ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANO BIOLÓGICO
REMIÇÃO DE PENSÃO
DANOS PATRIMONIAIS
CONTRA-ALEGAÇÕES
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
Sumário


A indemnização atribuída ao autor enquanto vítima de acidente de trabalho não contempla o ressarcimento de previsíveis perdas de remuneração no futuro nem a frustração de oportunidades de progressão ou mudança e consequente melhoria da situação profissional inviabilizadas pela afetação da sua integridade física e psíquica, nem mesmo constitui compensação pelo esforço acrescido a que o lesado estará sujeito no exercício de quaisquer tarefas da sua vida profissional ou pessoal por perda ou diminuição das suas capacidades funcionais.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

1. AA, residente em ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma comum contra «Via Directa Companhia de Seguros, SA.», com sede em ..., onde conclui pedindo a condenação desta a pagar- 257.163,19, a título de indemnização pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência de acidente de viação.

Para tanto, alega, em síntese, que, no dia ... de Outubro de 2014, pelas 7h40m, conduzia o seu motociclo pela Rua ..., na cidade da .... Por sua vez, o veículo automóvel seguro na Ré entrou nessa mesma via, provindo da Rua ..., sem respeitar um sinal de stop colocado verticalmente na interceção da estrada por onde seguia com a via por onde então circulava o Autor, provocando o embate entre os dois veículos e a consequente queda do Autor. Da colisão resultaram para o Autor danos de carácter patrimonial e não patrimonial, que o mesmo descreve, os quais devem ser ressarcidos pela aqui Ré, na qualidade seguradora que assumiu a responsabilidade civil pela circulação do veículo cujo condutor, de forma culposa, provocou o acidente.

2. A Ré apresentou contestação onde principia por dizer que assume a responsabilidade pela indemnização dos danos, sendo por isso incontrovertida a dinâmica do acidente.

Invoca, contudo, a excepção de prescrição do crédito indemnizatório do Autor no que concerne aos invocados danos de carácter material.

Subsidiariamente, impugna a extensão e a gravidade dos danos sofridos, alegando que, pelo facto de o acidente em causa nos autos ter sido considerado simultaneamente como acidente de trabalho, o valor com que já reembolsou a seguradora da entidade patronal do Autor, deve ser descontado na indemnização que, a final, venha a ser fixada.

3. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde foi apreciada, no sentido da improcedência, a excepção de prescrição invocada pela Ré.

4. Seguiu-se a selecção de temas de prova que não mereceram reclamação das partes.

5. Por requerimento apresentado antes da audiência de julgamento, o Autor veio requerer a condenação da Ré como litigante de má-fé

6. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do inerente formalismo legal.

7. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo (sic):

“Pelo exposto, decide-se

a. julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:

- Condenar a Ré «Via Directa Companhia de Seguros, SA» a pagar ao Autor global de 52.000,65 (cinquenta e dois mil e sessenta e cinco cêntimos), sendo:

- a quantia de 22.000,65 (vinte e dois mil e sessenta e cinco cêntimos), a título indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação, até integral pagamento e;

- a quantia de 30.000,00 (trinta mil euros), a título de compensação de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, a partir da presente data, até integral pagamento;

c) Mais condeno a Ré a pagar ao autor o valor do veículo sinistrado, descontado o valor do salvado, a liquidar ulteriormente

d) No mais, absolvo a Ré do pedido.

Custas pelo Autor e pela Ré, na proporção do respectivo decaimento.

8. Houve recurso de apelação pelo A., conhecido pelo Tribunal da Relação e que culminou com a seguinte decisão:

“Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar, em parte, a sentença, arbitrando a título de dano biológico a quantia de 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), confirmando no mais a sentença recorrida.

-

Custas:

- na apelação, pelo apelante e apelada na proporção do decaimento,

que se fixa em ¾ e ¼, respetivamente;

- em 1ª instância, na proporção do decaimento.”

9. Houve recurso de revista, a pedido da Ré, no qual estão formuladas as seguintes conclusões (transcrição):

1ª - O pedido deduzido pelo Autor nos presentes autos foi julgado pela 1ª Instância como parcialmente procedente.

2ª - O recurso de apelação interposto pelo Autor procedeu apenas quanto às conclusões 5 a 5.6, pelo que o presente recurso se cinge apenas à questão aí enunciada.

3ª - A 1ª Instância enquadrou, e bem, esta parte do pedido nos danos patrimoniais.

4ª - Por sua vez, a Relação do Porto decidiu que o valor recebido pelo Autor em sede de processo de acidente de trabalho a título de capital de remição da pensão por incapacidade não é de deduzir aos € 55.000,00 atribuídos ao Autor a título de dano biológico.

5ª - Estamos perante um evento gerador em simultâneo de responsabilidade civil e laboral.

6ª - Assim, não podem ser considerados nos presentes autos os danos patrimoniais decorrentes do acidente dos autos, já liquidados ou a liquidar no âmbito do processo laboral, sob pena de violação do princípio indemnizatório (repor o lesado na situação que existiria se não se tivesse verificado o acidente), com duplicação de indemnizações e enriquecimento sem causa do lesado – art. 562º do C. Civil.

7ª -Com efeito, as indemnizações resultantes de acidentes simultaneamente de trabalho e de viação não são cumuláveis, mas sim complementares.

8ª - A Ré procedeu em 18/07/2018 ao reembolso à Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. das quantias por si reclamadas no âmbito do sinistro que se discute nos presentes autos, incluindo incapacidades temporárias, incapacidade permanente, despesas hospitalares, médicas e medicamentosas e transportes, num total de € 92.506,81.

