I – O artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho, presume a existência de um contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital quando na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem, pelo menos, duas das características constantes das diversas alíneas.
II – Essa presunção é ilidível.
III – Mostra-se ilidida a presunção, não sendo de considerar a existência de um contrato de trabalho entre cada um dos prestadores da atividade/estafeta e a plataforma digital, no circunstancialismo fáctico em que se apura, no essencial, que:
(i) não existe qualquer processo de avaliação dos prestadores da atividade/estafetas, quer na validação e no registo inicial na app para serem incluídos na oferta de entregas quer, sobretudo, posteriormente, de avaliação da qualidade da atividade por eles prestada;
(ii) os prestadores de atividade trabalham se, onde e quando quiseram, sendo eles a imporem algumas condições e sem que a aceitação ou recusa da concreta prestação da atividade esteja sujeita a controlo ou avaliação pela ré, que possa acarretar consequências para eles na relação de trabalho;
(iii) alguns prestadores/estafetas exercem outras profissões, com horário de trabalho completo, fazem as entregas em causa à noite e ao fim-de-semana, em “part-time”, e a maioria em simultâneo para outras empresas/plataformas, que também se dedicam à entrega de refeições na mesma área geográfica, não havendo sequer necessidade de na mochila que transportam constar o logotipo da ré;
(iv) podem fazer-se substituir por outra(s) pessoa(s) na realização das entregas desde que essa(s) pessoas(s) também tenha(m) conta ativa na app como “Parceiro de Entrega Independente”.
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora1:
I. Relatório
O Ministério Público intentou, no Juízo do Trabalho de ... - Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, ao abrigo do disposto nos artigos 186.º-K a 186.º-R do Código de Processo do Trabalho, ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo, a final, que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho firmado “entre o trabalhador AA e a Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal., Lda.”, com início em 1 de maio de 2023, e por tempo indeterminado”.
Alegou, para o efeito e no essencial, que no exercício da sua atividade profissional a ré gere a aplicação informática digital conhecida por “Uber Eats” e que AA realiza, mediante pagamento, entrega de refeições e outros produtos, na área de Portimão, conforme pedidos/tarefas que são distribuídas através da referida plataforma
Acrescentou que pese embora a atividade de estafeta prestada por AA seja “aparentemente autónoma”, a mesma tem as caraterísticas de contrato de trabalho – como sejam (a) o facto da retribuição do trabalho prestado pelo estafeta ser fixada pela plataforma, que determina os limites máximos e mínimos, (b) ser a plataforma que determina as regras específicas quanto à prestação da atividade por parte do estafeta, (c) a plataforma controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão de algorítmica, (d) a plataforma exercer o poder disciplinar sobre o prestador de atividade mediante a exclusão da possibilidade de realização de futuras atividades na plataforma através de suspensão ou desativação da conta, € e ainda a aplicação informática (App) da Uber Eats ser um instrumento de trabalho essencial ao negócio da Ré e é utilizado pelos diferentes utilizadores da plataforma.
A ré contestou a ação, a pugnar, no que ora releva, pela sua improcedência.
Para tanto sustentou, no essencial, que a relação contratual com o prestador da atividade se iniciou antes de 1 de maio de 2023, mais concretamente em ..., pelo que não há aqui lugar à aplicação da presunção prevista no artigo 12.º-A do Código de Processo do Trabalho, e que ainda que assim se não entenda a presunção se mostra ilidida.
Entretanto, por despacho de 10-04-2024 foi determinada a apensação de diversos processos que pendiam no mesmo Juízo do Trabalho de ..., com o mesmo pedido e causa de pedir, idênticos fundamentos de contestação, sendo apenas diversos os “prestadores de atividade/estafetas” e a data em que iniciaram a atividade para a ré.
Os autos prosseguiram os trâmites legais, tendo-se procedido à audiência de julgamento, após o que em 27-09-2024 foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:
«Em face do exposto, julga-se a presente acção instaurada pelo Ministério Público totalmente improcedente e, em consequência:
a) Absolve-se a ré “Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda.” do pedido de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, por tempo indeterminado, com os seguintes estafetas:
i. AA, NIF ..., com início a 01-05-2023 [processo principal];
ii. BB, NIF ..., com início a 01-07-2023 [apenso A];
iii. CC, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso B];
iv. DD, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso C];
v. EE, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso D];
vi. FF, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso E];
vii. GG, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso F];
viii. HH, NIF ..., com início a 01-09-2023 [apenso G];
ix. II, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apensos H e I];
x. JJ, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso J];
xi. KK, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso K];
xii. LL, NIF ..., com início a 15-07-2023 [apenso L];
xiii. MM, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso M];
xiv. NN, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso N];
xv. OO, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso O];
xvi. PP, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso P];
xvii. QQ, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso Q];
xviii. RR, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso R];
xix. SS, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso S];
xx. TT, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso T];
xxi. UU, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso U];
xxii. VV, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso V];
xxiii. WW, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso W];
xxiv. XX, NIF ..., com início a 01-09-2023 [apenso Y];
xxv. YY, NIF ..., com início a 01-09-2023 [apenso X]; e
xxvi. ZZ, NIF ..., com início a 01-05-2023 [apenso Z]».
Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1. A sentença proferida nestes autos, que abrange a relação entre 25 estafetas e a Ré Uber Eats, decidiu que, nos casos em que a relação contratual entre os estafetas/prestadores de atividade e a Ré Uber se iniciou antes de 01.05.2023 não seria aplicável o regime decorrente do artigo 12.º-A do Código do Trabalho (na redação dada pela Lei n.º 13/2023, de 03/04).
2. Estão abrangidos nessa situação os seguintes estafetas:
- AA, NIF ... (processo principal), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos, o ano de 2021;
- CC, NIF ... (apenso B), que iniciou uma relação contratual com a ré desde pelo menos, o ano de 2021;
- DD, NIF ... (apenso C), que iniciou uma relação contratual com a ré desde pelo menos, o ano de 2021;
- EE, NIF ... (apenso D), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos abril de 2023;
- FF, NIF ... (apenso E), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2020;
- GG, NIF ... (apenso F), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2020;
- II, NIF ... (apenso H e I), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos Janeiro de 2023;
- JJ, NIF ... (apenso J), que iniciou uma relação contratual com a Ré desde, pelo menos, o ano de 2022;
- KK; NIF ... (apenso K), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2021;
- MM; NIF ... (apenso M), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de janeiro de 2023;
- NN; NIF ... (apenso N), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de agosto de 2021;
- OO; NIF ... (apenso O), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de dezembro de 2022;
- PP; NIF ... (apenso P), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de maio de 2022;
- SS; NIF ... (apenso S), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de janeiro de 2023;
- TT; NIF ... (apenso T), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2021;
- UU; NIF ... (apenso U), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2019;
- VV; NIF ... (apenso V), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de fevereiro de 2023;
- WW; NIF ... (apenso W), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o mês de janeiro de 2021;
- YY; NIF ... (apenso X), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2022;
- ZZ; NIF ... (apenso Z), que iniciou uma relação contratual com a ré desde, pelo menos o ano de 2021.
3. Decidiu a sentença recorrida, em face das regras da aplicação da lei no tempo e do estipulado no artigo 12.º do Código de Trabalho, não reconhecer a existência de contratos de trabalho entre esses prestadores de atividade e a Ré.
O Ministério Público concorda com essa parte da decisão, a qual não é, por isso mesmo, objeto de impugnação.
4. O Ministério Público não concorda, porém, quanto ao decidido na sentença relativamente aos demais prestadores de atividade/estafetas, que iniciaram a sua atividade para a Ré Uber Eats já depois da entrada em vigor da norma prevista no artigo 12.º-A do Código de Trabalho (ou seja, depois de 01.05.2023). É dessa parte da sentença que se recorre.
5. Com efeito, importa verificar se resulta dos factos provados a verificação de algumas das características referidas nas alíneas do n.º 1, do referido artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
6. Nos termos do artigo 12.º-A, n.º 1, al. a), do C.T., cumpre averiguar se “A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela”.
7. De acordo com a sentença recorrida, “Neste domínio resultou provado que a aplicação (APP) apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do mesmo (ponto 22 dos factos provados), sendo que o preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, e que os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro. Por outro lado, resultou também provado que os estafetas podem rejeitar o serviço proposto (ponto 19 dos factos provados), ou seja, após lhes ter sido apresentado o “preço do serviço”.
Mais resultou provado (ponto 13 dos factos provados) que através da APP, os estafetas conseguem ver o histórico das entregas que fazem por dia, semana e no mês, e quanto irão receber da ré pelos serviços de entrega prestados.
Resultou ainda provado que os est[a]fetas recebem uma quantia variável por cada entrega e o valor a receber não depende do tempo de demora na sua realização ou do tempo de ligação à APP (ponto 23 dos factos provados).
