ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE DO EMPREGADOR
PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO
ERRO NA FORMA DE PROCESSO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

Sumário:
1. A sentença proferida em processo de acidente de trabalho, que condena o empregador no pagamento de pensões, tem esse limite: o pagamento das pensões ali definidas, nada mais.
2. Logo, a sentença não constitui título executivo para cumprimento da obrigação de prestação de caução, a que se refere o art. 84.º n.º 1 da LAT.
3. Quanto à prestação dessa caução, que constitui mera garantia da obrigação definida na sentença, deve seguir a forma de processo especial prevista nos arts. 906.º e segs. do Código de Processo Civil.

Texto Integral




Acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo do Trabalho de Setúbal, AA e BB deduziram embargos à execução que lhes foi movida pelo Ministério Público, em representação dos beneficiários, para prestação de caução na sequência da condenação em pensões por acidente de trabalho, alegando a sua ilegitimidade, a inexistência de título executivo e a iliquidez da dívida exequenda.
A sentença decidiu julgar os embargos improcedentes, levantar parte das penhoras realizadas e determinar o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de € 27.596,88.

Os embargantes recorrem, concluindo:
1. A sentença recorrida padece de omissão de pronúncia quanto à excepção dilatória de ilegitimidade activa invocada na petição de embargos de executado, prevista na alínea e) do artigo 577.º do CPC.
2. A referida excepção é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 578.º do CPC, foi tempestivamente alegada pelos aqui Recorrentes, e não obstante a sentença não se pronunciou sobre esta questão.
3. Assim, nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula, por omissão de pronúncia, vício que expressamente se invoca com as legais consequências.
4. A acção executiva não é o meio próprio ou idóneo para tornar exequível a prestação da caução enquanto garantia do pagamento das pensões.
5. O incumprimento da prestação da caução, de acordo com o preceituado nos artigos 906.º e seguintes, aplicável ex vi artigo 915.º, todos do CPC, pode dar origem a um incidente de prestação de caução, mas nunca por via de acção executiva.
6. Assim, estamos perante uma situação inequívoca de erro na forma do processo, pelo que deve ser declarada a nulidade da acção executiva, nos termos do artigo 193.º do CPC.
7. A sentença impugnada, para além de nula, viola as normas constantes dos artigos 578.º, 703.º, ambos do CPC, artigo 88.º do CPT e artigos 906.º e seguintes, aplicável ex vi 915.º, todos do CPC.

A resposta sustenta a manutenção do julgado.
Cumpre-nos decidir.

A matéria de facto provada é a seguinte:
1. Por sentença proferida nos autos de acidente de trabalho n.º 864/15.3T8LMG, transitada em julgado em 08/09/2020 a Herança Indivisa de CC, foi condenada a pagar a cada um dos embargados uma pensão anual e vitalícia no valor de €2.435,61 (dois mil, quatrocentos e trinta e cinco euros e sessenta e um cêntimos), desde 18/06/2015.
2. A cabeça de casal da herança indivisa efectuou mensalmente, por transferência bancária, ao dia dois de cada mês, para a conta n.º …, indicada pelo Mandatário do embargado DD, o montante de € 181,57, a partir de Novembro do ano de 2020, acrescido de 1/14 a título de subsídio de natal, no mês de Novembro e ainda, o montante mensal de € 182,84 no ano de 2021, acrescido de 1/14 a título de subsidio de férias e de Natal, nos meses de Julho e Novembro, perfazendo um montante global de € 3.283,50.
3. Efectuou igualmente, por transferência bancária, ao dia dois de cada mês, para a conta n.º …, a qual foi indicada pelo Mandatário do embargado EE, o montante de € 181,57, a partir de Novembro de 2020, acrescido de 1/14 a título de subsídio de natal, no mês de Novembro e ainda, o montante mensal de € 182,84 no ano de 2021, acrescido de 1/14 a título de subsidio de férias e de Natal, nos meses de Julho e Novembro, perfazendo um montante global de € 3.283,50.
4. Entre Janeiro de 2022 e a penhora das contas bancárias, a herança pagou a ambos os beneficiários a quantia de € 2.583,46.
5. Para pagamento das pensões vencidas desde 16/06/2015 até 31/10/2020, os embargantes estabeleceram vários contactos, via electrónica com o mandatário dos embargados no sentido de se elaborar um plano de pagamento em prestações, de acordo com a possibilidade económica da entidade empregadora, mas não obtiveram qualquer resposta.
6. Por ofício de 07/04/2021 foi a Herança indivisa de CC notificada do teor do ofício da ASF, para, em 15 dias, prorrogados por duas vezes, prestar caução no valor de € 45.983,42.
7. Por ofício de 09/09/2021 foi a Herança indivisa de CC notificada do teor do ofício da ASF, para, em 15 dias, prestar caução no valor de € 45.983,42.
8. Por ofício de 18/01/2022 foi a Herança indivisa de CC notificada do teor do ofício da ASF, para, em 15 dias, prestar caução no valor de € 45.983,42, com a expressa advertência de que, não o fazendo seria intentada execução para cobrança da mesma.
9. No dia 29/06/2022 os embargados apresentaram em juízo requerimento para Execução de Decisão Judicial Condenatória, demandando o pagamento da quantia de € 45.983,42, acrescida de juros de mora.
10. Na sequência da penhora de contas bancárias foi penhorada a quantia global de € 8.340,57.
11. Em 12/09/2022 foi efectuada a penhora de bens móveis no valor de € 42.100,00.
12. Por decisão proferida em 26/04/2023 foi declarada a caducidade do direito à pensão do embargado EE, com efeitos a partir de 28/08/2021.
13. Os embargantes deram entrada dos presentes embargos no dia 03/10/2022.
14. O valor da caução total actual da responsabilidade da Herança Indivisa de CC, respeitante à actualização da pensão atribuída a DD para o ano de 2023 é de € 27.596,88.

