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HOMICÍDIO
RELATÓRIO SOCIAL/SELECÇÃO DE FACTOS
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
PROVA POR RECONHECIMENTO
IN DUBIO PRO REO
Sumário
I. A reprodução quase integral do relatório social, com referências, amiúde, a juízos de valor, conclusões, antecedentes criminais e depoimentos/declarações, precedida, ademais, da asserção: «Do relatório social junto aos autos consta designadamente:» constitui procedimento desconforme e a erradicar e, eventualmente e em tese, susceptível de integrar o vício, consignado na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., de insuficiência da matéria de facto. II. «(…) Só ao juiz cabe selecionar os factos e as circunstâncias nele (eventualmente) referidos, se os considerar (e na medida em que os considerar relevantes), avaliando o que nele é referido e a fonte das informações prestadas, bem assim como a credibilidade das afirmações feitas e a razoabilidade das suas conclusões» III. «O reconhecimento é um meio de prova que consiste na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao acto. O cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções. Por isso que as estabelecidas na lei o são sob pena de invalidade do reconhecimento». IV. Tratando-se no caso de reconhecimentos que se enquadram numa «situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente», em «ambiente de dúvida e de incerteza quanto à imputação subjetiva», urge aquilatar as circunstâncias que antecederam a realização de tais reconhecimentos. IV. Em face dos depoimentos prestados pelas testemunhas, logo ab initio, as condições em que ambos visualizaram o agente do crime muito dificilmente constituiriam aporte suficiente para fundamentar a fidedignidade da prova por reconhecimento. Tanto assim é que, nenhum dos dois visualizou e/ou verbalizou quaisquer traços faciais ou outras características suficientemente marcantes e individualizantes. IV. Perante aquilo que, no limite, se apresentaria como uma dúvida insanável, razoável e objectivável sobre factos desfavoráveis ao arguido, maxime a autoria dos mesmos, sempre seria de convocar a aplicação do princípio in dubio pro reo.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, as Senhoras Juízas do Tribunal a quo, por acórdão de 25 de Janeiro de 2024, para o que agora releva, decidiram: «a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de BB, p.p. nos art.ºs 131.º e 132.º, n.º 2, al. e) do CP agravado nos termos do art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro por referência aos art.º 3.º, n.º 2, al. ab), 2.º, al. m) da mesma lei; b) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, na pessoa de CC, p.p. nos art.ºs 131.º e 132.º, n.º 2, al. e) do CP, agravado nos termos do art.º 86.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro por referência aos art.º 3.º, n.º 2, al. ab), 2.º, al. m) da mesma lei»
2. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público interpôs recurso do acórdão absolutório. Aparta da motivação as seguintes conclusões: «1. O presente recurso consubstancia uma impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, pois, de todos os elementos de prova coligidos, analisados à luz do pensar, sentir e agir do homem médio, impõe-se “o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”, qual seja a condenação do arguido como o indivíduo que deferiu 11 facadas letais. 2. Concretos pontos de factos incorrectamente julgados (art.º 412.º, n.º 3, al. a), do C. Processo Penal): impunha-se que tivesse sido dado como provado os factos não provados d), e), h), i), k), m), n), r) e s), o que resulta da conjugação: das regras da normalidade da vida; da conjugação da prova produzida com DD, qual seja a fotografia junta a fls. 222, o reconhecimento presencial de fls. 329 e o seu depoimento, nos minutos 18:28 e 19:26; da conjugação da prova produzida com EE, qual seja o reconhecimento presencial de fls. 333 (conjugado com o depoimento da Inspectora FF, minutos 14:43 a 15:24) e o seu depoimento, nos minutos 03:33, 04:08, 06:43 e 07:05; do auto de busca e apreensão e fotografia anexa, fls. 317/9; do depoimento de GG, minutos 04:26, 04:40, 07:14 e 07:40; do depoimento da Inspectora FF, minutos 16:00 e 16:26; do depoimento de HH, minutos 08:36, 08:47 e 09:51; do depoimento de II, minutos 04:30, 04:36, 05:25, 05:45 e 12:00; do depoimento de JJ, minutos 02:21 e 03:37; do depoimento de BB, minutos 12:53, 12:56, 13:02, 22:14 e 24:30. 3. A nossa desarmonia com o Acórdão proferido nos autos centra-se na desconsideração dos reconhecimentos pessoais e depoimentos testemunhais e na consequente dissociação do arguido e da autoria dos factos, em desconformidade com as regras da experiência da vida e com o pensar, sentir e agir de um homem médio, se colocado na posição de julgador. 4. Mais do que as hesitações das testemunhas, o homem médio, na posição do julgador e no uso das regras da experiência comum, teria valorizado as afirmações, realizadas apesar do medo, que levaram mesmo 3 testemunhas a depor com ocultação da identidade e com distorção da voz e da imagem. 5. De acordo com as regras da normalidade da vida, não é de esperar que uma testemunha com medo do arguido (medo de ser esfaqueada, como a vítima) minta contra o mesmo, sendo, ao invés, de esperar que seja genuíno o que disseram as testemunhas contra um putativo homicida, apesar do terror real. 6. DD identificou AA no instagram e em sede de reconhecimento pessoal, dúvidas não podendo restar sobre a credibilidade da identificação, apesar do medo de morte (que o impeliu a fugir na madrugada dos factos) que acompanhou a sua participação probatória. 7. EE não viu a agressão, mas viu um “quase flagrante”, qual fosse o homem identificado (o arguido) com uma faca na mão e o CC ainda vivo, ainda de pé, a fugir ensanguentado. 8. Do auto de busca e apreensão e fotografia anexa, de fls. 317/9, resulta que AA tinha umas calças de fato de treino pretas, tal como o agente do crime foi descrito pelas testemunhas presenciais (prova circunstancial, a complementar com as restantes). 9. O depoimento de DD, que o Tribunal a quo desvalorizou, é compatível quer com as dinâmicas de grupos de adolescentes, quer com o depoimento de GG, sendo intrinsecamente contraditório aceitar o depoimento desta e duvidar do depoimento daquele, já que ambos relataram factos similares. 10. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, que desvalorizou o depoimento de DD por este ter tido medo, fugindo do local, é das regras da normalidade social que o medo seja um factor de credibilização da prova produzida e que seja especialmente credível o depoimento contra um homicida, apesar do medo. 11. A utilização do verbo “parecer”, que consta do auto de reconhecimento pessoal realizado por EE, não pode ser traduzível em dúvida, mas em credibilidade do auto e isenção do OPC. 12. No reconhecimento, foram usados, como figurantes, indivíduos do género masculino, negros e com cerca de 1,90, tudo características comuns ao arguido. 13. Como bem doutrinou o Acórdão da Relação de Lisboa, de 13.09.2016, o conceito de “semelhante” tem uma grande subjectividade, não sendo exigível a presença de sósias ou sequer de gémeos, o que até tornaria impossível o reconhecimento. 14. Os intervenientes desta situação são facilmente reconhecíveis entre eles (jovens de grupos de uma zona geográfica específica e que se anunciam no instagram e no tiktok). 15. Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente, impondo-se “o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção”, da convicção de que AA seja o indivíduo que desferiu 11 facadas em CC, provocando-lhe a morte (para além de ter desferido uma facada, não letal, em BB). Assim, deve o recurso ser considerado procedente, por provado e, consequentemente, o douto acórdão recorrido substituído por outro que condene o arguido».
3. O recurso foi admitido, por despacho de 1 de Março de 2024, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
4. O arguido AA propugna pela confirmação do julgado. Extrai da resposta as seguintes conclusões: «1º- A sentença proferida em 1º instância no Acórdão recorrido e que determina a absolvição do Arguido deve ser mantida. 2º A absolvição aplicada ao Arguido é adequada e não deve ser alterada conforme a pretensão do recurso do M.P».
5. Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, louvado no recurso, é de parecer que o mesmo deve ser julgado procedente.
Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos: «O recurso trabalhou bem esta questão, evidenciando e medo que tolheu muitas das testemunhas e que obrigou o tribunal a quo a medidas várias de protecção de testemunhas, como a distorção de voz em depoimentos colhidos à distância. É aliás notória a relutância de várias testemunhas em depor e a pressa de se desvincularem daquele momento de provação, em que vinculados ao dever de verdade são obrigados perante o tribunal a trair os pactos de silêncio que as amordaçam. É por tudo isto que, ouvido o depoimento fundamental, corajoso, consistente da testemunha DD, não se compreende que dele diga o acórdão em crise que “foi bastante vago e titubeante no relato das circunstâncias… revelou-se incongruente, hesitante… escusou[se] a colaborar com as autoridades, escudando-se no receio de represálias”. Na realidade, na infeliz interpretação deste valioso testemunho, reside grande parte da razão de se absolver o arguido. Esta desvalorização, arrumada pelo tribunal a quo sem qualquer compreensão do fenómeno de violência grupal que atemoriza as testemunhas, não soube entender como o seu depoimento, esmiuçado ao extremo pelos membros do colectivo, se manteve firme e coerente na identificação do homicida, mau grado o receio de represálias. Atente-se que esta testemunha explicou as razões de um primeiro depoimento evasivo prestado junto da Polícia Judiciária, nas fases iniciais do processo, desfazendo assim a contradição que o ilustre advogado do arguido legitimamente quis explorar em audiência de discussão e julgamento. Um sinal distintivo destaca o arguido da massa humana em rodeou o drama sub judice: o arguido é excepcionalmente alto, face à estatura média dos seus pares. Esse sinal distintivo permitiu à testemunha DD identificar e memorizar o arguido, quando o viu pela primeira vez numa estação de caminhos de ferro (explicando inclusive porque se apercebeu da sua altura, estando ele sentado) e reconhecê-lo depois na ocasião do fatal evento. Esta mesma característica individual dá peso ao depoimento de outra testemunha, EE, que descreve “um grupo superior a 10 pessoas a fugir sendo que um deles distinguia-se pela faca e porque era dos mais altos”. Recorda aliás a roupa que o arguido envergava e que mais tarde, em busca domiciliária, vem a ser apreendida, coincidentemente, em casa do arguido. Por fugaz que tenha sido esta visão da testemunha no cenário do crime, permitiu ela à testemunha reconhecer positivamente o arguido numa fila de três pessoas, cuja homogeneidade a agente da Polícia Judiciária tratou de explicar. Aliás, é de censurar que nesta linha de três pessoas o tribunal a quo tenha desvalorizado o mais importante elemento de homogeneidade dos três alinhados, a sua altura; os clichês mostram que os outros dois figurantes chamados ao alinhamento, rondam todos os 2 metros. E no entanto, no meio de uma rápida e tumultuosa cena nocturna de violência de grupo, a testemunha EE soube reter na sua memória a figura do arguido e identificá-la no meio de dois outros cidadãos africanos, tão ou mais altos do que o arguido! Em suma, estamos em crer que o caso foi, s.m.o., mal avaliado pelo colectivo a quo, que desvalorizou infundadamente os depoimentos decisivos das duas testemunhas que vimos de citar, os reconhecimentos e a apreensão em casa do arguido»
6. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P. vieram o arguido e o assistente responder.
7. O arguido AA reitera que o acórdão prolatado deve ser mantido. Acrescenta, em suma, que: «A decisão da 1ª instância de julgamento, ora recorrida pela representante do Ministério Público e que esta pretende ver alterada, encontra-se devidamente fundamentada, sendo a convicção do tribunal perfeitamente compreensível e não merecedora de qualquer reparo ou juízo de censura. A decisão contida nesse Acórdão reflete devidamente a falta e insuficiência da prova trazida à audiência de 1ª instância pela Acusação e que se afigura resultante de uma insuficiente investigação na fase processual de inquérito e da sua falta de rigor. A mera audição da totalidade dos depoimentos, que o Ministério Público apenas parcialmente transcreve nas suas alegações de recurso, demonstra com clareza a inconsistência e confusão dos mesmos e a falta de credibilidade das versões trazidas a tribunal por essas testemunhas de acusação».
