Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
DIFAMAÇÃO
ADVOGADO
MINISTÉRIO PÚBLICO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
PROFISSÃO
Sumário
1. A liberdade de expressão do advogado no âmbito de um processo judicial é inerente à sua independência como profissional livre, pressuposto do bom desempenho das suas funções enquanto colaborador essencial de uma sã administração da justiça e, a par disso, constitui uma ferramenta indispensável de aprofundamento do direito do seu cliente a um processo justo e equitativo, tudo convergindo para que se lhe reconheça um amplo espaço para um livre e vigoroso debate. 2. Não pode assim exigir-se do advogado que, ao patrocinar uma causa, use de uma linguagem inócua ou inofensiva, mesmo quando não seja inócuo ou inofensivo o que entenda sustentar, com alguma aparência de razoabilidade, em representação do seu cliente. 3. A liberdade de expressão do advogado no exercício da sua profissão compreende não apenas a substância das ideias e da informação a que se refere, mas também a forma como as exprime. 4. É manifesta a essencialidade do Ministério Público e, por inerência, de todos os magistrados que o compõem, para o bom funcionamento do Estado de Direito e do sistema de justiça em particular. 5. Com toda essa sua importância pública vem também, contudo, a sujeição a um inevitável, significativo e correspondente escrutínio. 6. O funcionamento do Ministério Público como um todo, ou a atuação profissional de qualquer dos seus magistrados singularmente considerado, é matéria de grande interesse público, pois desse funcionamento e dessa atuação dependem, na área em apreço, a própria realização do Estado de Direito. 7. É por isso de aceitar que haja tendencialmente uma reduzida margem de tolerância para restrições à liberdade de expressão neste domínio, mesmo no que toca ao exercício da crítica relativa a processos que ainda estejam em marcha. 8. O advogado, particularmente quando no exercício da sua profissão, no âmbito de um processo em concreto, em defesa do seu representado, goza, assim, de uma ampla margem de crítica da atuação, com que não concorda, do Magistrado do Ministério Público; e no exercício dessa liberdade, que existe, insista-se, quanto à substância e quanto à forma, pode usar de palavras duras, cáusticas e agressivas, conquanto o que diz ou escreve não se consubstancie num insulto gratuito e apresente ligação ao caso concreto e uma suficiente base de facto.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 14) foi proferida sentença em 21 de fevereiro de 2024, que contém o seguinte dispositivo: «Pelo exposto, decide-se absolver a arguida, AA, da prática do crime de difamação agravada com publicidade, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, n.º 1, 182º, 183º, n.º 1, alínea a) e 184º, com referência à alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, todos do Código Penal, de que vinha acusada.»
O Ministério Público recorreu, formulando as seguintes conclusões: «1. A arguida foi, nestes autos, acusada pela prática de um crime de difamação agravada com publicidade, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º, 183.º, n.º 1, alínea a) e 184.º, com referência à alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, todos do Código Penal. 2. Na douta sentença recorrida foi a arguida absolvida do referido crime por a M.ma Juíza a quo ter entendido que se verificou uma causa de exclusão da ilicitude. 3. Não concordando com a decisão da mesma vem o Ministério Público recorrer. 4. Entende primeiramente verificar-se o vício previsto no 410.º, n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal atenta a incongruência entre a matéria de facto e a fundamentação. Vício este que deverá ser objeto de apreciação pelo tribunal superior. 5. Há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. 6. Neste caso, na decisão sobre a matéria de facto o tribunal deu como não provado que a arguida: “1. Quis, ao efectuar as aludidas imputações, cujo teor depreciativo não ignorava, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu. 2. Actuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.” 7. Todavia na fundamentação, no ponto 3, ao aplicar o direito aos factos fixou o tribunal que: “Demonstrado que a arguida escreveu em RAI que o Magistrado do Ministério Público tinha agido de forma parcial e iníqua, entre o mais, preenchido está o elemento objectivo típico. / Sabendo a arguida que tais expressões eram aptas a diminuir o ofendido na sua honra e consideração, é de concluir que a factualidade também integra o tipo subjectivo.” 8. Contradição existe, pois se a arguida com a sua conduta preencheu os elementos do tipo, nomeadamente o subjetivo, não poderia ser entendido a mesma não tinha dolo. 9. Não concorda também o Ministério Público com a matéria de facto plasmada na decisão recorrida pois entende deverem ser dados como provados os pontos 1 e 2 da matéria de facto não provada, já acima transcritos. 10. Nos termos do art.º 410.º do Código de Processo Penal: “1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. 2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: […] b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.” 11. A doutrina e jurisprudência entendem que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, apenas podendo determinar alteração à matéria de facto assente se concluir que os elementos de prova “impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão” - Ac. do TRL datado de 30-09-2020 e proferido nos autos 260/18.0SELSB.L1-3, in dgsi.pt. 12. Entendemos ser o caso com o qual nos deparamos nestes autos. 13. Nos presentes autos a prova é, no essencial, documental uma vez que a arguida não compareceu em julgamento, não tendo pretendido apresentar a sua versão dos factos e a única pessoa ouvida foi o ofendido o qual apenas esclareceu não ter qualquer relação prévia de animosidade com a arguida e não conhecer pessoalmente a mesma (conforme a passagem acima devidamente indicada). 14. A arguida imputou ao ofendido ter dirigido o inquérito no sentido de obter um resultado específico que lhe permitisse proferir decisão por si pretendida em consequente violação do dever de imparcialidade e da prossecução do apuramento cabal dos factos a que estava obrigado enquanto titular do inquérito. 15. A arguida atuou na qualidade de advogada do assistente e no exercício do mandato que lhe fora concedido apontando ao ofendido porque magistrado titular do inquérito nesses autos, ou seja, visou o mesmo no âmbito e por causa da atividade profissional. 16. Como profissional que labora com a língua escrita, sobretudo uma profissional do direito no âmbito da função central da sua atuação, a saber, a elaboração de requerimento processual em defesa e no interesse do seu cliente, a arguida detentora de reforçado domínio da língua portuguesa e dos seus meandros, e formação jurídica específica com relevância para o caso concreto, tinha necessariamente que conhecer o sentido das palavras que escolhia e empregava e o que as imputações e juízos de valor implicam para o ofendido. 17. Esta agiu ciente das consequências da sua atuação pretendendo atingir o ofendido na sua honra e consideração enquanto homem e profissional. 18. Da mera leitura do requerimento resulta que esta sabia e queria imprimir um tom específico de ataque ao requerimento, que imputa má conduta profissional do ofendido. 19. A arguida não satisfeita com o desfecho do inquérito pretendeu atingir pessoal e profissionalmente o visado. 20. Isso mesmo se retira do facto desta, no requerimento de abertura de instrução, ter inserido o ponto “I – Prévio” que tem como objetivo apenas apreciar a conduta do magistrado imputando-lhe não só a parcialidade, como a direção do inquérito para um objetivo específico, a prática de atos ofensivos e ilegais e inclusive a denegação do exercício da sua função. 21. Apenas depois de tal apreciação vem a arguida então apresentar os motivos de facto e direito que fundamentam o seu requerimento. 22. Atento o teor das expressões e sendo a arguida conhecedora das especificidades do exercício da prática forense nunca se poderá conceber que não tivesse admitido como possível que as mesmas ofendam a honra e reputação do ofendido tanto enquanto magistrado no exercício das suas funções, mas também enquanto pessoa, indivíduo integrante da sociedade e imbuído de honra e consideração. 23. Mais, como advogada necessariamente conhecia o dispositivo penal que pune a conduta em causa e sabia, por isso, que a sua atuação integrava o mesmo. 24. Em conformidade, entendemos dever a matéria de facto ser alterada no sentido propugnado acima. 25. O bem jurídico protegido nestes ilícitos é a honra e a consideração do indivíduo enquanto pessoa e integrante da sociedade. 26. A honra é a “dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu. A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama., a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.” - Código Penal Anotado, Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Vol. III, 4ª Ed., Rei dos Livros. 