PROVIDÊNCIA CAUTELAR
COMODATO
USUFRUTO
EFICÁCIA DOS CONTRATOS PERANTE TERCEIROS
A CAPACIDADE DE DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Sumário


I- O contrato de comodato é definido na lei (art.º 1129.º do CC), como o contrato gratuito, pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
II- O Direito de usufruto está legalmente definido como um direito de gozo pleno, temporário, de coisa ou direito alheio (art.º 1439º do CC), cujas características essenciais são a plenitude do gozo da coisa ou direito, e a sua limitação temporal.
III- Fora dos casos e termos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros (art.º 406, nº. 2 do CC), vinculando apenas as próprias partes, pelo que eventuais situações de confronto entre o titular do direito real (entre eles o de usufruto) e outros possuidores ou detentores da mesma coisa (como é o caso do comodatário), elas deverão ser resolvidas a favor do titular do direito real, donde, reconhecido o direito de propriedade (ou de usufruto), o detentor ou o possuidor deve ser obrigado à restituição da coisa.
IV- A desocupação poderá não ocorrer se, perante o quadro factual descrito, se puder concluir que a adquirente do direito real, por detrás das aparências, não puder ser considerada “terceira”, totalmente “indiferente” ao que se passou antes de se ter tornado usufrutuária dos prédios.
V- A eficácia externa do direito de crédito também pode ser encontrada através da figura do abuso de direito, em casos em que tal seja o resultado aferido pelo sentimento coletivo.
VI - A capacidade de direito das sociedades comerciais, entendida esta como a medida da extensão da sua suscetibilidade de serem sujeitos de relações jurídicas, colhe a sua regulamentação legal no art.º 6º, n.º 1, do CSComerciais, do qual se extrai que “a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim”, fim esse que, nas sociedades com aquela indicada natureza, se pauta pela obtenção de lucros a distribuir pelos respetivos sócios ou acionistas.
VII- De acordo com o princípio da especialidade do fim, que integra o fator determinante e específico da constituição das sociedades, quer civis, quer comerciais, os atos gratuitos mostram-se, regra geral, excluídos da capacidade de gozo daquelas sociedades, por não serem necessários ou convenientes à prossecução do aludido fim.
VIII - A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.

Texto Integral


I. RELATÓRIO:

EMP01... – SOCIEDADE AGRÍCOLA, L.DA, melhor identificada nos autos, veio instaurar Procedimento cautelar não especificado contra AA, também melhor identificada nos autos, pedindo que, sem a audiência prévia da Requerida, lhes sejam restituídos os prédios rústicos identificados no artigo 3.º do requerimento inicial, e os bens, equipamentos, ferramentas e utensílios descritos nos artigos 17.º a 46.º do mesmo requerimento, retirados à Requerente, de modo a permitir-lhe retomar o exercício da sua atividade de exploração agrícola.
Alega para tanto que é uma sociedade comercial constituída a 27-08-2007, cujo objeto consiste na exploração de produtos agrícolas e pecuários em todos os seus ramos, tendo tido como sócio gerente, desde a data da sua constituição até ../../2024, BB.
Que na data de 16-07-2008, mediante um contrato denominado de comodato, o gerente BB declarou ceder gratuitamente à Requerente a exploração e os rendimentos das parcelas de terreno de que era proprietário, que identifica, pelo período de 20 anos.
Para exercer a sua atividade, a Requerente teve de realizar investimentos avultados na aquisição de diversos bens e equipamentos, que descreve, cujo valor global ascendeu à quantia de 661.681,00 €.
No dia 05-11-2021, BB doou à Requerida o usufruto dos prédios rústicos mutuados à Requerente, mas a mesma continuou a fazer, como sempre havia feito, a exploração agrícola dos terrenos em referência.
E no dia 21-11-2022, BB celebrou novo contrato de comodato, através do qual declarou ceder gratuitamente à Requerente, pelo período de 10 anos, com início na data da sua celebração, a exploração que já havia ter declarado ceder em 2008, dos mesmos prédios rústicos, sendo certo que a celebração deste contrato era condição essencial para que a Requerente pudesse continuar a auferir dos apoios e subsídios à exploração dos terrenos agrícolas em referência, atribuídos pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), contrato que era e é do conhecimento da Requerida, que não se opôs à sua celebração.
Acontece que a partir de Setembro/Outubro de 2023, a Requerida dissipou uvas, vinho, azeite, amêndoas e outros produtos pertencentes à Requerente.
A Requerida reside na Quinta ..., em ..., desde o pretérito ano de 2008 (há cerca de 16 anos), como companheira do sócio da requerente BB, cuja coabitação terminou, não de forma pacífica, no dia 05-04-2024.
Quando a atual gerente da sociedade, CC, filha do sócio BB, no dia 24 de Maio de 2024, tentou aceder, quer aos terrenos agrícolas, quer aos bens e equipamentos adquiridos pela sociedade, foi impedida pela requerida de o fazer, com o fundamento de que era usufrutuária da Quinta ... e de tudo o que lá se encontrava, pelo que não autorizava a entrada da gerente da requerente.
Ora, caso a Requerente não possa aceder às suas instalações, aos terrenos agrícolas que explora, e aos bens, utensílios e demais equipamentos que lhe pertencem, a Requerente está impossibilitada de exercer a sua atividade, bem como de utilizar e levar consigo os bens, utensílios, ferramentas, viaturas, tractores e demais equipamentos que adquiriu e são sua propriedade.
Os actos cometidos pela Requerida causam danos à Requerente, que com o decurso do tempo poderão ser irreparáveis ou de muito difícil reparação, podendo até determinar a sua insolvência, pois a exploração dos referidos terrenos agrícolas é a única atividade que exerce, tendo investido 661.681,00 € em bens e equipamentos para poder explorar os terrenos agrícolas em causa.
Danos que poderão ser irreparáveis ou de muito difícil reparação, porquanto não são conhecidos outros rendimentos à Requerida que não seja o salário que aufere enquanto trabalhadora da Requerente.
Além de que, não podendo aceder aos terrenos agrícolas que explora, a Requerente ficará impedida de fazer a colheita da amêndoa, (Julho e Agosto), a vindima (Setembro) e a apanha da azeitona (final do Outono), que são bens perecíveis, sujeitos a deteriorarem-se se a sua posse não for restituída à Requerente, ou as colheitas e vindimas não ocorrerem.

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Recebido o requerimento inicial e dispensada a audiência prévia da Requerida, foi proferida decisão que ordenou que a Requerente fosse restituída à posse imediata dos prédios rústicos identificados no ponto 3. dos factos provados, e dos bens, equipamentos, utensílios e ferramentas descritos nos pontos 10. e 11. dos factos provados, de modo a permitir que aquela pudesse retomar o exercício da sua atividade.
Decretou-se ainda a inversão do contencioso.
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Notificada da decisão, veio a Requerida AA deduzir oposição, impugnando praticamente todos os factos alegados no requerimento inicial, com a alegação de que todos os bens de que a requerente se intitula proprietária foram adquiridos pelo seu sócio BB, e são os constantes do contrato de comodato, celebrado a ../../2023, pelo prazo de 20 anos, entre requerente e requerida, sendo que o veículo automóvel marca ... matrícula ..-DL-.. é sua propriedade.
Que o vinho existente na Quinta ..., assim como todos os frutos da quinta são sua propriedade, por serem fruto dos terrenos cujo usufruto lhe foi doado.
Acrescenta que o contrato de comodato datado de 1 de Janeiro de 2022 é totalmente inválido, pois o comodante (BB) já não era possuidor dos prédios comodatados, nem podia ceder a sua exploração, por anteriormente ter doado o usufruto dos mesmos à requerida.
Conclui pela revogação da providência decretada, e caso assim se não entenda, pela redução do âmbito da mesma, devolvendo-se à requerida a posse do veículo automóvel marca ... matrícula ..-DL-.., assim como de todos os bens que constam do contrato de comodato, outorgado a ../../2023 entre si e a requerente.
Mais conclui pela revogação da decisão de inversão do contencioso.
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Tramitados regularmente os autos, foi proferida, a final, a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a oposição deduzida pela Requerida e, em consequência, decido:
i) revogar a providência de restituição decretada apenas quanto ao veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca ... e com a matrícula ..-DL-.., mantendo-a inteiramente quanto aos demais bens, a saber prédios rústicos e tractores, máquinas e alfaias agrícolas; e
ii) revogar a inversão do contencioso apenas quanto aos prédios rústicos, mantendo-se a decisão anterior quanto aos bens, equipamentos, utensílios e ferramentas, exceptuado o veículo automóvel identificado em i).
Custas por Requerente e Requerida na proporção de 50%, com taxa de justiça a ter em conta em sede da acção principal (cfr. art.s 539.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 7.º, n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais e tabela II anexa)…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a requerida interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões (…)
Nestes termos e nos mais de direito (…) deverá o presente recurso ser julgado procedente e provado e, por via disso, ser revogada a ordenada providência de restituição, bem como a também ordenada inversão do contencioso…”
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A requerente veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
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II- QUESTÕES A RESOLVER:

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), as questões a decidir no presente recurso de Apelação (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

A - A de saber se deve ser alterada a matéria de facto, no sentido pretendido pela recorrente;
B - Se deve ser revogada a Providência Cautelar decretada;
C- E se dever ser revogada a decisão de Inversão do Contencioso.
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

Foram dados como provados na primeira instância (em 24.10.2024), os seguintes factos:

“Em face da prova agora produzida, e com interesse para a decisão da oposição, o Tribunal considera suficientemente indiciados os factos que a seguir se discriminam, mantendo a matéria de facto anteriormente julgada provada em tudo o que não é contrariado pelos que se seguem:

1. Na gestão da exploração agrícola, BB foi sempre coadjuvado pela Requerida, sua companheira e trabalhadora remunerada da Requerente desde Abril de 2013, a quem foi atribuída, a partir de 2018, a categoria profissional de directora.
2. A partir do início do ano de 2021, paulatinamente, a gestão corrente passou a ser exercida unicamente pela Requerida AA.
3. Para exercer a sua actividade, a Requerente contou não só com entradas da sócia EMP02... – SGPS, S.A. mas também do próprio gerente.
4. A Requerente fez a exploração agrícola dos terrenos, por intermédio do gerente BB e da Requerida, sua trabalhadora.
5. Apesar da doação à Requerida, a exploração dos terrenos agrícolas em causa continuou a ser efectuada nos moldes referidos em 4.
6. No dia 16.09.2023, a Requerida dirigiu-se à EMP03..., L.da para entregar 1.280 kg de uva em nome da Requerente, conforme talão n.º ...21 que se encontra junto com a oposição sob doc. n.º 9 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7. A Requerida reside na Quinta ..., em ..., desde o ano de 2011.
8. O veículo ligeiro de mercadorias de marca ... e com a matrícula ..-DL-.. foi vendido em 21.06.2023 pela Requente à Requerida, estando essa compra inscrita em seu nome na Ap. ...08 de 21/06/2023.
9. Em ../../2023, mediante o documento denominado «Contrato de Comodato» que se encontra junto com a oposição sob o doc. n.º 7 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, o gerente BB, em representação da Requerente, declarou ceder gratuitamente à Requerida o uso dos tractores, alfaias e máquinas agrícolas nele identificadas nas alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i) e j), pelo período de 20 anos.
10. Assim, através desse «Contrato», o gerente BB, em representação da Requerente, cedeu à Requerida o uso, a título gratuito, dos três tractores, do reboque (caixa de carga para tractores), do pulverizador ..., do triturador ..., da mini-escavadora ... e do disco desbrozador ....
11. A Quinta foi explorada e dirigida, no interesse da Requerente, pela Requerida e por seu “marido” BB, que com ela viveu maritalmente durante cerca de 25 anos.
12. Para o efeito recorriam ao auxílio de trabalhadores locais, por si contratados no interesse da Requerente, e remunerados por esta.
13. Aquele foi seu companheiro durante cerca de 25 anos em que viveram maritalmente, primeiro em ... e, posteriormente, na Quinta ..., sita em ....
14. A Requerida começou por trabalhar na EMP04..., L.da, tendo posteriormente trabalhado em três empresas, em que o seu “marido” era sócio ou accionista maioritário, dirigindo as mesmas.
15. Assim, a Requerida esteve, laboralmente, ligada às seguintes empresas:
- Entre Janeiro de 2016 Janeiro de 2021 à EMP05..., S. A.;
- Entre Junho de 2020 e Junho de 2021 à EMP02... – S.G.P.S., S.A.;
- Entre Abril de 2013 até à actualidade à Requerente.
16. Em tais sociedades, o “marido” da Requerida era sócio maioritário, sendo, conforme os casos, presidente do conselho de administração, administrador único ou gerente.
17. Na EMP05... era detentor de 98,33% do capital, na EMP02... de 92% e nas EMP01..., sociedade requerente, detinha, por via directa ou indirecta, 100% do capital social.
18. Tais empregos eram meramente formais e não representavam mais do que uma maneira de BB proporcionar à Requerida, que na altura não trabalhava, um rendimento.
19. A partir da construção da casa da Quinta, a Requerida e seu “marido” tanto residiam em ... como na Quinta ..., conforme fosse de sua conveniência.
20. BB requereu, no ano de 2008, o licenciamento do projecto de construção de um lagar de azeite, tendo dado origem ao processo de licenciamento n.º ...8 da Câmara ....
21. Nessa construção existe uma lona publicitando o nome da Requerente.
22. BB requereu, no ano de 2008, a licença para obtenção de certificação para um processo de produção biológico.
23. Em 2017, por decisão do gerente BB, tal licença foi emitida em nome da Requerente, para ter ou manter o processo de produção biológica inscrito a favor daquela.

B. Factos não provados

Com relevância para a justa decisão da causa, não se provou que:
- a Requerente foi usada pelo “marido” na candidatura a projectos, por causa de benefícios fiscais;
- nesses projectos da comunidade europeia, em que o nome da Requerente formalmente figurava, era o casal quem tudo trabalhava e fazia, estando a Requerida convencida, por isso lhe ter sido assegurado por seu “marido”, que todos os custos eram suportados pelo casal;
- a terem existido despesas lançadas por seu “marido” nas empresas de que era sócio maioritário e dirigente, tal não representa mais do que artifícios contabilísticos;
- BB efectuou manobras contabilísticas, por seu interesse ou no das sociedades que dirigia, relativamente aos bens comprados para a Quinta ... e que sempre afirmou serem do casal;
- nunca a Requerente dirigiu aquela quinta ou teve a sua posse;
- para além da Requerida que, formalmente, foi e é funcionária da Requerente, nunca esta teve qualquer outro trabalhador seu a laborar na quinta;
- BB nem sequer discutia com a Requerida os negócios em que estava envolvido;
- o mesmo se passou relativamente à Quinta ... e à sociedade Requerente;
- a aludida quinta foi comprada, inicialmente, com o objectivo de o casal ter aí o seu refúgio, tendo, posteriormente, sido decidido que a poderiam explorar;
- no que respeita à sociedade Requerente, a Requerida tinha conhecimento da sua existência, mas nada sabia dos seus negócios;
- nem sequer tinha conhecimento de que tinha sido nomeada directora da mesma;
- tal ligação laboral à Requerente servia, apenas, para transferir para o casal rendimentos;
- os anteriores empregos da Requerida eram meramente formais e não representavam mais do que uma maneira de BB alimentar monetariamente o casal, através das suas empresas;
- a Requerida nunca recebeu qualquer ordem da Requerente, a quem também nunca prestou qualquer serviço;
- a Requerente nunca produziu, cultivou ou colheu qualquer produto agrícola na Quinta ...;
- a mesma só servia para concorrer a fundos europeus e para tudo aquilo que trazia benefícios fiscais ao seu “marido”;
- a Requerida nunca exerceu a gestão corrente da Requerente, nem nunca o tentou fazer, pois isso não lhe era permitido por seu “marido”;
- o pavilhão foi construído por BB
- todos os outros investimentos foram efectuados por DD requerida, muito embora alguns dos bens estejam em nome da Requerente;
- todos esses bens foram adquiridos com dinheiro do seu marido, muito embora alguns deles tenham ficado registados em nome da requerente, por terem sido comprados através de fundos comunitários, a que a mesma concorria;
- os bens assim adquiridos são os constantes do contrato de comodato, celebrado a ../../2023, entre a Requerente e a Requerida;
- tal contrato era e é do inteiro conhecimento da actual sócia-gerente da Requerente;
- enquanto a Quinta ... foi explorada pelo “casal” formado pela Requerida e por BB, houve diversas vendas de produtos agrícolas efectuadas em nome da sociedade Requerente, por ordem deste;
- era o “marido” da Requerida quem punha e dispunha no que respeitava à maneira como eram dirigidos os negócios, o que há muito estava estabelecido entre o “casal”;
- a Requerente nada teve a ver nem interveio na produção do vinho de 2023 ou no cultivo das uvas, usadas para o fazer;
- a Requerente nunca teve quaisquer instalações na Quinta ..., apenas aí tendo sido localizada a sua sede, por aí residir o seu sócio maioritário e gerente;
- o contrato de comodato de 2022, que a Requerida desconhecia, apenas foi outorgado para permitir que a Requerente substituísse o seu sócio-gerente como candidato a fundos europeus”.
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Na decisão anterior (de 12 de Julho de 2024), foram dados como provados os seguintes factos (que o tribunal recorrido considerou manter na matéria de facto da decisão final, em tudo o que não fosse contrariado pelos ali descritos):