8. O assistente KK sufraga o entendimento expresso pelo Ministério Público.
9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame da (única) questão atinente ao invocado erro do Tribunal Colectivo a quo no julgamento da matéria de facto.
2. A decisão levada, na instância, sobre a matéria de facto, para o que agora importa, é do seguinte teor: «II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO FACTOS PROVADOS Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão:
1. No dia 31 de julho de 2022 realizou-se, nas instalações do Estádio do Restelo, em Lisboa, um evento musical denominado “TRIBUTO AFRO-HOUSE”, em que participaram um número não concretizado de espetadores, mas que ascenderá a milhares.
2. A assistir ao evento referido em 1. encontravam-se o ofendido BB, a vítima CC, bem como DD e LL, que igualmente se encontravam com o seu grupo de amigos.
3. Anteriormente, em dia não concretamente apurado de julho de 2022, indivíduos cuja identidade se desconhece, interpelaram a vítima CC no estabelecimento Burguer King, na estação do Rossio, perguntando-lhes “DONDE SÃO?” e “VOCÊS ANDAM NA FIRMA?”, indagando desta forma se CC pertenceria a algum grupo;
4. Pelas 2h/3h do dia 01 de agosto de 2022, os ofendidos BB, CC e o primo deste, DD, saíram do Estádio do Restelo, em Lisboa, onde decorreu o evento musical designado por “Tributo Afro- house”.
5. BB conhecia CC e DD e, no interior do recinto cumprimentaram-se, não tendo, no entanto, assistido juntos ao evento.
6. À semelhança de centenas de outras pessoas que participaram no “Tributo Afro- house” saíram praticamente à mesma hora do Estádio e desceram a Rua dos Jerónimos, do lado da Bomba de Gasolina da Repsol, atravessando a Av. do Restelo.
7. Encostado ao gradeamento do edifício da Casa Pia de Lisboa, sito no n.º 1 da Av. do Restelo, na esquina com a Rua dos Jerónimos, encontrava-se um grupo composto por um número não concretamente apurado de rapazes de origem africana vestidos com roupa escura;
8. CC e DD desciam, na mesma altura que BB, a Rua dos Jerónimos, e por motivos não apurados relacionados com uma abordagem por parte de DD e sem que nada o fizesse prever, um indivíduo não identificado aproximou-se de CC;
9. Simultaneamente tirou uma faca de características não apuradas de dentro do seu casaco, e com ela desferiu vários e sucessivos golpes (pelo menos 11) no corpo de CC, na zona da cabeça, pescoço, omoplata, e zona dorsal e peitoral entre os quais seis que perfuraram o corpo de CC, uma delas que viria atingir especificamente o pulmão e o pericárdio (saco que envolve o coração) e as artérias aorta e pulmonar.
10. Na sequência da atuação do indivíduo não identificado, a vítima CC ainda cambaleou e logrou afastar-se em direção ao n.º 24 da Rua dos Jerónimos, onde veio a tombar no chão junto à paragem de autocarro, sangrando abundantemente na zona do peito.
11. DD colocou-se imediatamente em fuga, subindo a Rua dos Jerónimos na direção do Estádio, como o fizeram todas as pessoas que ali se encontravam, assustadas com a faca que acabara de ser utilizada.
12. A vítima foi assistida no local pelos serviços de urgência afetos ao Hospital S. Francisco Xavier.
13. CC veio a ser transportado para o Hospital São Francisco Xavier, onde chegou inconsciente pelas 03.42h do dia 01.08.2023, na sequência das referidas agressões.
14. Após chegada à sala de reanimação evoluiu para paragem cardiorrespiratória, tendo sido realizadas manobras de suporte avançado de vida, com recuperação de circulação espontânea aos 11 minutos. Apresentava um ferimento penetrante no tórax à direita, com hemorragia ativa, causador de um hemopneumotórax muito extenso com colapso quase total do pulmão direito e dois ferimentos incisos, um no couro cabeludo e outro no dorso.
15. Foi submetido a toracotomia emergente, tendo o ecocardiograma revelado tamponamento cardíaco. Foi identificada hemorragia na artéria pulmonar direita entre a veia cava superior e a aorta, tendo sido transferido para a Unidade de Cuidados Intensivos, com deterioração em contexto de choque hipovolémico, vindo o óbito a verificar-se a 02.08.2022, pela 01H10.
16. Na sequência dos golpes infligidos no corpo de CC, este sofreu:
a. ferida cortante occipital, paramediana direita, superficial, não transfixante;
b. ferida cortante temporo-occipital esquerda, coronal, transfixante, com atingimento da abóbada craniana a esse nível, condicionando traço de fratura na tábua externa
c. ferida cortoperfurante infraclavicular direita, que segue um trajeto de anterior para posterior, de cima para baixo e da direita para a esquerda, atravessando o tecido celular subcutâneo, os músculos intercostais, entrando na cavidade pleural direita pelo 2.º espaço intercostal, lacerando o pulmão e hilo pulmonar direita (artéria pulmonar), o saco pericárdico, e a emergência das artérias aorta e pulmonar.
d. duas feridas cortoperfurantes na face anterolateral do hemitórax direito, com atingimento do tecido celular subcutâneo e do plano muscular
e. duas feridas cortoperfurantes no epigastro, com atingimento do tecido celular subcutâneo e do plano muscular, com infiltração hemorrágica ao nível da face anterior do 10.º arco costal.
f. ferida cortoperfurante dorsal, paravertebral esquerda, que segue um trajeto de posterior para anterior, de cima para baixo e da esquerda para a direita, atravessando o tecido celular subcutâneo, o plano muscular, entrando na cavidade pleural direita pelos 9.º/10.º espaços intercostais (justavertebral), lacerando o lobo inferior pulmonar direito, o diafragma e terminando na face posterior do lobo direito do fígado.
g. ferida cortante no terço proximal da face posterior do braço esquerdo, superficial, não transfixante
h. ferida cortante no cotovelo, com atingimento do tecido celular subcutâneo e do plano muscular.
i. ferida cortante na face palmar da articulação interfalângica proximal do 5.º dedo, com atingimento do tecido celular subcutâneo e do plano muscular.
17. Na sequência de lesões traumáticas torácicas, consecutivas e, designadamente, da ferida descrita em 21. c., que atingiu o pulmão e o coração, CC veio a falecer, não obstante os cuidados hospitalares que recebeu.
18. O óbito ocorreu no dia 02.08.2022, pelas 01:10 horas, no Hospital S. Francisco Xavier, observando-se a falência múltipla de órgãos, em contexto de choque hipovolémico e coagulopatia refractários.
19. Quando o ofendido BB descia a Rua dos Jerónimos, apercebeu-se de um tumulto envolvendo o grupo descrito no [Facto provado nº 7], que discutia com terceiros, embora não tenha percebido o que diziam.
20. Tentou contornar o grupo, seguindo na berma do passeio da Rua dos Jerónimos e, sem que nada o fizesse prever, indivíduo não identificado, fazendo uso de uma faca cujas características se desconhecem que retirou do interior do casaco que envergava, desferiu um violento golpe na zona da cabeça de BB, que lhe atingiu a face, deixando-o sem reação, com sangue a escorrer da face, caindo de seguida no chão, com muitas dores.
21. Quando se conseguiu levantar, atravessou a estrada e pediu ajuda a quem se encontrava no local, acabando por ser socorrido.
22. Algum tempo depois chegou uma ambulância que levou o ofendido BB para o Hospital São Francisco de Xavier, onde foi admitido pelas 04H04, com ferida transfixiva na hemiface esquerda, produzida por arma branca, tendo-se definido traço de fratura com trajeto oblíquo a envolver o recesso alveolar da peça dentária 3.6, que se estendia da vertente vestibular à lingual. Foi transferido para o Hospital de Santa Maria pelas 18H40 do mesmo dia.
23. No dia 08.03.2023, o arguido guardava na sua residência um par de calças de cor preta, da marca Adidas
24. O arguido detinha nessa altura um passaporte com o número CD146437, emitido em 12-122022. Mais se provou que:
25. Do relatório de avaliação do dano corporal referente ao ofendido BB de fls. 650 cujo teor se dá por reproduzido, consta designadamente que:
a. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 30/09/2022; as lesões atrás referidas terão resultado de traumatismo de natureza cortoperfurante, o que é compatível com a informação..
b. Tais lesões terão determinado 60 dias para a consolidação médico-legal: com todos os dias de afectação da capacidade de trabalho geral (pela afetação da capacidade de mastigação) e com todos os dias de afectação da capacidade de trabalho profissional (pela necessidade de repouso associada à boa cicatrização da ferida da face);
c. Do evento não resultou perigo para a vida (o examinando1nunca esteve em perigo de morrer;
d. Do evento resultaram, como consequências permanentes, perda do dente 36, consolidação da fratura da mandíbula à esquerda e cicatriz na região mandibular esquerda da face, que - de acordo com evolução normal das lesöes descritas não é expetável serem causa de afetação grave da capacidade de usar o corpo, da capacidade de trabalho ou de desfiguração grave.
26. O Arguido foi condenado por sentença transitada em julgado em 11.9.23 numa pena de 80 dias de multa pela prática em 10.7.21 do crime de detenção de arma proibida; 27. Do relatório social junto aos autos consta designadamente: À data dos factos de que vem acusado, AA constituía agregado familiar com a mãe, 41 anos, empregada de limpeza, com o pai, 64 anos, segurança privado, reformado por invalidez, a irmã de 17 anos, estudante e o tio paterno, de 60 anos, pedreiro, reformado. Segundo a mãe do arguido, a dinâmica familiar é estável e o arguido sempre adotou uma postura tranquila no meio familiar. A família reside em casa arrendada, em Monte Abraão há mais de 13 anos, numa zona caracterizada pela mãe como calma ao nível social. Ainda segundo a mesma, o arguido manteve sempre um comportamento adequado com a comunidade em geral, sendo um elemento bem aceite e integrado no seu meio de residência. Concluiu o 12º ano na escola ... em Queluz, através de Curso Profissional de Técnico de Desenho Animado, 3D, 4º nível, com boa avaliação/classificação segundo UU, Técnica de Reeducação. Arguido e mãe afirmam que o percurso escolar daquele sempre correspondeu às expetativas, sendo-lhe reconhecida uma “adequada conduta” (sic) segundo a mãe. O arguido reconhece a importância da formação escolar, estando a ponderar o ingresso no ensino superior. Quando foi preso encontrava-se inativo, a procurar trabalho, conforme referiu. Apresenta experiências informais na construção civil, caracterizadas como ocasionais e irregulares. Por isso, dependia do apoio económico dos pais. A família apresenta um nível económico humilde, agravado pelo AVC sofrido pelo pai em 2021 que o deixou incapacitado para o trabalho. Apesar disso, segundo a mãe, a receita mensal da família é “suficiente para fazer face aos encargos” (sic). A mãe aufere o vencimento mensal aproximado de 630€ e o pai recebe uma pensão de invalidez de 400€ mensais. Como despesas mais significativas mencionaram a renda de casa no valor de 480€ mensais e os consumos domésticos com água, eletricidade e gás no valor médio de 120€ mensais. Sem hábitos aditivos, a mãe refere que AA começou a sair à noite, sem ser acompanhado por um familiar, aos dezassete anos de idade, altura em que terá começado a fazer-se acompanhar com outras pessoas/amigos, das quais refere desconhecer as suas condutas sociais. O arguido aparenta ser um indivíduo com recursos cognitivos que facilitam a aprendizagem de conteúdos diversos, a expressão oral e a argumentação. Preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 09/03/2023, o arguido expressa sentimentos de injustiça perante a atual situação jurídico-penal, mas confiante no desfecho, conforme referiu. Mostra-se calmo e adaptado ao contexto institucional, cumprindo, de um modo geral, normas e regras internas. Apesar disso, regista uma situação, datada de setembro 2023, passível de infração disciplinar que se encontra em averiguação. Anteriormente, beneficiou de duas suspensões provisórias do processo, sujeitas a injunção de prestação de serviços de interesse publico que não concluiu, alegando os compromissos religiosos assumidos por ocasião do Ramadão. Efetivamente, por detenção de arma proibida em 1007-2021, foi instaurado o inquérito nº 45/21.7PJOER tendo sido determinada a suspensão provisória do processo pelo período de 4 meses com a injunção de prestar 50 horas de serviço de interesse público que incumpriu, vindo a ser condenado na pena de multa de 80 dias. O arguido tende a justificar, neste caso, a posse de detenção de arma proibida (faca) por questões de segurança pessoal, conforme referiu, o que parece indiciar sentimentos de alguma intranquilidade no meio social onde interagia. Também por crime de detenção de arma proibida, em 16-12-2021, foi ainda instaurado o inquérito nº 1476/21.8PASNT tendo igualmente beneficiado da suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses com a injunção de prestar 90 horas de serviço de interesse público que, igualmente, incumpriu, desconhecendo estes Serviços de Reinserção Social qual o desfecho. O arguido continua a contar com o apoio familiar da família que o visita no EP. Afirma ainda manter a relação de namoro, situação que não foi possível confirmar junto da namorada. Dos pedidos de indemnização civil: Do Assistente
28. A vítima era pessoa jovem, com apenas 18 (dezoito) anos de idade, perfeitamente saudável e com a vida toda pela frente.