27. O ordenamento jurídico-penal português alarga a tutela da honra à consideração ou reputação exteriores (Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial Tomo I, 2.ª Ed. Coimbra Editora). 28. A conduta, para ser penalmente relevante, tem de ir além da violação das regras da cortesia e da boa educação ferindo o mínimo de respeito indispensável a preservar nas relações interpessoais. 29. Nestes crimes importa ter em conta que a liberdade de um indivíduo poder exprimir a sua opinião, discordância, desagrado ou indignação tem não só apoio na nossa Constituição (art.º 37.º da CRP), mas também em diversas convenções internacionais e, sobretudo, no Artigo 10.º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. 30. É preciso prestar particular atenção ao contexto específico no qual os atos foram praticados, a saber, no âmbito de um processo penal no exercício do mandato forense sendo a arguida advogada de um dos intervenientes processuais e devendo atuar para defesa dos interesses processuais do mesmo. 31. Neste caso, é entendimento generalizado, da jurisprudência nacional e do TEDH, que se deve permitir amplitude nas expressões utilizadas pelos advogados no exercício do mandato forense (o qual está protegido constitucionalmente - art.º 208.º da CRP). 32. A jurisprudência considera aceitável que o Advogado na defesa do seu cliente utilize uma linguagem forte, que inclusive pudesse, noutro contexto, ser considerada ofensiva da honra e consideração de alguém. No entanto, é premente que tal linguagem prossiga o interesse do cliente, seja necessária e ainda se contenha de modo razoável no contexto da prossecução daquele interesse. 33. Tem de existir um equilíbrio entre a liberdade de expressão do advogado e os bens jurídicos que são protegidos pelas normas dos crimes contra a honra. 34. De facto, uma sociedade democrática não pode manter os seus advogados quando intervenientes no processo judicial em permanente receio que um mero excesso de linguagem leve ao preenchimento de ilícito penal. Tem de permitir que se exprimam e aceitar diferenças de estilo, de intensidade, de linguagem nas intervenções dos mesmos pois afinal o patrocínio judicial é realizado por pessoas com as suas próprias caraterísticas, especificidades e experiências pessoais. 35. Por outro lado, devem preservar-se os tribunais e os procedimentos judiciais como local privilegiado da discussão dos direitos dos cidadãos e manter tal discussão no âmbito da urbanidade, dignidade, lealdade, profissionalismo e correção nas interações que sempre pautou a atuação dos profissionais do foro. 36. Efetivamente, os magistrados, no âmbito das suas funções estão sujeitos a um maior escrutínio que resulta especificamente dessas mesmas funções. Têm de aceitar e estar preparados para críticas mais ou menos acesas, com maior ou menor veemência ou eloquência, com maior ou menor elegância e até que possam roçar os limites da urbanidade. 37. Se os magistrados têm de ter a capacidade de lidar com a crítica, o que se compreende pois laboram em assuntos sensíveis, em contexto de litigiosidade e no âmbito de complexas relações humanas, essa acrescida necessidade de abraçar a crítica não deve levar a permitir toda e qualquer atuação dos demais intervenientes processuais. 38. É preciso que a liberdade de expressão e os diversos estilos de redação não escondam ataques pessoais ou profissionais que atinjam a honra e consideração dos intervenientes processuais. 39. Conforme acima referido as expressões foram plasmadas em requerimento de abertura de instrução em processo penal pela mandatária do assistente, o qual tinha apresentado queixa que viu arquivada por despacho do ofendido. 40. A arguida emitiu um juízo de valor sobre o ofendido, o qual é claramente idóneo a desacreditar, desprestigiar e diminuir profissionalmente o mesmo no âmbito da sua atividade profissional. 41. Esta não se limitou a exprimir uma opinião de modo intenso e veemente, mas pretendeu atingir o visado aviltando-o com as suas palavras, atingindo-o na sua consideração e no modo como era visto pelos demais profissionais e intervenientes processuais. 42. A sua atuação constitui ataque ao imputar, sem fundamento sério, uma postura parcial, incutindo a ideia de que prevaricou ao dirigir o inquérito como o fez, tomando decisão iníqua. 43. Vejam-se os sentidos do vocábulo iníquo: que é contrário à justiça, à retidão, à equidade, que revela grande perversidade, malvadez; Malévolo, Malvado, Perverso. 44. Conforme acima referido do requerimento ressalta a vontade de atingir pessoal e profissionalmente o visado uma vez que a arguida, no requerimento de abertura de instrução inseriu um ponto específico apenas para apreciar a conduta do magistrado imputando-lhe não só parcialidade, como a direção do inquérito para um objetivo específico, escolha de provas, a prática de atos ofensivos e ilegais e inclusive a negação do exercício da sua função. 45. Mais, esse ponto encontra-se devidamente delimitado e separado das razões de facto e direito que fundam o requerimento de abertura de instrução. 46. Não critica o despacho, ataca o profissional, mas o modo como o fez e os juízos de valor que teceu pretende colocar em causa a honorabilidade e a consideração do mesmo. 47. Já se pronunciaram os tribunais portugueses sobre situações semelhantes com resultados variados, jurisprudência acima citada e para a qual se remete. 48. No conflito entre a honra e a liberdade de expressão, dois valores constitucionais, será de ponderar as circunstâncias do caso concreto harmonizando os mesmos de modo a permitir um equilíbrio e garantir o respeito de ambos. 49. Não é linear onde se deve colocar a linha em que um direito se sobrepõe ao outro de modo já não admissível. Será porventura testemunho da dificuldade e do cuidado que se deve pôr na apreciação deste limite a grande flutuação que tem sofrido na jurisprudência. No entanto tem-se reconhecido ultrapassar tal linha quando se atinja o “núcleo essencial das qualidades morais e profissionais da vítima, bem como a reputação e consideração externa, assim ultrapassando os limites permitidos pelo exercício do mandato forense e integrando conduta ofensiva da honra e consideração da pessoa visada” (Ac. do TRL, datado de 05-02-2013), quando se passa ao plano do ataque pessoal e, deixando de ter apoio na causa ou nos interesses prosseguidos, se pretende o rebaixamento da pessoa ou do profissional. 50. De facto, nas circunstâncias em que foram proferidas as expressões, estas ultrapassam a crítica ao comportamento profissional do ofendido já atingindo o bom-nome do magistrado sendo objetivamente ofensivo da honra e consideração pessoal e profissional do mesmo e desnecessário ao exercício do direito de crítica que assistia à arguida. 51. Em causa está, como acima também foi referido, o direito a não ser ofendido na sua honra, dignidade e consideração e o direito a não ser amesquinhado aos olhos da comunidade na qual se insere que neste caso é a comunidade dos seus pares e dos profissionais do foro bem como dos demais cidadãos que futuramente tenham intervenção em inquérito ou outro ato processual e sejam objeto de decisões pelo mesmo ofendido. 52. Mais, a utilização de tais expressões era totalmente desnecessária à defesa dos interesses processuais que patrocinava naquela causa, tendo as mesmas sido escritas apenas para colocar em causa a honorabilidade e a consideração profissional do ofendido sendo idóneas para o efeito. 53. Em conformidade, deve a decisão recorrida ser substituída por outra que condene a arguida pela prática do crime pelo qual foi acusada. Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal concedendo provimento ao presente recurso e, em consequência, alterando a douta decisão recorrida nos termos propugnados, V. Ex.as farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
A Arguida respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição): «1. A Recorrida concorda integralmente com o teor da decisão recorrida, não vislumbrando razões de facto e de Direito para a sua modificação pelo Douto Tribunal da Relação de Lisboa. 2. O Tribunal “a quo” valorou de forma justa e adequada todos os elementos probatórios. 3. Pugna-se, face ao exposto, pela manutenção da douta sentença recorrida, com todas as devidas e legais consequências. Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a douta sentença recorrida ser mantida na íntegra, como é de inteira JUSTIÇA!»
Chegados os autos a este Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta lavrou douto parecer, aderindo aos termos do recurso que fora interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando em suma pela procedência do mesmo.
Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
*
2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
São as seguintes as questões suscitadas pelo presente recurso:
a. Se padece ou não a sentença recorrida da apontada contradição insanável da fundamentação;
b. Se é ou não penalmente ilícita a conduta da Arguida, tendo em conta o contexto em que atuou e a liberdade de expressão.