9ª - Sucede que o Autor já recebeu da Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., o capital de remição da pensão relativa a uma incapacidade permanente de 19,0232% fixada no processo judicial de acidente de trabalho, ou seja, a quantia de € 37.410,24.

10ª - A duplicidade do dano pode ocorrer quanto aos danos patrimoniais futuros (lucros cessantes) relativos à perda da capacidade de ganho da vítima, recebida como pensão (acidente de trabalho) ou como capital antecipado e recebido de uma só vez (responsabilidade civil).

11ª - Na Petição Inicial, mais precisamente nos arts. 180º a 185º, o Autor deduziu pedido indemnizatório relativo a redução da capacidade futura de ganho, enquanto dano patrimonial, em momento algum se referindo a “dano biológico”.

12ª - Foi o próprio Autor, no seu articulado inicial, que reconheceu, admitiu e pediu que o valor recebido em sede de acidente de trabalho a título de capital de remição de pensão atribuída por incapacidade permanente, fosse deduzido à indemnização peticionada, no âmbito dos danos patrimoniais, relativamente à redução de capacidade futura de ganho.

13ª - Reconhecendo, no caso concreto dos danos que peticionou (redução de capacidade futura de ganho), que há duplicação relativamente à indemnização que já havia recebido em sede de processo laboral.

14ª - Não se tratando, nos termos peticionados, do “dano biológico” considerado no Acórdão recorrido.

15ª – A indemnização peticionada tem como fundamento o lucro cessante decorrente da repercussão das sequelas de que o Autor ficou (definitivamente) a padecer na sua capacidade de ganho, conforme enquadramento dado pela 1ª Instância.

16ª - O critério utilizado pela 1ª Instância, e corroborado pela Relação do Porto, é puramente uma fórmula de cálculo para apuramento de indemnização de dano patrimonial futuro por perda de capacidade de ganho.

17ª - Verifica-se assim duplicidade da indemnização atribuída relativa ao dano patrimonial futuro (lucros cessantes) relativo à perda da capacidade de ganho do Autor, já recebida como capital de remição de pensão em sede laboral, com a fixada nos presentes autos de responsabilidade civil emergente de acidente de viação como capital antecipado e recebido de uma só vez.

18ª - O valor de € 37.410,24 recebido no processo de acidente de trabalho tem que ser deduzido à indemnização de € 55.000,00 fixada nestes autos.

19ª – Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou o disposto no art. 562º do Código Civil, bem como o disposto no art. 609º do CPC.”

10. Foram apresentadas contra-alegações (ao abrigo do art.º 638.º, n.º5 do CPC) onde figuram as seguintes conclusões:

“1.1 Dano biológico é a nomenclatura jurídica para o dano que consubstancia o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica que afecta um indivíduo, em decorrência de um acidente. É uma “violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, existindo em qualquer situação de lesão dessa integridade, com ou sem reflexos na profissão ou no rendimento do trabalho.”32

1.2 Trata-se de um dano futuro, primário, que é determinado pela “irreversível perda de faculdades físicas e intelectuais que a idade agravará.”

1.3 O défice funcional por perda de capacidade geral não corresponde a um índice de incapacidade parcial para o exercício da profissão habitual.

1.4 A afectação da capacidade para o exercício de profissão habitual é aferida em função dos índices previstos na TNIATDP33 (artº 566º n.º 2 CC), enquanto a afectação da capacidade geral é aferida em função dos índices da TAIPDC34 (artº 566º n.º 3 CC).

1.5 Tais danos são avaliados através de critérios diferentes, referem-se a índices diferentes, não havendo qualquer duplicação quando avaliados e indemnizados individualmente.

1.6 Consequentemente, não pode ser abatido o valor do capital de remição pago no âmbito do processo de acidente de trabalho.

1.7 Deve, por isso, manter-se a decisão do Tribunal da Relação do Porto de manter intocada a indemnização de € 55.000,00 atribuída a título de dano biológico.

1.8 O acórdão do STJ de 27/11/2024 uniformizou a jurisprudência no sentido de determinar que no caso da seguradora apresentar uma proposta de indemnização manifestamente insuficiente, como o é, segundo os critérios daquele tribunal, o caso dos presentes autos, deve ser aplicada uma taxa de juros de 8%.”

1.9 A diferença entre a proposta de indemnização apresentada pela ré e o valor decidido pelo tribunal é de mais de € 59.000,00 (cinquenta e nove mil euros) – não é, por isso, razoável.

1.10 Deve, sobre os valores indemnizatórios, recair a taxa legal de juros em dobro, ou seja, 8%.

11. Por despacho, foi admitido o recurso, dizendo:

Admite-se o recurso de revista interposto pela ré (ref. Citius ....46) do acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 07 de outubro de 2024 (ref. Citius ......99) com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo art. 671º/1, 674º/1 a), 675º/1, 676º/1 a) Notifique.

Fique nos autos a resposta ref. Citius ....12.

Remeta os autos ao Supremo Tribunal de Justiça. Notifique.”

Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

De facto

12. Factos provados

1) No dia .../10/2014, pelas 07h40m, no cruzamento da Rua S...... .... com a Rua J...... ........ ... ....... ..... .. ... ., ..., concelho da ..., ocorreu a colisão entre o veículo motorizado da marca Yamaha, modelo YZFR 125, com a matrícula ..-IR-.. e o veículo ligeiro de passageiros da marca BMW, modelo 118D, com a matrícula ..-NX-..;

2) O ..-IR-.. é propriedade e era conduzido pelo autor, AA, enquanto o ..-NX-.. é propriedade e era conduzido por BB;

3) Era de dia [manhã o autor estava a sair do trabalho], estava bom tempo e havia boa luminosidade;

4) A via, com piso betuminoso, estava seca e em bom estado de conservação;

5) Existia um sinal STOP (B2) na Rua S...... ...., na zona de intercessão desta última via com a Rua J...... ........ ... .......

