I- A resolução do contrato de trabalho com fundamento em justa causa é uma das formas de desvinculação contratual por parte do trabalhador – cf. artigos 340.º, alínea g) e 394.º, ambos do Código do Trabalho.
II- Esta forma de cessação do contrato foi pensada para as situações em que a relação laboral, por razões de facto significativas, se tornou absolutamente insustentável para o trabalhador.
III- A suspensão do contrato de trabalho decorrente da baixa médica da trabalhadora não afeta minimamente o decurso do prazo de caducidade estabelecido pelo artigo 395.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
I. Relatório
Na presente ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, que AA instaurou contra a sociedade BB, Lda.. foi prolatada sentença com a seguinte decisão:
«Atento o exposto, julga-se a presente ação totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a Ré BB, Lda. do pedido deduzido pela Autora AA.
Mais se julga totalmente improcedente o Pedido Reconvencional deduzido pela Ré, dele absolvendo a Autora.
Custas da Ação pela Autora;
Custas da Reconvenção, pela Ré;
Valor: o já fixado em sede de saneador.
Registe notifique.».
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A Autora interpôs recurso da sentença, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:
«1º Como se alcança dos autos, e com interesse para o objeto do presente recurso, o que o Tribunal a quo cuidou de julgar, foi:
A) a verificação da caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho com justa causa, por iniciativa do trabalhador e,
B) a verificação dos pressupostos da resolução do contrato de trabalho com justa causa, por iniciativa do trabalhador.
2º Não se verifica a caducidade do direito do trabalhador resolver o contrato de trabalho com justa causa se os factos que a integram, tendo-se embora prolongado no tempo, se mantêm à data da resolução do contrato.
3º O contrato de trabalho reveste-se de características especiais, em que a subordinação jurídica e a consequente maior fragilidade do trabalhador face à sua dependência perante o empregador, bem como a necessidade de garantir o emprego, o levam, na maior parte das vezes e contra sua vontade, a tolerar a violação, por parte do empregador dos seus direitos e/ou garantias laborais.
4º No caso em apreço estamos perante factos instantâneos, mas com efeitos duradouros suscetíveis de agravamento com o decurso do tempo, pelo que o prazo de caducidade apenas se inicia quando os efeitos assumam tal gravidade no contexto da relação laboral que a subsistência do contrato de trabalho se venha a tornar imediatamente impossível, o que aconteceu.
5º Não teve a trabalhadora logo a exata perceção das implicações dos atos instantâneos do empregador (por estar a trabalhadora até convicta de que se trata de uma situação temporária), pelo que, deve entender-se que o prazo se iniciou, não no momento inicial do conhecimento da pura materialidade dos factos, mas sim, quando no contexto da relação laboral a trabalhadora ficou ciente da sua efetiva gravidade e, apenas quando a mesma foi de molde a tornar inexigível, a partir de então, a manutenção da relação laboral.
6º A trabalhadora estava num quadro depressivo (vide documentos n.º 5, 6, 7 e 8, juntos à petição inicial - relatórios médicos) e só no momento (data) de envio da carta de rescisão a trabalhadora ficou ciente da gravidade dos factos e a manutenção da relação laboral se tornou inexigível.
7º Este fundamento invocado merece ser valorado com vista ao apuramento da justa causa de resolução, e era, à data de envio da carta de resolução, atual.
8º Não pode considerar-se que tenha caducado o direito da Autora a resolver o seu contrato de trabalho.
9º O prazo de caducidade só se inicia após o termo do comportamento infrator e enquanto este se mantiver, e manteve-se até à data de resolução do contrato, mantem-se o direito de resolução do contrato, tanto mais que, quanto mais se prolongue no tempo, maior poderá ser a gravidade do facto ou dos seus efeitos para a trabalhadora.
10º E, em sede de audiência de julgamento, a trabalhadora veio a concretizar suficientemente as razões que a levaram a resolver o contrato invocando justa causa, e sendo certo que não pode, na ação judicial em que pretende ver reconhecida a justa causa para a resolução, apresentar fundamentos fácticos diferentes dos mencionados na carta de resolução, também não está a trabalhadora impedida de alegar e provar a ocorrência de factos circunstanciais que, tendo conexão com os fundamentos sucintamente invocados na carta, se mostrem pertinentes para que o Tribunal avalie da gravidade destes e da sua natureza inviabilizadora da manutenção da relação laboral.
11º A demonstração da motivação que conduziu a Autora à resolução do contrato de trabalho com justa causa, foi tempestiva e licita.
12º Impõe-se que o Tribunal ad quem se venha pronunciar no sentido da não procedência da exceção de caducidade.
13º Em face das provas produzidas, importa determinar:
a) Se, perante a factualidade provada se pode aferir pela licitude do despedimento da trabalhadora;
b) Se foi erradamente julgada prova como não provada, quando da prova testemunhal e documental resulta o contrário.
14º A Apelante, não se conforma com a douta Sentença recorrida, por considerar, além de mais, que:
a) Resulta provado que existiu um comportamento do empregador violador dos direitos ou garantias da trabalhadora, impelindo-a a demitir-se;
b) Existiu comportamento culposo e reiterado de assédio, falta de condições de segurança e saúde no trabalho e a ofensa à integridade física e moral, liberdade, honra e dignidade, atribuído ao empregador;
c) O comportamento do empregador tornou impossível a subsistência do vínculo laboral, no sentido de tornar praticamente impossível para a trabalhadora a subsistência do contrato (ou seja, em termos comparáveis aos da justa causa);
d) A generalidade dos factos provados, foram assentes nos controversos depoimentos da grande maioria das testemunhas;
e) O Tribunal a quo não subsumiu corretamente estes factos ao direito, partindo do errado pressuposto, logo no juízo que formulou aquando da resposta à matéria de facto, a dar como não provados factos que de facto o estavam;
f) Na esteira da doutrina que se vai apresentar, estão provados factos que consubstanciam a licitude do despedimento, e a consequente condenação do empregador em indemnização, nos termos do artigo 396.º do Código do Trabalho.