*
2.2 A sentença recorrida
Tem a sentença recorrida o seguinte teor (transcrição das partes relevantes): «(…) III. Fundamentação de Facto 1.Factos Provados Da acusação e da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. O ofendido BB é procurador da República e exerce funções no ..., sita em .... 2. No âmbito das respectivas funções, o ofendido foi o titular do inquérito com o NUIPC 1323/20.8..., que correu termos na referida Secção, tendo proferido despacho de arquivamento do referido inquérito. 3. Por seu turno, a arguida AA é advogada de profissão e, no âmbito das respectivas funções, assumiu o patrocínio de CC, o qual assume a posição de assistente no referido processo. 4. No dia 7 de Junho de 2021, a arguida juntou àquele processo o requerimento de abertura de instrução que se encontra a fls. 11 a 30 destes autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, salientando-se as seguintes referências, directa e pessoalmente dirigidas ao ofendido: “O digno MP desde o início que dirigiu o inquérito no sentido do arquivamento, numa verdadeira discriminação de género, de omissão da produção de prova apresentada pelo assistente e na busca de provas que alicerçassem o arquivamento.” 5. “O assistente que apelou à Justiça (…) teve como resposta: o alheamento e a incúria pelo apuramento dos factos denunciados, uma imediata colagem às declarações da denunciada e do menor.” 6. “(…) o Digno MP agiu de forma incorrecta, imprecisa, arbitrária e ilegal.” 7. “(…)” 8. “Prática de actos ilegais e injustos quando decidiu de forma arbitrária e tendenciosa, numa autêntica discriminação de género, seleccionar as provas que mais interessavam ao arquivamento dos autos, omitindo todas as provenientes do Denunciante/Assistente, documentais e testemunhais e indo buscar provas a processo exterior aos autos (…) numa atitude decisória parcial e iníqua.” 9. “O Digno MP ou não soube perceber (…) ou não quis perceber (…)” 10. “(…)” 11. “O Digno MP ao tomar a decisão de arquivar o presente inquérito de forma parcial, subjectiva, incoerente, imprecisa e injusta está a impedir que o Assistente aceda à Lei e à Justiça.” 12. AA tinha perfeita consciência de que o ofendido é magistrado do Ministério Público e que interveio naquele processo nessa qualidade. 13. Estava ciente que ao elaborar e juntar peça com aquele teor a processo judicial, a mesma se tornava passível de ser visualizada por número alargado de pessoas, possibilidade com a qual se conformou. 14. Actuou de forma deliberada, livre e consciente, não ignorando o carácter depreciativo de algumas das expressões utilizadas nem a idoneidade das mesmas para ofender a honra e consideração do ofendido. 15. Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida. 2. Factos Não Provados: 1. A arguida actuou, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 2. Quis, ao efectuar as aludidas imputações, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu. 3. Fundamentação de Facto A convicção do tribunal resultou da conjugação do teor integral da peça processual em apreço com os esclarecimentos prestados pelo ofendido. Com efeito, este não infirmou os factos ali mencionados. Informou, porém, que o processo veio a ser arquivado. Não se provou que a arguida AA tenha agido com o propósito concretizado de ofender a honra e bom nome do ofendido, na medida em que se considera que a arguida tencionou aludir ao que entendeu como imparcialidade e pretendeu convencer o JIC de que efectivamente se verificava insuficiência do Inquérito e, assim, a admitir a abertura de instrução. Ademais, a arguida referiu-se sempre apenas ao Magistrado e à sua actuação no processo em apreço. Por último, valeu o CRC junto aos autos. IV. O Direito
9. Do enquadramento jurídico-penal Vem a arguida acusada da prática de um crime de difamação agravada com publicidade, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, n.º 1, 182º, 183º, n.º 1, alínea a) e 184º, com referência à alínea l) do n.º 2 do artigo 132º, todos do Código Penal. Dispõe o art.º 180º do Código Penal que: “1 - Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias. 2 - A conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. 3 - Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar. 4 - A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”. Estabelece o art.º 182º que “À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”. Reza, por seu turno, o art.º 183º do mesmo diploma que: “1 - Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 182.º: a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou, b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo. 2 - Se o crime for cometido através de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias”. No art.º 184º prevê-se a agravação nos seguintes termos “As penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”. Prescreve-se, por outro lado, no art.º 186º que: “1 - O tribunal dispensa de pena o agente quando este der em juízo esclarecimentos ou explicações da ofensa de que foi acusado, se o ofendido, quem o represente ou integre a sua vontade como titular do direito de queixa ou de acusação particular, os aceitar como satisfatórios. 2 - O tribunal pode ainda dispensar de pena se a ofensa tiver sido provocada por uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido. 3 - Se o ofendido ripostar, no mesmo acto, com uma ofensa a outra ofensa, o tribunal pode dispensar de pena ambos os agentes ou só um deles, conforme as circunstâncias”. Uma das hipóteses previstas na al. l) do nº 2 do art.º 132º é justamente a condição de «magistrado» do ofendido, «no exercício das suas funções ou por causa delas». O bem jurídico tutelado por estes tipos legais é a honra e consideração das pessoas. Com tal incriminação, o legislador visa, pois, proteger estes direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados (cfr. artigos 26.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa). Bem jurídico algo complexo, fortemente implicado com o contexto sociocultural do agente e da vítima, a honra é ainda objecto de inúmeras dissertações e abordagens. A doutrina portuguesa é, no entanto, maioritariamente convergente em integrar o conceito com o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, ou a rectidão: em suma, com uma certa dignidade subjectiva. Dignidade que é, afinal, património pessoal e interno de cada um e cuja protecção, relacionada com o conceito de respeito pela pessoa humana presente ou subjacente à legislação nacional e internacional em geral, encontra igualmente guarida constitucional entre nós. A doutrina distingue de algum modo este elemento interno do espectro externo que designa por “consideração” e que é associado ao merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituirão, neste seguimento, a dignidade objectiva. Neste prisma, estará em causa o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública (v. com muito interesse, Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal, volume II, p. 317 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.02.96, publicado na CJ, ano XXI, t. I, p. 156). Sintetizando esta ideia, Beleza dos Santos ensinava que a honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale. O saudoso Professor entendia ainda que, por seu turno, a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público (cfr o citado autor in R.L.J., ano 92º, pág. 164). Com efeito, o Código Penal Português adoptou esta concepção dualista da noção de honra e consideração, na medida em que esta é vista, quer pelo valor pessoal ou interior de cada indivíduo, o juízo valorativo que cada um de nós faz de si mesmo (honra subjectiva), quer pela reputação ou consideração exterior que o mesmo tem na comunidade ou no grupo social em que se insere (honra objectiva). Daqui resulta todo um potencial de relatividade na definição destas noções, pelo que importará sempre cotejar o circunstancialismo concreto de cada situação para podermos concluir se uma determinada expressão é, ou não, susceptível de ser injuriosa para a honra ou consideração de terceiro, e em que medida. No plano internacional e focando-se na importância da análise do contexto sociocultural neste domínio, Cuello Calon sustenta que, para apreciar se os factos, palavras e escritos são injuriosos, deverão ser sopesados conjuntamente os antecedentes do facto, o lugar, ocasião, qualidade, cultura e relações entre ofendido e agente (cfr “Derecho Penal, Parte Especial”, pág. 651). Nesta confluência, o tipo objectivo do crime de Difamação estará preenchido se a imputação de factos, as palavras proferidas ou os gestos efectuados, forem objectivamente lesivos da honra e/ou da consideração da vítima face aos padrões médios de valoração social e se o forem também subjectivamente, tendo em conta a sensibilidade e susceptibilidade pessoal do ofendido. Aspectos que variam de pessoa para pessoa em função dos mais diversos factores como sejam o do meio social em que se inserem, os graus de instrução, de educação, de cultura, etc. Nesta medida, os tipos penais que protegem a honra e consideração assumem natureza de crimes de perigo abstracto-concreto. Ou seja, é admissível a prova de que o visado não se sentiu atingido na honra e consideração (v. com interesse nesta matéria o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06.11.08, disponível em www.dgsi.pt; no plano doutrinário, cfr., entre outros, Oliveira Mendes in “O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, cit., pág. 59). No caso, a lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua suscetibilidade ou melindre. E tal valoração far-se-á de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Pois, voltando a Beleza dos Santos, "nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis" (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167). Também Oliveira Mendes alerta para que "nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa" (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37). Como bem recentemente foi dito pelo Tribunal da Relação de Évora em acórdão de 7-12-2012, proc. número 488/09.4TASTB.E1, disponível em www.dgsi.pt, "O princípio da insignificância, como máxima interpretativa dos tipos de ilícito, exclui condutas que, embora formalmente típicas, não o selam materialmente - a insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não são típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico. Também através da cláusula de inadequação social que contém, o tipo efectua uma selecção material de condutas de entre as que formalmente o realizam." No seu recorte subjectivo, o tipo exige o carácter doloso da conduta. Não prevê, contudo, um dolo específico, podendo o mesmo revestir qualquer das modalidades – directo, necessário ou eventual -, previstas no art.º 14º do Cód. Penal. Por conseguinte, basta a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de outrem.
2. Das Causas de Exclusão da Ilicitude O direito penal reveste natureza fragmentária, "de tutela subsidiária (ou de ultima ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena"1. Tutela apenas os valores essenciais e fundamentais da vida em sociedade, obedecendo a um princípio de intervenção mínima, bem como de proporcionalidade imanente ao Estado de Direito. Assim, nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético ou menos lícito, mesmo até quando formalmente pareça integrar-se num tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. Consequentemente, é à luz desta natureza do Direito Penal que deve ser sempre feita a subsunção dos factos ao elemento objectivo de um dado tipo. Paralelamente, e de um outro ângulo, cumprirá sempre aferir se a lesão no bem jurídico protegido não serviu à protecção do núcleo fundamental de outros bens. Ou seja, cumprirá indagar se concorrem causas de exclusão, desde logo, da ilicitude.