“…1. A Requerente EMP01... – Sociedade Agrícola, L.da dedica-se à actividade de exploração de produtos agrícolas e pecuários em todos os seus ramos, com preparação, transformação e comercialização dos mesmos, bem como ao exercício de actividades afins, como a aquisição de propriedades para a exploração directa, turismo rural e promoção e prestação de serviços e actividades afins.
2. A Requerente tem dois sócios, a EMP02... – SGPS, S.A., detentora de uma quota com o valor nominal de € 24.000,00, e BB, detentor de uma quota de valor nominal de € 1.000,00.
3. Na Conservatória do Registo Predial ..., a aquisição dos prédios infra identificados encontra-se registada em nome de BB:
a) pela Ap. ... de 2007/09/11, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...63.º, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 9.727m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...30;
b) pela Ap. ... de 2007/09/11, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...65.º, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 27.480 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...30;
c) pela Ap. ... de 2007/09/11, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...67.º, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 26.378 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...17;
d) pela Ap. ... de 2007/09/06, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...81.º, sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 26.075 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10;
e) pela Ap. ... de 2006/05/19, o prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...91.º sito em ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 77.905 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19;
f) pela Ap. ... de 2006/02/10, os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos ...13... e ...25.º sito em Quinta ..., da União das Freguesias ... e ..., com a área total de 149.861,10 m2 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...10.
4. A Requerente foi constituída a 27.08.2007 com o fim de se dedicar à exploração agrícola dos prédios rústicos identificados em 3., principalmente com o objectivo de produzir e comercializar azeite, amêndoas e vinho.
5. Nesse sentido, a 16.07.2008, mediante o documento denominado «Contrato de Comodato» que se encontra junto a fls. (8.º documento anexo à p.i.) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, BB, na qualidade de “dono e legítimo possuidor” dos prédios nele identificados, declarou ceder “gratuitamente… e por mero favor pelo período de 20 anos” à Requerente a exploração e os rendimentos daqueles.
6. Os prédios que no documento referido em 5. estão identificados correspondem aos prédios rústicos identificados em 3., quando ainda tinham o artigo matricial da extinta Freguesia ....
7. Desde a data da sua constituição, até ../../2024, o sócio BB foi o gerente da Requerente, exercendo tais funções efectivamente.
8. Não obstante, a partir do início do ano de 2021, paulatinamente, a gestão corrente passou a ser exercida pela Requerida AA, trabalhadora da Requerente desde ../../2013 a quem foi atribuída, a partir de 2018, a categoria profissional de directora.
9. Para exercer a sua actividade, a Requerente, com entradas da sócia EMP02... – SGPS, S.A., no período compreendido entre 2007 e 2023, realizou investimentos na aquisição de diversos bens e equipamentos, cujo valor global ascendeu à quantia de € 661.681,00.
10. Assim, a Requerente construiu um pavilhão nos terrenos em referência, realizou furos de água, plantou vinhas, amendoal e olival, instalou e montou um sistema de rega, colocou diversos toldos, portões, janelas, rede, vedação e telas, impermeabilizou a charca/lagoa existente, instalou um sistema de aquecimento, ventilação e ar condicionado e implementou um processo de produção biológico, destinado à melhoria das práticas de rega e fertilização nas explorações olivícolas, de modo a assegurar a sustentabilidade do olival.
11. Além desses investimentos, a Requerente adquiriu, entre outros, os seguintes bens: a) dez cubas de inox (sendo uma pneumática ...-304 1000 com tripé) e uma dorna; b) três tractores, sendo um da marca ... com a matrícula ..-..-CL e outro da marca ..., com a matrícula ..-GI-.., e uma caixa carga para tractores; c) uma roçadora hidráulica ... e uma roçadora ...; d) três vibradores de azeitona sendo um com chapéu 7m e outro da marca ... 800; e) dois pulverizadores ...; f) uma máquina descascadora, uma máquina de encapsular, uma máquina de enchimento e uma máquina de pressão; g) uma bomba de captação de água, uma bomba injectora e bomba doseadora, duas electrobombas, sendo uma de marca ... e uma bomba submersível; h) um triturador e um limpa-bermas, ambos de marca ...; i) um equipamento de vigilância; j) uma niveladora, uma mini-escavadora ... com ancinho; k) um esmagador e uma prensa hidráulica; l) um disco desbrozador de marca ...; m) uma lavadora de alta pressão EE e um aspirador Torke; n) uma viatura ligeira de mercadorias com a matrícula ..-DL-..; o) um bidão inox 50kg; p) uma seringadora com galheta; q) um corta mato; r) um porta paletes de marca ... e um escarificador; s) um aquecedor a óleo de marca ...; t) uma distribuidora de adubo; e u) um vasilhame.
12. Todos esses bens constituem os meios de produção de que a Requerente não dispunha e que eram necessários à exploração agrícola dos referidos terrenos.
13. Por título de «Doação de Usufruto» outorgado em 05.11.2021, que se encontra junto a fls. (10.º documento anexo à p.i.) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, BB doou à Requerida AA o usufruto dos prédios rústicos identificados em 3., cuja exploração e rendimentos tinham sido cedidos à Requerente em 2008 pelo período de 20 anos.
14. Não obstante, a Requerente continuou a fazer, como sempre havia feito desde o ano de 2008, a exploração agrícola dos referidos terrenos, sem a oposição de quem quer que seja, incluindo da Requerida, à vista de todas as pessoas, incluindo da Requerida, colhendo os seus frutos e deles retirando todas as suas utilidades, de forma ininterrupta, na convicção de o estar a fazer por direito próprio.
15. Acresce que, no dia 01.01.2022, BB e a Requerente elaboraram um novo documento denominado «Contrato de Comodato» que se encontra junto a fls. (11.º documento anexo à p.i.) e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através do qual o primeiro declarava ceder gratuitamente à Requerente, pelo período de 10 anos, a exploração que já havia ter declarado ceder em 2008, dos mesmos prédios rústicos.
16. A elaboração desse «Contrato de Comodato» foi necessária para que a Requerente pudesse continuar a auferir os apoios e subsídios à exploração dos terrenos agrícolas em referência, atribuídos pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), e teve na sua base a alteração da identificação dos artigos matriciais, vigente que ainda estava o acordo referido em 5..
17. A feitura de tal documento foi do conhecimento da Requerida, que nunca manifestou qualquer oposição a que BB mantivesse a cedência da exploração dos prédios rústicos à Requerente, não obstante a doação do usufruto dos mesmos.
18. A doação do usufruto dos prédios rústicos à Requerida não foi comunicada à sócia EMP02... – SGPS, S.A. nem respectivos accionistas, nem pela Requerida nem pelo sócio e gerente BB.
19. Apesar da doação à Requerida, a exploração dos terrenos agrícolas em causa continuou a ser efectuada pela Requerente até ao dia em que BB deixou de residir na Quinta ....
20. Nas instalações da Requerente sitas na ..., existiam diversos depósitos (cubas em inox) de vinho, a saber: i) um depósito sempre-cheio de 1000 litros, contendo 800 litros de vinho tinto (2021), apto a ser designado e qualificado com Denominação de Origem Protegida/..., vulgo ..., sendo o vinho e depósito pertença da Requerente; ii) um depósito sempre-cheio de 900 litros, contendo 800 litros de vinho tinto (2020, mas registado em 2021), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho e depósito pertença da Requerente; iii) um depósito sempre-cheio de 900 litros, contendo 200 litros de vinho branco (2022), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho e depósito pertença da Requerente; iv) um depósito sempre-cheio de 900 litros, contendo 100 litros de vinho tinto (2022), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho pertença da Requerente e o depósito pertença de FF; v) um depósito convencional de 1000 litros, contendo 1000 litros de vinho tinto (2022), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho pertença da Requerente e o depósito pertença de GG; vi) um depósito convencional de 550 litros, com duas portas, contendo 550 litros de vinho tinto (2021), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho e depósito pertença de FF; vii) um depósito convencional, com capacidade para armazenar 550 litros, contendo 550 litros de vinho tinto (2021), apto a ser designado e qualificado com ..., sendo o vinho pertença da Requerente e o depósito pertença de GG.