15º Existe matéria provada para se atribuir à situação sub judice a qualificação de licitude do despedimento, por, ao longo de tantos e tantos anos, se verificaram reiteradamente factos consubstanciadores de assédio, falta de condições de segurança e saúde no trabalho e a ofensa à integridade física e moral, liberdade, honra e dignidade da trabalhadora.
16º E estes factos são atribuído ao empregador.
17º No caso sub judice, o empregador usou de ironia/sarcasmo na relação empregador/trabalhadora; teve comportamentos coléricos e de raiva dirigidos à trabalhadora, independentemente de ter o mesmo comportamento para com colegas de trabalho desta.
18º Na sua carta de resolução, a trabalhadora alegou e provou em sede de audiência de julgamento os factos integradores de assédio, bem como a intenção ou efeito de perturbar ou constranger, afetar a sua dignidade, e de criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
19º Existiu intenção do empregador em perturbar e constranger a vontade da trabalhadora, bem como em afetar sua dignidade e em criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador à trabalhadora.
20º Situações que levaram a trabalhadora a desistir e a quebrar.
21º Exigindo a lei a indicação sucinta dos factos que justificam a resolução do contrato, sempre se impõe afirmar que se mostra cumprido tal procedimento, sendo que os factos alegados na petição inicial se traduzem na concretização daquilo que foi dito na comunicação.
22º A justa causa subjetiva, elencada nas alíneas do n.º 2 do artigo 394.º, do Código do Trabalho, refere-se a comportamentos ilícitos e culposos do empregador violadores dos direitos e garantias do trabalhador (cfr. artigos 127.º e 129.º do CT).
23º Atentas as circunstâncias do caso em concreto, a trabalhadora sentiu-se deveras perturbada e constrangida, e viu a sua personalidade afetada, em virtude de estar num ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante e desestabilizador, que a levou a desistir e a quebrar física e psicologicamente.
24º Para se concluir pela existência de assédio moral há que ponderar as circunstâncias do caso, de forma global, reportando-as àquele sujeito em concreto.
25º No presente caso, apurou-se comportamentos reiterados pelo empregador, suscetíveis de integrar assédio moral à trabalhadora.
26º Mal andou o Tribunal a quo ao provar tão só que em data não apurada de dezembro de 2021 sucedeu uma troca de palavras entre a Autora e CC, a propósito da intenção daquela em tirar dois dias de férias (16 e 17 de dezembro de 2021), numa altura em que se registava um acréscimo de trabalho no laboratório, devido à pandemia COVID 19, tendo o CC proferido expressões como “Tem lata para pedir férias nesta altura?” e “Sente-se bem com a sua consciência?”.
27º O que resulta das declarações da testemunha DD é que o ambiente vivido no trabalho, era caracterizado em agressões verbais e situações injustas que levaram a trabalhadora ao esgotamento.
28º Concretizou, essas agressões verbais e situações injustas, nomeadamente que o Sr. CC enviava sistematicamente mensagens para a trabalhadora a perguntar onde estava e o que estava a fazer; recusou férias a que a trabalhadora tinha direito e obstaculizou à dispensa de um dia para realização de um exame médico.
29º Numa das discussões que a trabalhadora teve com o Sr. CC, por causa das férias, este terá, além do mais, tido uma postura corporal ameaçadora, e a trabalhadora sentiu-se ameaçada.
30º Referiu ainda que a trabalhadora era uma pessoa ativa, mas ficou bastante afetada em virtude destes factos perpetrados pelo empregador, o que levou aquela a uma depressão profunda e cansaço extremo.
31º Fruto destes comportamentos por parte do empregador, a trabalhadora teve de recorrer a um psiquiatra, a um psicólogo e à médica de família, a qual lhe diagnosticou um esgotamento nervoso associado a burnout, associado ao ambiente hostil, fruto de assédio continuo, verificado no local de trabalho.
32º Mal andou o Tribunal a quo ao não ter associado esse estado de bornout a uma qualquer conduta do empregador, pois o bornout apenas surge em contexto laboral e a trabalhadora apenas prestava serviço para o empregador.
33º Foi a trabalhadora aconselhada por médicos a meter baixa médica a fim de ser medicada e iniciar psicoterapia, pelas práticas de assédio perpetradas pelo empregador, resultado em depressão e isolamento, provocando inclusive constrangimentos financeiros graves à trabalhadora e, tais factos estão provados e são descritos de forma concreta, rigorosa e detalhada, nos documentos n.º 5, 6, 7 e 8, juntos na petição inicial, os quais não foram impugnados.
34º EE, teve conhecimento de um conjunto de situações que humilharam a trabalhadora, nomeadamente, a dificuldade em marcar férias, a dificuldade em marcar uma mamografia, ou a disponibilização de um carro velho (com problemas mecânicos) para as deslocações diárias em trabalho.
35º Soube da existência de uma discussão acesa com o Sr. CC e a trabalhadora, em que esta se sentiu ameaçada.
36º Até pelos contatos que manteve com o empregador, na tentativa de resolução da questão relacionada com o contrato de trabalho, disse expressamente que a intenção da conduta de assédio perpetrada pelo empregador, foi efetuada com a intenção era fazer com que ela se despedisse.
37º FF, confirmou que o empregador dava as ordens nas pessoas da Dra. GG e o Sr. CC, e chegou a presenciar uma altercação verbal entre o Sr. CC e a trabalhadora, tendo inclusive havido um aumento no tom de voz por parte deste.
38º Estas altercações eram pontuais, no entanto sucediam-se quando alguma coisa não estava a correr bem, isto é, eram reiteradas e sucediam-se no tempo.