6) Existem também semáforos nessa mesma zona da Rua S...... ...., os quais, na altura, estavam intermitentes;

7) O veículo conduzia pelo Autor seguia pela mencionada Rua J...... ........ ... ......;

8) O ..-NX-.., vindo da Rua S...... ...., não respeitou o sinal STOP e avançando, foi colher o ora autor a meio do cruzamento;

9) Como consequência directa e necessária do acidente supra descrito, o Demandante sofreu múltiplas lesões, nomeadamente:

1. Politraumatismo:

a) Trauma torácico: fractura das 5ª a 12ª costelas do arco costal direito (colocados 3 drenos torácicos);

b) Trauma musculo-esqueléctico: fractura cominutiva do 1/3 inferior da omoplata direita e da asa do ilíaco direito;

c) Traumatismo crânio-encefálico

2. contusões frontoparietais e hematoma na coxa direita;

10) Esteve internado em Hospital cerca 29 dias e foi submetido a 3 cirurgias:

11) Após a alta hospitalar, a ... .11.2014, foi submetido a consulta externa de Cirurgia Vascular e de neuropsiquiatria, psiquiatria e psicologia;

12) Foi ainda seguido em consultas de psicologia e psiquiatria e, em consequência do acidente, ficou com sequelas permanentes do foro psíquico, designadamente perda de interesse e motivação inquietação, nervosismo e tensão emocional;

13) A data da consolidação médico-legal das suas lesões é de ... de Outubro de 2016;

14) O período de défice funcional total é fixável em 29 dias;

15) O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 701 dias;

16) O período de repercussão temporária na actividade profissional total foi fixado pelo INML em 436 dias;

17) O período de repercussão temporária na actividade profissional parcial é de 294 dias;

18) Mercê das lesões e das sequelas físicas e psíquicas que o passaram a afectar, padece de um défice funcional permanente na actividade físico psíquica quantificável em 16,52 pontos;

19) Tais sequelas são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares;

20) O quantum doloris de que padeceu fixa-se em 6 pontos, de acordo com uma escala crescente de 1 a 7 pontos;

21) Em consequência das várias cicatrizes que o afectam, em consequência quer das lesões, quer das cirurgias que foi submetido, ficou a padecer de um dano estético de 2 pontos, numa escala crescente de 1 a 7 pontos;

22) A repercussão daquelas sequelas nas actividades desportivas e de lazer do Autor quantifica-se no grau 2, numa escala crescente de 1 a 7 pontos;

23) Durante o período de convalescença esteve inteiramente dependente, para as mais elementares e básicas necessidades, da ajuda de terceiros, mais concretamente da sua mãe;

24) À data do acidente o Demandado trabalhava na empresa SA..., desempenhando funções de ... 2ª;

25) Em consequência das sequelas acima referidas, teve de mudar de posto de trabalho, e adaptar as suas funções à dificuldade em erguer peças pesadas, por dor no ombro direito e na anca direita;

26) O autor nasceu a ... de ... de 1986;

27) À data do acidente e não tinha problemas de saúde;

28) Uma vez que o acidente aqui em análise se deu no percurso de regresso a casa após a jornada de trabalho do aqui Autor, o mesmo foi considerado acidente de trabalho, tendo corrido termos a competente processo especial de acidentes de trabalho, no Tribunal de Trabalho da ..., sob o n.º 6787/15.9...;

29) A seguradora de acidentes de trabalho da entidade patronal do Autor era a Companhia de Seguros Tranquilidade (actualmente Seguradoras Unidas), com sede na Av. ..., ..., com responsabilidade infortunística laboral transferida mediante contrato de seguro com apólice nº ........21;

30) A referida Companhia de Seguros Recebeu pagou ao autor a quantia global de € 26.831,08, a título de indemnizações por incapacidades temporárias, a quantia de € 322,97, a título de reembolso de despesas de farmácia e a quantia de € 796,80, a título de despesas de transporte;

31) No âmbito do referido processo de acidentes de trabalho, por acordo homologado a 21/03/2017, determinou-se o capital a remir pela Seguradoras Unidas, SA, atinente à pensão anual a aquele tinha direito, tendo em consideração o valor recebido pelas respectivas incapacidades (IPT e IPP);

32) Na sequência desse acordo, o Autor recebeu da Companhia de Seguros Tranquilidade, o capital de remição da pensão relativa a uma incapacidade permanente de 19,0232% fixada no referido processo judicial, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito de Trabalho, a quantia de € 37.410,24;

33) A Ré já procedeu em 18/07/2018 ao reembolso à «Companhia de Seguros Tranquilidade, SA» da quantia global de € 92.506,81, correspondente aos valores que esta Companhia de Seguros pagou directamente ao aqui Autor e às despesas médicas e outras directamente suportadas pela mesma Companhia de Seguros em consequência do acidente;

34) O autor auferia, à data, um salário mensal de 945,00 €, 14 vezes por ano, acrescido de: a) 250,69 € de subsídio de refeição, 11 vezes por ano e b) 52,50 € de outras remunerações, 12 vezes por ano;

35) Por causa do acidente e das lesões sofridas e dos tratamentos a que teve de se submeter esteve sem poder trabalhar até ao dia .../1/2016, data em que retomou o seu posto de trabalho;

36) Em consequência, em salários e subsídios de férias e de Natal, subsídio de alimentação e outras remunerações deixou de ganhar a, pelo menos, quantia de € 19.428,97 (dezanove mil quatrocentos e vinte e oito euros e noventa e sete cêntimos);