21. Nas instalações da Requerente há ainda um saco, ainda por abrir, com 1.000 rolhas, pertença da Requerente.
22. A partir do segundo trimestre de 2023, a Requerida fez suas as uvas, o vinho,  azeite, as amêndoas e outros produtos pertencentes à Requerente.
23. Em Dezembro de 2023/Janeiro de 2024, a Requerida AA informou a Requerente de que, no ano de 2023, não houve colheita/apanha de uva, azeitona e amêndoa, o que não corresponde à verdade porque, no dia 16.08.2023, a Requerida dirigiu-se à EMP03..., L.da para entregar 1.280 kg de uva.
24. Esse fornecimento não lhe foi pago naquele momento porquanto a Requerida se recusou a emitir factura e fornecer o IBAN associado a uma conta bancária titulada pela Requerente.
25. Sem embargo da entrega da uva realizada, não foi emitida qualquer guia de transporte, nem qualquer factura, tendo o negócio sido deliberadamente ocultado à Requerente pela Requerida.
25. A Requerente não recebeu qualquer pagamento pela entrega da referida uva, mas acabou por ser pago à Requerida.
26. Também não foi emitida qualquer guia de transporte para entregas de amêndoas e azeitona no ano passado, inexistindo na contabilidade da Requerente qualquer registo de venda de vinho, azeite ou amêndoa, no que concerne ao ano de 2023.
27. Ou a Requerida realizou vendas não documentadas em seu benefício e proveito exclusivo, tendo, para esse fim sido deliberadamente ocultadas à Requerente, ou as uvas, as azeitonas e as amêndoas colhidas estão a deteriorar-se.
28. A Requerida mantém-se na posse do vinho existente nos depósitos do ano de 2023, se já não o tiver vendido, fazendo seu o respectivo produto.
29. Por causa de um relacionamento amoroso que à data matinha com BB, e foi mantendo até 2024, a Requerida reside na Quinta ..., em ..., desde o ano de 2008, mais concretamente no prédio urbano correspondente ao artigo ...50.º da União das Freguesias ... e ..., cujo usufruto também lhe foi doado, onde aquele edificou uma casa de habitação.
30. BB passou a habitar com permanência na Quinta ..., ..., a partir de Abril de 2023, apesar de desde Maio de 2021 ali residir com regularidade, cerca de 7/15 dias por mês.
31. Na sequência de sérios desentendimentos entre ambos, que determinaram a apresentação de queixa criminal, BB abandonou a casa onde residia com a Requerida, na Quinta ..., em finais de Março de 2024, passando, desde então, a residir com a filha CC.
32. CC foi designada gerente da Requerente em ../../2024, na sequência da cessação de funções perpetrada pelo seu Pai.
33. No exercício das suas competências e funções, CC deslocou-se à sede da empresa, para se inteirar dos seus negócios, não acreditando que não existisse aprovisionamento de vinho, azeite, amêndoas, uvas e azeitonas nas instalações da Requerente.
34. Porque pretendesse proceder à contagem dos stocks existentes e fazer um levantamento do estado de conservação dos bens que são propriedade da Requerente, para o que era necessário aceder, quer aos terrenos agrícolas, quer aos bens e equipamentos por esta adquiridos, CC solicitou a presença da GNR ... para prevenir eventuais conflitos com a Requerida e remover quaisquer obstáculos que aquela lhe pudesse criar no pretendido acesso.
35. Assim, em finais de Maio de 2024, cerca das 11h00m, CC, acompanhada de algumas colaboradoras da empresa, depois de se ter identificado e exibido os documentos que comprovavam a sua qualidade de gerente e legal representante da Requerente, deslocou-se à Quinta ... com a presença de dois Guardas da GNR.
36. Aquando da chegada ao local, a Requerida não se encontrava presente.
37. Todavia, depois de ter sido contactada pela GNR, chegou quase de imediato.
38. A Requerida afirmou ser usufrutuária da Quinta ... e de tudo o que lá se encontra, pelo que não autorizava a entrada da gerente da Requerente e demais pessoas que a acompanhavam e que eram colaboradoras da empresa.
39. Confrontada com essa conduta, a gerente da Requerente, que apenas pretendia aceder às instalações da empresa que gere, aproveitando o facto de se encontrarem presentes no local dois Guardas da GNR, solicitou a dois dos colaboradores presentes que desmontassem o portão de modo a poderem entrar.
40. Os dois Guardas da GNR que se encontravam no local assistiram ao que estava a acontecer.
41. Enquanto se realizava a desmontagem do portão, chegou ao local uma senhora de nome não concretamente apurado que se dirigiu à gerente da Requerente e proferiu a seguinte afirmação, entre outras, “Vocês nem sabem com quem se meteram!”.
42. Cerca das 11h20m, a gerente da Requerente e as colaboradoras conseguiram entrar nas instalações da empresa.
43. No interior do armazém constataram a existência de diversas mercadorias em stock, designadamente várias caixas com garrafas de vinho rotuladas, garrafas e garrafões vazias e cubas de azeite e vinho, contra a informação que havia sido prestada pela Requerida.
44. Entretanto, chegou ao local o Senhor Comandante do Posto da GNR ..., que ordenou à gerente da Requerente, bem como aos seus colaboradores, que abandonassem o local, alegando que estariam a praticar um crime.
45. A gerente da Requerente e as suas colaboradoras acataram a ordem que lhes foi dada.
46. Antes de abandonarem a Quinta ..., voltaram a colocar o portão no local, em perfeito funcionamento e sem nenhum dano.
47. Desta forma a Requerida obstou a que a gerente e os outros colaboradores da empresa pudessem retirar do local qualquer bem, ferramenta, equipamento, viatura ou utensílio, o que fez, sabendo que tais bens não lhe pertenciam, mas sim, à Requerente, cuja aquisição não ignorava, pois era trabalhadora da Requerente, inclusivamente, exercendo as funções de directora.
48. A Requerente está impossibilitada de exercer a sua actividade, na Quinta ... por estar impedida de aceder às suas instalações e aos terrenos agrícolas que explora e de utilizar e/ou levar consigo os bens, utensílios, ferramentas, viaturas, tractores e demais equipamentos que adquiriu e ainda são sua propriedade.
49. Desta forma, ainda que quisesse desenvolver a sua actividade noutros terrenos e locais, sem ter em seu poder os bens que constituem a totalidade dos seus activos, não o lograria fazer.
50. A Requerida está na posse exclusiva dos bens, tractores, viaturas, utensílios e ferramentas pertencentes à Requerente, podendo continuar a utilizá-los livremente, em seu exclusivo proveito, sem que aquela possa ter qualquer intervenção na administração da empresa.
51. Os actos cometidos pela Requerida causam danos à Requerente que, com o decurso do tempo, poderão ser irremediáveis e/ou de muito difícil recuperação, designadamente, determinar a sua insolvência, porquanto a exploração dos referidos terrenos agrícolas é a única actividade que exerce, estando em risco a sua situação financeira e viabilidade económica.
52. Nas mãos da Requerida, os bens da Requerente, além de sofrerem o desgaste inerente ao seu uso, podem ficar irremediavelmente danificados, com manifesto e evidente prejuízo para aquela.
53. Não são conhecidos outros rendimentos à Requerida que não seja o salário que aufere enquanto trabalhadora da Requerente.
54. Não podendo aceder aos terrenos agrícolas que explora, a Requerente ficará impedida de fazer a colheita da amêndoa (Julho e Agosto), a vindima (Setembro) e a apanha da azeitona (final do Outono), podendo perder-se as uvas, a azeitona e a amêndoa se a sua posse não lhe for restituída ou as colheitas e vindimas não ocorrerem.
55. Com a prática dos actos por si cometidos, a Requerida privou e continua deliberadamente a privar a Requerente da posse e fruição legítima dos terrenos agrícolas que explora com a autorização do seu proprietário e a anuição da Requerida usufrutuária e do uso e fruição dos bens, infraestruturas, tractores, utensílios, ferramentas e equipamentos que adquiriu.
56. A casa de habitação referida em 29. tem uma entrada autónoma e independente do conjunto predial composto pelos prédios identificados em 3. onde a Requerente sempre exerceu a sua actividade, estando implantada no prédio urbano que também foi objecto do título de «Doação de Ususfruto» e daquele está perfeitamente delimitado.