29. Exercia a profissão de calceteiro juntamente com o pai, estava muito bem inserido na sua comunidade em particular, e na sociedade em geral, sendo amado por todos os que o rodeavam, principalmente pelos seus pais;
30. O Assistente, em consequência do falecimento do filho CC, sofreu e sofre uma profunda tristeza, angústia e ansiedade; Do CHULN, EPE
31. No exercício da sua actividade, o CHULN, EPE prestou a seguinte assistência hospitalar ao ofendido BB:
a. Cuidados de saúde em consulta de urgência e meios complementares de diagnóstico e terapêutica (Ortopantomografia, TC do pescoço - partes moles e análises), nos dias 01 e 02/08/2022, no valor total de € 261,44, conforme factura n.º 20231/0000007264, emitida em 20/10/2023, que junta como documento n.º 1 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
b. Cuidados de saúde em consulta externa de Estomatologia, bem como meios complementares de diagnóstico e terapêutica (Rx retro-alveolar), no dia 09/08/2022, no valor total de € 40,40, conforme factura nº 20231/0000007265, emitida em 20/10/2023, que junta como documento n.º 2 e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. 32. Estes tratamentos atingiram o montante global de € 301,84; ** FACTOS NÃO PROVADOS Da decisão da causa não resultou provado que: Da acusação:
a. A assistir ao evento referido em 1) encontravam-se o arguido AA, juntamente com outros indivíduos, todos pertencentes ao grupo «...», oriundos da zona de Queluz – Monte Abraão;
b. Ainda no interior do recinto os dois grupos encontraram-se e trocaram palavras e expressões provocadoras devido a ocorrências passadas, de teor não concretamente apurado.
c. O arguido AA integrava o grupo de indivíduos não identificados referidos no [Facto provado nº 3]
d. O arguido estava referenciado como pertencendo ao grupo denominado ....
e. O arguido AA integrava o grupo de indivíduos não identificados referidos no [Facto provado nº 7]
f. LL desceu a Rua dos Jerónimos com CC e DD na ocasião descrita no [Facto provado nº 8]
g. Na ocasião descrita no [Facto provado nº 8] CC apontou na direção do arguido AA, o primeiro indivíduo do grupo que se encontrava encostado à parede, dizendo ao seu primo DD que estava ali o gajo que lhe “tentou bater no Rossio”
h. Rodeado pelo CC e pelo LL, o DD foi ter com o arguido e perguntou: “porque é que andaste a bater boca com o meu primo CC?”.
i. O arguido vestia, na data dos factos, além de um casaco de cor escura com capuz, umas calças de fato treino também escuras ostentando os dizeres “ADIDAS”.
j. Na sequência da abordagem de DD, o arguido nada disse, mas, repentinamente, e sem que nada o fizesse prever, agarrou com a mão esquerda o CC pela roupa e puxou-o.
k. O Arguido praticou os factos descritos nos [Factos provados nº 8-10]
l. Após os factos, o arguido AA afastou-se daquele local e encaminhou-se para junto do edifício da Casa Pia, dissimulando-se por entre a afluência de pessoas que saíam do Estádio do Restelo após o evento.
m. As calças referidas no [Facto provado nº 23] são idênticas às que o Arguido envergava no momento dos factos.
n. O arguido bem sabia que, ao desferir os referidos golpes em CC, nas zonas do corpo que atingiu, cabeça, pescoço e tórax, designadamente, visando a zona do pulmão e coração, tais golpes eram idóneos a atingir órgãos e sistemas vitais que poderiam provocar a morte, como viria a ocorrer, resultado que quis e logrou alcançar.
o. O Arguido praticou os factos descritos nos [Factos provados nº 19-20].
p. O arguido bem sabia que ao desferir o golpe na cabeça de BB, prevalecendo-se do uso da faca que era portador, tal golpe era idóneo a atingir órgão ou sistema vital à vida da vítima, não se inibindo ainda assim de atuar.
q. O ofendido BB apenas não faleceu por razões alheias à vontade do arguido, em concreto devido aos cuidados hospitalares que recebeu.
r. O arguido atuou da forma descrita apenas devido a desavenças relativamente à pertença a grupos rivais, prevalecendo-se do uso da faca que era portador.
s. Em todas as suas condutas agiu o arguido AA de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei».
3. No que respeita à motivação, na parte que ora releva, o Tribunal a quo, consignou que: «A convicção do tribunal baseou-se na ponderação crítica do conjunto da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum. A audiência de julgamento decorreu com o registo, em suporte digital, dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados. Tal circunstância, que deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade, dispensa o relato detalhado das declarações e dos depoimentos produzidos. Todos os sujeitos processuais tiveram ampla oportunidade de discutir todos os documentos de que o Tribunal se serviu para fundar a sua convicção. As testemunhas prestaram depoimento de forma objectiva, espontânea e coerente, tendo os seus depoimentos merecido a credibilidade do tribunal com as ressalvas assinaladas no local próprio. Teve-se em conta: i. Prova testemunhal: 1. Da acusação: DD; EE; HH; BB; II; LL; JJ; GG; KK; MM; 2. Da Defesa: NN; OO; PP; ii. Prova documental:
a. Boletim de informação clínica e/ou circunstancial N.º 100525686, relativo à admissão de CC no Hospital São Francisco Xavier - fls. 3
b. Relatório clínico referente ao internamento da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital São Francisco Xavier de CC, de 1 a 2 de agosto de 2022 – Processo Hospitalar N.º …430 – fls. 30-31
c. Auto de notícia de crime - Relatório de diligências iniciais – fls. 34-36
d. Auto de notícia lavrado pela PSP - fls. 37-40 e 107-110
e. Comunicação de notícia de crime do Piquete da PJ – fls. 41-43
f. Ficha de identificação civil do falecido CC – fls. 44
g. Auto de diligência externa – deslocação ao local dos factos e ao Hospital São Francisco Xavier - 45 e 46
h. Auto de diligência externa – recolha de espólio do falecido– fls. 61-62
i. Termo de recebimento do espólio de CC - fls. 63
j. Auto de apreensão do telemóvel do falecido CC – fls. 66
k. Auto de diligência externa – recolha de imagens de videovigilância na Av.ª das Descobertas e zona adjacente – fls. 72
l. Relatório de urgência N.º …814, relativo a BB – fls. 189-190
m. Fotografia retirada da rede social INSTAGRAM – fls. 222
n. Auto de diligência – Escola Secundária … – fls. 237
o. Ficha de identificação civil do arguido AA – fls. 239
p. Expediente lavrado pela PSP no âmbito de outros inquéritos-crime em que é citado o nome do arguido AA – fls. 251-271
q. Auto de análise das imagens de videovigilância recolhidas nos autos (suporte a fls. 234) - fls. 273-276
r. Auto de busca e apreensão - fls. 317-318 e guia de depósito no núcleo de apreendidos da PJ, com o n.º de registo 191 de 08.03.2023 – fls. 336
s. Auto de apreensão de telemóveis- fls. 323 e guia de depósito no núcleo de apreendidos da PJ, com o n.º de registo 257 de 31.08.2023 – fls. 492
t. Autos de reconhecimento pessoal – fls. 325-330 e 332-334
u. Auto de análise de conteúdo de telemóveis – fls. 489-491
v. CRC;
w. Relatório social; IV. Prova pericial:
a. Relatório pericial n.º 2022010876-CLC – reportagem fotográfica dos objetos que constituíam o espólio de CC - fls. 78-91;
b. Auto de exame forense N.º ETID 22ETID0139 – conteúdo do telemóvel de CC – fls. 113-119;
c. Relatório de autópsia médico-legal n.º 2022/001123/LX-P-1 – fls. 290-295
d. Relatório Pericial N.º EP.3728261.2023_R01 - conteúdo dos telemóveis apreendidos ao arguido – fls. 477-487;
e. Relatório pericial de avaliação de dano corporal – BB de fls. 650; * O arguido prestou declarações ao Senhor Juiz de Instrução Criminal afirmando que na data dos factos não se encontrava no local mas sim a jogar futebol com amigos na zona de Queluz. As testemunhas de defesa, por sua vez, vieram aos autos declarar que o Arguido não tinha estado no local porquanto tinha estado a celebrar o aniversário da namorada, NN, desde a tarde de 1 de Agosto até à madrugada de 2 de Agosto de 2022. No entanto, verifica-se que os factos ocorreram na madrugada do dia 1 de Agosto pelo que a presença na dita festa não impedia que o Arguido tivesse estado no Tributo Afro House ou nas imediações do Estádio do Restelo, na hora e local onde os factos ocorreram. Em qualquer caso, como melhor se explana infra, não é ao Arguido que cabe provar que não estava no local, mas sim ao Ministério Público que cabe provar que ele ali estava. E nessa medida importa apreciar o que foi e não foi possível apurar dos depoimentos prestados, conjugados com a demais prova documental e por reconhecimento constante dos autos. Assim, quanto à realização da festa Tributo Afro House e às presenças referidas nos [Facto provado nº 1-2] teve-se em conta os depoimentos das testemunhas de acusação que confirmaram a respectiva realização, na data ali mencionada, e bem assim a sua presença, sendo que a mesma se confirma ainda pela consulta das fontes abertas na internet (cfr. https://www.tributeofafrohouse.com/details). O episódio descrito no [Facto provado nº 3] ocorrido no Rossio, foi relatado por II e JJ que estavam no local e confirmam que nessa data estavam com CC e foram abordados por um grupo de indivíduos não identificados que lhes pediram os telemóveis para confirmarem se pertenciam a alguma firma (grupo) e que depois se desinteressaram e abandonaram o local, nada tendo ocorrido. Estas testemunhas não conseguiram dar qualquer identificação fisionómica das pessoas que compunham esse grupo para além de descrições genéricas quanto à estatura, compleição física, etnia e idade. O [Facto provado nº 4] relativo à hora de saída do Estádio do Restelo foi confirmada pela testemunha EE e é compatível com os demais elementos documentais dos autos, designadamente com a informação que consta do relatório clínico de fls. 30, onde se refere que CC foi admitido no serviço de urgência do Hospital São Francisco de Xavier às 3h42m de 1.8.22, vítima de traumatismo, sendo que EE disse que o socorro do INEM demorou 20m a chegar ao local. As demais testemunhas não deram um horário congruente com os demais meios de prova (DD e LL referiram que saíram do Estádio às 0h00m e o primeiro disse que se deslocou de imediato para o local onde os factos ocorreram e HH referiu que os factos ocorreram em hora posterior (4h30m) e as demais testemunhas não souberam indicar uma hora para a saída do Estádio. As demais circunstâncias da saída aí referidas bem como as dos [Factos provados nº 5-6] resultaram dos depoimentos de BB e DD e do confronto com as fotografias do local bem como de consultas do Google Maps, tendo sido confirmado pela inspetora titular do inquérito que a Bomba da Repsol se situa na Rua dos Jerónimos que entronca com a Av. do Restelo2. O mesmo decorre de fls. 46 no que toca ao relato das diligências no sentido de averiguar a existência de imagens de videovigilância relacionadas co os factos sob investigação, onde se refere que foram pedias diligências a entidades situadas na Av. do Restelo e Rua dos Jerónimos. Os [Factos provados nº 7 a 11] resultaram no essencial do relato das testemunhas que estavam no local conjugados com os elementos documentais quanto à localização. O depoimento de DD foi bastante vago e titubeante no relato das circunstâncias em que ocorreu o seu contacto e de CC com o referido grupo de desconhecidos. Desde logo, quanto ao número de pessoa que compunham o referido grupo, DD disse que eram 4 ou 5 rapazes. Referiu que CC viu um dos indivíduos e disse que foi esse que lhe tinha tentado bater no Rossio. Disse DD que o grupo era composto por mais 3 ou 4 jovens que CC não disse que conhecia. Declarou que CC disse para ir falar com ele e saber porque lhe tinha batido e que quando