são, no essencial e como o recorrente reconhece, juízos de valor, em rigor consubstanciando suspeitas levantadas de forma sibilina que estão fora da hipótese analisada de prova da exceptio veritatis, porém sempre sem prejuízo das causas gerais de exclusão da ilicitude previstas no art.º 31º do C.P..
Em qualquer dos casos não existirá uma solução predefinida na determinação dos factos imputados ou juízos de valor suscetíveis de constituir ofensa à honra e consideração pessoal do visado. Antes a análise deverá ser casuística, sopesando o circunstancialismo em que foram proferidas, a condição do agente e do visado, mormente a sua inserção e estatuto social e habilitações literárias ou profissionais, o seu conteúdo, as interpretações possíveis e as motivações subjacentes e, o produto da exegese, confrontado com o direito à manutenção da integridade moral do visado e o direito à livre expressão de pensamento do agente.
Por outras palavras, e no caso de recurso às normas gerais de exclusão da ilicitude, importará, como refere Jescheck, definir os “(...) princípios superiores de justificação do actuar típico, para poder captar sistematicamente as causas de exclusão reconhecidas e obter e formular novas proposições permissivas. (...)” [Cfr. Hans-Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal – Parte General, 4ª ed., Comares, Granada 1993, pág. 292 – a tradução do castelhano é livre.],
Identificado o conceito de antijuridicidade, em consequência da intervenção da norma de exclusão, deve aceitar-se que o bem jurídico seja posto em perigo em obediência a valores superiores subjacentes à atuação, compensando, no todo ou em grande parte, o resultado danoso como a motivação da ação concretizada no facto.
Retomando o caso dos autos o estilo adotado nas passagens transcritas não é, apenas, contundente ou frontal. É, quanto a nós, insidioso e não demonstrado, sendo inclusivamente dispensável para a prossecução dos fins que o arguido disse procurar. Na verdade, se se pretende atacar um relatório, nos seus números e conclusões, não se vê por que razão atacar a honestidade e probidade profissional do seu autor, a afirmação de que agiu de forma matreira, falsa, dolosa, com desígnios inconfessáveis e interesses próprios, criando factos para incriminar o ora recorrente, atuando de forma fraudulenta e criminosa.
Tendo por opções zelar pelo direito à honra e consideração que assiste ao visado e, por outro lado, o valor também constitucionalmente protegido do direito à liberdade de expressão e pensamento, entendemos por verificado o inusitado e ilegítimo ataque ao valor protegido e criminosa a conduta, como se concluiu na decisão recorrida.
Costa Andrade [Cfr op. cit. pág. 233 e ss.], quanto aos juízos de apreciação e valoração crítica, não ultrapassando estes o domínio da crítica objetiva, têm-se por atípicos, quando incidem, embora por vezes em termos cáusticos, exclusivamente sobre a obra ou prestação, não se dirigindo diretamente à pessoa dos seus autores. Tal raciocínio funcionará ainda que a crítica seja imerecida, errada. Imunes ao direito de crítica também não ficam as atuações dos funcionários, ou mesmo dos magistrados. Porém e como vimos, as passagens retidas não se pesam, não se equacionam na ponderação de valores mencionada, porquanto são exteriores, por ilegítimas, ao dito exercício do direito de crítica e incidem direta e essencialmente, não no resultado do trabalho do assistente mas, antes, na sua própria pessoa e pretensos interesses pessoais e obscuros prosseguidos.
Retomando o caso dos autos, por aquilo que se refere literalmente e por aquilo que se insinua, é obviamente posta em causa a honestidade do assistente, a sua probidade e honra pessoal e profissional.
Assim, nada há a censurar ao decidido, ante o preenchimento dos elementos típicos de ambos os crimes imputados.
*
III.6
Da existência de concurso aparente
Prossegue o recorrente afirmando que, mesmo que preenchidos os elementos típicos de ambos os ilícitos em referência, não poderia ter sido condenado por ambos já que, entre o crime de denúncia caluniosa e o crime de difamação existe uma relação de concurso aparente, sendo este consumido por aquele.
É entendimento da jurisprudência que o crime de denúncia caluniosa tutela não só o bem jurídico da administração ou realização da justiça, mas também a honra do denunciado. Neste sentido, o bem jurídico tutelado pelo crime de difamação (honra) acaba por se encontrar igualmente protegido na incriminação por denúncia caluniosa. De forma clara, sintética e correta, assim terá sido decidido no acórdão desta Relação de 14.06.2023, proc. 2405/19.4T9AVR.P1.
