INVENTÁRIO PARA PARTILHA
HERDEIROS LEGITIMÁRIOS
BEM DOADO
COLAÇÃO
BENFEITORIAS
Sumário

I - A existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionação dos bens que o inventariado haja doado em vida, tanto para efeitos de colação (doação a descendentes não exceptuados dela), quer com vista ao apuramento de inoficiosidade, determinando a lei que sejam relacionados pelo valor que tiverem à data da abertura da sucessão.
II - As benfeitorias feitas em vida do inventariado pelo donatário/interessado, não são de levar em consideração no inventário (nem como crédito nem como débito), mas devem nele ser relacionadas.
III - Enquanto o bem doado, objecto de relacionação no inventário instaurado após o óbito do doador, constituir bem próprio do donatário não poderá este reclamar dos demais interessados o pagamento de qualquer quantia a título de indemnização por benfeitorias por si realizadas nesse bem.

Texto Integral

Processo n.º 2361/22.1T8STS.P1

Tribunal Judicial do Porto

Juízo Local Cível de Santo Tirso – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

AA, residente na Rua ..., ... ... - ..., intentou acção de processo declarativa com processo comum contra BB e mulher CC, residentes na Rua ..., ..., ... ..., DD, residente na Rua ..., ..., ... ..., EE, residente na Rua ..., ..., ... ..., FF e marido GG, residentes na Rua ..., ... ..., HH e mulher II, residentes em ... ..., JJ e mulher KK, residentes em ..., ...40, ..., LL, residente em ..., ..., MM e marido NN, residentes na Rua ..., ..., ... ..., OO e mulher PP, residentes na Rua ..., ... ..., e QQ e mulher RR, residentes na Rua ..., ... ..., peticionando:

- Que sejam os Réus condenados a pagar-lhe a quantia de 38.000,00€ (trinta e oito mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.

- Em alternativa, serem os Réus condenados a pagar à mesma a quantia que vier a ser fixada na perícia, na proporção de 69.09%, que corresponde à sua comparticipação no pagamento das benfeitorias.

- Ainda em alternativa, ser reconhecido no Inventário que corre termos neste Tribunal, sob o nº ... – Juízo Local Cível – Juiz 2, que a herança deve à Autora o valor que neste pleito for apurado, a título das benfeitorias realizadas;

- Ser reconhecido à Autora o direito de retenção do imóvel objecto desta acção até que lhe seja pago o valor aque os Réus forem condenados.

Alega, sinteticamente, que:

(i) SS faleceu no dia ../../2020 e no dia ../../2021 faleceu TT;

(ii) Os “de cujus”, doaram em vida, a raiz do único bem imóvel que possuíam, em apreço, a casa de habitação de r/c e quintal, destinada a habitação, sita na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na C. R. Predial da Trofa, sob o nº ...43;

(iii) A A. e o 3.º R., que viviam maritalmente, fazendo vida em comum, realizaram, obras no imóvel em apreço, benfeitorias que ascendem a cerca de 55.000,00€.

Os Réus BB e mulher CC, regularmente citados, apresentaram contestação, impugnando, designadamente, as benfeitorias invocadas pela Autora.

Concluíram, propugnando a improcedência da ação.

Os Réus DD, EE, FF e marido GG, HH e mulher II, JJ e mulher KK, LL, MM e marido NN, OO e mulher PP e QQ e mulher RR, regular e pessoalmente citados, não contestaram a ação.

Proferiu-se despacho saneador, tendo sido identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu os Réus dos pedidos contra eles formulados, condenando a Autora nas custas do processo.

Inconformada com tal sentença, dela interpôs a Autora AA recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1 - Na matéria de facto dada como provada, deverá constar, ainda, os seguintes pontos:

A - A Autora pagou entre 30.000 a 40.000€ das benfeitorias levadas a cabo.

B - As benfeitorias orçaram em 68.813,00€, em conformidade com a avaliação pericial.

C - Os pagamentos ao empreiteiro eram efetuados pela autora.

2 - Em conformidade com a avaliação pericial, e uma vez que as benfeitorias orçaram em 68.813,00€, deveriam os RR. ser condenados a pagar a quantia peticionada de 38.000,00€.