o fez um indivíduo tirou uma faca que tinha dentro do casaco de fato de treino cujas características não soube descrever e esfaqueou o CC. Em concreto, disse que o referido indivíduo agarrou o CC com uma mão e segurou-o pela camisa pelo braço e puxou-o para ele, espetou a faca no peito de CC e o resto não viu porque de imediato fugiu do local. Quando regressou já estava CC caído do outro lado da estrada, um pouco mais acima. Quando confrontado com o facto de não ser muito verosímil que CC lhe pedisse para ir perguntar ao referido indivíduo porque o tinha confrontado no Rossio ao invés de ele próprio (CC) lhe colocar a questão, acabou por admitir que avançaram os dois lado a lado em direcção ao grupo de indivíduos e que de seguida se deu a agressão. Ou seja, o depoimento de DD revelou-se incongruente, hesitante quanto às circunstâncias em que os factos ocorreram e bem assim, pela forma como a testemunha saiu do local e depois se escusou a colaborar com as autoridades, escudando-se no receio de represálias. Por essa razão, também não se atribui credibilidade à identificação que fez depois do putativo autor dos factos. Já EE referiu que se apercebeu de um tumulto a 15-20m de onde se encontrava, junto à paragem do autocarro, e a certa altura viu um indivíduo (que depois veio a saber pela Polícia Judiciaria (PJ) que era CC) a correr para o outro lado da estrada com a mão na barriga; percebeu que ele queria fugir mas não conseguiu descer o resto da avenida e caiu. Nessa altura a testemunha aproximou-se dele e verificou que ele estava cheio de sangue no abdómen e que tinha levado uma facada porque tinha um polo azul cortado, não conseguia falar e estava em colapso. Viu duas raparigas e um rapaz com ele; o ofendido ficou a 5 m de si na direcção da paragem, inconsciente; o INEM demorou 15 a 20m, chegou primeiro a PSP; numa carrinha grande; apercebeu-se de um grupo superior a 10 pessoas a fugir sendo que um deles distinguia-se pela faca e porque era dos mais altos; no entanto, não soube dizer quem, esfaqueou CC, descrevendo-o como um indivíduo com um chapéu de pescador, um colete e fato de treino preto, de etnia africana, mais alto que os outros membros do grupo e magro; não viu se tinha óculos nem barba, e teria 17 ou 18 anos; acabou ainda por dizer que apesar de ter assinado o reconhecimento presencial como positivo, em relação ao Arguido, na altura teve dúvidas e referiu que os figurantes que constavam no alinhamento não eram fisicamente parecidos com o Arguido. Para verificar, foi solicitado à PJ a copia dos clichés dos referidos figurantes, que foram juntos aos autos em audiência de julgamento verificando-se a fls. 723 e 723 v que as fisionomias são bastante distintas das do Arguido e bem assim cor da pele, sendo o Arguido bastante mais escuro. A testemunha QQ também referiu que viu um grupo de 15 a 20 indivíduos a fugir do local mas não soube identificar qualquer deles nem soube dizer quem tinha atingido quer CC, quer BB, de quem era amiga, tendo chegado ao local quando as agressões já tinham ocorrido. A testemunha LL disse que se separou de CC e de DD à saída do Estádio e quando chegou ao local já CC tinha sido agredido pelo que não soube identificar o agressor. A testemunha GG não esteve no local, referindo apenas que à saída do evento pediu a CC para ele a levar a casa e ele disse que não a levava porque estava a haver uma confusão com o primo dele porque ele não queria deixar o primo dele ali. BB, ofendido, referiu que estava a descer (a Rua dos Jerónimos) e viu uma discussão que envolvia CC que estava a falar com alguém, passou ao pé do grupo e deram-lhe uma facada e não se lembra de mais nada. Também disse que do nada o gajo deu com faca no CC mas também referiu que foi o primeiro a ser agredido. Não soube identificar o indivíduo que praticou os factos o que aliás se confirmou no reconhecimento presencial que foi negativo (fls. 326). Referiu que a identificação do Arguido como o autor dos factos lhe foi dada por terceiras pessoas. As lesões do ofendido CC e bem assim, a assistência médica que lhe foi prestada descrita nos [Factos provados nº 12-18] são corroboradas pelo relatório de autópsia de fls. 290295, [Facto provado nº 16] que atesta ainda o nexo de causalidade entre as lesões e a morte do ofendido constante do [Facto provado nº 17] e pela documentação clínica de fls. 3, 30-31 A assistência prestada ao falecido foi ainda corroborada pelas testemunhas presentes no local, DD e EE. As circunstâncias da agressão a BB apuradas nos [Factos provados nº 19-21] foram descritas pelo próprio nos termos atrás expostos e corroboradas pela testemunha HH que esteve com este ofendido até à chegada da ambulância. A assistência prestada ao ofendido BB referida no [Facto provado nº 22] resulta do depoimento do próprio e do relatório de avaliação de dano corporal de fls. 650 (Referência Citius 37594662) e as lesões do mesmo ofendido constantes dos [Factos provados nº 13-14] estão atestadas pelo mesmo relatório de fls. 650 e descritas no [Facto provado nº 25] Os [Factos provados nº 23-24] resultam do auto de apreensão de 317-318 e da fotografia de fls. 319 e de fls. 246 verso (passaporte). O [Facto provado nº 26] tem na base o CRC Referência Citius 37566387; O [Facto provado nº 27] assenta no relatório social Referência Citius 37951916 e o Os [Factos provados nº 28-30] resultaram das declarações do Assistente, pai do falecido CC. O [Facto provado nº 31] assenta na documentação junta com o pedido de indemnização civil do demandante aí referido. * No que toca aos factos não provados, os mesmos assim foram considerados por não ter sido produzido qualquer meio de prova que os sustentasse. Coligidos os elementos probatórios, não resultou provado que o Arguido tivesse estado presente no evento Tributo Afro House ou que tivessem ocorrido confrontos entre dois grupos porquanto nenhuma testemunha o referiu, apesar de tal lhes ter sido perguntado. O Arguido declarou que não estava no local e as testemunhas de defesa apesar de pretenderem corroborar a sua versão, vieram dar uma data e um motivo para a sua ausência do local díspar da referida pelo Arguido nas declarações prestadas ao JIC. No entanto, como atrás se referiu, não cabia ao Arguido provar onde se encontrava na data dos eventos, mas ao Ministério Público provar para além de qualquer dúvida que o Arguido ali se encontrava para lhe poder imputar os factos de que vinha acusado. Assim, apesar de a versão do Arguido não ter verosimilhança nem ser congruente nesta parte, certo é que, pelas razões que infra se explanam, não se provou para além de qualquer dúvida que fosse ele o autor dos factos e também não se provou que tivesse qualquer relação com o grupo ..., porquanto nenhuma testemunha o referiu, tendo sido feita referência a grupos que cantam. Diga-se ainda que, mesmo que o Arguido pertencesse a um qualquer grupo ou gang tal não será suficiente para o considerar culpado da prática dos factos (muito graves) imputados. A investigação procurou estabelecer esta ligação com vista a motivar os factos mas a mesma não foi corroborada por qualquer testemunha; existe apenas a análise de um telemóvel que consta de fls. 489 onde se faz referência a uma conta de instagram que era utilizada pelo Arguido e onde foram encontradas conversações de grupo em que surgem vários alegados membros do gang .... No entanto, como a própria titular do inquérito, a inspetora FF admitiu, as conversas mantidas não se referiam à prática de crimes pelo que em rigor nada demonstram ou se relacionam com os factos dos autos. E bem assim as menções a inquéritos pendentes em nome do Arguido que constam do expediente de fls. 250-271 que em nada relevam para a apreciação da responsabilidade criminal do Arguido nos presentes autos por se tratarem de situações em que o Arguido é mero suspeito. Por estas razões se consideraram os [Factos não provados als. a) b) c) d)] E a ausência de prova em relação à presença do Arguido no local – [Facto não provado al. e] está diretamente relacionada com a ausência de prova indubitável de que foi o Arguido o autor dos factos tendo em conta as deficiências relacionadas com a sua identificação. Senão vejamos. Como se refere no relatório final da PJ, atestado em audiência de julgamento pela sua signatária e titular do inquérito e pelos depoimentos das testemunhas, não obstante no local se encontrarem muitas pessoas, a recolha de prova pessoal foi extremamente difícil, desde logo pelo pânico gerado e pela fuga generalizada dos transeuntes, assustados com a arma branca que o agressor exibia quando abandonava o local, o que aliás é congruente com as regras da experiência comum. Por outro lado, a testemunha que teria conhecimento direto dos factos, DD, alegou que por receio de represálias inicialmente não contou todos os factos, o que é congruente com a tramitação dos autos, porquanto esta testemunha foi inquirida por 3 vezes e apenas em Dezembro de 2022 trouxe aos autos uma fotografia que referiu que obteve quando estava a navegar nas redes sociais e se deparou com uma fotografia de um indivíduo que veio a ser identificado como o Arguido que a testemunha referiu ter sido o autor dos factos no dia 31 de Julho de 2022, ou seja, cerca de 4 meses antes. Nenhuma outra testemunha sabia até aí quem era o indivíduo (ou indivíduos) que tinha(m) esfaqueado CC. E para identificar este indivíduo a testemunha DD refere que o tinha visto 6 meses antes (ou 1 mês antes) na estação da Reboleira, a partir de um comboio em andamento, estando o indivíduo na plataforma. Ou seja, vislumbrou o indivíduo por breves momentos, em movimento e à distância. Disse ainda que a vítima CC lhe tinha dito, de dentro do comboio nesse dia, que aquele era o indivíduo que o tinha tentado agredir no Rossio e a mesma coisa teria dito no dia 31.7.22 (instantes antes da agressão fatal que o vitimou). Assim, DD identifica um indivíduo que matou outro, a partir de dados que lhe terão sido indicados pelo falecido que não pode ser inquirido, sendo que tal informação não foi corroborada por qualquer outra testemunha porquanto nenhuma outra testemunha o confirmou referindo vagamente que viram fotografias do indivíduo (o Arguido) nas redes sociais e que alguém disse que era o indivíduo que tinha esfaqueado CC na data dos factos. E foi com base nesta identificação que foram efectuados os reconhecimentos dos autos. Ora, já se antecipa a fragilidade destas inferências no que toca a relacionar o Arguido com a prática dos factos. Apesar disso, cumpre, ainda, proceder à análise dos Reconhecimentos levados a cabo como meio de prova nestes autos. Com relevância para o caso em apreço, dispõe o art.º 147.º do CPP, sob a epígrafe Reconhecimento de Pessoas que: «1 - Quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa, solicita-se à pessoa que deva fazer a identificação que a descreva, com indicação de todos os pormenores de que se recorda. Em seguida, é-lhe perguntado se já a tinha visto antes e em que condições. Por último, é interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação. 2 - Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual. (…) 5 - O reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n.