10. Do Enquadramento jurídico-constitucional O artigo 26.º, n.º 1, da Constituição Portuguesa consagra, entre outros direitos da personalidade, o direito «ao bom nome e reputação». Sucede que, não raro, a protecção deste direito fundamental conflitua com os direitos de liberdade de expressão e de acesso à Justiça, consagrados, respectivamente, nos art.ºs 37º e 20º, nº 1, da Lei Fundamental. Este último é reforçado pelo art.º 208º do mesmo diploma que estabelece imunidades aos Advogados no exercício do mandato. A CRP consagra igualmente uma norma de resolução de conflitos entre direitos fundamentais. Trata-se do art.º 18º que estabelece o princípio da concordância prática e do qual decorre que, apesar da possibilidade de conflito, é possível harmonizar o núcleo fundamental de cada direito com o dos restantes. Antes de progredirmos em torno da operacionalidade da concordância prática, cumprirá olhar de perto ao dito núcleo essencial de cada um destes direitos. Sob a epígrafe "Liberdade de expressão e informação", estabelece, por seu turno, o artigo 37.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que "Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações". Acrescenta o n.º 2 do citado normativo que "O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”. Mais dispõe o n.º 3 do referido preceito que "As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei". O princípio da liberdade de expressão traduz-se, assim, no direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento, bem como o direito de informar, sem impedimentos ou discriminações. Este princípio beneficia igualmente de tutela no plano do direito internacional. Desde logo, prevê o artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem que "Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão". Por seu turno, estatui o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que "1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.". Este direito compreende, pois, uma miríade de dimensões como sejam o próprio direito à informação e o direito à crítica, hoje reconhecido amplamente pela jurisprudência2. Também o direito de acesso à Justiça e o próprio fundamento da separação de poderes e do Estado de Direito Democrático têm como corolários o direito ao escrutínio público de processos judiciais na fase em que os mesmos se pautam pela publicidade. Tendências doutrinárias no espectro nacional A doutrina nacional, na senda da linha maioritária alemã, vem entendendo que deve permitir-se a crítica objetiva, tendo em conta que não se dirige diretamente à pessoa, mas sim à sua obra. Costa Andrade3, socorrendo-se dos exemplos da jurisprudência alemã, ensina que deve funcionar uma “presunção de admissibilidade da valoração crítica”, não dependendo o exercício deste direito de crítica da “adequação material” das apreciações nem do recurso a expressões mais suaves, devendo ainda o grau de admissibilidade do exagero ser maior quando esteja em causa o escrutínio de instâncias públicas. Costa Andrade e Paulo Pinto de Albuquerque4alertam ainda para o Efeito Inibidor dos Crimes Contra a Honra. Se é verdade que a liberdade de expressão funciona como garantia da democracia, é também verdade que o princípio da proibição da censura serve claramente de garantia da liberdade de expressão. Previsto no n.º 2 do artigo 37.º, este princípio surge na nossa Constituição como reação à repressão e intolerância que se viveu em Portugal durante a ditadura. Por essa razão, o conceito de censura da nossa Constituição é, além de jurídico, um conceito político, pelo que se relaciona historicamente com a censura prévia levada a cabo por entidade administrativa, correspondendo este entendimento ao conceito formal ou tradicional de censura. Ora, uma das manifestações da liberdade de expressão é o direito que cada pessoa tem de exercer o direito de crítica, nomeadamente, no âmbito do patrocínio forense. Um dos elementos que tende a tornar efectivo o direito de acesso à Justiça é o que reconhece o patrocínio judiciário como "elemento essencial à administração da justiça. Estabelece, pois, o artigo 208.º da CRP que "A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça." Patrocínio que apenas se concebe cabalmente exercitado se, nomeadamente aos Advogados, for reconhecido o princípio da liberdade de expressão. O que, aliás, vem sucedendo abundantemente em arestos do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais das Relações que o proclamam. Ensinava a propósito Arnaut5que, no desempenho cabal do seu mandato, o Advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do seu cliente; de estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade; de defender os direitos, liberdades e garantias, de pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas e tem o dever de dizer tudo quanto julgue conveniente ao bom desempenho do seu mandato, ainda que arrisque afrontar o direito ao bom nome e reputação de outrem. Na verdade, o discurso da defesa não é asséptico ou vazio de intenção, nem é um ensaio científico ou uma comunicação estritamente técnica. É construído para vir a prevalecer, convencendo o julgador. A linguagem utilizada para lá da sua dimensão intelectual, tem uma dimensão emocional. Decorre no seio de um debate, as mais das vezes, contraditório, em ambiente carregado de conflitualidade e de que não está ausente a emoção trazida da contenda da vida real para o cenário judicial. Daí que, como conclui Figueiredo Dias6, o mandato forense não possa, pois, ser exercido em estado de constrangimento ou sob o perigo de, a cada passo, serem invocadas contra o Advogado reacções criminais ou disciplinares decorrentes da tutela da honra dos restantes intervenientes processuais. Segundo Barbosa de Magalhães, também não é censurável o exercício do direito de crítica objectiva, quer ela incida sobre as posições da parte adversa ou sobre os actos dos juízes ou dos magistrados do Ministério Público, quer incida sobre o funcionamento dos órgãos de administração da justiça ou de outras instituições, quer sobre modos de procedimento ou de aplicação de directivas, ordens e instruções hierárquicas, quer ainda sobre orientações na interpretação da lei. Com frequência, a crítica objectiva feita pelo Advogado corresponde ao cumprimento, não só de um dever de patrocínio, mas também de um dever deontológico para com a comunidade (...). Quanto às imputações e às expressões ofensivas da honra das pessoas, o Advogado em exercício do patrocínio pode fazê-las ou usá-las, porque beneficia do regime especialmente qualificado de liberdade de expressão que decorre do artigo 208.º da CRP. Mas, para tanto, têm elas de ser necessárias (...) à defesa da causa. O autor citado labora em torno de um caso judicial relacionado com imputações a uma oficial de justiça atribuindo-lhe "atitude propositada, consciente e deliberada" com "intenção de causar prejuízo a terceira pessoa, na situação em apreço ao AN ", de que "a funcionária com a sua atitude apenas pretendeu prejudicar o AN, sem cuidar uma posição de absoluta imparcialidade", e as imputações da prática dos crimes de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382.º do Código Penal, de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.º do Código Penal, e de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º do Código Penal. Considerou o mesmo autor que, por se mostrarem inócuas e irrelevantes para a questão de saber se o cliente do arguido havia exercido uma gerência de facto ou de direito – unicamente o que estava em causa – o excesso de liberdade de expressão deveria ser punido. Do Direito Comparado Interessante é a doutrina de Cuello Cálon, in “Derecho Penal”, tomo II, parte especial, volume segundo, Bosch Editorial, Barcelona, 1980, a págs. 715-716, na parte em que preconiza que o animus defendendi excluiria o animus injuriandi, com a especial necessidade de poder dizer e alegar tudo quanto se entenda favorável à causa defendida, quer dizer, liberdade de discussão e de defesa, excepcionando os casos em que a ofensa tenha extrema gravidade ou não tenha conexão com o objecto em discussão; Antolisei, in “Manuale di Diritto Penale”, parte speciale- I, Giuffrè, Milão, 1982, pág. 168; Mario Sparasi, in “Enciclopedia del Diritto”, vol XII, pág. 493, no artigo “ Diffamazione e ingiuria“ : “de facto, como se disse, o exercício de um direito pode comportar o sacrifício da honra aparente e também da honra real, que é subordinada ao valor fundamental da verdade”. Nas sempre iluminadas palavras de Roxin7, “por causa de um interesse objectivamente pouco relevante não podem fazer-se afirmações que desencadeiam efeitos existencialmente devastadores” para a honra. Não obstante, vimos já que a liberdade de expressão vale não apenas para “informações” neutras, inofensivas, “mas também para as que ferem, chocam (…)”. Da Jurisprudência do TEDH A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), tem sido o corolário do entendimento segundo o qual se deve dar prevalência à liberdade de expressão, de que são exemplos as decisões proferidas em 29-09-2019 nos recursos 75637/13 e 8114/14, em que se absolveu um jornalista e um médico, que nos tribunais portugueses tinham sido condenados por apelidarem, respetivamente, um governante de idiota e um autarca de cobarde, condenando o Estado Português a pagar-lhes significativas indemnizações. Aliás, conforme referem Helena Leitão e Pacheco Ferreira, (...) já o TEDH condenara por oito vezes o Estado Português por violação do art.º 10 da CEDH, por considerar que os tribunais portugueses subvalorizaram a liberdade de expressão no conflito entre os direitos de personalidade e a liberdade de expressão ou liberdade de imprensa". Com efeito, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem relativa ao artigo 10.º, tem entendido, como princípios fundamentais, que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições primordiais do seu progresso e realização de cada um”. A verificação do carácter «necessário numa sociedade democrática» da ingerência litigiosa impõe ao Tribunal que examine se a ingerência correspondia a uma «necessidade social imperiosa», se era proporcionada à finalidade legítima prosseguida e se as razões aduzidas pelas autoridades nacionais para a justificar são pertinentes e suficientes (...)." (vide, entre outros, o acórdão do TEDH de 28/09/2000, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal). Ora, o direito à honra, ao bom-nome e reputação, com consagração constitucional no artigo 26.º da CRP conflitua, por vezes, com o princípio constitucional da liberdade de expressão, contemplado no artigo 37.º da CRP, conforme vimos. Este direito "tem uma grande amplitude, permitindo que se emitam juízos desfavoráveis, contundentes, críticas, embora sujeito a limites, designadamente, o respeito devido à honra. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática»" (vd., inter alia, o Caso Almeida Azevedo contra Portugal, com decisão proferida a 03.01.2007 e o Caso Azevedo contra Portugal, tendo sido proferida decisão a 27.06.2008). E, em particular acerca da liberdade de expressão dos advogados, atente-se nos recentes acórdãos TEDH de 12-2-2019 e 8-10-2019. Ac. TEDH 12-2-2019, PAIS PIRES DE LIMA c. PORTUGAL, nos quais se reitera que a liberdade de expressão também se aplica aos advogados. Além da substância das ideias e informações expressas, abrange o seu modo de expressão. Da Jurisprudência Nacional Como enfatiza o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 05.03.2018, processo n.º 566/16.3CHV.G1: "No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspetiva na resolução do conflito". Por Aresto de 11-07-2006, disponível em www.dgsi.pt, o Tribunal da Relação de Évora entendeu ter sido excedido o direito à liberdade de expressão na conduta da arguida que afixou em local público informação relativa a uma (pequena) dívida da assistente para consigo. Entendeu que não se poderia considerar justificada ao abrigo do art.º 180.º, n.º 2, por ter sido violado o princípio da proporcionalidade: o meio utilizado pela arguida não era idóneo, não era adequado (uma vez que a arguida nem sequer interpelara a devedora para a realização do pagamento) e não era proporcional ao interesse que se pretendia salvaguardado. O STJ em Aresto de 09.04.15: considerou que o crime estava exaurido em face da prolação das expressões: “(...) “Portanto, é uma mentira despudorada. Aliás, mais uma com que o Sr. Dr. (…) nos gosta de brindar”, (...) “pessoa vingativa e que seria capaz de perseguir... de mentir, para perseguir um inimigo figadal (…)”. Apesar de contrariar a decisão das instâncias, o STJ considerou decisivo a desnecessidade do recurso a tais expressões e a desproporcionalidade das mesmas já que iam para além do juízo do caso concreto. O Tribunal da Relação de Lisboa no Aresto de 11.12.19 deu também maior ênfase ao direito à liberdade de expressão, entendendo que esta apenas encontra limite naquilo que traduzir o aniquilamento da honra. Nesta perspectiva, como reiteradamente vêm decidindo os nossos tribunais e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, aqueles que exercem cargos com relevância/expressão pública têm um qualificado dever de suportar as críticas inerentes à sua actividade, por muito duras - ou mesmo infundadas - que sejam. Salvo nos casos em que sejam notoriamente gratuitas ou infundadas, a eles cabe, na primeira linha, convencer do infundado das críticas, não podendo nunca subtrair. Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões, mas antes o enxovalho das pessoas. Em aresto de 10.01.23, o mesmo tribunal observou que “O direito penal não pode ser chamado a intervir sempre que a linguagem verbal ou escrita utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Apenas o deve fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais e consideração profissional que devem subsistir para que a pessoa mantenha o respeito por si própria e seja pelos outros considerada. A crítica feita por advogado, no âmbito de processo judicial, da conduta de um oficial de Justiça mesmo sendo desprestigiante e estigmatizante para o visado, não é criminalmente punível desde que a crítica não seja desenraizada da actuação da mesma. Tal crítica só seria criminalmente punível se a mesma fosse dirigida à pessoa da visada e não ao acto praticado pela oficial de justiça ou à sua função no processo. Exercendo o ofendido, funções públicas, a esfera da respectiva honra encontra-se ainda mais comprimida, estando sujeita a suportar, com maior tolerância, a crítica”. Porém, os direitos ao bom-nome e reputação e à livre expressão, que têm, em princípio, igual valor não podem ser entendidos em termos absolutos e, em caso de conflito, têm de ser harmonizados nas circunstâncias concretas" (acórdão da Relação do Porto de 29/04/2020, citado supra). Nesta senda, refere-se no Acórdão do TR do Porto de 11.11.2015, in www.dgsi.pt “A protecção penal conferida à honra só encontra justificação nos casos em que objectivamente as expressões que são proferidas não têm outro sentido que não seja o de ofender, que inequívoca e em primeira linha visam gratuitamente ferir, achincalhar, rebaixar a honra e o bom nome de alguém”. O Aresto do mesmo tribunal de 10.05.16, tratando caso semelhante ao dos autos, sustentou que «I - Se o arguido (Advogado), enquanto mandatário judicial de uma parte interveniente num determinado processo de natureza cível, suscitou, perante o Tribunal da Relação, um “incidente de suspeição” do Magistrado Judicial que tramitava tal processo, alegando existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente por entender haver amizade/intimidade/inimizade entre esse Magistrado e uma das partes intervenientes, concretizando as suas alegações - em resumo, o Magistrado Judicial conferia, “quase sempre”, prazos mais alargados para uma das partes (a alegadamente beneficiada) responder aos requerimentos da outra, tinha uma “inimizade grave” em relação a uma das partes, e tinha “grande intimidade” com a outra parte -, a honra do aludido Magistrado, que foi afetada pelas palavras (escritas) do arguido, foi, tão-só, a sua “honra funcional” (não se questionando a pessoa do Magistrado, enquanto tal, mas sim a pessoa do mesmo no exercício da sua função, e, além disso, apenas no exercício da sua função naquele concreto processo). A atuação do mandatário judicial, no estrito âmbito assinalado, não merece censura criminal (não preenche os elementos, objetivos e subjetivos, do crime de difamação), estando afastada a ilicitude.» Ao referido afastamento da ilicitude é, em princípio, indiferente a falta de pertinência da crítica feita pelo Advogado, sobretudo quando essa crítica se traduz, no essencial, na formulação de meros juízos de valor, bem como é indiferente a maior ou menor correção (elegância ou polidez) das expressões utilizadas pelo Advogado. O Advogado, se violar o dever de urbanidade, fica sujeito a perseguição disciplinar, mas não, só por isso, a perseguição criminal (a acidez, a indelicadeza, a falta de polidez, e mesmo a formulação de juízos injustos e impertinentes sobre a atuação, num processo concreto, de um Magistrado Judicial, vindas de mandatário judicial interveniente nesse processo, não são punidas criminalmente).» A respeito da imunidade dos advogados no exercício do respetivo mandato, refere-se no Ac. TRE de 7/03/2017 que esta «...não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que, quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém. Ou seja, só existiria nos casos em que seria inútil a sua existência. Porque, entende-se, a imunidade existe para operar quando ofende, mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios, mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessária. Assim, o juízo a formular não assenta numa ponderação igualitária e não se limita ao círculo liberdade de expressão do advogado versus direito à honra e consideração do visado pelo escrito. Isso é esquecer o básico em confronto. O juízo a formular exige a análise da necessidade do escrito em função da defesa de um direito e demanda a proporcionalidade entre esse dito por necessidade e aquela honra e consideração.» Também versando sobre conflito similar, o Acórdão de 16/09/20198, proferido no processo n.º 3298/16.9T9VCT.G1, se considerou que «1 - Não integram o crime de injúria a Magistrado as expressões proferidas ou constantes de requerimento apresentado por advogado, no exercício do mandato forense, mesmo que essas expressões integrem ilícito disciplinar relativamente ao mandatário, e sejam descorteses e pouco éticas, desde que não visem humilhar ou rebaixar o magistrado no desempenho da sua função, intenção que tem que resultar de factos concretos, como e por exemplo a existência de animosidade anterior. Devendo tais expressões aparentemente injuriosas e desde que não visem directamente o magistrado na sua honra pessoal e "funcional" ser vistas no âmbito do confronto direito à honra/ liberdade de expressão, tendo o primeiro que ser interpretado restritivamente em função da segunda, nos termos da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada por Portugal (...).” 3. Da Subsunção dos Factos ao Direito Demonstrado que a arguida escreveu em RAI que o Magistrado do Ministério Público tinha agido de forma parcial e iníqua, entre o mais, preenchido está o elemento objectivo típico. Sabendo a arguida que tais expressões eram aptas a diminuir o ofendido na sua honra e consideração, é de concluir que a factualidade também integra o tipo subjectivo. Aqui chegados, importa aferir da existência de causa de exclusão da ilicitude. Da Posição que Sufragamos Os nossos Tribunais têm-se debruçado em inúmeros arestos sobre a presente problemática e maioritariamente sufragado o entendimento, na senda da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), da justificação na maior compressão da honra perante o ponderado exercício da liberdade de expressão, seja no âmbito do direito à crítica seja no caso especial do patrocínio forense. Do périplo jurisprudencial e doutrinário que antecede, destaca-se o reconhecimento progressivo do «direito à crítica em geral». Fenómeno a que não será alheio aqueloutro relacionado com a democratização da informação e do direito de informar bem como do acesso à Justiça. Este direito fundamental, previsto no art.º 20º, nº1, da CRP, tem sido um daqueles sobre os quais mais se tem pronunciado o Tribunal Constitucional e um daqueles que a mais alterações legais deu origem. Ora, no caso vertente, a arguida pretendeu convencer o JIC a admitir a instrução. Face à decisão de arquivamento do Ministério Público, essa era a última oportunidade de poder aceder à Justiça no caso para que fora mandatada. O contexto em que elaborou tal peça foi marcado pela alegação de que a denunciada praticaria alienação parental, denegrindo junto do filho menor o pai, seu cliente, praticando assim, maus tratos à criança. Porém, o Magistrado do Ministério Público ora ofendido não inquiriu o assistente nem qualquer das suas testemunhas, limitando-se a ouvir a criança. Pugnava assim a arguida pela abertura de instrução por sustentar que a gravidade da situação era superior à que colhera o MP, impondo-se a inquirição do assistente. Isto mesmo resulta do ponto 4 dos factos provados, o qual reproduz o mesmo ponto da acusação que deu toda a peça em crise por reproduzida. Como tal, quando refere que a condução do Inquérito foi iníqua e fez discriminação de género, a arguida pretendeu atacar a parcialidade e a desigualdade de armas dos progenitores envolvidos e afirmar que, por ser mulher, a denunciada teria beneficiado por parte do MP de uma presunção de bom comportamento. Ao mencionar que desde o início que o Ministério Público orientara a investigação rumo ao arquivamento, refere-se à perspectiva que o ofendido (e depois o JIC) veio a sustentar de que o problema em questão seria a resolver na Jurisdição de menores. Ora, entendia a arguida que, inquirindo o assistente, se haveria de perceber que os factos atingiam uma gravidade que extravasava dos limites de competência daquela jurisdição. Ainda no que tange ao ataque à imparcialidade do ofendido, cumpre ter presente que o escrutínio público em torno dos órgãos de soberania que administram a Justiça e do Ministério Público sindicam, para além da legalidade, a imparcialidade na condução de Inquéritos e julgamentos. Ora, se cabe ao povo, num Estado de Direito Democrático, escrutinar, entre o mais, a imparcialidade desses órgãos, mal seria se, entendendo que em dado momento, ela não foi assegurada, o não pudesse dizer com todas as letras. Mesmo que não esteja a ver bem. Também por isso não existe apenas em princípio um único grau de jurisdição. No caso vertente, o Ministério Público poderia ainda responder em sede de Debate Instrutório acaso o requerimento de abertura de Instrução tivesse sido admitido. Não o foi, mas o JIC subscreveu o entendimento do ofendido, terminando os autos por ali. No exercício do seu mandato, pretendendo que fosse investigada a dita situação, não tendo sido ouvida a prova testemunhal oferecida nem sequer o assistente, é evidente que a arguida tinha o direito de questionar tal condução, sendo legítimo que não fosse clara para si a imparcialidade exigida. Segue daqui que as expressões foram úteis e adequadas ao seu objectivo, e necessárias para alertar e convencer o JIC. Foram também proporcionais já que se ativeram sempre aos factos invocados - maxime, de omissão de diligências de Inquérito -; visaram só e apenas a chamada honra funcional, ou seja, visaram não o Magistrado, mas a sua acção e apenas naquele concreto exercício de funções. A alternativa teria sido limitar-se a dizer que não tinha sido inquirido o assistente e que não tinham sido ouvidas as suas testemunhas. Ficaria por atacar a equidade (é usada a expressão iníquo como antónimo de igual) e a imparcialidade. Ora, cremos, porém, que eram justamente estes últimos os argumentos capazes de convencer um JIC que, por hipótese, tivesse também a convicção de que a alienação parental não deve extravasar da jurisdição de menores. Nesta medida, não se vislumbra alternativa viável e adequada a prosseguir o dito objectivo, de cuja legitimidade não temos razão para suspeitar. Neste quadro, operacionalizando o princípio da concordância prática previsto no art.º 18º da CRP, cremos que está excluída a ilicitude porquanto a compressão da honra foi necessária, proporcional, útil e adequada ao exercício do direito de acesso à Justiça e ao exercício do patrocínio forense que implica a liberdade de expressão. Ao contrário do direito à honra, estes últimos são fundamento directo, ie, trave mestra, do Estado de Direito Democrático. Naturalmente, que a arguida poderia ter acrescentado frases de cortesia e de urbanidade usualmente utilizadas entre os operadores judiciários, como sendo a ressalva do devido respeito. Servem justamente estas para manter um ambiente cordial e para frisar que toda a luta se esgota em dado acto e que apenas se visa determinada acção. É também habitual tratar-se os Magistrados do Ministério Público por «Digno Procurador». É evidente que o recurso a estes sinais de boa fé e de respeito teriam engrandecido a peça e as qualidades da arguida. No entanto, a omissão destas, ainda que grosseira, nunca poderia obstar à operacionalização do princípio da concordância prática nos sobreditos termos. Em suma, o mesmo sistema que permite o escrutínio da imparcialidade não pode deixar de permitir que se alegue, fundamentadamente, a parcialidade. O sistema que permite sindicar a igualdade de armas não pode deixar de permitir que se invoque - fundamentadamente e com recurso à referência factual concreta -, a iniquidade. Verificando-se, deste modo, uma causa de exclusão da ilicitude, impõe-se a absolvição. (…)»
*
2.3 Conhecendo do mérito do recurso
2.3.1 Da contradição insanável da fundamentação
Defende o Recorrente que a sentença recorrida contém uma contradição entre a matéria de facto e a fundamentação.