B. Factos não provados

Não ficou por demonstrar qualquer outra factualidade com relevância para a justa decisão da causa, sendo o mais alegado matéria irrelevante, de direito ou conclusiva”.
*
A - Da impugnação da matéria de facto:
(…)
Conclui-se assim pela improcedência da impugnação da matéria de facto.
*
B - Discorda também a recorrida da decisão proferida – de decretamento da providência cautelar -, alegando que quando aceitou a doação, desconhecia totalmente o contrato de comodato anteriormente outorgado pelo seu companheiro, o qual, ao fazer-lhe a doação do usufruto dos terrenos comodatados, só podia ter querido pôr fim ao comodato.
De qualquer modo, diz que o contrato de comodato nunca lhe poderia ser oposto, pois fora dos casos e termos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros (artigo. 406, nº. 2 do Código Civil), vinculando apenas as próprias partes, o mesmo não sucedendo com o usufruto, direito real menor, registável, oponível erga omnes, beneficiando das características da sequela e de prevalência.
Conclui assim que o conflito existente entre o contrato de comodato, outorgado a 16/06/2008 e a doação do usufruto em 05/11/2021, terá de ser resolvida favoravelmente a favor do usufruto, único direito que passou a limitar a propriedade de BB sobre os prédios em questão nos autos.
Diz ademais, que o contrato de comodato outorgado a 01/01/2022 é totalmente inválido, pois o comodante, por força da doação efetuada anteriormente, já não detinha a posse e uso dos prédios, pelo que nunca os podia ceder através de qualquer tipo de contrato.
Acrescenta que o artigo 280º do Código Civil não é aplicável, nem ao contrato de doação de usufruto, nem ao contrato de comodato consigo celebrado pela requerente em 2023. Além de que, a sua boa fé torna inoponível a si qualquer nulidade ou anulabilidade dos atos praticados pelo gerente da requerente BB.
Vejamos:
Relativamente aos contratos de comodato e de doação de usufruto, celebrados por BB com a requerente e com a requerida, em 2008 e 2021, respetivamente, consta da decisão recorrida o seguinte:
“Concluímos (…), de acordo com a factualidade indiciariamente provada, que se verifica o preenchimento do primeiro requisito, consistente na probabilidade séria da existência do direito da Requerente enquanto comodatária dos prédios rústicos e proprietária dos bens e meios de produção neles existentes.
E mantemo-la, com excepção do veículo automóvel, que se apurou pertencer à Requerida, e a alguns bens móveis que lhe emprestou o gerente da Requerente, em representação desta (…).
Continuamos a não ter dúvidas de que os terrenos foram sempre ocupados e utilizados em nome e no interesse da Requerente, de forma legítima, e ao abrigo de um acordo/contrato que havia celebrado com o respetivo proprietário (…)”.
E assim é, de facto.
Veio a requerente solicitar, neste procedimento cautelar, que lhe sejam restituídos os prédios de que é comodatária, identificados nos autos, e os bens de que é proprietária, também ali identificados, que estão na posse da requerida, de forma a poder retomar o exercício da sua atividade, de exploração agrícola dos referidos terrenos.
E provou-se indiciariamente que a Requerente, desde o ano de 2008, exerce a sua atividade de exploração agrícola nos referidos prédios, pertencentes a BB, os quais explora, ao abrigo de um contrato de «comodato», celebrado com o referido BB, pelo período de 20 anos.
Acontece que a requerida se intitula usufrutuária dos mesmos prédios, por ter recebido o seu usufruto por contrato de doação do seu proprietário, o mesmo BB, datado de 05.11.2021.
E provou-se efetivamente que a Requerida recebeu em doação do seu proprietário, o usufruto dos prédios rústicos cuja exploração estava cedida à Requerente, a qual, até 2023, exerceu neles a atividade que sempre exercera, sem a oposição de quem quer que seja, nos termos e condições que haviam sido contratualizadas com o proprietário dos terrenos, utilizando para o efeitos todos os meios de produção que àquela pertencem.
Concluiu-se assim na decisão recorrida, e bem, que resulta dos factos supra expostos o preenchimento do primeiro requisito da providência cautelar requerida, consistente na probabilidade séria da existência do direito da Requerente, enquanto comodatária dos prédios rústicos, e proprietária dos bens e meios de produção neles existentes.
Efetivamente, resultou provado nos autos que a 16.07.2008, mediante o documento denominado «Contrato de Comodato», BB, na qualidade de “dono e legítimo possuidor” dos prédios nele identificados, declarou ceder “gratuitamente” e por mero favor, pelo período de 20 anos à Requerente a exploração e os rendimentos daqueles.
Tal contrato pode ser qualificado como de comodato, que é definido na lei - no artigo 1129.º do Código Civil -, como o contrato gratuito, pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Houve efetivamente a celebração pelas partes de um contrato de comodato, que se traduziu na cedência dos terrenos rústicos à requerente, por parte do seu proprietário, pelo prazo de 20 anos, cedência essa que englobou não só o direito de uso dos terrenos, mas também o de os explorar e usufruir dos seus rendimentos, o que fizeram por via convencional (art.º1132º do CC).
*
Acontece que o mesmo proprietário, em 05.11.2021, doou o usufruto de tais prédios rústicos (assim como do prédio misto melhor descrito no contrato de doação, constituído pela casa de habitação pertencente à Quinta ...), à requerida, sua companheira há 25 anos, considerando esta que tal doação é incompatível com o contrato de comodato que o mesmo proprietário havia celebrado com a requerente – e daí a sua recusa em entregar-lhe os prédios rústicos comodatados.
Relativamente à afirmação feita por aquela de que desconhecia a existência desse contrato, tal afirmação não encontra respaldo na matéria de facto provada, nem pode ser considerada válida, á luz das regras da experiência da vida.
Pelo contrário, resulta da matéria de facto provada que na gestão da exploração agrícola, BB, como sócio gerente da requerente, foi sempre coadjuvado pela Requerida, sua companheira e trabalhadora remunerada daquela, desde Abril de 2013, a quem foi atribuída, a partir de 2018, a categoria profissional de diretora. E a partir do início do ano de 2021, paulatinamente, a gestão corrente passou a ser exercida unicamente pela Requerida.
Ora, sendo a requerida companheira do comodante, funcionária da requerente, com funções de direção desde 2018, e a viver na quinta que era a sede da requerente, à qual pertencem os prédios rústicos comodatados, muito se estranharia se desconhecesse que a requerente estava a explorar os terrenos pertencentes ao seu companheiro, nos termos e condições em que o vinha fazendo – de forma gratuita e de favor.
Mas adianta a requerida que o contrato de comodato nunca lhe poderia ser oposto, pois fora dos casos e termos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros (artigo. 406, nº. 2 do CCivil), vinculando apenas as próprias partes, o mesmo não sucedendo com o usufruto, direito real menor, registável, oponível erga omnes, beneficiando das características da sequela e de prevalência, pelo que terá de concluir-se que o conflito existente entre o comodato, outorgado a 16/06/2008, e a doação do usufruto em 05/11/2021, terá de ser resolvido favoravelmente a favor do usufruto, único direito que passou a limitar a propriedade de BB sobre os prédios em questão nos autos.
Sobre esta alegação há a dizer o seguinte:
Como se referiu, BB, proprietário dos terrenos, em 05.11.2021, doou o usufruto vitalício de tais prédios (assim como do prédio misto melhor descrito no contrato de doação) à Requerida (através de documento particular autenticado, junto aos autos).
O usufruto está legalmente definido como um direito de gozo pleno, temporário, de coisa ou direito alheio, logo como jus in re aliena (artigo 1439º do Código Civil).
Dessa definição decorrem para o usufruto duas características essenciais: a plenitude do gozo e a sua limitação temporal. Trata-se, portanto, de um direito real de gozo pleno e temporário de coisa ou direito alheios, em que o seu titular apenas não pode alterar a sua forma ou substância. Excluído o direito de o usufrutuário dispor da coisa, o usufruto aproxima-se do direito de propriedade, embora não seja um direito exclusivo; pressupõe sempre a existência do direito de nua propriedade ou propriedade de raiz, o que lhe defere a qualificação de um direito real de gozo menor.
Por isso afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (CC Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 546), que o usufruto é, quanto ao gozo da coisa e a despeito da sua raiz pessoal, “o espelho fiel da propriedade”; o seu titular, desde que respeite o destino económico da coisa, pode comportar-se exatamente como um proprietário.