39º No período de Natal, soube que a trabalhadora marcou 2/3 dias de férias no calendário e não lhe foram dadas, chegando a Dra. GG e o Sr. CC a dirigir-se à trabalhadora, aludindo que ela tinha a lata de tirar férias naquela altura e se sentia bem com a sua consciência.
40º A trabalhadora, foi a única que não pode gozar férias neste período, apesar de ter sido a mais sacrificada em termos de trabalho efetivamente realizado.
41º O Sr. CC enviava sistematicamente mensagens a perguntar onde é que estava a trabalhadora, quando esta ia realizar trabalho fora do laboratório e fazia-o para o telefone privado da trabalhadora.
42º O papel higiénico e toalhetes estavam num armário fechado, e a trabalhadora tinha de pedir a chave na receção.
43º A trabalhadora ficou de baixa por se sentir exausta, e se o empregador lhe falasse com voz altiva ficava desagradada com este, pois o ambiente no laboratório pode e é pesado, existindo um ambiente de tensão, onde havia discussões.
44º Todos estes factos revelam situações sistemáticas de assédio moral, como também de ofensas morais, na honra e na dignidade da trabalhadora.
45º Provado está que o empregador criou um ambiente intimidativo, hostil, assaz degradante, humilhante e desestabilizador da vida pessoal da trabalhadora e, sobretudo, da relação laboral, o que viabilizou a licitude do seu despedimento.
46º No caso sub judice, estes são factos manifestamente suficientes para integrar o conceito de assédio, desde logo, porque se provou que o empregador pretendeu que a trabalhadora desistisse do emprego.
47º Aplicam-se ao caso em concreto as sábias palavras do Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes (in Direito do Trabalho, I, 2007, pág. 410 a 412) – As humilhações são proibidas porque são uma afronta à dignidade da pessoa e uma violação dos seus direitos e não porque constituem um tratamento desigual… O assédio não é mais aceitável só porque o empregador insulta indiscriminadamente todos os seus trabalhadores, razão pela qual as situações de assédio não discriminatório em nada lhe retiram ou diminuem a sua ilicitude e gravidade.
48º Tem a trabalhadora direito à indemnização legal nos termos do artigo 396.º, n.º 1, do Código do Trabalho, a ser liquidada pelo empregador ao trabalhador.
49º Devem assim, ser alterados os seguintes factos dados como não provados pelo Tribunal a quo, por factos dados como provados:
a) Que Autora foi alvo de agressões verbais graves, por parte de Sr. CC e da Dra. HH, de forma reiterada e contínua;
b) Que, na conversa mencionada no Ponto 7 dos Factos Provados a Autora foi desrespeitada pelo Sr. CC, com gritos e acusações, ao solicitar dois dias de férias (16 e 17 de dezembro de 2021) para descansar, por se sentir exausta, por via do excesso de trabalho devido à COVID 19, e por ter cinco dias de férias para gozar nesse ano;
c) Que o Sr. CC fez, pelo menos, três abordagens verbais desrespeitosas e ameaçadoras, em frente a colegas, inclusive com manifestação de intenção de ameaça física;
h) Que no Episódio de Urgência de 15 de julho de 2020 foi diagnosticado à Autora uma crise de ansiedade extrema que poderia levar a um enfarte do miocárdio;
w) Que a maioria das comunicações e ordens de serviço verbais à Autora foram feitas de forma intimidatória, ameaçadora e agressiva por parte da Ré, nas pessoas da Dra. HH e Sr. CC;
y) Que a Ré criou um ambiente intimidativo, hostil, assaz degradante, humilhante e desestabilizador, na vida pessoal e na relação laboral da Autora.
50º Violou o Tribunal a quo os artigos 24.º, 29.º, n.º 1, 2 e 4, 127.º, n.º 1, alíneas a) e c), 394.º, n.º 1 e 2, alínea b), d), e) e f) e 396.º, n.º 1, todos do Código do Trabalho.
Nestes termos e nos mais doutos e escorreitos de Vossas Excelências, requer-se a revogação da sentença recorrida e que, em sua substituição, seja proferido Acórdão que reconheça a procedência da presente apelação e, consequentemente, os pedidos formulados na petição inicial, com o que Vossas Excelências farão Sã, serena, objetiva e costumada Justiça.».
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Contra-alegou a Ré, propugnando pela improcedência do recurso.
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A 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Já na Relação, a digníssima procuradora-geral adjunta pugnou pela improcedência do recurso.
Ambas as partes responderam reiterando as respetivas posições.
O recurso foi mantido e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, eis as questões que, por ordem lógica, importa analisar e decidir:
1.ª Não verificação da caducidade do direito da trabalhadora resolver o contrato de trabalho com justa causa.
2.ª Impugnação da decisão de facto.