3 - Ou em alternativa, e tendo como orientação a avaliação pericial, os RR., deveriam ser condenados a pagar à A., o valor o correspondente a 69.09% da avaliação pericial, o que seria 47.542,90€.

4 - Ainda em alternativa, poderia muito bem o tribunal ter condenado os RR., a pagar á Autora a quantia de 25.000,00€, correspondente a metade do valor da empreitada, e de acordo com o ponto 6 dos factos provados.

5 - Mas caso assim não se entenda, de tudo o que anteriormente se expõe, pelo menos, os RR., devem ser condenados a pagar à A. a quantia de €12.523,31 (doze mil quinhentos e vinte e três euros e trinta e um cêntimos), em função do facto provado sob o ponto 8, ou seja, ser reduzido, para aquele valor que o próprio tribunal encontra correspondência.

6 - Deve o valor que o tribunal considerar ser reconhecido no inventário que corre termos.

7 - Ser ainda reconhecido o direito de retenção do bem em apreço, enquanto a Autora não for ressarcida.

8 - Não podemos concordar com esta afirmação - “Em decorrência, as obras efetivadas pelos mesmos consubstanciaram benfeitorias úteis executadas a título de direito de propriedade e, consequentemente, induziram um incremento patrimonial em bem próprio e que, atualmente, integra a esfera dominial da Autora, pelo que não se afiguram perfectibilizados os pressupostos subjacentes ao direito de crédito contemplado no art.º 1273.º/1 e 2, do Código Civil (o qual se ancora em “enriquecimento por incremento de valor em coisa alheia “).

9 - Esta interpretação é errada, até porque o bem imóvel em causa, faz parte da relação de bens, do inventario que corre termos e referenciado na Douta Sentença. A doação efetivada, é inoficiosa, o que vai originar, que tal bem, seja partilhado, licitado. E ao ser licitado, a A. terá aqui um crédito a seu favor, que como é obvio pode interferir na sua licitação.

10 - O bem em apreço, não esta verdadeiramente na esférica jurídica da Autora, só com a partilha, e em sede do dito inventário, é que este bem integrará a esfera patrimonial, de um qualquer herdeiro, que por acaso são todos os aqui RR..

11 - Como refere L. Cardoso, Partilhas Judiciais, 4ª ed., II Vol., páginas 32 e 33, citando o Ac. da RL de 10/05/1957, não se trata de uma dívida que em si mesma seja como qualquer outra; mas para efeitos processuais dentro do inventário, nomeadamente para os efeitos de serem reconhecidas, aprovadas e mandadas pagar, determina que as benfeitorias sejam descritas como dívida passiva, e, portanto, como as demais dívidas passivas.

12 - Se as benfeitorias foram realizadas na coisa doada, o donatário não é terceiro relativamente a essas benfeitorias, nele se confundindo as vestes de proprietário e de possuidor em nome próprio da coisa doada.

13 - As benfeitorias feitas por um donatário que é, ao mesmo tempo, interessado na herança do doador, não são uma dívida da herança, mas antes um valor dedutível ao acesso dos bens doados.

14 - As benfeitorias realizadas em bens da herança, em vida do inventariado, constituem dívidas da herança, sendo certo que, nos termos do art. 2115.º CC, se efetuadas pelo donatário, é este equiparado ao possuidor de boa-fé, aplicando-se o regime previsto nos arts. 1273.º e ss..

15 - No caso de a colação operar por restituição do bem (ou ocorrer inoficiosidade que implique a devolução do bem à herança – que é o caso dos autos de inventário, pois a partilha esgotasse praticamente nesse bem), tem direito a ser indemnizada pelo valor das benfeitorias necessárias, bem como das benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa, tendo ainda direito a levantar as benfeitorias úteis e voluptuárias que possam ser retiradas sem detrimento da coisa.

Termos em que deve a Sentença do M.º Juiz ser revogada e substituída por outra, que altere a matéria de facto para os termos expostos, e em consequência disso mesmo, condenar os RR. a pagar á Autora, aqui Recorrente:

A - A quantia de 38.000,00€, em conformidade com a avaliação pericial, que orçou as benfeitorias em 68.813,00€.