Vejamos, então.
Já dissemos supra que o crime de denúncia caluniosa, ainda que reflexamente, também protege a honra do visado.
Não desconhecemos o teor do aresto convocado pelo recorrente.
Em tese, quando a conduta do agente realiza (preenche) o tipo de várias normas incriminadoras haverá, em regra, concurso de normas, sendo apenas uma a concretamente aplicável. Falamos de concurso aparente porquanto apenas uma das normas convocáveis é especificamente aplicável recorrendo-se, para tal definição, à via interpretativa.
Para tanto e no estabelecimento da relação existente entre as normas, excludentes e determinativas da aplicação, ao caso, de apenas uma, é comum a referência às regras da especialidade, da subsidiariedade (implícita ou explícita), da consunção (sendo que, neste caso, dentre as duas normas deve aplicar-se aquela que mais intensamente protege o bem jurídico e esgota a ilicitude do facto, que em regra será a norma punida com a pena mais grave – consunção pura ) e à relação de exclusão (alternatividade).
Ora, no caso, quanto a nós, não se verifica qualquer relação de concurso aparente, tratando-se, antes, de concurso efetivo, sendo até este o entendimento do próprio arguido, solicitador (e, portanto, com conhecimentos em Direito) quando, na denúncia apresentada contra o assistente e visando a instauração de procedimento criminal refere, curiosamente, a comissão, em concurso efetivo, dos crimes de denúncia caluniosa e de difamação.
Neste campo, se é certo que a apresentação de uma denúncia, sem fundamento, é suscetível de beliscar a honra e consideração do visado (a denúncia é caluniosa) – pois é-lhe imputada, falsamente, a prática de um ilícito criminal – o teor da própria denúncia pode sobrepassar esse efeito colateral inevitável, tendo em conta os concretos termos utilizados e, nesta medida, não se esgotar naquele plano da ilicitude e na tutela essencial da boa administração da justiça e apelar, de forma autónoma e verdadeiramente concursal, à intervenção da norma que tutela a honra do visado.
Na prática, poderá ser apresentada uma queixa-crime contra determinado sujeito imputando-lhe a prática de factos com significância criminal, desta forma mobilizando, sem razão, os meios de investigação do Estado (e reflexamente, mas sem autonomia, pondo em causa a honra do visado), o que estará confinado ao crime de denúncia caluniosa, como pode essa mesma denúncia, pelo seu conteúdo expresso e à margem do que seria essencial à instauração de procedimento criminal, por em causa, autónoma e cumulativamente, a honra do visado. Pode apresentar-se queixa contra determinado sujeito, imputando-lhe, falsamente,a subtração de objetos com ilegítima intenção de apropriação, como pode (também) a própria queixa incluir expressões e juízos de valor, excrescentes para aquela finalidade, que sejam, em si mesmos, integrativos da prática de um crime de difamação, como apodar o denunciado de “ladrão” e enunciando juízos de valor, comportamentos, traços de caráter e imputando-lhe factos que, não sendo essenciais para o predito fim de instauração de procedimento criminal são, em si mesmos, difamatórios, estando, com aqueles objetivantes da denúncia falsa, numa efetiva relação de concurso.
É, exatamente, como as devidas adaptações, o que se passa nos autos, improcedendo, nesta parte, o recurso.
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III.7
Da suspensão da execução da pena
Finalmente, alega o recorrente que “Andou mal o Tribunal a quo ao não determinar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. A pena não privativa da liberdade deve constituir a opção preferencial no cumprimento das penas.” sendo que, no caso, vista a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias deste, será possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao sucesso e adequação da pena de substituição proposta.
Avaliando.
O art.º 50.º do C.P. determina que o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior ou posterior ao facto e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para além da medida concreta da pena (única) de prisão aplicada (que não pode ser superior a 5 anos), é pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão a formulação de um juízo de prognose favorável, relativamente ao comportamento futuro do arguido, no sentido de, quanto a ele, a simples censura do facto e a ameaça da prisão se mostrarem adequadas a dissuadi-lo da ulterior prática de crimes.