º 2 (…) 7 - O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.» Para o que releva nesta sede, o objecto da prova por reconhecimento é a identidade da pessoa que cometeu o crime, convocando este meio de prova a ideia de um acto de confrontação visual da fonte pessoal (ofendida) para comparação das suas percepções no acto do reconhecimento, com as passadas, concretamente, no momento do cometimento dos factos, em relação a determinada pessoa, com o objectivo de apurar se são, efectivamente, a mesma. A utilidade do reconhecimento pessoal consiste, assim, no confronto de duas percepções da mesma fonte a partir da visualização de um identificando escolhido pelas instâncias formais de controlo, ou seja, da pessoa que resulta da investigação como sendo o provável agente do crime. Apesar de existirem diferentes enquadramentos deste instituto «[p]acífico, em qualquer ordem jurídica, apresenta-se o postulado epistemológico de que a operação de confronto visual para efeitos de reconhecimento tem de ser precedida de informação sobre a relevância desse acto, sustentada, nomeadamente, na circunstância de existir informação de que a fonte de prova (o sujeito que vai comparar as percepções) terá visionado a pessoa ou o objecto que se quer identificar em evento que constitui facto probando, as condições endógenas e exógenas da percepção passada e outros factores, nomeadamente mnemónicos e de associação, que possam afectar a identificação (e, eventualmente, obstar à experiência processual).»( ) As variáveis que podem afetar a exatidão do reconhecimento dividem-se entre variáveis a estimar, atinentes ao evento e às características da testemunha e a variáveis do sistema, decorrentes do processo ou do modo como se procedeu ao reconhecimento. Como se refere nos estudos da especialidade, o rosto de uma pessoa é um estímulo muito difícil de processar no nosso sistema cognitivo sendo a variabilidade infinita a partir de uma combinação de características simples. Na formulação da identificação a testemunha tende a produzir um efeito de autorreferência, comparando a própria estatura e peso para estimar a do alvo. Por outro lado, há que saber em que condições a testemunha viu o alvo e durante quanto tempo, pois quanto maior for a duração do evento, maior a capacidade para fixar a aparência do suspeito. A familiaridade do rosto identificado com o suspeito pode também induzir os falsos reconhecimentos. Por outro lado, existe um fenómeno chamado viés da raça (“cross-race bias”) segundo o qual as pessoas têm mais facilidade em reconhecer alguém da própria raça do que de outra raça. O decurso do tempo deteriora o traço mnésico, ou seja, quanto maior for o tempo decorrido entre o momento em que se codifica a informação e aquele em que se faz a recuperação, menor é a probabilidade de recordar. A princípio a deterioração a memória é muito rápida mas com o passar do tempo tal deterioração a memória torna-se mais lenta, ou seja, de toda a informação que esquecemos, a maior quantidade perde-se nos primeiros momentos de intervalo e retenção e decorrido certo tempo, quase toda a informação que podia ser esquecida já está esquecida. Apesar de tudo, concluem os estudos que o reconhecimento de caras e pessoas resiste mais ao decurso do tempo. Mas também depende do que se faz com a informação armazenada durante esse tempo. A informação pós-evento também interfere ao nível do reconhecimento de pessoas. Tal informação pode advir de comentários de outras testemunhas ou vítimas sobra a apreciação dos autos do delito e de fotografias a que a testemunha tenha acesso. Ora, esta recuperação múltipla tem efeitos perniciosos sobre a memória e o reconhecimento (ainda que a informação seja fornecida pelas autoridades e apesar de legalmente previsto), o que não foi o caso dos autos. Ou seja, a fotografia atua como informação pós evento que interfere na recordação da testemunha e na sua capacidade de reconhecimento. Se a testemunha se enganou a sinalizar a fotografia com alta probabilidade voltará a seleccionar erroneamente a mesma pessoa na linha de reconhecimento. Trata-se aqui do efeito de compromisso entre a identificação anterior em fotografia e o reconhecimento posterior da mesma pessoa sendo que este efeito de compromisso interfere na exatidão do reconhecimento. Por outro lado, o suspeito não deve ser de tal modo diferente dos restantes figurantes que propicie o viés do acusado2. Volvendo ao caso concreto, da conjugação da letra do art.º 147.º, n.º 1 com a anotação transcrita e o disposto no art.º 99.º do CPP, resulta que da descrição prévia ao reconhecimento devem constar todos os elementos que possam influir na credibilidade do mesmo, incluindo se a fonte de prova viu o identificando em momento posterior aos factos probandos, devendo essa informação constar do auto. Ora, do auto de reconhecimento aqui efectuado consta apenas a menção que a testemunha DD nunca tinha visto o arguido antes dos factos. Não refere tê-lo visualizado antes dos factos e depois por fotografia que trouxe aos autos cerca de 4 meses depois, momento em que o próprio forneceu os elementos que conduziram à sua identificação. Ora, tal seria uma circunstância relevante e que influi no reconhecimento efectuado pelos motivos já aduzidos e que deveria constar do campo do auto de reconhecimento onde se diz: Interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação disse: nada ter a acrescentar. Ou seja, quando efectuou o reconhecimento a testemunha DD reconheceu o indivíduo que escolheu e que alega ter visto numa estação de comboio na Reboleira, não o indivíduo que não viu (pelo menos o suficiente para o identificar) na data dos factos. De recordar que inicialmente DD no seu depoimento às autoridades não forneceu qualquer descrição do agressor. Acresce que o identificando deve ser alguém que o órgão de polícia criminal ou a autoridade judiciária entende que pode ser a pessoa que se pretende identificar e que a fonte pessoal poderá ter visualizado no momento da prática do crime. Ora, neste caso, tendo a sua identidade sido levada às autoridades directamente pela testemunha DD e tendo a mesma chegado a ela em momento posterior e sem qualquer ligação de proximidade temporal com os factos, no fundo, a mesma já sabia perfeitamente quem ia reconhecer, não sendo de espantar que não apresentasse dúvidas ao fazê-lo. Apesar de não constar do auto de reconhecimento, este viés cognitivo da fonte pessoal era conhecido de quem presidiu ao acto de reconhecimento, como relatado pela testemunha FF, titular do inquérito, que parece não ter atribuído qualquer relevância às circunstâncias em que decorreu o reconhecimento. Aliás, reforça até no relatório final por si assinado que a testemunha DD ao ver o Arguido alinhado disse de forma espontânea com alguma emoção apontando: foi aquele que esfaqueou o meu primo. Ora, tal não será estranho à forma irregular como decorreu o reconhecimento pessoal no caso dos autos. Diga-se ainda que as outras duas testemunhas que efetuaram diligência de reconhecimento pessoal referiram não reconhecer o Arguido (BB – fls. 326) e a outra, EE, apesar de ter um reconhecimento pessoal positivo (fls. 333), referiu em audiência de julgamento que reconheceu o Arguido com dúvidas o que motivou as diligências já atrás expostas de recolha dos clichés dos figurantes e introduz também a invalidade do reconhecimento efetuado como positivo. De todo o modo, determina o n.º 7 do art.º 147.º do CPP que quando o reconhecimento não seja efectuado em obediência ao disposto naquele artigo, não vale como meio de prova. E não tendo sido dado cabal cumprimento ao disposto no n.º 1 do preceito, resulta da conjugação do n.º 7, com o os art.º 125.º e 122.º do CPP, que o reconhecimento efectuado não pode ser atendido como meio de prova. Em todo o caso, ainda que se considerasse válido o reconhecimento levado a cabo, sendo um meio de prova pré-constituído transmissível e passível de valoração em sede de julgamento, sempre se encontraria o mesmo submetido ao princípio da livre apreciação da prova ínsito no art.º 127.º do CPP, podendo (e devendo) ser conjugado com os demais elementos probatórios recolhidos, mormente, a prova testemunhal. No fundo, conclui-se que da conjugação dos elementos de prova e da forma como se estabeleceu a ligação do Arguido aos presentes autos, não só foi a testemunha DD (e não a investigação) a fornecer os dados que permitiram identificar o arguido, como existiu uma interposição de contactos visuais e uma quebra de nexo entre o momento dos factos em causa e o pretenso reconhecimento do arguido. Ou seja, o problema não é que a testemunha tenha visto uma pessoa que crê ser o agente do crime e que tenha levado às autoridades informação que conduziu ao ora arguido, mas sim que essa informação não tenha sido recolhida no momento dos factos mas em momento posterior (quatro meses depois) através das redes sociais num contexto totalmente diferente, por fotografia, no qual a vítima acabou por visualizar uma pessoa que acredita corresponder à descrição inicial do agente do crime, meramente por se tratar de um indivíduo de tez escura, óculos e compleição magra, verificando-se, portanto, uma quebra de nexo entre a visualização do agente do crime, e a posterior visualização do arguido, não permitindo afirmar que ambos sejam uma e a mesma pessoa. É caso para perguntar: quantos indivíduos de tez escura, altos e magros de fato treino e capuz poderão ter estado na noite do festival no local onde os factos ocorreram? Aliás, a testemunha disse que reconheceu o Arguido na fotografia pela altura e pelos óculos, não por qualquer característica fisionómica que tivesse apontado, porquanto provavelmente não viu, o que comprova o viés e o compromisso em que se encontrava. Assim não se concluiu que o Arguido estivesse no local e que tivesse praticados os factos que se deram como não provados [Factos não provados als. f) a q)] Do depoimento de DD e LL decorre que este não acompanhou o primeiro e CC até ao local dos factos porquanto se afastou para ir ter com uma amiga e quando chegou ao local a agressão já tinha ocorrido. E o mesmo confirmou BB, que disse que, primeiro esteve com LL, mas que depois desceu sozinho a Rua dos Jerónimos. O [Facto não provado al. g)]. O próprio LL disse que depois quando chegou ao local já viu CC após ter sido agredido. No que toca à agressão perpetrada sobre BB nem este nem qualquer testemunha soube identificar o agressor. Em suma, é convicção deste Tribunal que nenhuma das testemunhas sabe quem agrediu os ofendidos na data dos factos e as diligências posteriores no sentido de encontrar o responsável redundaram na identificação do Arguido de forma de tal modo aleatória que sem conjugação de qualquer outro meio probatório que ligue o Arguido ao facto dos autos (como localização celular, conteúdo de telemóveis que o associe aos factos dos autos, ou outras testemunhas ou documentos ou objetos, como a arma do crime) não permitem para além de qualquer dúvida concluir que o autor dos factos foi o Arguido, porquanto é plausível que o mesmo não estivesse no local, devendo por isso ser absolvido lançando mão do principio in dubio pro reo. No que toca aos factos relativos ao pedido de indemnização civil, não se apurando a responsabilidade criminal do Arguido, é manifesto que não se estabelece o nexo de causalidade entre os danos invocados pelo Assistente e a conduta do Arguido pelo que o pedido de indemnização civil tem de improceder»
3. Da questão prévia da correcção da matéria de facto atinente às condições pessoais do arguido
A reprodução quase integral do relatório social, com referências, amiúde, a juízos de valor, conclusões, antecedentes criminais e depoimentos/declarações, como ocorreu no acórdão revidendo, precedida, ademais, da asserção: «Do relatório social junto aos autos consta designadamente:» constitui procedimento desconforme e a erradicar e, eventualmente e em tese, susceptível de integrar o vício, consignado na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., de insuficiência da matéria de facto3.