3.ª Existência de justa causa de resolução contratual.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora foi admitida ao serviço da Ré em 1 de junho de 2004, nos termos o acordo escrito intitulado “Contrato de Trabalho a Termo Certo” constante de fls. 7v e 8, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
2. A Autora aufere o vencimento mensal de €760,00 e diuturnidades na quantia de €59,60;
3. A Ré tem como atividade laboratório de análises clínicas;
4. O local de trabalho da Autora é na sede da Ré e em outros postos de colheitas de análises clínicas;
5. Desde 2004 a Autora recebia ordens diretas da Diretora Técnica do Laboratório de Análises Clínicas, Dra. II;
6. Em março de 2020, passou a receber ordens diretas também do filho da Diretora Técnica, Sr. CC, o que sucedeu até 12 de janeiro de 2022;
7. Em data não apurada de dezembro de 2021 sucedeu uma troca de palavras entre a Autora e CC, a propósito da intenção daquela em tirar dois dias de férias (16 e 17 de dezembro de 2021), numa altura em que se registava um acréscimo de trabalho no laboratório, devido à pandemia COVID 19, tendo o CC proferido expressões como “Tem lata para pedir férias nesta altura?” e “Sente-se bem com a sua consciência?”;
8. No dia 15 de julho de 2020 a Autora foi atendida em Episódio de Urgência no Hospital de ...;
9. Nas instalações da Ré, o papel higiénico e os toalhetes encontram-se num armário;
10. Além de funções de técnica de análises clínicas, tal como as restantes trabalhadoras com idênticas funções, a Autora também efetuou gestão de stocks, manutenção dos equipamentos que lhe estavam atribuídos, desinfeção da sua bancada e, sob supervisão da Ré, gestão de encomendas;
11. Em data não concretamente apurada, ao serviço da Ré e em viatura desta, a Autora teve um furo;
12. Após esse episódio, a Ré adquiriu um carro antigo para o serviço dos funcionários fora do laboratório, incluindo a Autora;
13. Embora os testes COVID fossem testes nasofaríngeos normais (semelhantes aos testes para a Gripe A), a diferença de tamanho das zaragatoas levou as colegas da Autora (para experimentarem) a efetuarem previamente testes entre elas próprias, antes de o fazerem nos utentes da Ré;
14. À Autora foi diagnosticado um esgotamento nervoso associado a burnout, estando impedida de trabalhar desde 14 de janeiro de 2022, data em que entrou de baixa, assim permanecendo até ao momento;
15. A Autora foi aconselhada por médicos a meter baixa médica a fim de ser medicada e iniciar psicoterapia, o que fez;
16. Com data de 17 de novembro de 2023, a Autora remeteu a Ré, que a recebeu em 20 de novembro, a carta de fls. 16v a 17v, com o seguinte teor, além do mais que aqui se dá por reproduzido:
(…)
(…)
17. Nos dias 16 e 17 de dezembro de 2021, a Autora gozou férias;
18. Mais tarde, a Autora solicitou à Ré uma semana de férias, no período compreendido entre o dia de Natal e a Passagem de Ano, o que a Ré negou, devido ao volume de serviço provocado pela Pandemia COVID 19;
19. Naquela altura fora declarado o estado de calamidade (a partir de 1 de dezembro de 2021) e passaram a vigorar medidas restritivas, nomeadamente:
i. A apresentação de certificado digital (que poderia ser de vacinação, testagem ou recuperação) passou a ser obrigatória em restaurantes, estabelecimentos turísticos e alojamento local, eventos com lugares marcados, etc.; e,
ii. A exigência de teste negativo obrigatório (mesmo para pessoas vacinadas), PCR ou antigénio, no acesso a visitas a lares, visitas a pacientes internados em estabelecimentos de saúde, grandes eventos (qualquer que seja a natureza, sem lugares marcados) e recintos desportivos, discotecas e bares.
20. As medidas mencionadas em 19 deram origem a um elevado número de marcações na Ré, enquanto Laboratório de Análises Clínicas, para a realização de testes;
21. Naquelas circunstâncias a Ré já tinha aceite o pedido de férias de outra trabalhadora, não podendo abdicar da colaboração da Autora;
22. A Autora realizou o exame médico (mamografia) no dia 17 de dezembro de 2021;
23. A Autora gozou férias de Verão no período compreendido entre 6 de julho e 17 de julho de 2020;
24. A marcação de férias pelas trabalhadoras da Ré é combinada entre estas;
25. O veículo mencionado em 12, utilizado para visitar clientes fora do laboratório, reúne todas as condições legalmente exigidas para circular;
26. Quando o filho da Autora desencadeou um quadro depressivo, a Ré permitiu que a Autora se ausentasse mais cedo do local de trabalho, sem qualquer consequência, a nível de remuneração ou de férias, para prestar apoio àquele;
27. Do mesmo modo, quando o pai da Autora se encontrava no leito da sua morte, a Ré ofereceu-lhe uma viagem à Alemanha, para que se pudesse despedir daquele;
28. A Ré pagou à Autora, nos meses de julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2022, a quantia global de 375€ (6 x 62,50€) a título de subsídio de férias, quantia essa que foi submetida à competente retenção na fonte de IRS;
29. A Ré pagou à Autora, em março de 2023, a quantia de 282,47€, referente a férias não gozadas, quantia essa que foi submetida à competente retenção na fonte de IRS;
30. A Ré pagou à Autora, em fevereiro de 2023, a quantia de 282,47€, referente a férias não gozadas, quantia essa que foi submetida à competente retenção na fonte de IRS;
31. A Ré pagou à Autora, em janeiro de 2023, a quantia de 254,66€, referente a férias não gozadas, quantia essa que foi submetida à competente retenção na fonte de IRS;
32. A Ré pagou à Autora, em janeiro de 2023, a quantia de 112,08€, referente a férias não gozadas, quantia essa que foi submetida à competente retenção na fonte de IRS;
33. A Ré pagou à Autora a quantia de 31,86€, a título de subsídio de Natal referente ao ano de 2022 e confirmou o requerimento de prestação compensatória apresentado pela Autora na Segurança Social, requerendo o pagamento do remanescente - 777,74€;
34. Após entrar de baixa médica a Autora procurou negociar a cessação do seu contrato de trabalho com a Ré, o que esta acabou por recusar;
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E julgou que não se provaram os seguintes factos:
a) Que Autora tenha sido alvo de agressões verbais graves, por parte de Sr. CC e da Dra. HH, de forma reiterada e contínua;