B - Em alternativa, no valor correspondente a 69.09% da avaliação pericial, o que seria 47.542,90€.

C - Ainda em alternativa, condenar os RR., a pagar á Autora a quantia de 25.000,00€, correspondente a metade do valor da empreitada, e de acordo com o ponto 6 dos factos provados.

D - Por fim, e ainda em alternativa, devem os RR., ser condenados a pagar à A. a quantia de 12.523,31€, em função do facto provado sob o ponto 8, ou seja, ser reduzido, para aquele valor, que o próprio tribunal encontra correspondência.

E - O valor a que os RR. serão condenados, deve ser reconhecido no inventário que corre termos, para efeitos de partilha.

F - Ser ainda reconhecido o direito de retenção do bem em apreço, enquanto a Autora não for ressarcida.

Com o que se fará a esperada JUSTIÇA”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;

- se tem a recorrente direito a ser compensada pelas despesas relativas às obras que realizou no imóvel e, na afirmativa, imputação da sua responsabilidade aos recorridos.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Pelo tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1. Em 22 de Maio de 2018, no Cartório Notarial da Trofa, lavrou-se escritura pública com a epigrafe “Doação” subscrita por SS e TT, como primeiros outorgantes, e EE e AA, na qualidade de segundos outorgantes, no âmbito da qual os primeiros outorgantes declararam doar por conta da quota disponível aos segundos outorgantes, que declararam aceitar, a raiz do prédio urbano composto de casa de habitação de r/c e quintal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis da Trofa sob o n.º ...43/20080128 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...25.

2. A aquisição descrita em 1) afigura-se registada a favor de EE e AA.

3. Após o indicado em 1), EE e AA fixaram residência na predita casa, a qual era também habitada por SS e TT.

4. No predito circunstancialismo, EE e AA partilhavam a mesma cama e apresentavam-se a terceiros como um casal, sendo, assim, conhecidos por familiares, amigos e vizinhos.

5. Entre agosto de 2018 e meados de 2020, EE e AA declararam solicitar a UU, construtor civil, a efetivação de trabalhos de restauro e ampliação da casa enunciada em 1), o que o mesmo declarou aceitar.

6. No circunstancialismo indicado em 5), o predito UU apresentou um orçamento de cerca de €50.000,00 (cinquenta mil euros), que EE e AA declararam aceitar.

7. Em consequência do mencionado em 5) e 6), entre agosto de 2018 e meados de 2020, foram efetivados, designadamente, os seguintes trabalhos na antedita casa:

- Paredes da casa em bloco, com isolamento térmico em capoto;

- Placa de vigas em betão, com isolamento térmico;

- Telhado em telha sanduiche com isolamento térmico;

- Caleiras e condutores de água;

- Chaminé em aço inox;

- Janelas em alumínio lacado com vidro duplo e estores;

- Portas exteriores em alumínio lacado;

- Muros em bloco e floreira em bloco;

- Um portão automático;

- Passeios em betão;

- Soleiras em mármore;

- Instalação elétrica;

- Pichelaria;

- Tetos em pladur, com focos;

- Chão Interior revestido a tijoleira e com rodapé;

- Roupeiros embutidos;

- Portas interiores, apainelados em madeira e puxadores em inox;

- Paredes interiores estanhadas;

- Pintura interior;

- Paredes da cozinha e casas de banho em tijoleira;

- Loiças sanitárias;

- Bases e cabines com chuveiros;

- Torneiras.

8. Com referência ao enunciado em 6) e 7), a Autora despendeu a quantia de €12.523,31 (doze mil quinhentos e vinte e três euros e trinta e um cêntimos).