37) A Ré apresentou ao Autor, após o acordo referido em 31), uma proposta para indemnização dos danos não patrimoniais e diferenças salariais no valor de € 30.000,00;

38) A Ré apresentou ao Autor, por carta datada de .../11/2014 cuja cópia está junta aos autos com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido – uma proposta de pagamento de € 2.410,00 (dois mil e quatrocentos e dez euros) pelo veículo, deduzindo o valor do salvado, ao qual atribuiu € 190,00 (cento e noventa euros), após concluir que os danos provocados no veículo ascendiam € 4.889,00 (a quatro mil oitocentos e oitenta e nove euros e oito cêntimos);

39) Após o acidente, o veículo do Autor foi rebocado para as oficinas A..., Lda, onde lhe foi também apresentado um orçamento para o conserto da moto que ascendia a € 4.986,00 (quatro mil novecentos e oitenta e seis euros), acrescido de IVA;

40) Em consequência do acidente, ficaram danificados os seguintes objectos que o Autor trazia consigo:

- Um capacete;

- As roupas: roupa interior, blusão de couro, calças e sweat-shirt;

- Calçado;

- Uma mochila;

- Um telemóvel;

41) Em consequência do acidente, o auto perdeu um dente (dente 2.7) necessitando, por isso, de um implante dentário cujo custo ascenderá € 1.200,00;

42) Despendeu com taxas moderadoras a quantia de € 643,65 (seiscentos e doze euros e vinte cêntimos)1;

43) A Ré, sob a designação comercial Seguros Continente, através do contrato de seguro, titulado pela Apólice número .......94, válida e eficaz à data do acidente, assumiu a responsabilidade civil perante terceiros pela circulação do veículo de matrícula ..-NX-..;

44) Em consequência das sequelas de que ficou a padecer, o Autor necessitará de tomar regularmente de medicação analgésica

13. Factos não provados

a) O Autor havia adquirido o supra identificado motociclo em ... de ... de 2014, pelo preço de € 3.950,00;

b) Para prestar assistência ao Autor, a sua mãe deixou de trabalhar, estando de baixa durante 5 meses, pelo que deixou de auferir o valor de € 2.956,80;

c) O Autor sente muito medo de viajar de moto ou automóvel e evitando o tanto quanto possível;

d) O Autor toma diariamente ansiolíticos;

e) O demandante costumava, ainda, praticar kikboxing, o que teve que deixar de fazer, por completo, aliás, como todos os desportos de impacto;

f) Por causa do acidente, o Autor necessita de tomar, anualmente, a vacina anti-pneumocócica, devido ao facto de ser esplenectomizado, com intuito preventivo, face a infecções causadas por esse agente bacteriano, em vista da diminuição das suas defesas naturais, ocasionadas por essa intervenção realizada;

g) A oficina onde o veículo do autor ficou aparcado oficina cobrou-lhe, € 5,00 (cinco euros) por dia e só permite o levantamento da mesma se se efectuar o pagamento do valor em causa;

h) O Autor despendeu com parqueamento do veículo o montante de € 105,00 (cento e cinco euros);

i) O capacete que o autor trazia consigo era da marca HJC, modelo RPHA 10 e tinha o valor de 507,00 € (quinhentos e sete euros);

j) As roupas (blusão de couro, calças e sweatshirt) que ficaram danificados tinham o valor de 300,00 € (trezentos euros);

k) O calçado que trazia consigo na ocasião do acidente eram uns ténis Nike que valiam 120,00 € (cento e vinte euros);

l) O valor da roupa interior que trazia consigo e que ficou danificada era de € 20,00 (vinte euros);

m) A mochila que o Autor trazia consigo e que ficou danificada valia € 70,00;

n) O relógio que o Autor trazia consigo e ficou danificado valia € 160,00;

o) O Telemóvel que o Autor trazia consigo e ficou danificado era da marca de modelo Samsung Galaxy S III e tinha o valor de 690,00€ (seiscentos e noventa euros);

p) Em consequência do acidente, o Autor suportou gastos com telemóvel (de 31/Out a .../Dez 2014 – recibos), no valor de 80,00 € (oitenta euros);

q) O Autor necessitará de despender em assistência médica/medicamentosa futura, o valor anual de 120€ , a que acresce o valor anual de € 130, com vacinas;

r) O valor de mercado do motociclo do Autor à data do acidente era superior a € 3.000,00;

s) O Autor adquiriu um veículo automóvel 1117 dias após a ocorrência do acidente;

t) O valor venal do motociclo do Autor à data do acidente era de € 2.400,00;

u) O Autor recebeu da Seguradoras Unidas, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta e incapacidade temporária parcial para o trabalho tão só o montante global € 16.833,39;

v) O Autor ficou a padecer, em consequência do acidente, de uma incapacidade permanente de 43 pontos;

De Direito

14. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

Tendo em conta as conclusões do recurso da Ré a única questão que cumpre analisar é se a indemnização atribuída por dano biológico deve sofrer um desconto pelo valor do capital de remição pago pelo acidente de trabalho.

15. Na apelação foi questionado se a indemnização arbitrada a título de dano biológico respeita o critério legal e se deve haver acerto de contas com o processo de acidente de trabalho, para evitar duplicação de indemnização.

E sobre a questão o tribunal explicitou (transcrição extensa propositada):

“Ponderando os fundamentos da apelação em confronto com os factos provados, consideramos que o valor arbitrado respeita o critério legal e respeita os critérios atendidos na jurisprudência dos tribunais superiores, situando-se dentro dos valores médios arbitrados em situações idênticas. Contudo, entendemos não se verificar a apontada duplicação de indemnização do mesmo dano, porque o esforço acrescido no desempenho da profissão habitual não se identifica com o dano consubstanciado na perda de rendimentos salariais decorrente do grau de incapacidade fixado ao sinistrado no processo de acidente de trabalho (compensado pela entrega do capital de remição).