Isto posto,
O usufruto de que é titular a requerida tem a duração da sua vida, e confere-lhe, no seu uso e fruição, a faculdade de tirar partido de todas as utilidades dos prédios, sem outra limitação que não seja a de preservar a sua forma ou substância.
Esta asserção do direito de usufruto não traduz, por isso, a sua compatibilização com o direito de uso e fruição de terceiro, surgindo até esse direito como incompatível com o usufruto.
Com efeito, sendo o usufruto um direito real de gozo, cujo conteúdo material é o exercício de poderes materiais sobre coisas corpóreas, o usufrutuário é o possuidor da coisa, o que lhe confere o direito de uso e fruição da mesma, de aproveitamento das suas utilidades e a apropriação das suas potencialidades produtivas.
E nessa medida mostra-se incompatível com outros direitos de terceiros, nomeadamente do comodatário, a quem foi concedido o direito não só de uso, mas também de fruição dos bens objeto do usufruto (por via convencional, nos termos previstos no art.º 1132º do CC).
Aceitamos que, do ponto de vista jurídico-legal seja possível configurar situações de limitação dos direitos do usufrutuário, desde que o título constitutivo contemple o correspondente acordo deste e do proprietário de raiz. Solução que a doutrina admite, quando o título constitutivo do usufruto exiba as declarações do usufrutuário e do terceiro beneficiário, no sentido acordado, designadamente salvaguardando a usufruição, por parte de outrem, dos prédios em causa, conjuntamente com o usufrutuário.
No caso dos autos, no entanto, tal não aconteceu: o contrato de doação não faz qualquer menção, nem à “restrição do usufruto”, nem à constituição de um direito de exploração da requerente, enquanto mutuária dos prédios, o qual, diga-se, sempre lhe teria de ser conferido pela usufrutuária, e não pelo proprietário de raiz, que já não dispunha dos poderes de uso, fruição e administração dos imóveis.

Dito isto,
É evidente que enquanto os terrenos ocupados pela requerente se mantivessem na esfera jurídica do seu proprietário e comodante, não haveria a menor dúvida quanto à inviabilidade de uma pretensão de desocupação impulsionada pelo mesmo, a não ser depois de decorrido o prazo que as partes estipularam para a cessação do contrato (prazo de 20 anos).
Como afirma Andrade Mesquita (Direitos Pessoais de Gozo, pág. 47), referindo-se ao estabelecimento de um prazo como impeditivo da reivindicação da coisa, que “se o comodante entrega a coisa ao comodatário para que este a use durante determinado prazo, forçosamente tem de entender-se que ele fica obrigado a não a repetir enquanto esse prazo não decorrer, pois não se vê que outro enquadramento possa explicar tal vinculação”.
Todavia, o quadro jurídico modificou-se depois da celebração do contrato de comodato: o usufruto dos terrenos foi cedido pelo seu proprietário à requerida.
Estamos perante dois direitos incompatíveis entre si: o direito pessoal de gozo da comodatária, e o direito real de usufruto da usufrutuária.
Perante esta incompatibilidade, seguiu-se na decisão recorrida a seguinte orientação:
“O legal representante da Requerente, claramente contra os interesses da sociedade, doou à Requerida o usufruto dos prédios rústicos que são indispensáveis ao exercício da actividade económica que está na base da sua constituição e consubstancia mesmo o seu objecto social. Dispõe o n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil que “[é] nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável” (…).
Das normas vindas de citar resulta para nós indubitável que, ao doar a favor da Requerida o usufruto dos prédios rústicos que havia emprestado à sociedade para neles exercer a actividade para a qual foi constituída, o sócio-gerente BB praticou um negócio nulo, porque contrário à lei que protege as sociedades de descapitalizações irresponsáveis e consequentes, sobretudo por parte do gerente, gritantemente contrário aos interesses da sociedade e claramente violadoras das normas societárias que determinam, nomeadamente, decisões por deliberação dos sócios (…).
Designadamente, a actuação do gerente implicou, na prática, uma verdadeira redução do capital social (sob a forma de suprimentos retirados antes do fim do prazo estabelecido), que carece de deliberação dos sócios, com risco sério da continuação da actividade da sociedade, que sem os terrenos e as culturas que neles existem (amendoal, olival, vinha) não pode desenvolvê-la, podendo estar em causa uma situação de insolvência iminente, devido a acto praticado pelo gerente.
Através do presente procedimento cautelar a Requerente veio usar da faculdade prevista no n.º 2 do artigo 260.º do C.S.C., ou seja, opor à Requerida – «terceiro» nos termos legais mas, pasme-se, sua funcionária! – as limitações de poderes do gerente resultantes do seu objecto social – o gerente não podia praticar actos contra os interesses da sociedade –, já que resultou indiciariamente provado que a Requerida não podia ignorar – residia na casa da Quinta ..., é funcionária da Requerente e geria de facto a exploração que era feita nos terrenos em causa – que tais terrenos tinham sido emprestados à sociedade para neles desenvolver a sua actividade e sem os quais esta ficaria seriamente comprometida (não é terceiro de boa fé)…”.
Com o devido respeito, não comungamos deste entendimento, porquanto tanto o comodante como o doador são proprietários da raiz dos prédios, tendo o sócio da requerente BB atuado apenas nessa qualidade, e não como representante da sociedade da qual também é sócio gerente. Daí que nunca seriam de aplicar ao caso as regras próprias das sociedades comerciais, nem a relação institucional do sócio com a sociedade.
Do que se trata, no caso dos autos, como invoca a requerida, é a eficácia dos contratos obrigacionais perante terceiros.
Efetivamente, embora existam alguns pontos em comum entre os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, nos primeiros dominam as características da sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos que apenas vinculam, em regra, os respetivos sujeitos (Ac. do STJ, de 19-3-02, CJSTJ, tomo I, pág. 139, e Sinde Monteiro, na R.L.J. 132º/60).
Em consequência, eventuais situações de confronto entre o titular do direito real (entre eles o de usufruto) e outros possuidores ou detentores da mesma coisa, elas deverão ser resolvidas a favor do titular do direito real, donde, reconhecido o direito de propriedade (ou de usufruto), o detentor ou o possuidor deve ser obrigado à restituição da coisa, a não ser que demonstre a existência de um título que, sendo eficaz em relação ao usufrutuário, legitime a recusa de restituição, ou que, por outra via, seja legítimo concluir pela inviabilidade da pretensão de desocupação.
Como refere Andrade Mesquita (ob. e local citados), os terceiros não estão vinculados a realizar o direito; o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído seja transferido para terceiro.
Estamos perante diferenças elementares entre direitos reais e direitos pessoais de gozo, que assomam no art.º 406º nº 2 do CC, ou seja, transmitido o direito ao abrigo do qual foram assumidas as obrigações do comodante (ou de outros contratos geradores de direitos pessoais de gozo), as mesmas não transitam para a esfera jurídica do adquirente, atenta a sua qualidade de terceiro, cujo direito (de propriedade ou equivalente) prevalece, sem as limitações decorrentes de contratos celebrados por anterior ou anteriores proprietários (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 93 a 96, designadamente quando aponta como características dos direitos de crédito a sua relatividade, de modo que a “sua oponibilidade a terceiros é limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias” (pág. 94).
Daqui decorre que, em regra, sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação do contrato apenas pode servir de legítimo motivo de recusa de restituição da coisa, se e enquanto esta se mantiver na esfera patrimonial do comodante.