APLICANDO O DIREITO
Da arguição de nulidade da sentença
Argumentam os Recorrentes que a sentença incorreu em nulidade, por omissão de pronúncia quanto à excepção dilatória de ilegitimidade activa.
Este fundamento de nulidade – art. 615.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil – apenas ocorre quando o juiz não resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – art. 608.º n.º 2, primeira parte – ou conheça de outras questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso das mesmas.
Referia o Prof. Alberto dos Reis In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143., que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (…), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (…) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
No caso, na petição de embargos, foi alegado, “para o caso da execução ter por base a obrigação da prestação da caução, o que só por mera hipótese se admite, então os exequentes não têm legitimidade activa para instaurar a execução, considerando que a caução não constitui um pagamento aos beneficiários, mas tão só uma garantia do pagamento das pensões, sendo que “o caucionamento é feito do juiz do tribunal de trabalho respectivo, ou a seu favor, no prazo que ele designar”, conforme determina o artigo 84.º, n.º3, da Lei n.º 98/2009, de 4 Setembro.”
A decisão recorrida considerou que, face ao disposto no art. 84.º n.º 1 da LAT, “(…), não tendo os embargantes prestado caução através de qualquer uma das modalidades atendíveis, dúvidas não há de que o Ministério Público devia, por dever de ofício, instaurar execução para garantia do seu pagamento mediante a penhora de bens pertença da herança indivisa de CC.”
Há aqui uma análise da questão suscitada pelos embargantes, por resumida que seja – considera-se que a legitimidade para instaurar a execução advém do incumprimento da obrigação de prestação de caução.
Podem os Recorrentes não concordar com tal argumento, mas tal discordância apenas poderá fundar a revogação da sentença recorrida por erro de direito, não a sua anulação.
Julga-se, pois, improcedente a arguição de nulidade invocada pelos Recorrentes.

Da prestação de caução e da existência de título executivo
A questão dos autos concerne ao modo de prestação da caução prevista no art. 84.º n.º 1 da LAT, segundo o qual o empregador deve “caucionar o pagamento de pensões por acidente de trabalho em que tenha sido condenado, ou a que se tenha obrigado por acordo homologado, quando não haja ou seja insuficiente o seguro, salvo se celebrar com uma seguradora um contrato específico de seguro de pensões.”
O n.º 2 desse mesmo art. 84.º indica o modo como se efectua a caução: por depósito de numerário, títulos da dívida pública, afectação ou hipoteca de imóveis ou garantia bancária.
O Código de Processo Civil contém uma forma especial de processo para prestação de caução, nos respectivos arts. 906.º a 915.º, com procedimento totalmente distinto da execução.
Note-se que a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva, e o seu fim pode consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo quer negativo – art. 10.º n.ºs 5 e 6 do Código de Processo Civil.
No caso, não existe título executivo que permita a penhora e venda de bens para prestação da caução. A sentença proferida na acção principal condenou o empregador no pagamento de pensões por acidente de trabalho, e o título executivo assim formado tem esse limite: o pagamento das pensões definidas na sentença, nada mais.
Quanto à caução, esta “é sinónimo de segurança ou de garantia especial da obrigação e serve para abranger genericamente todos os casos em que a lei ou a estipulação das partes exige a prestação de qualquer garantia especial ao credor” – Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., pág. 472.
Logo, como se afirma no Acórdão da Relação de Coimbra de 16.06.2023, proferido no Proc. 1699/20.7T8CLD-B.C1 e publicado na página da DGSI, “(…) a falta de prestação atempada da caução não consubstancia qualquer incumprimento de uma obrigação relativa ao pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto, sendo certo que o auto de conciliação supra referido, devidamente homologado, apenas constitui título executivo no que concerne às obrigações constantes do mesmo e que a entidade empregadora foi condenada a pagar ao sinistrado (pensão e indemnizações). O incumprimento é de cumprimento da garantia e não de pagamento.”
Nos autos não está em causa o incumprimento das pensões definidas na sentença, mas o mero incumprimento da garantia dessa obrigação, que segue a forma de processo especial prevista nos arts. 906.º e segs. do Código de Processo Civil, pelo que têm razão os Recorrentes quando argumentam que a acção executiva não é o meio próprio ou idóneo para assegurar a prestação dessa garantia.
Desde logo porque não existe título executivo que permita a instauração da execução para obtenção da caução, e porque o processo especial com esse fim é absolutamente distinto do processo executivo, devem os embargos proceder, com extinção da execução.

DECISÃO
Destarte, concede-se provimento ao recurso, julgam-se os embargos procedentes e determina-se a extinção da execução.
Há isenção de custas dos embargados – art. 4.º n.º 1 al. h) do RCP.

Évora, 30 de Janeiro de 2025

Mário Branco Coelho (relator)
Paula do Paço
João Luís Nunes