9. Em ../../2020 faleceu SS.

10. Em ../../2021 faleceu TT.

11. Em 01/04/2021, BB aduziu o processo de inventário n.º ..., requerendo a partilha por óbito de SS e TT.

12. No âmbito do sobredito inventário, BB foi designado cabeça de casal, aduzindo relação de bens que consignava, designadamente, que:

“1. Verba número um: Casa de habitação e quintal, destinada a habitação, sita na Rua ..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa, sob o número ...43, (…) doada a raiz ao filho EE, NIF ...68..., e a AA (…)

2. Verba número dois: mobília de um quarto completo, composto por cama, duas mesinhas e um camiseiro (…)

3. Verba número três: móveis de cozinha frigorifico, arca, mesa, dez bancos (…)

4. Verba número quatro, um cadeirão (…)

5.Verba número cinco: Crédito no montante de 17.521.77 euros, sobre o filho EE (…)

6. Verba número seis: Crédito no montante global de 3.374.13 euros sobre o filho EE, NIF ...68..., e a companheira AA (…)

Verba número sete: Crédito no montante 17.500.00 euros, devido pelo EE, e a companheira AA”

13. No âmbito do processo referido em 11), por despacho proferido em 26/05/2022, determinou-se a remessa dos interessados para os mesmos comuns com referência à “matéria que enforma as reclamações dos interessados EE e AA, i.e., alegados créditos por benfeitorias, bem como a responsabilidade da antedita interessada pelos créditos relacionados sob as verbas 5) a 7) ”.