A que se refere?
Diz o Recorrente que o Tribunal, por um lado, deu como não provados os seguintes factos: «1. Quis [a Arguida], ao efectuar as aludidas imputações, cujo teor depreciativo não ignorava, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu. 2. Actuou [a Arguida] de forma deliberada, livre e consciente. Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»
E que, por outro lado, o Tribunal afirma, no ponto 3 da fundamentação, aquando da subsunção dos factos ao direito, o seguinte: «Demonstrado que a arguida escreveu em RAI que o Magistrado do Ministério Público tinha agido de forma parcial e iníqua, entre o mais, preenchido está o elemento objectivo típico. Sabendo a arguida que tais expressões eram aptas a diminuir o ofendido na sua honra e consideração, é de concluir que a factualidade também integra o tipo subjectivo.»
Conclui então o Recorrente dizendo que devia ter sido dado como provado que efetivamente a arguida conhecia o teor das expressões e que pretendia ofender o ofendido na sua honra e consideração devidas; de facto, acrescenta, a condenação é afastada, não pelo não preenchimento dos elementos do tipo, mas por entender o Tribunal que se verificou uma causa de exclusão da ilicitude; existe pois uma incongruência entre a matéria de facto e a fundamentação, que deverá ser objeto de apreciação pelo Tribunal da Relação, dando-se como provado o seguinte, que de resto resulta da prova produzida, essencialmente de ordem documental: «[que a Arguida] Quis, ao efetuar as aludidas imputações, cujo teor depreciativo não ignorava, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu. «[que a Arguida] Actuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.».
Cumpre apreciar.
Do que se trata é de averiguar se a sentença recorrida padece do vício previsto pelo art.º 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal: «uma contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão».
Comecemos pela segunda frase que o Recorrente entende dever ser acrescentada à enunciação da matéria de facto provada - «[que a Arguida] atuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.»
A este respeito importa dizer duas coisas.
Em primeiro lugar, quanto ao segmento da frase «[que a Arguida] atuou de forma deliberada, livre e consciente», resulta ele já da matéria de facto provada, a saber e expressamente do ponto 14, no qual se lê, recorde-se, o seguinte: «Actuou de forma deliberada, livre e consciente, não ignorando o carácter depreciativo de algumas das expressões utilizadas nem a idoneidade das mesmas para ofender a honra e consideração do ofendido» (sublinhado nosso).
Em segundo lugar, quanto ao segmento «bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal», não se compreende como pretenderia o Recorrente que o Tribunal recorrido tivesse dado como provado que a Arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, ou seja, que ela sabia que a conduta era penalmente ilícita e depois, na parte da fundamentação de direito, considerar que aquela mesma conduta não era penalmente ilícita. Na verdade, se o próprio Tribunal recorrido considera que a conduta é penalmente lícita, não podia considerar provado que a Arguida sabia que era penalmente ilícita – isso sim seria uma contradição insustentável. Se o Tribunal recorrido andou bem ou mal ao considerar a conduta penalmente lícita, é assunto a apreciar adiante.
E que dizer quanto à primeira frase que o Recorrente pretende ver acrescentada à descrição da matéria de facto? - «[que a Arguida] quis, ao efetuar as aludidas imputações, cujo teor depreciativo não ignorava, ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu.
A este respeito, também dois aspetos.
Em primeiro lugar, o segmento «cujo teor depreciativo não ignorava» consta já, como vimos, do ponto 14 da matéria de facto provada.
Em segundo lugar, quanto à parte restante da frase, isto é, a parte em que o Recorrente pretende que se dê como provado que «[a Arguida]quis, ao efetuar as aludidas imputações (…) ofendê-lo na sua honra e consideração devidas enquanto magistrado e cidadão, o que conseguiu», também não vemos que a sentença padeça de qualquer vício de contradição entre o que dá como não provado e a fundamentação de facto ou de direito, na qual com efeito afirma em dado passo, em síntese, que estão verificados os requisitos subjetivos da incriminação. Isto porque o (eventual) crime de difamação não carece de um dolo específico, ou seja, de uma intençãode difamar [José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora (1999), pg. 612 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição atualizada, Universidade Católica Editora (2022), pg. 812] – o preenchimento dos requisitos subjetivos da incriminação está presente e basta-se, entre o mais, quando a atuação tenha sido deliberada, livre e consciente, não ignorando o agente o caráter depreciativo das expressões utilizadas, nem a sua idoneidade para ofender a honra e consideração do ofendido, tudo matéria de facto que a sentença recorrida julgou provada. De resto, depreende-se da economia geral da sentença recorrida que o Tribunal de 1ª Instância considerou que a Arguida atuou no exercício de um direito, com o propósito de defender os interesses do seu constituinte, e não com a intenção de ofender o visado na sua honra e consideração (ainda que esta ofensa pudesse resultar do modo como aquele direito era exercido).
Improcede este segmento do recurso, não se reconhecendo assim que a sentença recorrida padeça do vício apontado, previsto pelo art.º 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal; nem se vislumbrando, acrescente-se, que tenham sido convocados meios de prova que imponham posição diversa quanto aos factos, ainda que por via já do mecanismo da impugnação ampla da matéria de facto, nos termos previstos pelo art.º 412º, nº 3, alínea b) e 4 do mesmo diploma.
*
2.3.2 Da ilicitude da conduta da Arguida
Entende o Recorrente que a conduta da Arguida é ilícita; sustenta para o efeito e em síntese que as expressões de que fez uso no requerimento de abertura de instrução eram desnecessárias à defesa do seu constituinte e não encontram justificação na sua liberdade de expressão.
Vejamos.
Cumpre começar por sublinhar a forma cuidada, desenvolvida, ponderada e explicativa como a Sra. Juíza do Tribunal de 1ª Instância abordou a temática em presença; e que aderimos às linhas essenciais da fundamentação que expressou e à solução jurídica a que chegou, que nos merecem aplauso.
Nos seus traços gerais, o que resulta da douta sentença recorrida é o que pode, muito resumidamente, ser exposto nestes termos: (i) o direito à honra e à consideração, incluindo a reputação profissional, e a liberdade de expressão, são direitos fundamentais de idêntica valia em abstrato; (ii) estes direitos têm potencial conflitualidade entre si e a concordância prática entre eles e a definição do que deverá prevalecer são tarefas que só em face dos dados do caso concreto podem ser realizadas; (iii) na situação em apreço a Arguida atuou no exercício da sua profissão de Advogada, em representação do seu cliente, também este titular de um direito fundamental de acesso à Justiça; (iv) as expressões de que fez uso, sendo objetivamente ofensivas e violentas, não são totalmente gratuitas, no sentido em que surgem acompanhadas da imputação ao Ministério Público de uma genérica falta de cumprimento de diligências que o seu constituinte requerera e do precipitado arquivamento do inquérito, e enquadram-se no objetivo processual de convencer o Juiz de Instrução Criminal de que o inquérito não fora equitativo; (v) no caso concreto, deve prevalecer a liberdade de expressão, sendo que a eventual condenação da Arguida poderia ter um efeito dissuasor sobre o exercício legítimo do direito de crítica.