b) Que, na conversa mencionada no Ponto 7 dos Factos Provados a Autora tenha sido desrespeitada pelo Sr. CC, com gritos e acusações, ao solicitar dois dias de férias (16 e 17 de dezembro de 2021) para descansar, por se sentir exausta, por via do excesso de trabalho devido à COVID 19, e pro ter cinco dias de férias para gozar nesse ano;
c) Que o Sr. CC tenha feito três abordagens verbais desrespeitosas e ameaçadoras, em frente a colegas, inclusive com manifestação de intenção de ameaça física;
d) Que o Sr. CC não tenha permitido que a Autora se ausentasse para realizar exame médico (mamografia) marcado para o dia 17 de dezembro de 2021, afirmando “Não quero saber disso para nada, não sai daqui...”;
e) Que a Autora tenho sido alvo de assédio e pressão injustificada, presencial e via telemóvel por parte do Sr. CC (chamadas de voz e SMS), para o seu telemóvel privado, inclusive durante os seus dias de folga e férias, proferindo expressões e escrevendo mensagens de texto (SMS) com o seguinte teor: “Onde está?”, “Venha já para o laboratório!”;
f) Que a Autora tenha sido alvo de tentativa de impedimento por parte da empresa (Sr. CC e Dra. HH), de gozar as férias de verão em 2020 (duas primeiras semanas de julho), depois de terem sido marcadas antecipadamente no respetivo mapa de férias em abril;
g) Que no dia 15 de julho de 2020, o Sr. CC tenha criado uma situação de conflito entre a Autora e outra colega de trabalho, que gerou um estado de ansiedade, aliado ao cansaço extremo, que teve como resultado a ida da Autora ao Hospital de ...;
h) Que no Episódio de Urgência de 15 de julho de 2020 tenha sido diagnosticado à Autora uma crise de ansiedade extrema que poderia levar a um enfarte do miocárdio;
i) Que, em 15 de junho de 2020, a Autora tenha sido avisada pelos médicos para ficar em baixa médica durante, pelo menos, duas semanas;
j) Que a Autora sempre tenha denunciado à Dra. HH e ao Sr. CC, um défice de condições de higiene e segurança no trabalho;
k) Que as instalações da Ré não recebam cuidados de higiene satisfatórios, não havendo cuidados de desinfeção de puxadores de portas, corrimão da escada e todas as zonas utilizadas pelos utentes e por todas as funcionárias ao longo do dia;
l) Que o papel higiénico e os toalhetes das mãos se encontrem fechados à chave e que só uma funcionária tenha acesso aos mesmos, sendo necessário a Autora pedir autorização para o seu acesso;
m) Que a sala de acondicionamento de lixos biológicos perigosos (grupo III lixo contaminado e IV cortantes), não tenha qualquer limpeza, a não ser quando a Autora tomava a iniciativa de o fazer;
n) Que muitas vezes existam agulhas e outros lixos perigosos no chão, representando um perigo para a segurança de quem utiliza a sala de acondicionamento de lixos;
o) Que não exista plano de higiene do laboratório, embora haja uma funcionaria de limpeza, basicamente para lavar o chão e esvaziar lixo;
p) Que a Autora resolvesse conflitos com fornecedores e utentes;
q) Que a Autora sempre tenha realizado tarefas que não lhe competiam e nunca foram valorizadas, com a finalidade de manter a organização do local de trabalho de toda a equipa de funcionários da Ré;
r) Que, nas circunstâncias mencionadas em 10 dos Factos Provados, a Autora tenha estado 3 horas à espera de assistência e quando chegou ao laboratório o Sr. CC a tenha acusado de ter estragado a jante do veículo, pelo que, de prepósito, iria adquirir um carro velho, todo podre, só para esta fazer as deslocações em serviço;
s) Que a aquisição do carro antigo mencionado em 12 dos Factos Provados tenha sido um gesto de retaliação para com a Autora;
t) Que os vidros do carro adquirido pela Ré não abrissem;
u) Que, aquando da pandemia de COVID19 a Ré (Sr. CC) tenha exigido à Autora (e a todas as técnicas) que efetuassem testes de zaragatoa, sem qualquer formação;
v) Que a Autora se tenha recusado a efetuar tais testes sem formação, tendo o Sr. CC dado ordens expressas, que a Autora era obrigada a fazer tais testes;
w) Que todas as comunicações e ordens de serviço verbais à Autora fossem feitas de forma intimidatória, ameaçadora e agressiva por parte da Ré, nas pessoas da Dra. JJ e Sr. CC;
x) Que a Autora tenha sido alvo de tratamento discriminatório por parte da Ré, ao permitir que todas as outras trabalhadoras da Ré, pudessem gozar uma semana de férias no período de Natal e Ano Novo (as mesmas em anos consecutivos), fazendo distinção entre trabalhadores, sem qualquer justificação;
y) Que a Ré tenha criado um ambiente intimidativo, hostil, assaz degradante, humilhante e desestabilizador, na vida pessoal e na relação laboral da Autora;
z) Que a Ré (Dra. HH e Sr. CC) não se tenha coibido de ameaçar a Autora, fazendo-o pressão psicológica no sentido de esta deixar de trabalhar;
aa) Que, sempre que a Ré (Dra. HH e Sr. CC) se dirigia à Autora, o fizesse em tom de voz ameaçador e audível a quem estivesse por perto, a fim de a humilhar;
bb) Que a Ré tenha criado um ambiente intimidativo, hostil, assaz degradante, humilhante e desestabilizador, quer para a vida pessoal da Autora, quer sobretudo na sua relação laboral.
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IV. Caducidade do direito de resolução do contrato com justa causa
O tribunal a quo entendeu que se verificou a caducidade do direito da trabalhadora resolver o contrato de trabalho com justa causa.
Escreveu-se na sentença recorrida:
«Defendeu-se, desde logo, a Ré invocando a caducidade do direito de resolução.
Concretizou que os factos invocados pela Autora ocorreram no período entre o Verão de 2020 e 14 de janeiro de 2022, data a partir da qual a Autora se passou a encontra de baixa médica, sucedendo a partir daí negociações com vista a um acordo de revogação do contrato de trabalho, com compensação e acesso ao subsídio de desemprego (invocando a Autora ter sido vítima de assédio moral por parte da Ré), pelo que no mínimo desde novembro de 2022 (data da comunicação da mandatária da Ré) que a Autora tinha conhecimento que os factos por si descritos, alegadamente consubstanciavam situações de assédio moral e preenchiam o conceito de justa causa de resolução. Contudo, apenas no dia 27 de novembro de 2023 é que proceder à resolução do contrato de trabalho, depois de ultrapassado o prazo de caducidade de 30 dias previsto no artigo 395.º n.º 1 do Código do Trabalho.