Na indemnização peticionada e atribuída, trata-se, antes do dano biológico decorrente das sequelas das lesões sofridas, perspetivado não como fonte de uma perda de rendimentos laborais, mas antes como diminuição global das capacidades gerais do para a realização de quaisquer tarefas, que passam a exigir-lhe um esforço acrescido e constitui um dano autónomo e pode ter como consequência danos patrimoniais e danos de natureza não patrimonial, como se passa a demonstrar.

(…)

A perda da capacidade de ganho represente: “o efeito danoso, de temporária ou definitiva, que resulta para o ofendido do facto de ter sofrido uma dada lesão impeditiva da obtenção normal de determinados proventos certos, em regra até ao momento da reforma ou da cessação da atividade como paga do seu trabalho, e que se inclui na categoria dos prejuízos diretos, embora com uma importante vertente de danos futuros8.

A desvalorização física que afete a capacidade de aquisição do lesado constitui um dano patrimonial por se traduzir na redução ou extinção da possibilidade de obtenção de valores patrimoniais. Mesmo a diminuição da capacidade laboral genérica, independentemente da produção de prejuízo patrimonial, é reparável enquanto dano corporal.

Como refere, a este respeito ARMANDO BRAGA capacidade laboral genérica, enquanto lesão de um modo de ser, de estar e de agir da vítima, embora possa não comportar efeitos diretos e imediatos na capacidade de produção de rendimentos, funda-se numa diminuição da saúde, entendida num sentido lato, reparável enquanto tal, isto é, como dano à saúde 9.

O dano biológico constitui um conceito criado pela jurisprudência e doutrina italiana, habitualmente classificado como “tertium genus” em relação à dicotomia dano patrimonial/dano moral.

O dano biológico constitui a lesão do bem da saúde como dano evento, enquanto o dano moral e o dano patrimonial pertencem à categoria do dano consequência em sentido estrito.

Como refere ARMANDO BRAGA esta distinção: “permite clarificar que o dano corporal (dano-evento) existe independentemente das consequências de ordem patrimonial (dano-consequência). Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica. E reconhecida a sua existência como dano-evento, sempre terá de ser reparado. Já as consequências patrimoniais do dano corporal revelam-se, no plano ontológico, sucessivas, ulteriores a este e meramente eventuais. A eventual existência e contornos das consequências patrimoniais não pode nem deve confundir-se com o dano corporal que está na sua génese. Dito de outra forma, o dano corporal (dano evento) não depende da existência e prova de efeitos patrimoniais, estes é que se apresentam como consequência (ulterior) do primeiro. Assim, o dano corporal existe sempre que haja lesão da integridade físico-psíquica 10.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o conceito de dano biológico tem sido assumido como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre, o qual é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial11.

Assim, quem pretenda obter uma indemnização a título de lucros cessantes, em consequência de lesão sofrida, terá de fazer prova do pressuposto médico-legal sem o qual não há lugar a lucro cessante, isto é, provar que da lesão resultou uma determinada incapacidade durante o qual o lesado não esteve em condições total ou parcialmente de trabalhar, e, além disso, se tal for o caso, a subsistência de sequelas permanentes que se repercutem negativamente sobre a sua capacidade de trabalho. Acolhendo esta interpretação, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça12 tem defendido que o lesado que fica a padecer de determinada incapacidade permanente geral (IPG) sendo a força de trabalho um bem patrimonial, uma vez que propicia rendimentos, a incapacidade parcial geral é, consequentemente, um dano patrimonial - tem direito a indemnização por danos futuros, danos estes a que lei manda expressamente atender, desde que sejam previsíveis art.º 564.º, n.º2.

Sendo os danos previsíveis a que a lei se reporta, essencialmente, os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso da perda da capacidade produtiva ou até o maior esforço que, por via da lesão e das suas sequelas, terá que passar a desenvolver para obter os mesmos resultados.

A incapacidade permanente constitui um dano patrimonial indemnizável, pela incapacidade em que o lesado se encontra e se encontrará na sua situação física, quanto à sua resistência e capacidade de esforços.

Sendo, assim, indemnizável, como já dissemos, quer acarrete para o lesado uma diminuição efetiva do seu ganho laboral, quer lhe implique apenas um esforço acrescido para manter o mesmo nível dos seus proventos profissionais, exigindo tal incapacidade um esforço suplementar, físico ou/e psíquico, para obter o mesmo resultado13.

(…)

Resulta do exposto que a incapacidade permanente de que o lesado fique a padecer em consequência de um facto danoso é, além do mais, suscetível de afetar e diminuir a potencialidade de ganho, por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o ofendido de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho.

Mas essa mesma incapacidade permanente pode, igualmente, afetar o lesado, quando implica para ele um esforço ou sacrifício suplementar para exercer as várias tarefas e atividades gerais quotidianas.

Com efeito, a incapacidade funcional, afetando o corpo humano ou um seu órgão (no sentido médico-legal deste termo), representa uma alteração da pessoa, que afeta a sua integridade física, impedindo-a de exercer determinada atividade corporal ou sujeitando-a a exercitá-la de modo deficiente ou doloroso.

Realmente, a incapacidade funcional de que o lesado tenha ficado a padecer pode traduzir-se numa incapacidade para a generalidade das profissões, numa incapacidade genérica para utilizar o corpo enquanto prestador de trabalho e produtor de rendimento ou numa possibilidade de o utilizar em termos correspondentemente deficientes ou penosos.