Como dissemos já, aderimos à fundamentação e à solução a que chega a sentença recorrida. Sem desprimor algum para o caminho trilhado pela 1ª Instância, justifica-se em qualquer caso acrescentar algumas considerações relativas à condição da Arguida como Advogada e do denunciante como Magistrado do Ministério Público; ao papel de ambos no conjunto do sistema de justiça; e à lógica geral das críticas que se mostravam plasmadas no requerimento de abertura de instrução e da sua admissibilidade, tudo à luz de jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) produzida especialmente nesta área de conflito entre o direito à honra ou consideração de instituições ou membros do sistema judiciário e a liberdade de expressão, no quadro da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), que faz parte integrante do nosso direito interno (cfr. art.º 8º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa e Aviso nº 1/1979, Diário da República, I-Série, de 2/01/1979).
Primeiro ponto: a Arguida como Advogada.
O advogado desempenha um papel da máxima importância na administração da justiça, como abertamente reconhecido pelos arts. 12º, nº 1 e 13º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), e encontra-se sujeito a múltiplos deveres deontológicos e legais que por vezes até apontam, a uma primeira abordagem, para imperativos de atuação não facilmente conciliáveis em termos prático-jurídicos, como disso dá nota expressiva o nº 1 do art.º 110º do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 145/2015, de 9/09), o qual, tendo por epígrafe «dever de correção», preceitua que «o advogado deve exercer o patrocínio dentro dos limites da lei e da urbanidade, sem prejuízo do dever de defender adequadamente os interesses do seu cliente». Assim é que ao advogado compete respeitar os mandamentos «da lei e da urbanidade», onde entronca por certo o dever de respeitar a honra de terceiros, mas também se lhe impõe que defenda os interesses do seu cliente, interesses estes cuja afirmação pode pressupor uma afronta mais ou menos direta ou indireta àquela.
O que aqui pretendemos sublinhar é que não pode deixar de reconhecer-se uma certa margem de liberdade ao advogado para escrever e dizer nos autos o que entender relevante para defesa dos interesses do seu constituinte, o que é particularmente importante quando essa defesa passa por fazer alegações, por escrito ou oralmente, que tenham subjacente a afirmação ou a insinuação de um comportamento de terceiro que possa ser percebido como censurável.
Não pode com efeito ignorar-se que a liberdade de expressão do advogado no âmbito de um processo judicial é algo de inerente à sua independência como profissional livre, pressuposto do bom desempenho das suas funções enquanto colaborador essencial de uma sã administração da justiça e, a par disso, constitui uma ferramenta indispensável de aprofundamento do direito do seu cliente a um processo justo e equitativo, tudo convergindo para que se lhe reconheça um amplo espaço para um livre e vigoroso debate [cfr. Acs. do TEDH Morice v. France (GC), nº 29369/10, §§ 133 a 135 e 137, 23.04.2015 e Steur v. the Netherlands, nº 39657/98, § 38, 28.10.2003, in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]} – todos os acórdãos do TEDH que viermos a citar podem ser encontrados neste motor de busca].
Disso mesmo, aliás, o nosso legislador manifesta-se ciente quando consagra o direito do advogado «ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão», em norma que tem explicitamente por epígrafe
«imunidade do mandato conferido a advogados» [art.º 13º, nºs 1 e 2, alínea b) da LOSJ].
Vale o que vem de ser dito que não pode exigir-se do advogado que, ao patrocinar uma causa, use de uma linguagem absolutamente inócua ou inofensiva, mesmo quando as ideias que com aparência de fundamento razoável considera importante veicular, em representação do seu cliente, não sejam inócuas ou inofensivas.
Enveredar por caminho distinto, nesta matéria, implicaria uma menorização do papel do advogado e dos valores que lhe subjazem na afirmação e defesa do Estado de Direito (sobre o chamado «chilling effect» que acarreta a imposição de sanções ao advogado pelo que diz no exercício da sua profissão, vide o Ac. do TEDH Nikula v. Finland, nº 31611/96, § 54, 21.03.2002).
E acrescente-se que a liberdade de expressão do advogado no exercício da sua profissão compreende não apenas a substância das ideias e da informação a que se refere, mas também a forma como as exprime (Ac. do TEDH Foglia v. Switzerland, no. 35865/04, § 85, 13/12/2007).
É neste contexto jurídico-ético-deontológico que temos de ler o Código Penal, nomeadamente quando nos diz que «o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua globalidade» e que de entre esses casos se acha aquele em que o agente atua «no exercício de um direito» [art.º 31º, nºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal].
Segundo ponto: o denunciante como Magistrado do Ministério Público.
O Ministério Público é uma entidade com assento constitucional, a quem «compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como (…) participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática» e que «goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei» [arts. 219º, nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e 2º a 4º do Estatuto do Ministério Público (EMP) aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27/08]. Trata-se abertamente de uma magistratura, paralela à magistratura judicial, mas que é desta independente e que tem o estatuto de autoridade judiciária (arts. 9º, nºs 2 e 3 da LOSJ, 3º e 13º do EMP e 1º, alínea b) do Código de Processo Penal).
É manifesta a essencialidade do Ministério Público e, por inerência, de todos os magistrados que o compõem, para o bom funcionamento do Estado de Direito e do sistema de justiça em particular, cabendo-lhe nesta área a titularidade da ação penal e, entre o mais, dirigir o inquérito, deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento [arts. 48º e 53º, nº 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal].
Com toda esta sua importância pública vem também, contudo, a sujeição a um inevitável, significativo e correspondente escrutínio.
O funcionamento do Ministério Público como um todo, ou a atuação profissional de qualquer dos seus magistrados singularmente considerado, é matéria de grande interesse público, pois desse funcionamento e dessa atuação dependem, na área em apreço, a própria realização do Estado de Direito.
É destarte de aceitar que haja tendencialmente uma reduzida margem de tolerância para restrições à liberdade de expressão neste domínio, mesmo no que toca ao exercício da crítica relativa a processos que ainda estejam em marcha (Acs. do TEDH Roland Dumas v. France, nº 34875/07, § 43, 15/07/2010, e Gouveia Gomes Fernandes and Freitas e Costa v. Portugal, nº 1529/08, § 47, 29/03/2011)9.
E se é certo que se justifica que as instituições do sistema de justiça e os seus elementos em concreto sejam protegidos contra ofensas gratuitas, não o é menos que têm – as instituições e os seus elementos – que se conformar com a possibilidade de escrutínio e crítica maior que os dirigidos ao cidadão comum, possibilidade de escrutínio e crítica que não pode ser apenas teórica, mas tem antes que ser efetiva (Acs. do TEDH Morice, já citado e que vimos acompanhando, § 131, e July and SARL Libération v. France, nº 20893/03, § 74, 14/02/2008).
Por outro lado, importa fazer uma distinção entre afirmações de facto e juízos de valor (Acs. do TEDH Lingens v. Austria, nº 9815/82, § 46, 8/07/1986 e Oberschlick v. Austria, nº 11662/85, § 63, 23/05/1991), na medida em que se os factos podem ser demonstrados, os juízos de valor não são suscetíveis de prova, de tal sorte que a eventual exigência de prova de um juízo de valor, sendo impossível, infringiria em si mesma a liberdade de opinião, que constitui uma parte fundamental da liberdade de expressão. O que há a ponderar, em matéria de juízos de valor, é se os mesmos têm ou não subjacente uma suficiente base de facto [Acs. do TEDH De Haes and Gijsels v. Belgium, nº 19983/92, § 47, 24/02/1997; Oberschlick v. Austria (no. 2), nº 20834/92, 1/07/1997, § 33, Brasilier v. France, no. 71343/01, § 36, 11/04/2006; Lindon, Otchakovsky-Laurens and July (GC), § 55, 22/10/2007].
Por fim, há que ter em atenção que a natureza e a gravidade das sanções em causa constituem também um fator potencialmente relevante quando se aprecia a proporcionalidade da restrição introduzida à liberdade de expressão; e estando diante um processo de natureza penal, há que notar que uma pena criminal, ainda que muito moderada, poderá em si mesma ser suficiente para produzir um indesejável efeito dissuasor sobre o exercício de uma tal liberdade, o que é tão mais preocupante, em situações como a presente, quando do que se trata é de limitar a margem de atuação de um advogado em defesa do seu cliente (Ac. do TEDH Mor v. France, nº 28198/09, § 61, 15/12/2011).
Dito isto, há que sublinhar que a liberdade de expressão do advogado está ligada à independência da sua função, que é crucial para o competente desempenho desta e por consequência para uma justa administração da Justiça, devendo aceitar-se que goze de uma considerável margem de crítica do desempenho nos autos do Digno Magistrado do Ministério Público (Acs. do TEDH Morice, §§ 135-139, Nikula, § 55, e Roland Dumas, § 48, já citados).
Em suma, o advogado, particularmente quando no exercício da sua profissão, no âmbito de um processo em concreto, em defesa do seu representado, goza de uma ampla margem de crítica da atuação, com que não concorda, do Magistrado do Ministério Público; e no exercício dessa liberdade, que existe, insista-se, quanto à substância e quanto à forma, pode usar de palavras duras, cáusticas e agressivas, conquanto o que diz ou escreve não se consubstancie num insulto gratuito e apresente ligação ao caso concreto e uma suficiente base de facto.