Neste contexto, os depoimentos dos estafetas AAA, BB, CC e BBB assumiram especial significado e apresentaram-se decisivos para o esclarecimento da forma como os “parceiros independentes” efetuavam o registo na aplicação da ré, (…) como se processavam as propostas de entrega (…) estas testemunhas aludiram aos horários e aos locais de recolha para onde se deslocavam, que dependiam unicamente da decisão unilateral do estafeta e não de qualquer solicitação ou imposição da ré, e forma particularmente incisivos na possibilidade de recusar entregas (se não lhes interessassem), da formação do preço (que assenta em critérios variáveis, designadamente a taxa mínima definida pelo estafeta), da possibilidade de bloquearem certos clientes ou fornecedores de bens e serviços (com quem não pretendiam trabalhar), sem que daí resultasse qualquer represália ou penalização por parte da ré.
Resulta ainda provado (do contrato de parceiro de entregas independentes) que quando é proposta uma entrega na APP administrada pela Ré, o estafeta pode consultar o valor que lhe é apresentado a título de taxa de entrega, a qual corresponde à contrapartida que lhe é devida, cujo quantitativo decorre da intervenção de três fatores – valor da taxa mínima por quilómetro (o qual pode ser ajustado pelo estafeta previamente, sem estar sujeito a um limite de alterações); - número de quilómetros que a APP estima (de acordo com o sistema de navegação adotado) ser necessário percorrer entre o ponto de recolha dos produtos e o ponto de entrega; - aplicação de incentivos por cada viagem (este fator é dependente da vontade do cliente, por ser quem seleciona o estabelecimento comercial que irá disponibilizar os produtos e o local para o qual esses bens irão transportados).
Sendo apurado o valor da contrapartida devida ao estafeta por cada entrega pela intervenção de três agentes – a ré, o estafeta e o cliente final -, não será correto concluir que é a ré quem determina unilateralmente o quantitativo da contrapartida devida ao estafeta por cada entrega (ainda que a ré também assuma um papel muito relevante na fixação do valor da contrapartida, pois é quem estipula os valores de referência contidos na APP).”
8. Divergimos. Conforme resulta dos factos provados, é a plataforma Uber que, unilateralmente, fixa a retribuição e, além disso, estabelece também um limite mínimo e um limite máximo para o prestador de atividade/estafeta por cada serviço prestado. O estafeta pode, é verdade, recusar o serviço, mas isso não traduz qualquer possibilidade de negociação da sua parte, rejeitar o serviço não é, em parte alguma, sinónimo de negociar o preço do mesmo. Se os estafetas aderiram à plataforma para exerceram as funções respetivas, naturalmente não o fizeram para rejeitarem os pedidos por ela submetidos – só o fazem se, v.g., o local de recolha ou o local de entrega se situarem bastante longe do local onde se encontrem.
9. Constitui por isso um engano afirmar que não é a plataforma que fixa o valor da retribuição, uma vez que – face à matéria de facto provada (vide Pontos 20, 22, 23, 25 e 26 dos factos provados) – esta se encontra, na sua totalidade, dependente do seu critério unilateral.
10. Pelo exposto, deve considerar-se preenchida a característica de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º-A, n.º 1, al. a), do Código do Trabalho.
11. Nos termos do artigo 12.º-A, n.º 1, al. b): “A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade”.
12. De acordo com a sentença recorrida, “Independentemente das reservas que a técnica legislativa suscita e que já foram expostas por setores importantes da doutrina, importa ter presente que algumas exigências são impostas pela utilização do serviço de entregas gerido pela Ré (dever de inscrição na APP; a necessidade de ligação à App para poder receber propostas de entregas e aceitá-las; recurso à geolocalização para poder ser aceite uma proposta de entrega), enquanto outras se justificam por estar em causa o transporte de produtos perecíveis (imposição de utilização de mochila – que não tem de dispor do logotipo da ré – deve-se à necessidade de serem adotadas boas práticas de higiene e segurança alimentar, para além de permitirem que o estafeta possa transportar os produtos no veículo utilizado, que poderá ser uma bicicleta ou uma mota).
Não obstante, implicando o transporte de produtos a deslocação num veículo entre dois locais, assiste ao estafeta a inteira liberdade de escolher o concreto percurso que pretende adotar, sem que esteja vinculado a limites de tempo para as entregas, ou adstrito à utilização dos sistemas de ajuda à navegação que lhe são propostos pela APP gerida pela ré para definir a rota que é necessário seguir.
Em paralelo, o estafeta não se encontra vinculado a predeterminações da ré quanto à indumentária a utilizar para efetuar entregas, ou ao modo de proceder com os clientes e fornecedores de produtos, para além, de não estar sujeito a quaisquer avaliações de qualidade de serviço pela ré ou pelos clientes, que pudessem condicionar a forma como procede às entregas.”