III. 2. E julgou não provado o seguinte facto:

14. Com referência ao enunciado em 6) e 7), a Autora despendeu a quantia de €38.000,00 (trinta e oito mil euros).

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Pretende a recorrente que à matéria de facto dada como provada em primeira instância sejam adicionados os seguintes factos:
A - A Autora pagou entre 30.000 a 40.000€ das benfeitorias levadas a cabo.
B - As benfeitorias orçaram em 68.813,00€, em conformidade com a avaliação pericial.
C - Os pagamentos ao empreiteiro eram efetuados pela autora.
Analisada a petição inicial, constata-se que nela alega a Autora:
- “...a A. e o 3º R., que viviam maritalmente, fazendo vida em comum, realizaram, obras no imóvel em apreço, benfeitorias que ascendem a cerca de 55.000,00€ (Cinquenta e Cinco Mil Euros)” – artigo 15.º;
- “Destes 55.000,00€, a aqui A. pagou, a quantia de 38.000,00€ (Trinta e Oito Mil Euros) ...” – artigo 16.º.
Relativamente a esta matéria alegada, o tribunal recorrido julgou provado o seguinte circunstancialismo:
- Entre agosto de 2018 e meados de 2020, EE e AA declararam solicitar a UU, construtor civil, a efetivação de trabalhos de restauro e ampliação da casa enunciada em 1), o que o mesmo declarou aceitar – ponto 6.º dos factos provados.
- Tendo, entre Agosto de 2018 e meados de 2020, sido realizados, designadamente, os trabalhos elencados no ponto 7.º dos factos provados.
- 8. Com referência ao enunciado em 6) e 7), a Autora despendeu a quantia de €12.523,31 (doze mil quinhentos e vinte e três euros e trinta e um cêntimos) – ponto 8.º dos factos provados.
E considerou não provado que, com referência ao enunciado em 6) e 7), a Autora despendeu a quantia de €38.000,00 (trinta e oito mil euros).
A matéria que a recorrente pretende que seja adicionada para além de não encontrar correspondência na factualidade por ela alegada na petição inicial, conflitua, ainda, com a matéria enunciada como provada nos citados pontos 6.º e 7.º, e com a considerada não provada (ponto 14.º), que não foram objecto de impugnação por parte da recorrente.
Como tal, mantém-se, sem alterações, a decisão proferida em primeira instância que fixou a matéria provada.
Soçobra, nesta parte, o recurso da apelante.
2. Da aplicação do direito aos factos apurados.
Pretende a Autora com a acção que propôs contra os Réus, ora apelados, ser ressarcida do valor das despesas que realizou no prédio urbano identificado no ponto 1.º dos factos provados, cuja aquisição se acha registada a seu favor e do Réu EE, com quem viveu, em situação análoga à dos cônjuges, no referido prédio, juntamente com SS e TT, os quais doaram àqueles, por conta da quota disponível, a raiz do dito imóvel.
Após decesso dos doadores, foi instaurado inventário no qual foi relacionado, como bem da herança, o referido prédio urbano
No âmbito desse processo de inventário foi proferido despacho a determinar a remessa dos interessados para os meios comuns com referência à “matéria que enforma as reclamações dos interessados EE e AA, i.e., alegados créditos por benfeitorias, bem como a responsabilidade da antedita interessada pelos créditos relacionados sob as verbas 5) a 7) ”.
Importa, assim, equacionar se a Autora é credora, e em que medida, por alegadas benfeitorias realizadas no imóvel relacionado no inventário instaurado por óbito dos doadores.
Segundo o artigo 216º, n.º 1 do Código Civil, benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.
As benfeitorias consistem nos melhoramentos feitos na coisa pelo proprietário, pelo possuidor, pelo locatário, comodatário, usufrutuário, distinguindo-se do instituto da acessão em que os melhoramentos são realizados por um terceiro, não ligado juridicamente à coisa objecto de tais melhoramentos, podendo este ser um simples detentor ocasional.
Para o critério subjectivo, a distinção arranca da existência ou inexistência de uma relação jurídica que vincule a pessoa à coisa beneficiada, e daí que a benfeitoria consista num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um terceiro que não tem qualquer contacto jurídico com a coisa.
Ao contrário da acessão, em que ocorre, através de uma construção nova, a união e incorporação de uma coisa com outra pertencente a proprietário diverso, atribuindo a lei, em determinadas condições, ao autor da acessão o direito de propriedade, na benfeitoria apenas é melhorada a coisa já existente, conferindo ao seu autor um direito de crédito ou direito ao seu levantamento.
Os n.ºs 2 e 3 do citado dispositivo distinguem as benfeitorias em necessárias, úteis e voluptuárias. Assim, são:
- necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa;
- úteis, as que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam, todavia, o valor;
- voluptuárias, as que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
Segundo Carvalho Fernandes[2], “As benfeitorias são necessárias quando têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa. Benfeitoria necessária é, pois, por exemplo, a reparação de uma parede, ou de um telhado de um prédio que ameacem ruir; ou a pintura de um automóvel que corra o risco de corrosão pela ferrugem.
Quando a benfeitoria, não cabendo na noção que fica definida, aumenta, contudo, o valor da coisa, diz-se útil. Benfeitoria útil é, por exemplo, a instalação da corrente eléctrica numa casa, ou a modernização nela existente.
Finalmente, as benfeitorias voluptuárias visam apenas o recreio de quem as realiza, como seja o caso de pintar de cores garridas ou às riscas um veículo automóvel, não carecido de pintura, mas pelo simples facto de ele se tornar assim mais agradável ao seu dono.”