Por isso, a incapacidade funcional, na medida em que a precede e consome, tem, em princípio, uma maior abrangência do que a perda da capacidade de ganho, podendo não coincidir com esta, tudo dependendo do tipo ou espécie de trabalho efetivamente exercido profissionalmente.

É que, em alguns casos, uma elevada incapacidade funcional pode não ter repercussão na retribuição (o que não é raro em profissões de incidência intelectual), ao passo que, noutras situações, uma pequena incapacidade funcional geral pode ocasionar uma enorme incapacidade profissional.

Temos, assim, que a afectação da integridade física do lesado traduz-se num dano patrimonial, por ser previsível que, no futuro, a incapacidade funcional de que ficou a padecer tenha repercussão negativa na sua capacidade de ganho.

Esta diferença resultante da lesão da integridade física do lesado importa uma previsível redução da sua capacidade para o trabalho e, consequentemente, um dano patrimonial indemnizável, independentemente da sua repercussão imediata nos rendimentos da sua atividade profissional.

Basta a alegação dessa incapacidade para uma vez demonstrada, servir de fundamento ao pedido de indemnização pelo dano patrimonial futuro, cujo valor, por ser indeterminado, deve ser fixado equitativamente, nos termos do preceituado no artigo 566º, n.º3 CC .

(…)

A questão objeto do recurso coloca-se no ressarcimento deste segundo grupo de danos.

Em sede de processo laboral, como decorre dos pontos 28 a 33 dos factos provados, o apelante recebeu as indemnizações por incapacidade temporária absoluta e incapacidade parcial permanente, bem como o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia. O apelante obteve uma indemnização pela perda parcial de capacidade para o exercício da sua atividade profissional habitual, durante o período previsível dessa atividade, e consequentemente dos rendimentos que dela poderia auferir.

Na presente ação apenas está em causa aferir se as sequelas em consequência das lesões sofridas originaram também uma perda ou diminuição de capacidade funcional (art.º 183º a 185º da petição).

Como decorre dos factos provados:

18) Mercê das lesões e das sequelas físicas e psíquicas que o passaram a afetar, padece de um défice funcional permanente na atividade físico psíquica quantificável em 16,52 pontos;

19) Tais sequelas são compatíveis com o exercício da sua atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares;

20) O quantum doloris de que padeceu fixa-se em 6 pontos, de acordo com uma escala crescente de 1 a 7 pontos;

21) Em consequência das várias cicatrizes que o afetam, em consequência quer das lesões, quer das cirurgias que foi submetido, ficou a padecer de um dano estético de 2 pontos, numa escala crescente de 1 a 7 pontos;

22) A repercussão daquelas sequelas nas atividades desportivas e de lazer do Autor quantifica-se no grau 2, numa escala crescente de 1 a 7 pontos;

Verifica-se, assim, uma perda de capacidade funcional que afeta o apelante em todas as atividades em geral e que na sua concreta atividade profissional implica esforços suplementares, para além de ter repercussões nas atividades desportivas e de lazer, quantificado no grau de 2, numa escala de 1 a 7.

Constitui um dano autónomo, suscetível de ser ressarcido em sede de dano patrimonial.

A afetação da sua capacidade funcional vai afetar o seu desempenho profissional com repercussão na evolução da sua carreira profissional, o que necessariamente importará perdas salariais que não estão contabilizadas na remição da pensão que lhe foi atribuída.

De acordo com as normas da experiência e partindo de um juízo de mera probabilidade, somos levados a concluir que as limitações de que ficou a padecer, ainda que não tenham uma expressão direta no seu salário, acabarão por criar uma limitação futura na sua atividade profissional, na medida em que condiciona a sua produtividade e este aspeto tem efeitos patrimoniais relevantes na medida em que condiciona a progressão na carreira profissional e pode mesmo vir a gerar uma situação de pré-reforma e por isso, o dano sofrido, qualificado como “dano biológico” deve ser objeto de ressarcimento em sede de danos patrimoniais, por representar uma efetiva perda de ganho.

(…)

Conclui-se, assim, que se justifica a avaliação em sede de dano patrimonial do défice funcional permanente atribuído ao Autor, sem prejuízo da ponderação em sede de dano moral, atendendo às limitações na vida de relação e sem dedução dos valores atribuídos com a remição da pensão, em sede de processo por acidente de trabalho.

(…)

O montante da indemnização a arbitrar a título de dano biológico fixa-se em 55.000,00.

Na sentença ao montante arbitrado deduziu-se a quantia que foi atribuída a título de remição da pensão. Defende o apelante que não se justifica a dedução.

Entendemos atenta a natureza do concreto dano, que não se justifica tal dedução, seguindo aqui a interpretação defendida, entre outros, no Ac. STJ de 17.11.2021, Proc. 3496/16.5T8FAR.E1.S1, Ac. STJ 29 de março de 2022, Proc. 119/19.4T8STR.E1.S1, Ac. STJ 31 de janeiro de 2023, Proc. 795/20.5T8LRA.C1.S1, Ac. STJ 28 de maio de 2024, Proc.15899/17.3T8PRT.P1.S1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt). Como se observa no Ac. STJ 31 de janeiro de 2023, Proc. 795/20.5T8LRA.C1.S1: a atribuição de uma indemnização no contexto do processo por acidente de trabalho, em si mesma, não abrange todos os danos de natureza patrimonial sofridos pelo autor com o acidente. A sua função e natureza, realçados no acórdão recorrido, não tornam, de resto, a indemnização ali arbitrada instrumento idóneo à reparação de todos os danos de natureza patrimonial sofridos pelo autor, nomeadamente os danos que, previsivelmente, venham a ocorrer no futuro.