Efetivamente, nos termos do art.º 395.º n.º 1 do Código do Trabalho, o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
A propósito da norma em causa, referem Guilherme Figueiredo e Ricardo Nascimento que é doutrina pacífica e jurisprudência maioritária que a interpretação-aplicação desta disposição deve ser feita em conjugação com a noção de justa causa, ou seja, a determinação do momento em que se inicia a contagem do prazo dependerá da natureza continuada (por exemplo: baixa de categoria, não atribuição de funções) ou não continuada (por exemplo: injurias, aplicação de sanção abusiva) dos factos justificativos da atribuição do direito de resolução. Assim, a contagem do prazo, nas situações duradouras, iniciar-se-á no momento em que, após o conhecimento do facto determinante do exercício do direito de resolver o contrato, para o trabalhador se tornou inexigível a manutenção daquela relação laboral. Pois só a partir desse momento está o trabalhador em condições de tomar uma decisão ponderada, atenta à importância e feitos que esta decisão terá na sua vida, geralmente implicará a perda do emprego; "o que é natural, o que é razoável é que o trabalhador aguarde o termo da violação ou a remoção dos obstáculos na esperança de conservar o emprego conseguido, sem que tal conduta deva ser interpretada como perdão, no sentido de estar disposto a suportar a violação dos seus direitos definitivamente, ou renúncia ao exercício do direito [in Prontuário de Direito do Trabalho, 84, Coimbra Editora, pág. 208].
Na verdade, em determinadas situações de efeitos duradouros, suscetíveis de agravamento com o decurso do tempo, deve entender-se que o referido prazo de 30 dias se inicia, não com o conhecimento da materialidade dos factos, mas, sim, quando no contexto da relação laboral assumem tal gravidade que a subsistência do contrato se torna imediatamente impossível. Concomitantemente, a circunstância de estarmos perante factos duradouros ou continuados, estes não têm a virtualidade de impedir o decurso do prazo de 30 dias aludido.
Considerou-se, aliás, no Acórdão do STJ, de 14 de setembro de 2011 que [I] provando-se que, a partir de 17 de Abril de 2006, a autora teve conhecimento de todos os factos atinentes à retirada de parte das funções que até então exercia, o que lhe permitia ajuizar da dimensão da lesão dos seus direitos e exercer o direito de resolução do contrato, nos trinta dias subsequentes a esse conhecimento, uma vez que a declaração de resolução só foi efetivada em Outubro de 2006, ocorre a caducidade do direito de resolução do contrato de trabalho pela trabalhadora. (…) É certo que a situação tida por violadora dos direitos da autora se prolongou no tempo; porém, carece de fundamento legal o entendimento de que só após a cessação desse comportamento — que se traduziria na atribuição à autora do conteúdo funcional que lhe havia sido retirado — é que se iniciaria o cômputo do prazo de trinta dias previsto no n.º 1 do artigo 442.º, solução que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal e que, portanto, não pode ser considerada pelo intérprete (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil), acrescendo que, a partir desse momento, já nem subsistiria o comportamento ilícito fundamentador da resolução.
No acórdão de 28 de setembro de 2022, porém, a Relação de Coimbra adotou um entendimento mais próximo da letra da lei, consignando que [I] quando o n.º 1 da art. 395.° do Código do Trabalho indica que a declaração de resolução do trabalhador com invocação de justa causa e com a indicação sucinta dos factos que a justificam deve ser feita "nos 30 dias subsequentes ao conhecimento desses factos", o momento atendível desse conhecimento é o do conhecimento dos factos ilícitos cometidos pelo empregador e não o do momento em que se cristaliza no espírito do trabalhador a impossibilidade de manter a relação laboral em presença de tais factos. [II] Porém, sendo de considerar que os ditos factos podem sofrer um agravamento com o decurso do tempo no plano em que, por via desse decurso, venham a gerar maiores danos na esfera pessoal ou pessoal/patrimonial do trabalhador, é de admitir que nesse caso se está perante um agravamento da ilicitude e do efetivo potencial danoso, tornando-se aceitável atender a esse contexto em si mesmo como uma nova cadeia de "factos" relevante para o início do prazo de caducidade do direito de resolver o contrato de trabalho com justa causa. [III] Todavia essa abertura interpretativa não pode afastar a realidade factual, em que o agravamento se traduz, da esfera da apreensibilidade ou cognoscibilidade dos factos mais precisos que balizam em concreto o início do prazo de caducidade, pelo que deve considerar-se ocorrer a caducidade quando o trabalhador envia carta a descrever factos em seu entender ilícitos, não declarando a resolução com justa causa, e só passados trinta dias é que o vem a fazer, invocando carta de resposta que o empregador lhe enviou não reconhecendo os ditos factos ilícitos.
No presente caso, apurou-se o envio pela Autora à Ré da carta de resolução de fls. 16v e 17v, remetida em 17 de novembro de 2023 e recebida em 20 de novembro seguinte, na qual, em suma, alegou que:
⎯ Em 15 de dezembro de 2021 foi desrespeitada pelo Sr. CC, com gritos e acusações, ao solicitar 2 dias de férias (16 e 17 de dezembro de 2021) para descansar, uma vez que se sentia exausta e ainda tinha 5 dias de férias para gozar;
⎯ O sr. CC fez, pelo menos, três abordagens verbais desrespeitosas e ameaçadoras, em frente a colegas, onde inclusive houve manifestação de intenção de ameaça física, chegando a afirmar "Tem a lata para pedir férias nesta altura? Sente-se bem com a sua consciência? Você não sai daqui!";
⎯ O sr. CC não permitiu que se ausentasse para realizar exame médico (mamografia) marcado para o dia 17 de dezembro 2021, tendo expressamente afirmado que "Não quero saber disso para nada, não sai daqui...".