Dispõe o artigo 1273.º do Código Civil:
1. Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela.
2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”.
Conforme resulta do elenco factual recolhido nos autos, a ora recorrente adquiriu, juntamente com EE, em 22 de Maio de 2018, por escritura de doação, a raiz do prédio urbano identificado no ponto 1.º dos factos provados, encontrando-se tal aquisição registada a favor de ambos os donatários.
Entre Agosto de 2018 e meados do 2020 foram realizadas obras de melhoramento no imóvel objecto de doação, designadamente as descritas no ponto 7.º dos factos provados e nas quais a Autora, ora apelante, despendeu a quantia de €12.523,31 (doze mil quinhentos e vinte e três euros e trinta e um cêntimos).
Do circunstancialismo fáctico relatado transparece, assim, que as ditas obras foram realizadas em bem que na altura pertencia à aqui Autora e a EE, filho dos doadores, e com quem aquela vivia então maritalmente.
Após dissertar sobre conceitos jurídicos como o direito de propriedade e a posse, conclui a sentença aqui em sindicância que não assiste à Autora direito a ser compensada pelas benfeitorias realizadas no imóvel doado, porquanto “as obras efetivadas pelos mesmos consubstanciaram benfeitorias úteis executadas a título de direito de propriedade e, consequentemente, induziram um incremento patrimonial em bem próprio e que, atualmente, integra a esfera dominal da Autora, pelo que não se afiguram perfectibilizados os pressupostos subjacentes ao direito de crédito contemplado no art.º 1273.º/1 e 2, do Código Civil (o qual se ancora em “enriquecimento por incremento de valor em coisa alheia “)”.
A equação do objecto do litígio discutido na acção instaurada pela Autora reclama, contudo, uma mais detalhada fundamentação, que não descure, nomeadamente, as vicissitudes decorrentes da instauração do processo de inventário na sequência do decesso dos doadores do imóvel.
Com efeito, tendo ocorrido, entretanto, os óbitos dos doadores - em 28.04.2020, de SS, e em 2.04.2021, de TT -, na sequência disso o interessado e herdeiro BB instaurou processo de inventário a que coube o n.º ..., e no qual foi relacionado como único imóvel o que fora doado em vida dos autores da herança à Autora e ao então seu companheiro, filho daqueles.
Incumbe, de facto, ao cabeça de casal relacionar todos os bens da herança que haverão de integrar o inventário, ainda que a respectiva administração lhe não pertença, compreendendo-se no acervo hereditário todos os bens, direitos e obrigações que não sejam considerados intransmissíveis que o inventariado possuía ao tempo do seu falecimento.
No referido inventário foi requerida pelo cabeça de casal, BB, a redução da doação do imóvel em causa com fundamento na sua inoficiosidade, admitindo a Autora na petição inicial que tal pedido “terá sucesso, uma vez que os “de cujus”, doaram o único bem imóvel, que possuíam, excedendo assim a sua quota disponível”.
De acordo com o n.º 1 do artigo 2168.º do Código Civil, “dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários.
A inoficiosidade traduz-se, assim, na ofensa da legítima dos herdeiros legitimários em virtude de liberalidades feitas pelo autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, quer se trate de doações, quer de legados.
Em concretização da protecção da legítima conferida pelo instituto da inoficiosodade, estabelece o artigo 2169.º do Código Civil que as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida.
Relativamente às liberalidades operadas através de doações, se os bens doados forem divisíveis, a redução faz-se separando deles a parte necessária para preencher a legítima; sendo indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário e o donatário haverá o resto em dinheiro; no caso contrário, os bens pertencem integralmente ao donatário, tendo este de pagar em dinheiro ao herdeiro legitimário a importância da redução. É o regime que resulta do artigo 2174.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Da inoficiosidade se distingue a figura da colação, cuja noção é oferecida pelo artigo 2104.º, n.º 1 do Código Civil: “Os descendentes que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação”.
Extrai-se do acórdão do STJ de 28.05.2024[3]: “A colação e a redução de liberalidades por inoficiosidade têm funções diferentes (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Abril de 2007, www.dgsi.pt, proc. n.º 07A295): a colação destina-se a igualar a partilha “do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança” (Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, VI, Coimbra, 1998, pág. 173), beneficiando também (mas não onerando) o cônjuge (Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., págs. 181-182) e obriga os descendentes a restituir à massa da herança os valores ou bens que lhes foram doados (n.º 1 do artigo 2104.º e 2108.º do Código Civil); a redução por inoficiosidade tem como objectivo proteger “a integridade da legítima” (Francisco Pereira Coelho, Direito das Sucessões, Coimbra, 1992, pág. 289). “A colação não se confunde com a restituição fictícia de bens doados, referida no artigo 2162.º (…). Esta restituição é fictícia, não real, e não importa por isso, como a colação, um efectivo aumento da massa hereditária. Além disso abrange todas as doações, feitas aos descendentes ou a quaisquer outras pessoas. E não visa a igualação da partilha entre os herdeiros legitimários, mas o cálculo da legítima – ou da quota indisponível – e a protecção dos legitimários em geral” (Francisco Pereira Coelho, op. cit, págs. 287-288);