Assim, os pressupostos subjetivos de que depende a suspensão da execução são determinados pelas finalidades político-criminais das penas e pela possibilidade de se poder aquilatar, com conclusão afirmativa, da capacidade de o arguido se afastar, no futuro, da prática de novos crimes e, por esta via, alcançar a socialização sem ingresso efetivo em meio carcerário.
São assim sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que estão na base do instituto da suspensão, assentando o referido juízo de prognose favorável na análise das circunstâncias do caso, em correlação com a personalidade do agente.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2002, [processo n.º 3026/01, Rel. Franco de Sá, inwww.dgsi.pt], a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido condenado. Na base de uma decisão de suspender a execução de uma pena está sempre uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial.
A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar o delinquente - tendo em conta as concretas condições do caso – da ulterior prática de crimes, assentando o juízo de prognose, não numa absoluta certeza, mas numa esperança fundada de que a socialização em liberdade seja realizada, importando sempre um risco para o julgador calculado a partir dos elementos de facto a que tem acesso [vd. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993 pág. 344].
Porém, só haverá lugar à suspensão da execução da pena de prisão desde que, obviamente, a tal não se oponham as exigências de prevenção geral.
Do acabado de referir não deflui que, na ponderação da possibilidade de suspensão, estejam em causa considerações de culpa. Apenas se expressa que aquele juízo poderá sofrer limitações porquanto, a par de considerações de prevenção especial coexistem outras de prevenção geral que tornarão a suspensão da execução da pena de prisão admissível apenas quando (também) não coloque em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e o sentimento de reprovação social do crime.
Em todas as hipóteses, porém, acrescenta-se que a questão jurídica subjacente à suscetibilidade e adequação da pena de substituição em causa não pode consistir num mero juízo conclusivo, mas, antes, deve ser a decorrência de uma sólida fundação factual de suporte, escorada nos factos provados que, no final da exegese, permita definir se a efetividade da prisão é, ou não, reclamada pela necessidade de assegurar as finalidades da punição ou se, ao invés, estas podem ser suficientemente acomodadas com a suspensão da execução da pena, eventualmente com o reforço readaptativo proporcionado pelo estabelecimento de determinadas condições ou sujeição a regime de prova.
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Regressando ao caso em apreço.
Vista a decisão recorrida e sendo pacífico que se encontra verificado o requisito formal de a pena única aplicada ser inferior a 5 anos, vejamos se existem razões objetivas, assentes em factos provados, que permitam sustentar o juízo de prognose favorável que é pressuposto da suspensão pretendida pelo recorrente.
A formulação de tal juízo, imprescindível à possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão foi afastado, segundo a decisão recorrida, nos seguintes moldes e sopesando os seguintes fatores/argumentos: “O arguido está profissionalmente inserido de forma sólida, no sector imobiliário, e familiarmente integrado, sendo bem visto no meio onde reside. No âmbito destes autos, com o cometimento do crime de usurpação de funções, o arguido locupletou-se da quantia que não chega a € 300, o que não é muito significativo, sendo certo que a Lei prevê a aplicação neste caso de mecanismos de ressarcimento de tal quantia, nomeadamente através da Perda de Vantagens. Verifica-se que o arguido continua a manter um comportamento censurável e não foi sensível às anteriores penas a que tinha sido condenado, designadamente, penas de multa e penas suspensas, sendo certo que posteriormente aos nossos factos veio a cometer outros crimes semelhantes, quer quanto à honra e consideração, quer, sobretudo, replicou condutas semelhantes à usurpação de funções. Apesar da dilação no tempo dos factos cometidos, entendemos, perante as apontadas circunstâncias, que a mera ameaça da prisão se revela insuficiente para, neste caso em particular, satisfazer as necessidades de prevenção que no caso se verificam. Se por um lado, consideramos muito ténue o efeito dissuasor da pena de trabalho a favor da comunidade em face dos antecedentes criminais do arguido e, por outro lado, porque o mesmo está a exercer actividade profissional no sector imobiliário, tendo hábitos de trabalho bem sedimentados. Assim, a aplicação de uma pena de trabalho a favor da comunidade não iria reforçar no arguido o valor da obtenção de rendimentos em função do exercício de uma actividade profissional. Ponderando a hipótese de suspensão da execução da pena, entendemos que a mesma também não se mostra suficiente na medida em que o arguido já foi condenado em penas suspensas e isso não o demoveu de reincidir e, por outro lado, o arguido não assumiu os factos de forma integral nem reconheceu (mais acentuadamente no que toca ao crime de usurpação de funções) a censurabilidade da sua conduta. Estas circunstâncias não nos permitem, pois, efectuar um juízo de prognose favorável quanto à futura conduta do arguido, não se revelando suficientes para se concluir que a mera ameaça da prisão seria bastante para demover o arguido de voltar a delinquir. Em face do exposto, entendemos que se impõe o cumprimento efectivo da pena de prisão aplicada ao arguido. (…)”.