Não se afigura, pois, que se possa concluir que a ré conforma a prestação concretamente devida pelo estafeta, controlando o modo como esta é realizada.”
13. A nosso ver, basta uma leitura dos factos provados (vide Pontos 2, 3, 4, 5, 8, 9, 11, 13, 14, 16, 20, 22, 25, 26, 27, 28, 30 e 31 dos factos provados), para concluir que a Ré Uber, além de estipular as regras para acesso/inscrição na plataforma por parte dos “estafetas” – fase que não se pode excluir de todo o processo de prestação da atividade, igualmente dirige, estipula, concretiza e define a forma como toda a atividade deve ser por eles prestada.
14. Citando a sentença proferida no âmbito do processo n.º 1980/23.3T8CTB, do Juízo do Trabalho de ..., em ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho movida contra a plataforma digital “Uber Eats”, a qual tem aqui igual aplicação, “O procedimento de entrega da UBER encontra-se perfeitamente padronizado e decorrerá da mesma forma, independentemente do local onde é prestado e da pessoa concreta do estafeta, que se limitará a seguir todo um esquema previamente definido pela ré, que assim, segundo se entende, determina as regras especificas quanto à prestação da atividade por parte do estafeta mostrando-se nessa medida também verificado o indicio previsto no artigo 12º-A, nº 2, al. b) do Código do Trabalho.”
15. Já quanto à alínea e) do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código de Trabalho, é a própria sentença do Tribunal “a quo” que reconhece estar preenchida esta característica de contrato de trabalho. Efetivamente, aí se lê que: (ver ponto 14 dos factos provados) “verifica-se o preenchimento desta característica: a ré pode desativar a conta de um estafeta “a seu critério exclusivo”.”
Uma vez que consta da cláusula 5 do aludido contrato que no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente, a ré tem o poder de restringir o seu acesso à App.
16. Por fim, diz-se na alínea f) do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código de Trabalho, que “Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação”.
17. O Meritíssimo Juiz “a quo”, para afastar a aplicação desta alínea, justificou do seguinte modo: “Tal como se deixou expresso supra, o veículo (bicicleta, o ciclomotor ou o motociclo), o telemóvel e a mala térmica pertencem a cada um dos estafetas, que os adquiriu previamente.
Por outro lado, a APP depois de instalada no telemóvel do estafeta, apesar de desenvolvida pela ré e de a esta caber o direito de autoria ou de produção da mesma, não configura um instrumento ou equipamento para estes efeitos, ou seja, um elemento físico, como será o telemóvel onde está instalada (e este também pertence aos estafetas).
Também aqui não se identificam factos provados que algum outro equipamento ou instrumento de trabalho utilizado pelos estafetas pertença à ré, razão pela qual não está preenchida esta característica para fazer funcionar a presunção legal.”
19. A nosso ver, a verdade é que o principal “instrumento de trabalho” (a aplicação informática Uber Ests) é da exclusiva propriedade da Ré, conforme resulta dos factos provados, sendo que, sem ela, seria impossível a prestação da atividade em análise.
20. Auxiliando-me de novo da fundamentação expressa na mencionada sentença do Juízo do Trabalho de ..., “se os estafetas em questão pretendessem ser verdadeiramente autónomos e não utilizassem a marca de que a ré é titular, estariam condenados ao fracasso, já que o êxito deste tipo de plataformas deve-se à publicidade que elas fazem nas redes sociais e nos motores de busca, sendo estes os sites que os clientes procuram quando querem o tipo de produtos que a plataforma anuncia. Assim para o desenvolvimento da atividade, os meios que o trabalhador usa e de que é proprietário, o veículo ou o telemóvel, têm um valor escasso quando comparado com a plataforma ou com o valor da marca no mercado, que são da titularidade de ré.”
21. Aqui chegados, não podemos deixar de aludir à conclusão expressa por João Leal Amado (ob. cit. pág. 89) de que “ao olhar para um qualquer estafeta, daqueles que percorrem velozmente as ruas nas suas motos (ou, mais lentamente, pedalando nas suas bicicletas), creio que nenhum de nós se convence, seriamente, de que ali vai um empresário - seja um microempresário, um motoempresário ou um cicloempresário… Não (…) Ali vai, motorizado ou pedalando, um trabalhador dependente, um trabalhador do século XXI, diferente, decerto, dos seus pais, avós ou bisavós, mas, afinal, ainda um trabalhador dependente um subordinado de novo tipo, com contornos distintos dos tradicionais, mas, em última instância, ainda dependente e subordinado na forma como desenvolve a sua atividade”.