Com efeito, «I. O relatório social constitui uma mera «informação» (artigo 1.º, al. g) CPP), que visa habilitar o juiz na sua tarefa de escolha e graduação da medida da pena.
II. Trata-se de elemento probatório relevante do qual, através de juízo crítico, o julgador extrai factos relevantes para o julgamento da causa.
III. Só ao juiz cabe selecionar os factos e as circunstâncias nele (eventualmente) referidos, se os considerar (e na medida em que os considerar relevantes), avaliando o que nele é referido e a fonte das informações prestadas, bem assim como a credibilidade das afirmações feitas e a razoabilidade das suas conclusões»4
No caso, o erro de forma não assumiu qualquer relevo, ademais ante a decisão absolutória proferida.
Conclui-se, pois, que se trata de mero erro cuja alteração/eliminação não importa modificação essencial e que, assim, reclama correcção neste Tribunal, nos termos do art.º 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do C.P.P.
Termos em que:
a. Se elimina do ponto 27. dos factos provados «Do relatório social junto aos autos consta designadamente:»;
b. O ponto 27. dos factos dados como assentes passará a ter a seguinte redacção: «À data dos factos de que vem acusado, AA constituía agregado familiar com a mãe, 41 anos, empregada de limpeza, com o pai, 64 anos, segurança privado, reformado por invalidez, a irmã de 17 anos, estudante e o tio paterno, de 60 anos, pedreiro, reformado. A família reside em casa arrendada, em Monte Abraão há mais de 13 anos. AA concluiu o 12º ano na escola … em Queluz, através de Curso Profissional de Técnico de Desenho Animado, 3D, 4º nível. Quando foi preso encontrava-se inativo, a procurar trabalho. Apresenta experiências informais na construção civil, caracterizadas como ocasionais e irregulares. Por isso, dependia do apoio económico dos pais. A família apresenta um nível económico humilde, agravado pelo AVC sofrido pelo pai em 2021 que o deixou incapacitado para o trabalho. A mãe aufere o vencimento mensal aproximado de 630€ e o pai recebe uma pensão de invalidez de 400€ mensais. Como despesas mais significativas têm a renda de casa no valor de 480€ mensais e os consumos domésticos com água, eletricidade e gás no valor médio de 120€ mensais. Preso preventivamente à ordem dos presentes autos desde 09/03/2023, mostra-se adaptado ao contexto institucional, cumprindo, de um modo geral, normas e regras internas. Apesar disso, regista uma situação, datada de setembro 2023, passível de infração disciplinar que se encontra em averiguação. O arguido continua a contar com o apoio familiar da família que o visita no EP».
4. Do recurso interposto
O Ministério Público, ora recorrente, defende, em síntese, que o Colectivo a quo julgou incorrectamente (como não provados) os factos elencados nas alíneas d), e), h), i), k), m), n), r) e s), propugnando que aqueles pontos da matéria de facto sejam julgados provados.
Aduz, em abono, que a imposição daquela facticidade como assente «(…) resulta da conjugação: das regras da normalidade da vida; da conjugação da prova produzida com DD, qual seja a fotografia junta a fls. 222, o reconhecimento presencial de fls. 329 e o seu depoimento, nos minutos 18:28 e 19:26; da conjugação da prova produzida com EE, qual seja o reconhecimento presencial de fls. 333 (conjugado com o depoimento da Inspectora FF, minutos 14:43 a 15:24) e o seu depoimento, nos minutos 03:33, 04:08, 06:43 e 07:05; do auto de busca e apreensão e fotografia anexa, fls. 317/9; do depoimento de GG, minutos 04:26, 04:40, 07:14 e 07:40; do depoimento da Inspectora FF, minutos 16:00 e 16:26; do depoimento de HH, minutos 08:36, 08:47 e 09:51; do depoimento de II, minutos 04:30, 04:36, 05:25, 05:45 e 12:00; do depoimento de JJ, minutos 02:21 e 03:37; do depoimento de BB, minutos 12:53, 12:56, 13:02, 22:14 e 24:30»
Conclui, ainda, que: «(…) o Acórdão proferido nos autos centra-se na desconsideração dos reconhecimentos pessoais e depoimentos testemunhais e na consequente dissociação do arguido e da autoria dos factos, em desconformidade com as regras da experiência da vida e com o pensar, sentir e agir de um homem médio, se colocado na posição de julgador. Mais do que as hesitações das testemunhas, o homem médio, na posição do julgador e no uso das regras da experiência comum, teria valorizado as afirmações, realizadas apesar do medo, que levaram mesmo 3 testemunhas a depor com ocultação da identidade e com distorção da voz e da imagem. De acordo com as regras da normalidade da vida, não é de esperar que uma testemunha com medo do arguido (medo de ser esfaqueada, como a vítima) minta contra o mesmo, sendo, ao invés, de esperar que seja genuíno o que disseram as testemunhas contra um putativo homicida, apesar do terror real. DD identificou AA no instagram e em sede de reconhecimento pessoal, dúvidas não podendo restar sobre a credibilidade da identificação, apesar do medo de morte (que o impeliu a fugir na madrugada dos factos) que acompanhou a sua participação probatória. EE não viu a agressão, mas viu um “quase flagrante”, qual fosse o homem identificado (o arguido) com uma faca na mão e o CC ainda vivo, ainda de pé, a fugir ensanguentado. Do auto de busca e apreensão e fotografia anexa, de fls. 317/9, resulta que AA tinha umas calças de fato de treino pretas, tal como o agente do crime foi descrito pelas testemunhas presenciais (prova circunstancial, a complementar com as restantes). O depoimento de DD, que o Tribunal a quo desvalorizou, é compatível quer com as dinâmicas de grupos de adolescentes, quer com o depoimento de GG, sendo intrinsecamente contraditório aceitar o depoimento desta e duvidar do depoimento daquele, já que ambos relataram factos similares. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, que desvalorizou o depoimento de DD por este ter tido medo, fugindo do local, é das regras da normalidade social que o medo seja um factor de credibilização da prova produzida e que seja especialmente credível o depoimento contra um homicida, apesar do medo. A utilização do verbo “parecer”, que consta do auto de reconhecimento pessoal realizado por EE, não pode ser traduzível em dúvida, mas em credibilidade do auto e isenção do OPC. No reconhecimento, foram usados, como figurantes, indivíduos do género masculino, negros e com cerca de 1,90, tudo características comuns ao arguido».
Consentindo que o alegado traduz a impugnação do julgamento realizado sobre a matéria de facto, como impõe o art.º 412.º n.º 3, do C.P.P., passemos, pois, à apreciação da dissensão do recorrente.
Preliminarmente, urge realçar que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Setembro de 2015, processo n.º 2619/12.8GBABF.E1, in www.dgsi.pt., «(…) o juiz que, em 1.ª instância, julga de facto, goza de ampla (conquanto vinculada) liberdade de movimentos ao erigir os meios de que se serve na fixação dos factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e apreciação da prova.
Nos termos expressamente prevenidos no artigo 127.º, do CPP, as provas são livremente valoradas pelo juiz sem obediência a regras pré-fixadas.
Ora, há-de conceder-se, essa liberdade de apreciação com base no conjunto do material probatório recolhido pela percepção global, traduzido numa síntese decisória, é insindicável por este Tribunal.
Como assim, o Tribunal de recurso só em casos excepcionais de manifesto erro de apreciação da prova poderá comutar a decisão levada na instância – será, por exemplo e caricatura, o caso de o depoimento de uma testemunha ter um sentido diametralmente oposto ao que foi considerado na sentença recorrida.
Vale dizer que, por força do referido princípio da livre apreciação da prova (não estando em causa, como, no caso, não está, prova tarifada ou legal), o processo de formação da livre convicção do julgador na apreciação da prova não é questionável pelo tribunal de recurso.
A esta instância caberá apenas indagar se tal apreciação e julgamento são contrariados pelas regras da experiência comum ou pela lógica do homem médio (diga-se mesmo, do julgador médio) suposto pela ordem jurídica.
(…) Importa ademais ter presente que a impugnação do julgamento levado, na instância, sobre a matéria de facto, não conduz a um novo julgamento nem pode supri-lo.
Na verdade, a prova gravada e, em parcelas, transcrita, nunca poderá suprir a abundância de pormenores (a cor e o cheiro) que a oralidade e a imediação proporcionam ao juiz quando aprecia a prova que, pela irrepetível primeira vez, se desenrola no Tribunal.
O modo como o arguido, o declarante, como a testemunha depõem, as suas reacções, as suas reticências, a sua mímica, são factores decisivos na formação de uma convicção e não podem ser captados pela frieza asséptica de quaisquer meios mecânicos.
Pode mesmo dizer-se que, na convicção, desempenham papel de relevo não apenas a actividade puramente cognitiva mas também elementos que, racionalmente, não são explicitáveis (em muitos casos, v.g., a credibilidade que se concede a um meio de prova) e mesmo elementos puramente emocionais - cfr. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal», I, Coimbra Editora, 1974, pp. 204/205 e in «Direito Processual Penal», Lições 1988-1989, pp. 135 e segs.
Ensinava o Prof. José Alberto dos Reis que a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade, «entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), e condição indispensável para actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal». Citando Chiovenda, concluía que «ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar» - Código de Processo Civil, Anotado, Vol. IV, pág. 566».
Como decorre das conclusões e da motivação do recurso, o recorrente, no âmago, insurge-se contra a circunstância de o Colectivo a quo não ter conferido (suficiente) relevância probatória aos reconhecimentos presenciais efectuados e aos depoimentos, particularmente, ao prestado pela testemunha DD e, por essa via, ter incorrido em erro de julgamento.
Convocada que se mostra a temática da fidedignidade dos reconhecimentos, atentemos, então, preliminarmente:
«O reconhecimento é um meio de prova que consiste na confirmação de uma percepção sensorial anterior, ou seja, consiste em estabelecer a identidade entre uma percepção sensorial anterior e outra actual da pessoa que procede ao acto.
O cuidado que o legislador pôs na regulamentação do acto de reconhecimento evidencia a importância e falibilidade deste meio de prova, quando não forem tomadas as devidas precauções. Por isso que as estabelecidas na lei o são sob pena de invalidade do reconhecimento», Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo II, p.149/150.