Ainda assim,
Deve ser apreciado, se o comportamento da requerida, subsequente à aquisição do direito de usufruto, conjugado com os demais factos provados, possibilita a afirmação da sua vinculação autónoma ao contrato de comodato.
Para o efeito é importante analisar a matéria de facto provada.
Resultou provado que desde a data da sua constituição e até ../../2024, o sócio BB foi o gerente da requerente. Não obstante, a partir do início do ano de 2021, paulatinamente, a gestão corrente passou a ser exercida pela requerida.
Compreende-se assim, que por título de «Doação de Usufruto» outorgado em 05.11.2021, BB tenha doado à requerida, sua companheira de longa data, o usufruto de todos os prédios rústicos (e do urbano) que constituíam a Quinta ..., que era a residência do casal (e também sede da requerente), embora a exploração e rendimentos desses prédios tenham sido cedidos à sociedade em 2008 e pelo período de 20 anos.
Não obstante, a Requerente continuou a fazer, como sempre havia feito desde o ano de 2008, a exploração agrícola dos referidos terrenos, sem a oposição de quem quer que fosse, incluindo da Requerida, à vista de todas as pessoas, incluindo da Requerida, colhendo os seus frutos, e deles retirando todas as suas utilidades, de forma ininterrupta, na convicção de o estar a fazer por direito próprio.
Ou seja, a própria requerida, sabedora da existência do contrato de comodato anteriormente celebrado (pelo menos dos seus efeitos práticos), não reagiu a essa situação, mesmo detendo já direitos incompatíveis com os exercidos pela requerente.
Mas mais: no dia 01.01.2022, BB e a requerente elaboraram um novo documento, denominado «Contrato de Comodato» através do qual o primeiro declarou ceder gratuitamente à segunda, pelo período de 10 anos, a exploração que já lhe havia declarado ceder em 2008, dos mesmos prédios rústicos, sendo certo que a elaboração desse contrato foi necessária para que a requerente pudesse continuar a auferir os apoios e subsídios à exploração dos terrenos agrícolas em referência, atribuídos pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), e teve na sua base a alteração da identificação dos artigos matriciais.
Também a feitura de tal documento foi do conhecimento da requerida, que nunca manifestou qualquer oposição a que BB mantivesse a cedência da exploração dos prédios rústicos à requerente, não obstante a doação do usufruto a seu favor.
Ou seja, resultou provado que apesar da doação à requerida, a exploração dos terrenos agrícolas continuou a ser efetuada pela requerente até ao dia em que BB deixou de residir na Quinta ... (em março de 2024).
A síntese dos factos elencados, apreciados à luz das cláusulas gerais que enformam o nosso Direito das Obrigações, de onde sobressai o princípio da boa fé (que aflora em diversos preceitos, como os arts. 334º e 762º do CC), leva-nos a um resultado diverso daquele que decorreria de uma opção marcada por um mero conceptualismo jurídico-formal.
Para o efeito, importa considerar que a requerida, por detrás das aparências, não pode ser considerada “terceira” totalmente “indiferente” ao que se passou antes de se ter tornado usufrutuária dos prédios. Pelo contrário, tanto por razões de ordem familiar (companheira do comodante), como pela circunstância de se ter tornado usufrutuária dos prédios, a requerida surge-nos como terceira “comprometida” com os antecedentes que levaram ao despoletar do litígio e com a solução a dar-lhe, sendo a essa luz que devem ser apreciados os factos provados e formulados os respetivos juízos de valor.
Transparece assim da matéria de facto com suficiente nitidez, que a posição jurídica da requerida, a partir do momento em que se tornou usufrutuária dos terrenos, não equivale à de um qualquer sujeito estranho e desconhecedor do passado, que viesse invocar a sua qualidade de detentor de direitos reais sobre um bem, cujo direito de fruição lhe está vedado.
O contrário de tudo isso é-nos revelado pela sequência de factos acima relatados, em que se acentua, com efeitos na resolução do litígio, a sua relação umbilical com o comodante.
Neste contexto, apesar de o primeiro contrato de comodato (de 2008), por si só, não produzir efeitos externos em relação à requerida, e de o segundo (de 2022) também não, por ter sido celebrado já num momento em que o proprietário de raiz não dispunha de legitimidade para os onerar, a atuação desta, depois de adquirir o direito de usufruto sobre os prédios, em 2021, numa altura em que a requerente continuava a explorar os mesmos e continuou até 2023, pode e deve ser interpretada como declaração tácita da vontade de assumir obrigações idênticas às que o seu companheiro assumiu através dos contratos de comodato.
O encaixe desta situação no ordenamento jurídico, que a experiência da vida facilmente permite entender, e que a justiça do caso reclama, podia fazer-se na figura da assunção de dívida, no seu sentido mais genérico de assunção externa de “obrigações”, nos termos do art.º 595º, nº 1, al. b), do CC (como se decidiu no Ac. RL de 16-05-2006, disponível em www.dgsi.pt, e que seguimos aqui de perto).
Ou seja, tendo em conta os antecedentes, que eram do conhecimento da requerida, e de a mesma se ter “conformado” com a situação que se verificava aquando da aquisição do usufruto - e que também a beneficiava diretamente, como funcionária e gerente da requerente -, revela, de forma suficiente, a vontade de continuar a respeitar as obrigações a que o seu companheiro se vinculou em 2008, e que reiterou em 2022, consentindo que os prédios continuassem a ser explorados pela requerente.
Assim, a vinculação da requerida é tacitamente revelada pelo conhecimento que tinha do acordo, e pela sua atitude de não interferir na situação que rodeava a ocupação dos prédios, atitude esta especialmente qualificada pela proximidade familiar relativamente aos principais sujeitos do primitivo contrato: seu companheiro e requerente, sociedade por aquele gerida com a sua colaboração.
Sem ceder perante as regras que distinguem os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, assim se obtém o mesmo resultado decretado na sentença recorrida, seguindo um diverso percurso, que encontra no ordenamento jurídico o necessário apoio e prosseguindo simultaneamente os objetivos da justiça substancial, que devem servir de farol orientador na busca das soluções judiciárias (Ac. da Relação de Lisboa acima citado).
 Serve tudo isto para concluir que, apesar de o usufruto dos prédios ter sido transmitido à requerida posteriormente à conclusão do primeiro contrato de comodato, e o segundo já com a sua concordância/conivência, a desocupação dos mesmos pela requerente apenas pode ser exigida pela requerida quando ocorrer o termo do prazo aposto nos mencionados contratos.
A eficácia externa do direito de crédito também pode ser encontrada através da figura do abuso de direito, em casos em que tal seja o resultado aferido pelo sentimento coletivo (Almeida e Costa, R.L.J., 135º/134), que é de conhecimento oficioso deste tribunal.
Efetivamente, constituindo a exceção de abuso de direito um meio de defesa que visa obstar a resultados manifestamente injustos, nos termos do art.º 334º do CC, a sua apreciação basta-se com a delimitação de um acervo de factos cuja análise revele um manifesto desajustamento da solução decorrente do direito formal, e imponha uma solução diversa substancialmente mais justa.
Como tem sido acentuado reiteradamente pela doutrina e pela jurisprudência, o direito cessa onde começa o abuso, de modo que o uso, quando convertido em abuso, não pode colher da ordem jurídica a tutela que, em princípio, deveria merecer.
Ainda que Menezes Cordeiro advirta para os perigos da sua banalização, não deixa de acrescentar que “o abuso de direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes” (Tratado de Direito Civil, vol. I, tomo I, pág. 197. Cfr. ainda o capítulo “O exercício inadmissível de posições jurídicas”, na sua obra Da Boa Fé no Direito Civil, págs. 661 e ss., e Direito das Obrigações, vol. I, pág. 282).
Por certo, a figura não pode ser encarada como “panaceia” para todas as situações em que ao juiz pareça “injusta” a solução decorrente da aplicação dos preceitos de direito positivo, sob pena de se pôr em perigo a segurança jurídica que o ordenamento jurídico deve garantir. Por isso, demos preferência ao outro fundamento, o primeiramente enunciado.
Mas, com a ponderação devida, e assentando a construção jurídica em alicerces integrados por elementos de facto ou juízos de valor sobre os factos relevantes, não deve recear-se a interferência desse elemento moderador do exercício de direitos, ainda que a título de reforço da decisão final.
Por isso, quando, em termos meramente objetivos, o titular do direito faça deste um uso manifestamente reprovável, manifestamente antagónico com o que seria expectável, devem impedir-se ou limitar-se os efeitos pretendidos, sobrepondo ao interesse meramente individual os valores mais importantes e perenes que enformam o ordenamento jurídico.
Ora, a tutela atribuída à requerida, adquirente do direito de usufruto sobre os prédios, não pode justificar que, a pretexto das características do direito real em causa, em contraposição com a ausência de eficácia externa das obrigações que marca os contratos em geral, intente e obtenha do tribunal a confirmação do seu objetivo, obstando a que a requerente continue a explorar os terrenos que lhe foram cedidos pelo seu proprietário.
Para o efeito, há que relevar especialmente a relação da requerida com os demais interessados (sociedade e sócio gerente) e o conhecimento que detinha da situação geradora da ocupação dos prédios, elementos que implicam uma especial submissão às regras da boa fé, entendidas no seu sentido objetivo, limitadoras de atos de que possam resultar prejuízos para terceiros (cfr. neste sentido, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 648, e Direito das Obrigações, vol. I, pág. 258).
Só por farisaica atitude de sobrevalorização de aspetos meramente formais e por omissão da qualificação substantiva dos comportamentos reais, se poderia passar ao largo daquilo que a experiência comum permite qualificar como ato objetivamente destinado a “anular” os efeitos do comodato, em prejuízo da Requerente, que assim seria despojada dos terrenos agrícolas que explora, e nos quais depositou legítimas expectativas financeiras.
Assim, ainda que não fosse possível vincular a requerida ao comodato, sempre seria de impedir a pretendida restituição dos prédios, por tal configurar um objetivo manifestamente contrário aos princípios da boa fé, e antagónico com o fim social ou económico do direito de usufruto, assim instrumentalizado em prejuízo da requerente.
Tudo para concluir, ainda que em termos complementares, que também pela via da invocação abusiva do direito de usufruto, na sua vertente do jus utendi, ficaria impedida a satisfação da pretensão da requerida, de retenção dos prédios explorados pela Requerente.
Face ao exposto, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, é de confirmar a decisão recorrida relativamente à obrigação da requerida de restituição dos prédios comodatados à requerente.
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Relativamente aos bens móveis, também retidos pela requerida, e sobre os quais ela invoca deter um contrato de comodato, dir-se-á o seguinte:
Resulta da matéria de facto provada que em ../../2023, mediante o documento denominado «Contrato de Comodato», o gerente BB, em representação da Requerente, declarou ceder gratuitamente à Requerida o uso dos tractores, alfaias e máquinas agrícolas nele identificadas nas alíneas a), b), c), d), e), f), g), h), i) e j), pelo período de 20 anos.
Trata-se de bens que a Requerente havia adquirido para exercer a sua atividade, com entradas da sócia “EMP02... – SGPS, S.A.”, no período compreendido entre 2007 e 2023, e cujo valor global ascendeu à quantia de € 661.681,00.
Os bens são os seguintes: a) dez cubas de inox (sendo uma pneumática ...-304 1000 com tripé) e uma dorna; b) três tractores, sendo um da marca ... com a matrícula ..-..-CL e outro da marca ..., com a matrícula ..-GI-.., e uma caixa carga para tractores; c) uma roçadora hidráulica ... e uma roçadora ...; d) três vibradores de azeitona sendo um com chapéu 7m e outro da marca ... 800; e) dois pulverizadores ...; f) uma máquina descascadora, uma máquina de encapsular, uma máquina de enchimento e uma máquina de pressão; g) uma bomba de captação de água, uma bomba injectora e bomba doseadora, duas electrobombas, sendo uma de marca ... e uma bomba submersível; h) um triturador e um limpa-bermas, ambos de marca ...; i) um equipamento de vigilância; e j) uma niveladora, uma mini-escavadora ... com ancinho.
Todos esses bens constituem os meios de produção de que a Requerente não dispunha, e que eram necessários à exploração agrícola dos referidos terrenos, sendo certo que a Requerente foi constituída em 27.08.2007 com o fim de se dedicar à exploração agrícola dos prédios rústicos identificados em 3., principalmente com o objetivo de produzir e comercializar azeite, amêndoas e vinho.
Perante os factos descritos, é legítimo concluir que, sem os bens comodatados à requerida, a requerente deixa de ter ao seu dispor os meios necessários à exploração agrícola dos terrenos mutuados; deixa, no fundo, de poder exercer a sua atividade.
Ora, na decisão recorrida considerou-se tal contrato de comodato nulo, pelas seguintes razões:
“O legal representante da Requerente, claramente contra os interesses da sociedade, doou à Requerida o usufruto dos prédios rústicos que são indispensáveis ao exercício da actividade económica que está na base da sua constituição e consubstancia mesmo o seu objecto social (…).
Designadamente, a atuação do gerente implicou, na prática, uma verdadeira redução do capital social (sob a forma de suprimentos retirados antes do fim do prazo estabelecido), que carece de deliberação dos sócios, com risco sério da continuação da actividade da sociedade, que sem os terrenos e as culturas que neles existem (amendoal, olival, vinha) não pode desenvolvê-la, podendo estar em causa uma situação de insolvência iminente, devido a acto praticado pelo gerente (…).
O mesmo se diga em relação aos bens que foram objeto do contrato de comodato celebrado entre o gerente BB, em representação da sociedade, e a Requerida, pois que são os seus instrumentos de trabalho, tratando-se de outro acto que afronta os interesses da sociedade.
Portanto, a resposta é que, ante a nulidade de que está ferido, quer o contrato de doação do usufruto, quer o contrato de comodato de alguns bens da sociedade, há-de prevalecer o direito da sociedade a ter uma existência efectiva, não fictícia, em detrimento do direito real de usufruto da Requerida, que nunca desenvolveu qualquer actividade agrícola naqueles terrenos a não ser em benefício da Requerente, como sua funcionária e como companheira (também no sentido de coadjuvante) do sócio e gerente daquela. Donde termos falado de «abuso de direito».