22. Nestes termos, concluindo-se pela verificação das presunções enunciadas nas alíneas a), b), e) e f) do artigo12.º-A do Código do Trabalho, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Ré no reconhecimento dos contratos de trabalho relativamente aos seguintes trabalhadores e por referência às datas assinaladas:
- BB, NIF ... (apenso a), desde 31/08/2023;
- CCC, NIF ... (apenso L), desde 18/08/2023;
- QQ, NIF ..., (apenso Q), desde 04/10/2023;
- RR, NIF ... (apenso R), desde 20/10/2023;
- XX, NIF ..., (apenso Y), desde 27/09/2021».
Contra-alegou a ré, a pugnar pela improcedência do recurso, assim concluindo:
«1. O recurso apresentado pelo Recorrente versa apenas sobre matéria de direito, não tendo o Recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto.
2. Salvo o devido respeito, as doutas alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente terão, necessariamente, de improceder, porquanto a matéria de facto que resultou provada nos presentes autos não permite alcançar uma decisão distinta daquela que foi, irrepreensivelmente, proferida pelo douto Tribunal a quo.
3. A sentença proferida pelo douto Tribunal de ..., proferida no âmbito do processo n.º 1980/23.3T8CTB, que é invocada pelo Recorrente para sustentar as suas alegações, ainda não transitou em julgado, tendo, inclusivamente, sido impugnada pela Ré, para além de que se desconhece a factualidade que resultou provada naqueles autos porquanto o Recorrente não procedeu à junção de certidão da sentença em apreço.
4. Os factos provados número 11, 19, 21, 22, 23, 24, 26 e 29 demonstram, sem margem para dúvidas, que a plataforma não fixa a retribuição e/ou os seus limites máximos e mínimos.
5. Conforme resulta da sentença em crise, foram os próprios prestadores de atividade, que “Estas testemunhas [AA, BB, CC e BBB] aludiram aos horários e aos locais de recolha para onde se deslocavam, que dependiam unicamente da decisão unilateral do estafeta e não de qualquer solicitação ou imposição da ré, e foram particularmente incisivos na possibilidade de recusar entregas (se não lhe interessassem), da formação do «preço» (que assenta e critérios variáveis, designadamente a taxa mínima definida pelo estafeta), da possibilidade de bloquearem certos clientes ou fornecedores de bens e serviços (com quem não pretendiam trabalhar), sem que daí resultasse qualquer represália ou penalização por parte da ré.” – vide fundamentação de facto da douta sentença.
6. Face à prova produzida e não impugnada, resulta provado que a plataforma não fixa, de forma alguma, o valor da retribuição dos serviços efetuados na plataforma, nem estabelece limites máximos e mínimos para aquela, pelo que não se encontra verificada a característica prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 12º-A do Código do Trabalho.
7. A matéria de facto que resultou provada no âmbito dos presentes autos é manifestamente demonstrativa de que prestadores de atividade BB, LL, QQ, DDD e XX desenvolvem a sua atividade de forma totalmente autónoma e segundo as condições que estes próprios definem, nomeadamente os factos provados n.º 8, 9, 15ª 19, 21, 26, 29 e 32 a 41.
8. A Recorrida não determina, direta ou indiretamente, quaisquer regras específicas quanto à forma de como a atividade deve ser prestada, nem determina regras quanto à organização (por exemplo, horários) dos Prestadores de Atividade, permitindo inclusivamente que os mesmos prestem atividade apenas quando querem.
9. Da matéria de facto provada nos presentes autos inexiste qualquer fundamento que permita concluir que a Ré exerce poder de direção sobre os prestadores e que determina regras específicas quanto à forma de prestar a atividade.
10. Contrariamente, a matéria de facto assente demonstra, cabalmente, que os prestadores de atividade são totalmente livres para exercer a sua atividade nos moldes determinados pelos próprios.
11. A Recorrida não pode concordar com a douta decisão do Tribunal a quo, quando conclui que se mostra preenchida a característica prevista no artigo 12º-A, n.º 1, alínea e) do C.T..
12. A desativação da conta é uma mera consequência da cessação do contrato por iniciativa da Ré ou por iniciativa do Prestador de Atividade, nos termos da cláusula 16.a. e b. dos termos e condições juntos aos autos.