Tal como se salienta no acórdão recorrido, a indemnização atribuída ao autor enquanto vítima de acidente de trabalho não contempla o ressarcimento de previsíveis perdas de remuneração no futuro nem a frustração de oportunidades de progressão ou mudança e consequente melhoria da situação profissional inviabilizadas pela afetação da sua integridade física e psíquica, nem mesmo constitui compensação pelo esforço acrescido a que o lesado estará sujeito no exercício de quaisquer tarefas da sua vida profissional ou pessoal por perda ou diminuição das suas capacidades funcionais.

Assim sendo, por não reparar integralmente o dano causado, o valor da indemnização fixado para ressarcimento do dano no plano laboral deverá ser acrescido de montante a definir equitativamente como forma de reparação / compensação do dano biológico na sua vertente patrimonial, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais ou na sua redução, resultantes diminuição das suas capacidades funcionais e tendo em conta o esforço acrescido que tal diminuição envolverá para o exercício da sua profissão de pintor de construção civil e na sua vida pessoal”.

(…) É, pois, possível afirmar que as indemnizações fixadas em cada uma das jurisdições - civil e laboral - não se sobrepõem, completam-se.

Apurou-se que no processo especial por acidente de trabalho foi atribuída uma pensão anual, que foi objeto de remição, decorrente da desvalorização permanente parcial para o trabalho de 19,0232%.

Neste processo, está em causa a indemnização do dano biológico, embora no que respeita à repercussão desse dano na capacidade de ganho do lesado, enquanto dano patrimonial.

Consideram-se como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que - embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente pontos 18, 19 e 22 dos factos provados. Os esforços acrescidos e a eventual limitação na progressão da carreira não são ponderados na indemnização (pensão) arbitrada no processo de acidente de trabalho. Nestes termos, inexistindo duplicação de indemnizações, não há lugar ao abatimento da quantia arbitrada no foro laboral a título de capital de remição, fixando-se a indemnização em 55. 000,00.

Procedem, em parte, as conclusões de recurso sob os pontos 5 a 5.6.”

(fim da citação)

16. Como se deixou ver pela transcrição da decisão recorrida, estão nela contidas as questões que se colocam na presente revista – como se distinguem os danos indemnizáveis pela via do acidente de trabalho e os danos que estão em questão no presente processo; porque se justifica a indemnização do dano biológico, nas suas vertentes, nomeadamente na patrimonial; porque não há duplicação de indemnização e por assim ser porque não se justifica nenhuma dedução do capital de remição.

O acórdão recorrido teve inclusive oportunidade de citar jurisprudência recente deste STJ.

Porém, estamos em crer que a situação dos autos merece considerações adicionais, para o que nos socorremos da jurisprudência deste tribunal:

Assim, no Ac. do STJ de 17/11/2021, proc. 3496/16.5T8FAR.E1.S1 - https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ccfce62e025cea8c80258790005c1715?OpenDocument – foi dito:

“O STJ tem decidido constantemente que quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho as respetivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário (cf. Acórdãos do STJ de 14.12.2016, (secção social), e de 11.07.2019, P. 1456/15).

Como se escreveu neste último aresto, “a responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil. É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo que, quanto a este mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.”

Quer isto dizer que nos casos em que o acidente seja ao mesmo tempo um acidente de trabalho e de viação, têm os responsáveis por um e outro a obrigação de indemnizar os lesados de harmonia com as regras de fixação de cada uma dessas indemnizações.

Ora, as duas indemnizações visam compensar danos distintos: a pensão vitalícia fixada no processo por acidente de trabalho corresponde à redução na capacidade de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente, como resulta do art. 10º, alínea b) da Lei nº 100/97 de 13.09, que aprovou o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais; a indemnização pelo dano biológico visa ressarcir, além da redução da capacidade de ganho, ainda as limitações funcionais do lesado, um dano que vai para além do tempo de vida activa, e o esforço acrescido no exercício das actividades profissionais e pessoais.

Neste sentido decidiu o Acórdão deste Tribunal de 11.12.2012 (Lopes do Rego), disponível em www.dgsi.pt:

“São de considerar como dano diferente o que decorre da perda de rendimentos salariais associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo por acidente de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remissão, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado, que envolvem restrições acentuadas à sua capacidade, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.”

17. E tal como sucede nos presentes autos, se o dano é diverso e as indemnizações complementares, as mesmas devem cumprir a função para a qual cada uma existe.

18. Na situação concreta o dano biológico na sua vertente patrimonial foi determinado pela 1ª instância assim:

“Considerando, desta forma, a actividade profissional exercida e o valor salarial auferido, a idade do lesado à data da alta 30 anos de idade – uma expectativa de vida média de 78 anos (de acordo com os índices do INE), o défice funcional, de natureza permanente, que as lesões resultantes do acidente lhe provocaram 16,52 pontos percentuais numa escala crescente de 1 a 100 -, que, não o impedindo de exercer as suas actividades diárias, lhe exigem um acréscimo de esforço físico, mas sem qualquer rebate profissional ou afectação da sua capacidade de ganho, considerando ainda os valores atribuídos para casos similares pela jurisprudência nacional, entendemos equilibrada, perante o circunstancialismo de facto descrito, uma indemnização de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).”

A esse valor veio acrescido o dano não patrimonial de 30.000,00.

19. Analisando estes dados.

No valor relativo ao dano biológico, como se pode ver pela justificação apresentada, foi tida em consideração apenas a situação relativa aos esforços acrescidos, que pretendem compensar o dano funcional ocorrido em função do acidente, sem se tomar em linha de conta a perda da capacidade de ganho afectada com a lesão decorrente do acidente.