⎯ Durante meses consecutivos foi alvo de assédio e pressão injustificada, presencial e via telemóvel por parte do sr. CC (chamadas e sms), inclusive, durante os dias de folga e férias, (Onde está? Venha já para o laboratório etc...);
⎯ Foi impedida de gozar as férias de verão em 2020 (duas primeiras semanas de julho), depois de ter marcado antecipadamente no respetivo mapa de férias em abril;
⎯ No local de trabalho criaram uma situação de conflito com outra colega que gerou um estado de ansiedade, aliado ao cansaço extremo que a levou ao hospital de ... no dia 15 de Julho de 2020, ainda em período de férias, onde lhe foi diagnosticada uma crise de ansiedade extrema que poderia levar a um enfarte do miocárdio;
⎯ Elevado défice de condições de higiene e segurança no trabalho, por as instalações nunca receberam cuidados de higiene satisfatórios, nomeadamente, falta de cuidados de desinfeção de puxadores de portas, corrimão da escada e todas as zonas utilizadas pelos utentes e por todas as funcionárias ao longo do dia;
⎯ O papel higiénico e toalhetes das mãos encontram-se fechados à chave, num armário, onde só uma funcionária tem acesso, sendo necessário pedir autorização para o seu acesso;
⎯ A sala de acondicionamento de lixos grupo III e IV não tinha qualquer limpeza, a não ser quando a Autora toma a iniciativa de a limpar;
⎯ Muitas vezes existem agulhas e outros lixos perigosos no chão, representando um perigo para a segurança de quem utiliza a sala de colheitas. Por inúmeras vezes chamou a atenção as colegas e entidade patronal (Dra. HH) para o facto, tendo sido sempre ignorada, e por vezes repreendida em tom jocoso.
⎯ Não existe plano de higiene do laboratório, embora haja uma funcionaria de limpeza, basicamente para lavar o chão e esvaziar lixo.
⎯ Realizou não apenas tarefas de técnica de analises clínicas, mas também, de forma assídua e com zelo extremo a gestão de stocks, gestão de encomendas, manutenções dos equipamentos, preparação de materiais de limpeza e desinfeção das bancadas, bem como na resolução de conflitos com fornecedores, utentes etc.... Tarefas essas que não lhe competiam e nunca foram valorizadas, com a finalidade de manter a organização do local de trabalho de todos;
⎯ Tem sido alvo de assédio moral, sentindo-se ofendida moralmente na sua honra e na sua dignidade como trabalhadora, pois tem-lhe sido criado um ambiente intimidativo, hostil, assaz degradante, humilhante e desestabilizador quer da vida pessoal, quer sobretudo na minha relação laboral;
⎯ O que levou a que os médicos que a assistem, aconselhassem a meter baixa médica, a fim de ser medicada e iniciar psicoterapia;
A carta referida foi, pois, remetida e recebida em novembro de 2023, sendo os factos nela reportados anteriores a 14 de janeiro de 2022, data em que a Autora ficou de baixa, assim permanecendo até ao momento.
Como tal, independentemente de ser fundada ou não, a resolução do contrato de trabalho efetuada pela Autora foi comunicada muito depois do prazo de trinta dias (subsequente ao conhecimento dos factos) previsto no artigo 395.º n.º 1 do Código do Trabalho, sendo por isso forçoso concluir que o direito da Autora já havia caducado, o que torna ilícita a resolução do contrato.
Na verdade, ainda que, in extremis, o referido prazo tivesse o dies ad quo na data em que a Autora ficou de baixa, a caducidade verificar-se-ia de igual forma, pois a baixa por doença não tem a virtualidade de suspender ou interromper o seu decurso.
Prevê-se, com efeito, no art.º 294.º n.º 1 do Código do Trabalho que (…) a suspensão de contrato de trabalho pode fundamentar-se na impossibilidade temporária, (…) total, de prestação de trabalho por facto relativo ao trabalhador ou ao empregador. E acrescenta-se no artigo seguinte (art.º 295.º) que durante a (…) suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho [n.º 1]. Sendo certo que a (…) suspensão não tem efeitos no decurso do prazo de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais [n.º 3]. E concretiza-se, por fim, no art.º 296.º n.º 1 que determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença, acidente ou facto decorrente da aplicação da lei do serviço militar.
O prazo previsto no artigo 395.º n.º 1 do Código do Trabalho é, pois, um prazo de caducidade, que não se interrompe por força de eventual suspensão do contrato de trabalho, designadamente baixa por doença do trabalhador, pois durante o período de suspensão mantém-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho, como é o caso do direito de resolução do contrato com justa causa.
Conforme se aludiu no Acórdão da Relação do Porto de 25 de fevereiro de 2013, o trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos [n.º 1]. Determina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto respeitante ao trabalhador que não lhe seja imputável e se prolongue por mais de um mês, nomeadamente, doença. No entanto, a suspensão não tem efeitos no decurso de prazo de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais.».
Desde já se adianta que a decisão recorrida não nos merece censura.
Expliquemos porquê.
A resolução do contrato de trabalho com fundamento em justa causa é uma das formas de desvinculação contratual por parte do trabalhador – cf. artigos 340.º, alínea g) e 394.º, ambos do Código do Trabalho.
Esta forma de cessação do contrato foi pensada para as situações em que a relação laboral, por razões de facto significativas, se tornou absolutamente insustentável para o trabalhador.
Estatui o artigo 394.º do mencionado compêndio legal:
1 - Ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.