13. Considerando o contrato celebrado entre a Ré/Recorrida e os prestadores de atividade BB, LL, QQ, DDD e XX, é possível constatar que nenhuma das razões que permite cessar os termos e condições com os prestadores de atividade está relacionada com o desempenho, conduta ou violação de ordens ou instruções dadas pela Plataforma ao prestador de atividade, porque a Ré/Recorrida não controla, não supervisiona, nem avalia a qualidade da atividade prestada, pelo que não exerce poder de direção sobre o mesmo.
14. Como em qualquer relação contratual, a violação de uma obrigação contratual por uma das partes, é suscetível de conferir à outra o direito de resolver o contrato que as vincula, independentemente da natureza (laboral ou outra) do contrato em causa.
15. Competindo ao douto Tribunal da Relação aferir da verificação da característica prevista no artigo 12º-A, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho, face ao objeto do recurso, delimitado pelas conclusões do Recorrente, não poderia a Recorrida deixar de fazer valer a sua posição quanto a esta matéria, pugnando pela não verificação da característica em apreço.
16. Não resulta provado que a Ré é proprietária da aplicação Uber Eats, nem tampouco resultou provado que a Ré a explora através de contrato de locação (conforme resulta do artigo 12º-A, n.º 1, alínea f), do C.T.).
17. A plataforma digital não é suscetível de ser reconduzida a um equipamento ou instrumento de trabalho, na medida em que, tal como irrepreensivelmente explicou o douto Tribunal, “a noção de «equipamentos ou instrumentos de trabalho» traduz uma ideia de materialidade, de utensílio ou aparelho empregue na execução de qualquer trabalho, de um bem físico, que não se reconhece numa plataforma digital, que constitui uma criação do espírito humano e não uma coisa com existência física, à semelhança, por exemplo, do próprio smartphone por via o qual se concretiza o acesso à plataforma digital..”.
18. Face à matéria provada nos autos, não é possível considerar verificada a característica prevista na alínea f), do n.º 1, do artigo 12º-A do Código do Trabalho.
19. O recurso apresentado pelo Recorrente terá, necessariamente, de improceder, por não se mostrarem verificadas quaisquer características das quais a lei faz depender a presunção de existência de contrato de trabalho no âmbito de plataformas digitais.
20. A matéria provada nos autos vai totalmente no sentido de demonstrar a existência de uma relação livre, autónoma e independente entre a Ré e o os prestadores de atividade BB, LL, QQ, DDD e XX.
21. Face à factualidade que resultou assente e transitada em julgado no âmbito nos presentes autos, na medida em que o Recorrente não pugnou pela sua alteração, e às normas de direito aplicáveis – leia-se a presunção de existência de contrato de trabalho prevista no artigo 12º do Código do Trabalho e/ou o método indiciário ou tipológico – sempre as alegações de recurso apresentadas deverão ser julgadas improcedentes.
22. Consequentemente, deverá a douta sentença recorrida manter-se inalterada, sem prejuízo do que se deixou exposto quanto à não verificação da característica prevista no artigo 12º-A, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho.
Nestes termos, e atentos os fundamentos explanados no presente articulado, o recurso apresentado pelo Autor/Recorrente deverá ser julgado totalmente improcedente, só assim se fazendo JUSTIÇA!».
Seguidamente, o recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito devolutivo.
Subidos os autos a esta Relação, tendo em conta, no essencial, que em relação aos prestadores de atividade objeto do recurso a matéria de facto poderia ser ambígua, ao se aludir que cada um deles iniciou a atividade a partir de determinada data posterior a 1 de maio de 2023, antecedida da expressão “pelo menos”, o relator entendeu ouvir as partes.
Em resposta, estas aceitam que a expressão “pelo menos” significa que o início da prestação da atividade se verificou apenas a partir da data indicada em relação a cada um deles após aquela expressão e, por consequência, que os mesmos iniciaram a prestação da atividade para a ré/recorrida após 1 de maio de 2023.
Elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. Objeto do recurso
Como é sabido são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o objeto deste (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho).
E o recorrente pode restringir o recurso a parte da decisão (artigo 635.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso, o recorrente excluiu expressamente do recurso a decisão quanto a vários (21) dos prestadores da atividade, por concordar com a sentença recorrida, quando nela se concluiu que tendo os mesmos iniciado a prestação da atividade em data anterior a 1 de maio de 2023 não lhes pode ser aplicável a presunção que decorre do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, e que face ao disposto no artigo 12.º do mesmo compêndio legal não se verifica em relação a cada um deles a existência de presunção de laboralidade e, bem assim, de contrato de trabalho.