Tendo presente o assim decidido, concordamos, no essencial, com a posição do Tribunal a quo.
Analisado o acabado de transcrever alcança-se que, fundamentalmente, o percurso criminal do arguido e as várias condenações sofridas não permitem a formulação do predito juízo de prognose favorável.
É certo que a formulação daquele juízo de prognose é contemporâneo ao momento da decisão, considerando os fatores de proteção de que o arguido beneficie naquele momento e os preditores de sucesso que possam então existir. Contudo, não sendo um ato de fé, nos fatores a equacionar – a base fundacional da confiança no sucesso da medida – estará, também, o percurso objetivo do arguido, incluindo o seu passado criminal, como forma de poder ponderar como será o seu comportamento futuro. É o próprio art.º 50.º do C.P. que o prevê ao estabelecer, no seu n.º 1, nas premissas do juízo, a personalidade do agente, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste.
Dito isto, embora o arguido possa beneficiar de apoio familiar e se mantenha ativo, são no essencial fatores que já se mostravam presentes aquando da comissão dos factos e que não o inibiram de (voltar a) delinquir.
Note-se que o arguido praticou os factos em referência (2017 e 2020) já havia sido condenado por crime de ofensa à integridade física (pena de multa), ofensa à integridade física e injúria (pena de multa), injúria (pena de multa), desobediência (pena de multa), ameaça agravada, difamação, injúria simples e agravada e ameaça (pena de prisão suspensa na sua execução) e, aquando da prática do crime de denúncia caluniosa, fora já condenado (também), pela prática de um crime de peculato de uso (pena de multa), tendo sido condenado, ainda que posteriormente, por outros crimes de usurpação de funções, falsificação de documentos, burla e procuradoria ilícita, entre outros, em penas de prisão suspensas na sua execução.
Ainda que por factos contemporâneos o arguido tenha beneficiado de várias penas de prisão suspensas na sua execução, ainda em execução, não se nos afigura desadequada e, nesta medida, reversível por proibição do excesso, a pena aplicada nos autos ao recorrente.
Assim, perante o percurso criminal do arguido, ainda que preservando o entendimento que a pena de prisão efetiva é uma medida de ultima ratio, a formulação do indispensável juízo de prognose favorável encontra-se irremediavelmente comprometido, ante as várias oportunidades concedidas e a persistência dos comportamentos criminais. A prisão é medida de ultima ratio mas não deixa de ser justificadamente aplicável quando o tipo legal o impõe ou a conduta do arguido impede o recurso a medidas de substituição.
Não sendo a decisão de suspender, ou não, a execução da pena de prisão – como já dissemos e frisamos – um ato de fé, a cogitação da sua adequação não pode louvar-se, apenas, na promessa de resultados asseverada pelo arguido ou em sentimentos de comiseração do julgador. Essa afirmação terá de ser sustentada em elementos de facto que o indiciem, designadamente o seu comportamento pregresso e posterior aos factos. Ora, neste caso, como acabamos de constatar, o arguido já beneficiou de igual medida ou de penas não privativas da liberdade que não tiveram a virtualidade de, como era pressuposto, impedir a ulterior prática de crimes.
Acresce, por fim, que o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, aqui se incluindo a verificação da adequação de penas de substituição e respetivos deveres condicionantes, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial.
Em conclusão se, nos termos do art.º 50.º, n.º 1, do C.P., o tribunal suspende a execução da pena aplicada em medida não superior a cinco anos quando, "atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que simples censura do facto e ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", no caso concreto, retendo as características de personalidade evidenciadas pelo arguido, a sua conduta anterior ao crime e as circunstâncias deste, acima descritas, entende-se, como entendeu o Tribunal a quo, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
*
IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
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Porto, 29 de janeiro de 2025
José Quaresma (Relator)
Pedro M. Menezes (1.º Adjunto)
Pedro Vaz Pato (2.º Adjunto)