Na situação em apreço, a Arguida, representando CC, Assistente no Processo nº 1323/20.8..., formulou um requerimento de abertura de instrução pelo qual reagia à decisão que o Ministério Público tomara de arquivar o inquérito iniciado por denúncia daquele.
E é verdade que desse requerimento consta um conjunto de considerações nada abonatórias para o desempenho profissional do Digno Magistrado do Ministério Público que terá dirigido o inquérito e elaborado o despacho de arquivamento.
Em substância e para o que aqui mais releva, do que se trata é da formulação de um juízo de parcialidade na condução do inquérito e na prolação precipitada da sua decisão final, privilegiando de forma arbitrária e tendenciosa as provas que apontariam para o arquivamento e omitindo a produção de provas oferecidas pelo aí denunciante.
São palavras duras e graves, sem dúvida, sabendo-se quão valiosas são as características que se esperam e exigem do Ministério Público e de todos os seus elementos, ao nível da seriedade e do respeito por critérios de legalidade, objetividade e procura isenta da verdade material.
Importa em qualquer caso ter presente o contexto em que tais palavras se inserem e a realidade de facto a que se reporta o juízo desvalioso contido no requerimento de abertura de instrução.
Antes de mais, há que ter em atenção o conjunto desse requerimento de abertura de instrução. É que aí também se lê, entre o mais, o seguinte: (i) que o Assistente arrolara durante o inquérito mais de oito testemunhas, todas presenciais dos factos denunciados, e que nenhuma delas foi ouvida; (ii) que, apesar de mais de uma vez ter solicitado a sua (dele, Assistente) inquirição, o Ministério Público nem sequer se pronunciou sobre os requerimentos; (iii) que, após ter a denunciada sido ouvida nos autos, o Assistente solicitou a sua inquirição, para exercício do contraditório, e o Ministério Público não efetuou qualquer diligência nesse sentido; (iv) e que, tendo sido ouvido o menor, filho do ali Assistente e da aí denunciada, audição essa em que o menor falou essencialmente do pai, nem mesmo depois disso o Assistente veio a ter oportunidade de esclarecer os factos e o que denunciara.
Mais: percebe-se, pelo teor do despacho de arquivamento, que o inquérito em causa foi arquivado não porque o Ministério Público tenha entendido, logo em face da denúncia, que os factos para que apontava não constituíam qualquer crime – circunstância em que previsivelmente não teria feito qualquer diligência e teria procedido ao arquivamento liminar dos autos –, mas porque a prova produzida no inquérito não permitia suportar a existência de indícios de crime. Isso mesmo pode razoavelmente retirar-se das seguintes passagens: «Os indícios devem ser apreciados em face da prova produzida. Sucede que, in casu, não existe matéria probatória, susceptível de fazer concluir pela existência de qualquer crime, seja de violência doméstica ou outro. Na verdade, da conjugação dos elementos probatórios carreados para os autos – e outros não se anteveem úteis -, não existem, de facto, elementos bastantes para fazer concluir, ainda que indiciariamente, pela existência de qualquer conduta criminosa da denunciada, quer sobre o menor, DD, filho da mesma e do denunciante, quer sobre este último. (…) Resultando, assim, clara, desde logo, a ausência de qualquer indício de verificação do mencionado crime, mesmo porque não se indicia que a denunciada tenha querido afastar o denunciante e o menor, um do outro, indiciando-se, sim, que, ao agir como agiu, a referida denunciada não visou senão preservar o equilíbrio, a segurança e o bem estar do seu referido filho.»
Aqui chegados, o que se percebe da economia global do requerimento de abertura de instrução é que a Arguida, enquanto representante forense do seu constituinte, procedeu à enfatização do que lhe pareceu ser uma falta de equilíbrio na condução e na conclusão do inquérito, no sentido em que aí veio a considerar-se insuficiente a prova, pese embora o denunciante e as diversas testemunhas por este indicadas não terem sido ouvidos e sem que para tanto alguma justificação que pudesse ter por plausível houvesse sido apresentada.
A ausência de resposta a requerimentos que fez; a sua não inquirição; a não audição das testemunhas por ele oferecidas; e, do mesmo passo, o considerar-se insuficiente a prova globalmente recolhida, constituem circunstâncias que razoavelmente poderiam gerar no ali Assistente (o requerimento de abertura de instrução isso aponta) um sentimento de incompreensão quanto à dinâmica imprimida ao inquérito, sentimento esse que a Arguida corporizou no requerimento de abertura de instrução e que no fundo pode sumariar-se nesta interrogação: «se fiz uma denúncia não liminarmente arquivada, se apresentei testemunhas, se manifestei vontade de prestar declarações e se formulei requerimentos, como é possível que o processo tenha sido arquivado sem que eu tenha sequer sido ouvido, sem que a prova testemunhal que ofereci haja sido produzida e sem que tenha havido resposta aos requerimentos apresentados?»
No fundo, não estamos longe da ideia subjacente ao brocardo surgido numa decisão que cumpriu recentemente 100 anos: «It is not merely of some importance but is of fundamental importance that justice should not only be done, but should manifestly and undoubtedly be seen to be done», que podemos traduzir livremente como «não basta que a justiça seja feita, é essencial que se veja a justiça a fazer-se» [Rex v. Sussex Justices (1924)].
No caso concreto, a Arguida, em defesa do seu constituinte, realçou o que entendeu ter sido uma condução imprópria do inquérito, formulando um juízo de valor muito negativo sobre o procedimento do Sr. Magistrado do Ministério Público; mas do mesmo passo apresentou uma base fáctica que constitui aparência de suporte à sua posição, que não pode dizer-se que seja totalmente desrazoável tendo em conta a perspetiva do ali Assistente.
O que se depreende das passagens do requerimento de abertura de instrução em causa é uma adjetivação conclusiva de factos que a Arguida não deixou de ali evocar; adjetivação conclusiva particularmente crítica e severa para o comportamento do Sr. Magistrado do Ministério Público, sim; talvez desnecessariamente excessiva, sim; mas que não nos parece que se apresente como gratuita, desassociada do caso concreto e totalmente despida de factos concretizadores.
Pretenderia a Arguida pôr em relevo o argumento do seu constituinte, segundo o qual não cuidara o Ministério Público de reunir as bases necessárias para a prolação de uma decisão conscienciosa de encerramento do inquérito.
Em suma, afigura-se-nos que a atuação da Arguida não ultrapassou a sua liberdade de expressão, cujas margens não podemos deixar de reconhecer como tendo uma amplitude generosa: por se tratar de uma Advogada no exercício da sua função de representar o constituinte num concreto processo; e por se tratar de alguém que procurou colocar em evidência, nesse processo, o que, a partir de factos que expôs, considerava ser um mau funcionamento do sistema de justiça, no caso personalizado na figura do Ministério Público e do Digno Magistrado que interviera.
E não esqueçamos, por fim, como há muito vem sendo sustentado, que a liberdade de expressão se traduz, em termos prático-jurídicos, no direito de exprimir e divulgar opiniões, ideias e informações, sem qualquer interferência, nomeadamente por via de perseguição criminal, aqui se incluindo não só opiniões, ideias e informações recebidas de forma favorável ou tidas por inofensivas, mas também as que ofendam, choquem ou perturbem (Ac. do TEDH Handyside v. the United Kingdom, nº 5493/72, de 7/12/1976, § 49). Encontra-se esta liberdade sujeita a restrições, por certo, como aliás expresso pelo art.º 10º, nº 2 da CEDH, mas tais restrições têm que ser construídas de uma forma estrita, na base de (e por referência a) uma necessidade social imperiosa convincentemente estabelecida [Acs. do TEDH Stoll v. Switzerland (GC), nº 69698/01, § 101, 10/12/2007 e Morice, este já atrás citado, § 124], o que no caso temos por afastado, nos termos que deixámos mencionados.
Entendemos destarte que se encontra excluída a ilicitude da conduta da Arguida, devendo consequentemente manter-se a sua absolvição.
*
3 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a douta sentença recorrida.
*
Não são devidas custas [arts. 513º, nº 1 e 514º, nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo Penal].
Registe e notifique.
Remeta cópia do presente acórdão ao Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, ao cuidado do Processo nº 626/2021-L/I (cfr. ...
*
Lisboa, 21 de novembro de 2024 (processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro
Eduardo Sousa Paiva
Ana Paula Guedes
_______________________________________________________
1. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43.
2. V. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.04.19, disponível em www.dgsi.pt
3. COSTA, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal..., pp. 310 a 313.
4. ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE, in Comentário do Código Penal..., p. 726.
5. António Arnaut, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, pág. 487; Alfredo Gaspar, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 48, págs. 1.027 e segs.
6. Jorge Figueiredo Dias, Direito da Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Portuguesa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, págs. 105 e segs; Jorge Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Limites do Direito de Defesa, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 52, págs. 277 e segs.]
7. Apud COSTA, José de Faria, op. cit., Tomo I, p. 924. Também HENRIQUES, Paulo Videira, “Os «excessos de linguagem» na imprensa”, Estudos de Direito da Comunicação, Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, 2002, 123
8. Todos os citados Acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt
9. Cfr. ainda o Ac. do TEDH Morice v. France (GC), nº 29369/10, §§ 124 e sgs., 23/04/2015, que seguiremos de perto.