Por isso, o objeto do recurso incidirá apenas sobre a relação contratual entre cada um dos seguintes cinco (5) prestadores de atividade/estafetas e a ré:
(i) BB, que iniciou a atividade em 31-08-2023;
(ii) CCC, que iniciou a atividade em 18-08-2023;
(iii) QQ, que iniciou a atividade em 04-10-2023;
(iv) RR, que iniciou a atividade em 20-102023;
(v) XX, NIF ..., que iniciou a atividade em 01-09-2023 (por manifesto lapso, no recurso indica-se a data de “27/09/2021”).
A questão essencial a decidir centra-se em determinar se entre a ré e cada um destes cinco prestadores de atividade/estafetas se verifica, a partir das respetivas datas indicadas, a existência de contrato de trabalho.
Tal questão envolve a análise de duas sub-questões:
1. se se mostra verificada a presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho;
2. se, tratando-se de uma presunção ilidível, a mesma se mostra ilidida (cfr. artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil).
III. Factos
A) No que respeita especificamente aos prestadores de atividade objeto do recurso, a 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade, que se aceita, por não vir impugnada nem se vislumbrar fundamento legal para a sua alteração:
1. A ré tem como objeto social: «a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; actividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; consultoria, concepção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais».
2. Para a execução das referidas atividades, a ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados.
3. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram previamente registados na sua plataforma para esse efeito.
4. Assim, a ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma:
- Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo);
- Os utilizadores estafetas (“parceiro de entregas independente” ou “parceiros de frota”); e
- A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e
- A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas.
6. A “Uber Portier, B.V.” (com sede em Mr. Treublaan 7, 1097 DP, Amesterdão, Países Baixos), é a única sócia da Ré “Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda.” e é a entidade que fornece o acesso à aplicação (App) UBER EATS e ao software, websites e aos vários serviços de suporte da plataforma UBER EATS.
7. Os Inspetores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) identificaram, nas datas e locais indicados, as seguintes pessoas a realizar, mediante pagamento, entrega de refeições e outros produtos ou a preparar-se para o fazer:
(…)
7.2. BB, NIF ..., em 31-08-2023, junto ao Centro Comercial ... [apenso A];
(…)
7.12. LL, NIF ..., em 18-08-2023, junto ao Centro Comercial ..., em ... [apenso L];
(…)
7.17. QQ, NIF ..., em 04-10-2023, junto ao McDonald’s de ... [apenso Q];
7.18. RR, NIF ..., em 20-10-2023, junto ao Centro Comercial ... [apenso R];
(…)
7.24. XX, NIF ..., em 27-09-2023, junto ao Centro Comercial ... [apenso Y];
(…).
8. Cada um dos identificados, nas circunstâncias de tempo e lugar indicados, estava equipado com uma mochila isotérmica para o transporte de refeições, tinha um veículo para transportar as encomendas e tinha a aplicação (App) da plataforma UBER EATS instalada e ativa no seu telemóvel “Smartphone”.
9. Cada um desses identificados tinha atividade registada na plataforma UBER EATS, com prévio registo no website da ré, fornecendo-lhe um endereço eletrónico e criando uma conta.
10. Cada um desses identificados tem atividade registada na plataforma UBER EATS:
(…)
10.2. BB, NIF ..., pelo menos, desde julho de 2023 [apenso A];
(…)
10.12. LL, NIF ..., pelo menos, desde 15-07-2023 [apenso L];
(…);
10.17. QQ, NIF ..., pelo menos, desde 15-08-2023 [apenso Q];
10.18. RR, NIF ..., pelo menos, desde maio de 2023 [apenso R];
(…)
10.24. XX, NIF ..., pelo menos, desde setembro de 2023 [apenso Y];
(…).
11. Através da App os estafetas conseguem ver o histórico das entregas que fazem por dia, semana e no mês, e quanto irão receber da ré pelos serviços de entrega prestados.
12. Todos os estafetas mencionados encontram-se qualificados na segurança social como trabalhadores independentes.
13. Os estafetas identificados mantêm atividade aberta como empresários em nome individual junto da AT e emitem recibos a favor da ré, relativos aos valores que esta lhes paga pelas entregas que realizam.
14. Com a adesão à App os estafetas declararam consentir os termos apostos no documento denominado «Contrato de Parceiro de Entregas Independentes», cuja cópia se encontra junto aos autos e se dá integralmente por reproduzido.
15. Os estafetas identificados desempenham as funções de estafeta na recolha e entrega de refeições nas zonas de ... e ....
16. Os estafetas podem decidir o local onde prestam a sua atividade, desde que se trate de uma zona coberta pela App, tendo liberdade para alterar a sua zona de atividade.