2 - Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:
a. Falta culposa de pagamento pontual da retribuição;
b. Violação culposa de garantias legais ou convencionais do trabalhador, designadamente a prática de assédio praticada pela entidade empregadora ou por outros trabalhadores;
c. Aplicação de sanção abusiva;
d. Falta culposa de condições de segurança e saúde no trabalho;
e. Lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador;
f. Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, incluindo a prática de assédio denunciada ao serviço com competência inspetiva na área laboral, praticada pelo empregador ou seu representante.
3 - Constituem ainda justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador:
a. Necessidade de cumprimento de obrigação legal incompatível com a continuação do contrato;
b. Alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício lícito de poderes do empregador;
c. Falta não culposa de pagamento pontual da retribuição.
d. Transmissão para o adquirente da posição do empregador no respetivo contrato de trabalho, em consequência da transmissão da empresa, nos termos dos n.os 1 ou 2 do artigo 285.º, com o fundamento previsto no n.º 1 do artigo 286.º-A.
4 - A justa causa é apreciada nos termos do n.º 3 do artigo 351.º, com as necessárias adaptações.
5 - Considera-se culposa a falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período de 60 dias, ou quando o empregador, a pedido do trabalhador, declare por escrito a previsão de não pagamento da retribuição em falta, até ao termo daquele prazo.
Por seu turno, prescreve o artigo seguinte:
1 - O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.
2 - No caso a que se refere o n.º 5 do artigo anterior, o prazo para resolução conta-se a partir do termo do período de 60 dias ou da declaração do empregador.
3 - Se o fundamento da resolução for o referido na alínea a) do n.º 3 do artigo anterior, a comunicação deve ser feita logo que possível.
4 - O empregador pode exigir que a assinatura do trabalhador constante da declaração de resolução tenha reconhecimento notarial presencial, devendo, neste caso, mediar um período não superior a 60 dias entre a data do reconhecimento e a da cessação do contrato.
Ora, no que se reporta aos presentes autos o prazo de caducidade aplicável previsto nesta norma é o prazo de 30 dias subsequentes ao conhecimento do(s) facto(s) que integra(m) a justa causa invocada.
Atendendo ao conteúdo da carta de resolução remetida pela Apelante à Apelada, conclui-se que os factos que fundamentaram a justa causa de resolução ocorreram anteriormente a 14-01-2022, data em que a Apelante entrou de baixa médica, mantendo-se em tal situação até ao momento – cf. pontos 16 e 14 do elenco dos factos provados.
Ora, a verificada situação de baixa médica (superior a um mês) originou a suspensão do contrato de trabalho, nos termos previstos pelo artigo 296.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
Todavia, durante a suspensão do contrato mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação do trabalho – artigo 295.º, n.º 1 do referido código.
E, especificamente, consagra o n.º 3 do artigo 295.º:
A redução ou suspensão não tem efeitos no decurso de prazo de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais.
Deduz-se, pois, das mencionadas normas legais, que a suspensão do contrato de trabalho não afeta minimamente o prazo de caducidade estabelecido pelo artigo 395.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
Neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 20-05-2024 (Proc. n.º 3321/22.8T8MTS.P1), acessível em www.dgsi.pt, no qual se e«(…) V- A situação de doença do trabalhador, ainda que decorrente dos factos fundamentadores da justa causa, não se confunde com esses, por não se tratar de “comportamento da entidade patronal”.
VI- Durante o período de suspensão do contrato de trabalho, ficando suspensos os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que pressuponham a efetiva prestação de trabalho (n.º 1do citado artigo 295.º), não se suspende, porém, o prazo de caducidade para invocação pelo trabalhador , de justa causa para a resolução do contrato de trabalho».
Igualmente, o Acórdão da mesma Relação de 04-03-2013 (Proc. n.º 259/11.8TT0AZ.P1), publicado no mesmo sítio, em que consta do sumário:
«A suspensão do contrato de trabalho por facto imputável ao trabalhador apenas suspende os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que pressuponham a efetiva prestação de trabalho, não suspendendo o prazo de caducidade para invocação, pelo trabalhador, de justa causa para resolução do contrato de trabalho.».
Retornando ao caso dos autos, como observámos supra, os factos que fundamentaram a justa causa de resolução ocorreram anteriormente a 14-01-2022. Contudo, a carta de resolução do contrato de trabalho só foi remetida em 17-11-2023, ou seja, 22 meses mais tarde.
Ora, nada indica que no período de baixa médica a Apelante tenha ficado incapacitada de ajuizar quão impactantes na sobrevivência da relação laboral eram os comportamentos anteriormente assumidos pela empregadora, o que poderia ter feito durante os 30 dias que se seguiram ao início da baixa, até porque a distância física e psicológica da empregadora, lhe proporcionava as condições ideais para que procedesse a tal avaliação.
Dito de outro modo, desde o início da baixa médica e nos 30 dias seguintes, a Apelante tinha conhecimento de todos os factos que lhe permitiam ajuizar da dimensão da lesão dos seus direitos e exercer o direito de resolução do contrato com fundamento em justa causa - cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-11-2014 (Proc. n.º 72/05.1TTLSB.L2.S1), consultável em www.dgsi.pt.
Ademais, o período de suspensão do contrato de trabalho não era suscetível de contribuir, pelo decurso do tempo, para o agravamento dos efeitos das lesões dos direitos da trabalhadora.
Em suma, na data em que foi remetida a carta de resolução do contrato de trabalho já o direito de resolução do contrato havia caducado, por ter decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 395.º do Código do Trabalho.
Por conseguinte, bem andou a 1.ª instância ao decidir declarar tal caducidade.
Na sequência do agora decidido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso que visavam alcançar a reapreciação (de facto e de direito) da invocada justa causa de resolução – cf. artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Concluindo, o recurso improcede, devendo as custas inerentes ao mesmo ser suportadas pela Apelante, ao abrigo do artigo 527.º do Código de Processo Civil.