O instituto da colação visa, assim, a igualação dos descendentes na partilha dos bens da herança do de cujus, mediante a restituição fictícia à herança dos bens que foram doados em vida por este a um deles.
Como esclarece Ana Prata[4], “A colação é um instituto supletivo: o autor da sucessão pode dispensar de colação. (… ) Em caso de dispensa de colação, conclui-se que o autor da sucessão quis avantajar o descendente e então a imputação não é feita na sua legítima subjetiva mas pelo contrário na quota disponível e só se a extravasar será feita na quota indisponível”.
No caso em apreço, os autores da herança doaram em vida à Autora e a EE, seu filho, e que, à data, vivia maritalmente com aquela, a raiz do imóvel identificado no ponto 1.º dos factos provados, por conta da sua quota disponível.
O emprego da expressão em causa significa que é dispensada a colação, havendo, neste caso, que considerar apenas a redução da doação por inoficiosidade. Apesar de poder haver dispensa de colação e não obstante verbas doadas não integrarem o acervo hereditário, a respectiva integração na relação de bens em inventário é necessária de modo a indagar da eventual inoficiosidade das doações e prevenir possível ofensa do interessado não beneficiado.
De facto, a existência de herdeiros legitimários implica a obrigatoriedade de relacionação dos bens que o inventariado doou, tanto para efeitos de colação (doação a descendentes não exceptuados dela), quer com vista ao apuramento de inoficiosidade, determinando a lei que sejam relacionados pelo valor que tiverem à data da abertura da sucessão, como resulta do artigo 2109.º do Código Civil.
Pode ler-se no acórdão da Relação de Guimarães de 14.06.2018[5]: “mandando a lei estimar os bens doados pelo valor que teriam à data da abertura da sucessão se não tivessem alterados, o valor a considerar para os bens doados é o que teriam à data da abertura da sucessão.
(...) As benfeitorias feitas em vida do inventariado pelo donatário/interessado, não são de levar em consideração no inventário (nem como crédito nem como débito) (14). Neste caso, o prédio descreve-se com menção das benfeitorias. Indica-se o valor do prédio (…) e indica-se o valor das benfeitorias, que será descontado ao valor do prédio doado (15). O valor dos bens doados é aquele que eles efetivamente têm e não o que resulta das benfeitorias feitas pelo donatário (Ac. RC de 15/1/1980: Col. Jur, 1980, 1º- 112)”.
Todas estas considerações se destinam a aferir da relevância das benfeitorias realizadas no imóvel doado à Autora e a EE pelos autores da herança, as quais, tal como o imóvel doado, devem ser relacionadas no processo de inventário, com os valores supra mencionados. Tal relacionação é indispensável para se determinar se a doação afecta a legítima dos restantes herdeiros legitimários e, na afirmativa, em que medida, sendo que de tal indagação depende a necessidade ou não da redução da doação por inoficiosidade e o valor dessa redução, a ocorrer.
Mas enquanto a partilha dos bens da herança, na qual se integra o imóvel doado, não se mostrar concretizada, continuam a ser proprietários de tal imóvel a Autora e EE, a quem o mesmo foi doado, e cuja aquisição se acha registada em nome destes.
E neste justo enquadramento ter-se-á de comungar do entendimento de que – pelo menos, por ora, continuando a Autora titular do direito de propriedade do imóvel doado, relacionado no processo de inventário -, devendo embora também neste ser relacionadas as benfeitorias realizadas no prédio urbano, e o respectivo valor, “as obras efetivadas pelos mesmos consubstanciaram benfeitorias úteis executadas a título de direito de propriedade e, consequentemente, induziram um incremento patrimonial em bem próprio e que, atualmente, integra a esfera dominal da Autora, pelo que não se afiguram perfectibilizados os pressupostos subjacentes ao direito de crédito contemplado no art.º 1273.º/1 e 2, do Código Civil (o qual se ancora em “enriquecimento por incremento de valor em coisa alheia “), tal como conclui a sentença sob recurso.
Com efeito, as benfeitorias úteis foram realizadas em imóvel, porque ainda não partilhado, pertencente à Autora (juntamente com EE), não lhe assistindo, enquanto dispor desse direito de propriedade, o direito de ser indemnizada pela realização de tais benfeitorias, muito menos podendo reclamar o pagamento dessa indemnização de quem, sendo apenas interessados no inventário, nenhum direito ainda têm assegurado sobre o bem em causa.
Improcede, deste modo, o recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

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Síntese conclusiva:

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Nestes termos, acordam as juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: a cargo da apelante – artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


Notifique.

Porto, 9.01.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires

Ana Vieira

Ana Luísa Loureiro

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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, I, 4.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2007, pág. 699.
[3] Processo n.º 1027/20.1T8PRD-A.P1.S1, www.dgsi.pt.
[4] Código Civil Anotado, volume II, 2017, Almedina, pág. 1019.
[5] Processo n.º 156/07.1TBMDR.G1, www.dgsi.pt.