João de Matos-Cruz Praia, “Proibições de prova em processo penal: algumas particularidades no âmbito da prova por reconhecimento e da reconstituição do facto”, Julgar Online, Dezembro de 2019, p. 17 e seguintes, refere, a este propósito, que: «O art.º 147.º do CPP, depois de no n.º 1 definir o pressuposto (“houver necessidade”) e o objeto/fim (“proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa”) do ato de reconhecimento e indicar o modo (procedimento) como este deve iniciar-se (com a descrição, por parte de quem faz o reconhecimento, da pessoa a reconhecer: é o denominado “reconhecimento por descrição”, estabelece no n.º 2 que “Se a identificação não for cabal, afasta-se quem dever proceder a ela e chamam-se pelo menos duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis, inclusive de vestuário, com a pessoa a identificar. Esta última é colocada ao lado delas, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido vista pela pessoa que procede ao reconhecimento. Esta é então chamada e perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual” (é o intitulado “reconhecimento presencial”).
A primeira nota que cumpre aqui salientar é a precisão e o detalhe com que o legislador regulou o ato de reconhecimento, acrescentando no n.º 7 do mesmo preceito a menção expressa, assim dissipando quaisquer dúvidas que porventura subsistissem, da sua falta de valor quando não observe o regime fixado (“O reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer”). Tudo isto revela a excecional preocupação em rodear o reconhecimento de especiais cautelas, procurando, na medida do possível, diminuir ao máximo os “falsos reconhecimentos” (positivos).
Este cuidado justifica-se porque, como se lê no AcTC 408/89, do que se trata é, afinal, “de reconhecer o verdadeiro culpado do crime”, pelo que “o resultado do reconhecimento pode (…) ser fatal para o arguido”, aludindo o AcTC 425/2005 e a doutrina nele citada a um ato de “extraordinária importância”, com uma “grandíssima força impressionística”, “elevada eficácia de convencimento” e “intensa eficácia persuasiva”. É neste quadro de considerações que se justifica a conclusão avançada no AcTC 378/2007: “Daí que o legislador processual penal, consciente do perigo da força probatória de um meio tão exposto a enganos e de difícil sindicância, tenha desde há muito imposto formalismos específicos para a produção deste tipo de testemunho, autonomizando-o, de modo a criar mecanismos de controle da fiabilidade do reconhecimento e a minorar o apontado risco de erro».
Tratando-se no caso de reconhecimentos que se enquadram numa «situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente», em «ambiente de dúvida e de incerteza quanto à imputação subjetiva»5, urge, pois, com audição da prova (concretamente dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF) aquilatar, antes de mais, as circunstâncias que antecederam a realização de tais reconhecimentos, vertidos nos respectivos autos.
Ora, desde logo, tal qual consignado pelas Sras. Juízas na motivação, constata-se, pacificamente6, que a testemunha presencial DD só em Dezembro de 2022 (decorridos mais de quatro meses da data dos factos) é que carreou para a investigação, à data em curso, um print de uma fotografia7 que visualizou enquanto navegava na rede social Instagram8 veiculando, só então, a informação à P.J. de que aquele era o indivíduo que havia desferiu a/s facada/s na vítima mortal (CC).
Outrossim, é inequívoco que o mesmo referiu que apenas tinha visto o indivíduo em causa uma única vez antes dos factos, segundo se recorda, cerca de seis meses antes e, concretamente, que nessa ocasião estava acompanhado do CC, no interior de um comboio, na estação da Reboleira, tendo sido este a indicar-lhe um indivíduo que se encontrava na plataforma, como sendo aquele que o tinha tentado agredir algum tempo antes no Rossio. As características fisionómicas que memorizou dessa primeira ocasião resumem-se a ser um indivíduo negro, de tez escura, com uma altura de cerca de dois metros e que usava óculos.
No dia dos factos, refere que, quando saíram do estádio do Restelo, o CC viu um indivíduo que voltou a dizer que era aquele que lhe tinha tentado bater no Rossio. Disse-lhe para ele (DD) ir perguntar-lhe (ao indivíduo) por que motivo lhe tinha tentado bater e ele foi. A instâncias da Sra. Juíza Presidente, esclareceu que, afinal, foram os dois - ele e o CC - de encontro ao indivíduo que estava encostado a uma parede, acompanhado de mais três ou quatro jovens e que, de repente, o mesmo tirou uma faca cinzenta do casaco, um casaco preto, tipo fato treino, e desferiu um golpe no peito do CC. Não viu mais agressões porque de imediato fugiu com medo de ser também agredido.
Relativamente às características fisionómicas do agressor queda-se pela menção de que se tratava de um indivíduo negro, de tez escura, com uma altura de cerca de dois metros e que usava óculos.
A instâncias de um das Sras. Juízas Adjuntas concretizou que o indivíduo que viu na plataforma da estação de comboio tinha cabelo afro, curto, mas não “à escovinha”, que não tinha nenhum tipo de penteado, não tinha “rastas” e na parte final do depoimento especificou que o agressor na noite dos factos tinha um capuz na cabeça, o capuz do casaco na cabeça.
De realçar, ainda, que da audição do depoimento resulta, como ficou consignado na motivação do acórdão revidendo, que esta testemunha prestou objectivamente um relato titubeante, insuficiente e amiúde contraditório, ou seja, indelevelmente e independentemente da motivação, nada, ou pelo menos muito pouco, coerente, credível e/ou sólido9.
Fez posteriormente o reconhecimento presencial e identificou o arguido como o autor dos factos.
Por seu turno, a testemunha EE, pese embora não tenha presenciado quaisquer agressões, encontrava-se no local na noite dos factos, declarou ter ouvido gritos e visto pessoas a fugirem. Apercebeu-se que o CC estava cheio de sangue na zona do abdómen e que caiu no chão e vislumbrou um indivíduo, num grupo de cerca de dez pessoas que iam a fugir, com uma faca na mão. A faca era grande, 10 ou 15 cm, tipo faca de cozinha. Referiu que o indivíduo que tinha a faca na mão teria cerca de 17 ou 18 anos, usava um chapéu de pescador (tendo explicado, adiante, a instâncias de uma das Sras. Juízas Adjuntas, que o chapéu de pescador é um panamá), vestia um fato de treino preto e tinha um colete também preto, era africano, alto, mais alto do que os outros do grupo. Não reparou se tinha óculos e/ou barba. Concedeu que não reparou bem nos detalhes da cara.
Confirmou ter efectuado em sede de inquérito um reconhecimento presencial. A respeito do reconhecimento, confessou prontamente que escolheu aquele que tinha mais semelhanças, já que os outros não eram tão jovens, um deles não era negro, era “monhé” ou árabe, e era baixinho, mais baixo do que ele (testemunha) que tem um metro e oitenta, e o outro era pouco mais alto do que ele (testemunha). Escolheu o arguido, apenas, por ser o mais alto e magro, mas ficou com dúvidas, não teve a certeza, como expressamente afirmou no final do depoimento.
A testemunha FF, inspectora da PJ, para o que ora importa, corroborou o mencionado pela testemunha DD quanto ao print da fotografia e modo de obtenção da mesma por parte da investigação e assentiu que os reconhecimentos presencias foram fundamentais. A propósito do auto de reconhecimento presencial com intervenção da testemunha EE referiu que esta efectivamente disse que lhe parecia que o arguido era o autor dos factos, e, por isso, assim ficou consignado no auto, mas que não foi um reconhecimento com dúvidas. Afirmou, ainda e a respeito, que a linha de reconhecimento era muito homogénea.
Aqui chegados e na senda do já preliminarmente explanado quanto às particularíssimas cautelas que subjazem à valoração da prova por reconhecimento, em consonância com as considerações adequadamente expostas a propósito no acórdão recorrido que corroboramos, é de ressaltar que «(…) os trabalhos empíricos têm revelado que a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, procurando localizar a pessoa que mais semelhanças apresente com o agente do crime por ela visualizado. Para além disso, a identificação que faz pode facilmente ser influenciada por inúmeros factores, entre os quais o comportamento, consciente ou inconsciente, da pessoa que orienta a diligência, dependendo o grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada mais do comportamento, muitas vezes corroborante, do investigador que dirigiu as operações e da confirmação do seu veredicto por outras testemunhas, do que da nitidez das suas próprias recordações do cenário do crime. Daí que mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha será averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que ela dispôs para o fazer»10.
Vale por dizer que, em face dos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e EE, logo ab initio, as condições em que ambos visualizaram o agente do crime muito dificilmente constituiriam aporte suficiente para fundamentar a fidedignidade da prova por reconhecimento. Tanto assim é que, nenhum dos dois visualizou e/ou verbalizou quaisquer traços faciais ou outras características suficientemente marcantes e individualizantes.
Aliás, a testemunha EE, que prestou um depoimento inequivocamente escorreito e sem evidência de qualquer condicionamento, foi inequivocamente clara – “reconheceu” o arguido apenas porque era o mais parecido e não teve quaisquer certezas.
Acresce, relativamente à testemunha DD a vasta panóplia de fragilidades, designadamente as atrás apontadas quanto à consistência e credibilidade do depoimento e aquelas dissecadas no acórdão revidendo, que aqui se reiteram.
Na verdade, como referem as Sras. Juízas, «No fundo, conclui-se que da conjugação dos elementos de prova e da forma como se estabeleceu a ligação do Arguido aos presentes autos, não só foi a testemunha DD (e não a investigação) a fornecer os dados que permitiram identificar o arguido, como existiu uma interposição de contactos visuais e uma quebra de nexo entre o momento dos factos em causa e o pretenso reconhecimento do arguido. Ou seja, o problema não é que a testemunha tenha visto uma pessoa que crê ser o agente do crime e que tenha levado às autoridades informação que conduziu ao ora arguido, mas sim que essa informação não tenha sido recolhida no momento dos factos mas em momento posterior (quatro meses depois) através das redes sociais num contexto totalmente diferente, por fotografia, no qual a vítima acabou por visualizar uma pessoa que acredita corresponder à descrição inicial do agente do crime, meramente por se tratar de um indivíduo de tez escura, óculos e compleição magra, verificando-se, portanto, uma quebra de nexo entre a visualização do agente do crime, e a posterior visualização do arguido, não permitindo afirmar que ambos sejam uma e a mesma pessoa. É caso para perguntar: quantos indivíduos de tez escura, altos e magros de fato treino e capuz poderão ter estado na noite do festival no local onde os factos ocorreram? Aliás, a testemunha disse que reconheceu o Arguido na fotografia pela altura e pelos óculos, não por qualquer característica fisionómica que tivesse apontado, porquanto provavelmente não viu, o que comprova o viés e o compromisso em que se encontrava»
Neste espectro, por fim, não será também de olvidar que, como o Colectivo a quo deixou expresso, as formalidades e requisitos a que alude o art.º 147º do C.P.P., só muito dificilmente se poderiam ter, no caso, por respeitadas e preenchidas.
No mais, e como consentido pelo próprio recorrente, inexiste qualquer outra prova que aponte para a autoria do arguido11.
Em suma, revisitada a prova, designadamente os autos de reconhecimento presenciais, no confronto com os depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas DD, FF, EE, nenhum reparo ou censura nos merece o decidido, pelo contrário, afigura-se que é a decisão que se impunha e impõe.
Ademais, consabidamente, o princípio in dubio pro reo é um princípio atinente ao foro probatório em processo penal, a operar em circunstâncias em que subsiste a dúvida, o non liquet.
«(…) no nosso ordenamento jurídico-penal é inegável a conexão estreita que estabelecem a Doutrina e a Jurisprudência, designadamente a jurisprudência constitucional, entre o princípio in dubio pro reo e o princípio constitucional da presunção de inocência, por um lado, e o princípio da culpa, por si, ou considerado como derivado dos princípios mais amplos da dignidade da pessoa humana e do estado de direito, por outro.
O reconhecimento da conexão do in dubio com estes princípios, maxime, a presunção de inocência e o princípio da culpa, parece corresponder à melhor compreensão da questão, sendo certo que os mesmos não se excluem mutuamente na explicação do fundamento do princípio no nosso ordenamento jurídico – tal como nos ordenamentos que nos são próximos.