Vejamos:
Estamos aqui, indubitavelmente perante um ato da sociedade, embora através do seu legal representante, o sócio BB, o que nos leva a aferir da capacidade da sociedade para realizar tal ato de liberalidade a favor de um terceiro.
Como se sabe, a capacidade de direito das sociedades comerciais, entendida esta como a medida da extensão da sua suscetibilidade de serem sujeitos de relações jurídicas, colhe a sua regulamentação legal no art.º 6º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, do qual se extrai que “a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessárias ou convenientes à prossecução do seu fim”, fim esse que, nas sociedades com aquela indicada natureza (de sociedades comerciais), se pauta pela obtenção de lucros a distribuir pelos respetivos sócios ou acionistas (artigos 980º do Código Civil, e  2º, 21º, n.º 1, alínea a), 22º, 31º, 33º, 176º, nº 1, alínea b), 217º e 294º, entre outros, do Código das Sociedades Comerciais).
Por outro lado, de acordo com o princípio da especialidade do fim, que integra o fator determinante e específico da constituição das sociedades, quer civis, quer comerciais, os atos gratuitos mostram-se, regra geral, excluídos da capacidade de gozo daquelas sociedades, por não serem necessários ou convenientes à prossecução do aludido fim, como se estatui no art.º 160º, n.º 1, a contrário, do Código Civil, relativamente às sociedades civis.
Donde, a prática por parte daquelas de algum ato de natureza gratuita – como é o caso do comodato -, tem como consequência direta e imediata que sobre os mesmos recaia o vício da sua nulidade, a qual pode ser declarada a todo o tempo, por qualquer interessado, sem qualquer dependência de prazo.
Excluem-se apenas as liberalidades usuais, nos termos estatuídos no art.º 6º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, designadamente, os brindes a clientes, as ofertas feitas pelos promotores de vendas, as gratificações aos trabalhadores, os donativos, objeto de devida publicitação, do patrocínio a iniciativas culturais ou desportivas ou efetuados no âmbito do estatuto do mecenato.
Mas nunca uma cedência gratuita, como a que foi feita à requerida, do uso dos tractores, alfaias e máquinas agrícolas (praticamente todos os bens da sociedade, necessários à sua atividade),  no valor global de € 661.681,00, pelo período de 20 anos.
Tal cedência gratuita, apelidada pelas partes de “contrato de comodato” extravasa largamente o que se tem por usual no âmbito da atividade societária, por manifestamente prejudicial, não só aos seus acionistas ou sócios, mas aos credores da sociedade, razão pela qual aderimos à decisão da primeira instância, de considerar que enferma de nulidade o contrato de comodato celebrado entre a requerente e a requerida datado de ../../2023.
Face ao exposto, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente, é de confirmar a decisão recorrida relativamente à obrigação da requerida de restituição dos bens pertencentes à requerente (com exclusão do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca ... e com a matrícula ..-DL-..).
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Relativamente à inversão do contencioso:
Pugna também a recorrente pela revogação da decisão quanto à Inversão do contencioso (relativamente aos bens, equipamentos, utensílios e ferramentas) – embora sem rebater os fundamentos de tal decisão.
Mas sem razão, como assertivamente se decidiu na primeira instância, a cuja decisão aderimos:
 “A propósito, prescreve o artigo 369.º, n.º 1, do C.P.C. que “[m]ediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” (…).
A possibilidade de inversão do contencioso leva a que o procedimento cautelar deixe de ser necessariamente instrumental e provisório, porquanto permite que se forme convicção sobre a existência do direito apta a resolver de modo definitivo o litígio, verificados os pressupostos legalmente previstos.
Entende-se, pois, que, nos casos em que no procedimento cautelar é produzida prova suficiente para que se forme convicção segura sobre a existência do direito acautelado (prova stricto sensu do direito que se pretende tutelar) e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, não haverá razões para que não se resolva a causa de modo definitivo (evitando-se a “duplicação da prova”), ficando o requerente dispensado do ónus de propor a acção principal; aquela prova stricto sensu do fundamento dessa providência determina, necessariamente, uma inversão do contencioso (…).
Ora, tendo em conta os fundamentos supra expostos, ainda que a matéria adquirida no procedimento permita formar convicção segura acerca da existência do direito da Requerente, a natureza da providência decretada não é adequada a realizar a composição definitiva do litígio no que respeita ao direito por parte da Requerente de explorar os terrenos rústicos de que a Requerida é usufrutuária, precisamente por causa da existência da escritura de doação do usufruto, cujos efeitos se manterão no ordenamento jurídico enquanto não for posta em causa a sua validade – não só nesta sede.
Já quanto à propriedade dos bens, equipamentos, utensílios e ferramentas, mantém-se a decisão de dispensar a Requerente do ónus de propor a acção principal e, portanto, o decretamento da inversão do contencioso (…).
A natureza da presente providência (…) no que diz respeito à propriedade dos referidos bens, equipamentos, utensílios e ferramentas a restituir, mostra-se adequada à composição definitiva do litígio”.
Improcede assim a Apelação na sua totalidade.
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IV- DECISÃO:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas da Apelação pela recorrente (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
Notifique e DN
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Guimarães, 23.1.2025

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Fernanda Proença
2ª Adjunta: Conceição Sampaio