A ser incluída no valor dos €55.000,00 a perda da capacidade de ganho, indemnizada pelo período de vida activa no âmbito do acidente de trabalho em €37.410,24, estar-se-ia a dizer que os esforços acrescidos – a considerar para além da vida activa, em função da esperança média de vida – seriam de €17.590,00, valor que não conseguimos justificar com a consideração dos padrões habituais, senão vejamos:

-Se se admitir que ao salário anual de € 16.610,00 se aplica o factor de 16,62 pontos percentuais, o esforço acrescido do lesado e a perda da capacidade de ganho, seria compensado em €2.743,97 euros/ano, e tendo o lesado 30 anos, até aos 78 anos de idade (esperança média de vida), o mesmo deixaria de receber cerca de €109.000,00.

- Se a esse valor descontarmos os €37.410,24 que recebeu do acidente de trabalho por capital de remição, faltaria receber €72.000, o que ponderado à luz da equidade, de acordo com os critérios habituais da jurisprudência e a comparação dos casos análogos, não iria conduzir a €50.000 ( a equidade no caso reduziu de €55.000 para €50.000).

Por assim ser, a única justificação que se encontra para chegar aos €50.000 euros, é a de esse valor não incluir o dano indemnizado pela seguradora do acidente de trabalho, acrescendo ao valor recebido de €37.410,24 os €50.000,00 do dano biológico – sendo igualmente seguro que nesse valor se incluem os danos patrimoniais e os não patrimoniais (fixados em €30.000).

Não se podendo alterar o valor dos €50.000 euros do dano biológico, por não ter sido colocada em questão a verba em causa pelo recorrido, mas considerando a situação concreta do presente processo, tal como foi definida na sentença e no acórdão – situação que nem sempre se apresenta com esta mesma configuração em outros processos decididos pelo STJ – não temos dúvidas em afirmar que o valor da condenação da Ré é de €50.000, sem que se desconte nesse valor os €37.410,24 pagos pela seguradora do acidente de trabalho.

20. Importa salientar que a solução a que se chega é diversa da que resultou aplicada ao processo decidido pelo Ac. do STJ de 17/11/2021, proc. 3496/16.5T8FAR.E1.S1, porquanto aí, sendo certo que havia sido determinada a indemnização de 270.000 por dano biológico, não deixou de se ponderar que o lesado foi compensado pelo acidente de trabalho com um capital de remissão - que visa justamente ressarcir a perda de rendimentos salariais associados ao grau de incapacidade laboral. Ou seja, se o lesado já havia sido indemnizado pelo dano biológico de 270.000,00 em um certo valor, isso teve de significar que o valor em falta a atribuir ao lesado não seriam os 270.000, mas esse valor deduzido do que recebeu pela via do capital de remição, que é um dano que integra o dano biológico na sua vertente patrimonial.

Mas este resultado não é contraditório com o que definimos para os presentes autos; apenas diverso, porque o caminho seguido pelos tribunais também foi diverso, mas sempre focado na obtenção do mesmo resultado:

- Distinguir a compensação realizada pela seguradora do acidente de trabalho, com a indemnização por capital de remição da indemnização por esforços acrescidos para a profissão – com parâmetros que umas vezes partem da mesma base (salário) e noutras se distinguem (vida activa/esperança de vida).

Isto significa que, em face do exposto, a posição do STJ é no sentido de confirmar o acórdão recorrido, pelos fundamentos indicados.

21. Nas contra-alegações (ao abrigo do art.º 638.º, n.º5 do CPC) o A. defendeu:

- Que houve pedido de indemnização do dano biológico;

- Nunca indicou que o valor dessa indemnização teria o desconto do capital de remição;

- Se pede a manutenção do decidido, em conformidade com vária jurisprudência recente do STJ, que se cita.

E nas contra-alegações vem ainda a pedir-se que se reanalise a questão dos juros devidos pela seguradora, por falta de proposta razoável, à luz do acórdão do STJ relativo ao processo 1928/21.0T8GMR.G1.S1, de 27/11/2024, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/eabb76555d4a932680258be3004771e4?OpenDocument – e que a recorrida diz ser um acórdão de uniformização de jurisprudência.

22. Relativamente a esta questão – saber se a decisão recorrida está certa ao não arbitrar juros de mora em dobro – importa dizer o seguinte.

Embora tenha sido uma questão objecto do acórdão recorrido e em sentido desfavorável ao A., para que o tribunal a pudesse apreciar em revista, teria de haver interposição de recurso pelo interessado – o A. – seja pela via de ampliação, seja pelo recurso subordinado, ambos a carecer de manifestação expressa da vontade de recorrer, com o cumprimentos das exigências legais constante do CPC.

E esse recurso não foi interposto. Foram apenas apresentadas contra-alegações ao recurso da Ré – e nesse recurso a questão não está incluída, até porque a mesma foi decidida em sentido favorável à seguradora.

A ter sido interposto recurso, poder-se-ia identificar aqui um problema de dupla conformidade decisória entre a sentença e o acórdão.

Uma nota final – o acórdão invocado foi proferido no âmbito de um recurso ordinário de revista – não constituindo acórdão de uniformização de jurisprudência.

Em face disto, não se entra no conhecimento da questão (material ou de fundo).

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados é negada a revista e confirmado o acórdão recorrido.

Custas pela Ré e pelo A., na proporção de 80% para a primeira e 20% para o segundo.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2025

Relatora: Fátima Gomes

1º adjunto: Nuno Pinto Oliveira

2º adjunto: Maria de Deus Correia

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1. Como diz o acórdão – valor por extenso e em número não coincidem.