Como escreve Roxin, pode fazer-se derivar o princípio in dubio pro reo, indirectamente “…do princípio da culpa em conexão com o § 261 [preceito da StPO que consagra o princípio da livre apreciação da prova], pois se de acordo com ele uma condenação exige que o tribunal esteja convencido da culpa do acusado, toda a dúvida sobre este pressuposto deve impedir a declaração de culpa”. Para além disso, diz o mesmo autor, “Também o art.º 6, II da C.E.D.H. («O acusado presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada») contém o princípio in dubio pro reo”. - Roxin, Derecho Procesal Penal citado, p. 111»12
«À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo” 13
Nestes termos, e perante aquilo que, no limite, se apresentaria como uma dúvida insanável, razoável e objectivável sobre factos desfavoráveis ao arguido, maxime a autoria dos mesmos, sempre seria de convocar a aplicação do princípio in dubio pro reo.
Por último e pese embora a sua absoluta lateralidade, no que à matéria dada como não provada referente à veiculada pertença a grupos rivais, revisitada a prova, designadamente os depoimentos prestados em julgamento pelas testemunhas HH, II, JJ, BB e GG, a cuja audição integral se procedeu nesta instância, não se vislumbra que se impusesse outra decisão às Sras. Juízas. Na verdade, os depoimentos prestados a este respeito foram (alguns) de manifestação de completo desconhecimento da questão e (outros) irremediavelmente hesitantes e incipientes.
Termos em que, o recurso interposto terá necessariamente de improceder.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Rectificar a matéria de facto respeitante às condições pessoais do arguido, conforme consignado no ponto 3.;
b) Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se, em consequência, o acórdão absolutório proferido.
Notifique.
Lisboa, 16 de Janeiro de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Jorge Rosas de Castro (vencido, conforme declaração que segue)
Marlene Fortuna
Declaração de voto vencido
Compreendo a posição assumida pelo acórdão, mas não a acompanho: creio que o recurso interposto pelo Ministério Público merece em geral provimento e por isso subscreveria decisão condenatória.
O acórdão recorrido e o acórdão a que voto vencido desconsideram no fundo o que resulta do contributo probatório da testemunha DD: seja o decorrente do seu depoimento, seja o decorrente do reconhecimento que fez.
Estamos a falar de uma pessoa que nos diz, recordemo-lo em muito limitada síntese, que estava no local ao lado da vítima CC quando esta foi puxada e esfaqueada pelo Arguido. Não é de alguém que viu algo a acontecer à distância; é de alguém que estava lá, ao lado da vítima e muito próxima do agressor – é disso que estamos a falar. Que interesse tem esta testemunha em produzir um depoimento incriminatório quanto ao Arguido ou sobre o qual não estivesse certo?
Recordo que a 1ª Instância deferiu, e bem, por razões de segurança, a prestação de depoimento à distância e com distorção de voz quanto a várias testemunhas, entre as quais este DD; recordo que o Arguido é um jovem extremamente alto e, no dizer da Sr. Inspetora da Polícia Judiciária ouvida em audiência, atlético; recordo também que foram encontradas no telemóvel do Arguido conversações que sugerem que ele fazia parte ou era muito próximo de pessoas do ...; que a testemunha de defesa OO disse que ele era amigo de infância de pessoas do ...; e que a testemunha de defesa PP disse que o arguido andava às vezes com pessoas do ...; e recordo, por fim, a extrema violência dos gestos daquela fatídica noite.
Tudo converge, portanto, à luz das regras da experiência comum, para que a testemunha DD, face ao sentido do seu depoimento, e sendo para mais, notoriamente, uma testemunha central do caso, tivesse medo de represálias, e isso torna inteiramente compreensíveis as hesitações que aqui e ali se notam no seu depoimento.
Porquê, insisto, arriscaria o DD a sua vida? Sim, é disto que se trata, ou não teria sido a prestação do seu depoimento rodeada das apontadas cautelas.
Há do meu ponto de vista algo que explica que ele esteja efetivamente a assumir riscos com este seu depoimento e disse-o: o sofrimento da família da vítima que, entretanto, presenciou; e que lhe fez ter coragem para fazer o que está a fazer. «Titubeante» o seu depoimento...? A testemunha não respondia de forma muito pronta a algumas perguntas, é um facto, mas não vemos que seja imperativo que uma testemunha credível tenha todas as respostas prontas, o que aliás é, quantas vezes, sinal de ligeireza e preparação. «Contradições» no depoimento...? Não vejo, muito honestamente, nada com particular significado, sobretudo se tivermos em conta a tensão em que ele inevitavelmente estaria e, por vezes até, a forma algo confusa com que algumas perguntas lhe eram feitas, como aconteceu em dada altura quanto às datas dos eventos relevantes.
Agora duas ou três observações sobre a prova por reconhecimento feito pelo DD.
Este meio de prova tem, como sabemos, particularidades e está pensada sobretudo para casos em que uma pessoa presencia um evento em que intervém alguém que ela não conhece e depois o investigador, chegando à identificação de um suspeito, lha põe à frente numa linha de reconhecimento. Aqui não foi exatamente isso que aconteceu, porque a realidade da vida atravessou-se à frente: foi a própria testemunha que encontrou no Instagram uma imagem em que via o indivíduo e a entregou à PJ, que depois, fazendo o seu trabalho, conseguiu identificá-lo. Se eu presencio um crime cometido por quem não conheço, mas depois vejo uma imagem numa rede social de quem estou convencido ter sido o autor, não posso ajudar a investigação, facultando a captura de ecrã? E se a PJ, a partir daquele elemento, organiza uma prova por reconhecimento e eu reconheço a pessoa que eu próprio já indicara, onde está verdadeiramente o problema? A linha de reconhecimento não seria a melhor (coisa que não tenho, aliás, por absolutamente demonstrado); mas e daí? Merece a testemunha menos crédito por isso? O depoimento deixou de valer ou de ser credível exatamente porquê?
Agora a testemunha EE. Fazendo uma análise comparativa milimétrica entre o que disse e o que disse o DD, há algumas diferenças, na verdade. O indivíduo envergava um capuz, como disse o DD? Ou um chapéu de pescador, como disse, sem certeza («acho que») a testemunha EE?
Recordo, porém, que era noite; que todas as testemunhas dizem que o indivíduo vestia de negro; que ele próprio tinha um tom de pele muito escuro; que havia muita gente a circular, saindo do evento que acabara há pouco; e que os factos são de uma enorme violência. Não pode, portanto, exigir-se um conjunto certinho de depoimentos, sobretudo, como era o caso deste EE, no que respeita a pessoas que se achavam ainda a alguma distância dos factos. E em qualquer caso, há que notar que o que esta testemunha EE disse em audiência, não permitindo uma identificação cabal do Arguido, é no geral congruente com a descrição feita pela testemunha DD, nomeadamente em termos de indumentária, altura e tez de pele (como o é, acrescente-se, o par de calças apreendido ao Arguido).
Em suma, entendo que não são suficientemente legítimas as razões invocadas para ser desconsiderada a prova incriminatória que existe e que esta imporia, ao contrário, uma condenação: temos uma testemunha que estava no local que diz, sem dúvidas, que o Arguido foi o autor dos factos.
Uma palavra ainda sobre as declarações do Arguido, que não esqueçamos que falou sobre os factos aquando do primeiro interrogatório judicial, tendo-os aí negado; segundo ele, nem sequer foi àquele evento e passou o serão e a noite no Parque d'Arriaga, em Queluz, com vários amigos, a jogar à bola, e até nomeou três - o RR, o EE e o SS, pessoas que não chegaram a ser ouvidas e a (eventualmente) confirmar aquela versão. E aliás, ouvida a namorada NN, disse ela, quanto à noite de 31 de julho para 1 de agosto (depois de falar sobre a noite seguinte, véspera do seu aniversário, que aqui não releva), que o arguido estava com ela (como sempre está) e com a amiga TT, sendo que esta também não foi ouvida.
Em suma, não só não logrou o Arguido demonstrar, como seria aparentemente fácil, que se encontrava ao tempo a jogar à bola, como uma testemunha relata uma realidade diversa sobre essa noite, de tudo resultando uma não infirmação do sentido incriminatório dos depoimentos contrários disponíveis.
Antes de terminar, ocorre-me ainda fazer um conjunto muito breve de observações sobre o princípio in dubio pro reo.
Estaremos todos de acordo que não é uma qualquer dúvida que pode fundar a decisão de dar por não provado determinado facto. Para além de ter naturalmente que ser uma dúvida séria, consistente, justificável de forma convincente perante terceiros, não deve ela ser sanável por via da produção de diligências de prova. Se o tribunal tem dúvidas quanto a saber se certo facto se verificou ou não, deve ponderar se há ou não algum meio de prova que possa ainda ter lugar em ordem a esclarecê-las, impondo-se-lhe na afirmativa que encete a sua produção.
A este respeito, apenas uma nota: as testemunhas II e JJ depuseram no sentido de que tinham estado com o falecido no Burger King do Rossio, momento em que terão sido abordados em jeito provocatório por um grupo de vários indivíduos, que procuravam apurar se eles os três faziam parte de uma "firma" (gang), situação em que o CC parece ter sido o único que ofereceu alguma resistência à revista aos telemóveis que lhes fizeram para aquele efeito – é aparentemente a situação descrita no ponto 4 da acusação pública, cuja eventual demonstração concorreria para um quadro geral de natureza confrontacional que envolveria o Arguido e a vítima. Ora, não compreendo bem porque é que ninguém na sala de audiências perguntou a estas testemunhas se o Arguido estava ou não integrado naquele grupo "agressivo".
Assim é que se dúvidas tinha a 1ª Instância, devia do meu ponto de vista ter procurado esclarecê-las, sem o que se torna problemático invocar legitimamente o in dubio pro reo.
Jorge Rosas de Castro
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1. No relatório, por lapso, faz-se referência a examinanda mas do confronto dos demais elementos, tal lapso não releva para infirmar a fiabilidade do relatório pericial porquanto a descrição das lesões e os elementos clínicos referidos são concordantes com as conclusões e com os factos dos autos.
2. Luís Filipe Pires de Sousa, Noções de Psicologia do Testemunho – Reconhecimento de Pessoas, Almedina, Julho 2020, pg. 111 e seguintes.
3. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 6/6/2023, processo n.º 15/22.8JDLSB.E1e de 22/11/2018, processo n.º 981/15.0PBSTR.E2, ambos in www.dgsi.pt.
4. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5/4/20222, processo n.º 381/20.0PCSTB.E1.
5. João de Matos-Cruz Praia, “Proibições de prova em processo penal: algumas particularidades no âmbito da prova por reconhecimento e da reconstituição do facto”, Julgar Online, Dezembro de 2019.
6. Decorre em uníssono dos depoimentos do próprio (DD) e da Sra. Inspectora da P.J. FF
7. Fls. 222.
8. “Apareceu numa story de uma conhecida que sigo”.
9. Foi, ademais, confrontado no decurso da audiência de julgamento, com o acordo de todos os sujeitos processuais, com depoimentos prestados em sede de inquérito, em Setembro e Dezembro de 2022, verificadas as manifestas contradições.
10. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/9/2022, processo n.º 43/21.0PBLSB.L1-5, in www.dgsi.pt, com sublinhado nosso.
11. A circunstância de ao arguido, meses depois dos factos, terem sido apreendidas umas simples calças de fato de treino pretas, idênticas a milhares de outras, é, por natureza, verdadeiramente inócua.
12. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/1/2007, processo n.º 2457/06-1, in www.dgsi.pt, nota 33.
13. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213.