17. Os estafetas é que escolhem o local para onde se deslocam e é que decidem onde devem estar para levantar as entregas.
18. Os estafetas podem bloquear comerciantes ou clientes com quem não desejam contactar/fazer entregas.
19. Os estafetas podem recusar uma oferta de entrega sugerida pela App.
20. A ré gere a App, a qual permite a ligação entre comerciantes (os que fornecem bens e serviços) e clientes (os que adquirem esses bens e serviços), através de serviços de entregas das mercadorias, assegurados por estafetas, sendo tais serviços de entrega geridos e organizados pela ré, designadamente quanto à indicação de locais de recolha e de entrega de mercadorias, recebendo em contrapartida os estafetas um valor por cada entrega.
21. Os estafetas é que decidem os dias e os períodos em que trabalham, definindo o seu próprio horário, bastando para o efeito colocar-se online na App nos períodos respetivos, sem que estejam sujeitos a horários pré-estabelecidos ou a turnos, nem a indicação prévia dos seus horários.
22. Os valores de referência a serem utilizados para o cálculo da contrapartida a pagar pela ré pelos serviços de entrega estão pré-estabelecidos na App, mas os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro.
23. Os estafetas recebem uma quantia variável por cada entrega e o valor a receber não depende do tempo de demora na sua realização ou do tempo de ligação à App.
24. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.
25. A ré paga, semanalmente, através de transferência bancária, diretamente aos estafetas os valores correspondentes às entregas realizadas e processa os pagamentos, mediante a emissão de uma fatura que tem por emissor os prestadores de atividade (os estafetas).
26. Os estafetas têm acesso na App às propostas de entrega por valores inferiores ao montante de taxa mínima por km, que definiram, e podem aceitá-las ou rejeitá-las.
27. Os contactos telefónicos entre estafeta e clientes que se justificam pelos serviços de entrega, nomeadamente, se não se conseguem localizar corretamente o endereço de entrega, são assegurados através da plataforma gerida pela ré.
28. A App permite o acompanhamento, em tempo real, do trajeto desenvolvido pelos estafetas entre a recolha e a entrega, quer pela ré, quer pelo cliente final.
29. Os estafetas são livres de escolher as rotas em que realizam as entregas.
30. A App dispõe de um sistema integrado de navegação que pode não ser utilizado pelos estafetas, se estes preferirem usar outro sistema de navegação [v.g. Google Maps/Waze/sistema de navegação próprio do veículo ou outro], ou se não necessitarem dessa ajuda.
31. O sistema de navegação gerido pela ré permite:
➢ apresentar propostas de entrega aos estafetas que estão mais bem posicionados para recolher a encomenda e entregá-las no melhor tempo possível;
➢ ajudar os estafetas a encontrar a rota mais eficiente até ao ponto de entrega;
➢ aos clientes consultarem onde se encontram as suas encomendas e poderem prever o tempo de entrega.
32. Não existem penalizações pelo modo como os estafetas realizam as suas entregas, pela recusa destes em fazerem entregas ou por não se ligarem on line à App.
33. Os estafetas é que escolhem a roupa com que se apresentam nas entregas.
34. A imposição de utilização de mochila, não sendo necessário que contenha o logotipo da ré, deve-se à necessidade de serem adotadas boas práticas de higiene e segurança alimentar, para além de permitirem que o estafeta passa transportar os produtos no veículo utilizado, que poderá ser uma bicicleta ou uma mota.
35. Para validar o seu registo na App e incluí-los na oferta de entregas, a ré não efetua um escrutínio sobre a experiência e qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos estafetas.
36. A ré não efetua avaliação da qualidade da atividade dos estafetas.
37. Alguns estafetas têm outras profissões com horário de trabalho completo e fazem entregas à noite e aos fins-de-semana como «part-time».
38. A maioria dos estafetas identificados faz entregas para a ré e em simultâneo para outras empresas/plataformas que também se dedicam às entregas de refeições, nas mesmas áreas geográficas (exemplo «Glovo», «Bolt», etc.).
39. Os estafetas podem substituir-se por outra pessoa na realização de entregas, desde que o terceiro tenha conta ativa na App como «Parceiro de Entrega Independente».
40. Para realizar as suas entregas os estafetas utilizam um veículo (bicicleta ou ciclomotor), um telemóvel e uma mochila térmica.
41. Todo este equipamento pertence aos estafetas.
B) A 1.ª instância deu como não provado que:
1. A ré mantém uma classificação dos estafetas com base no número de entregas efetuado através da plataforma, classificando-os como parceiros “Green”, “Gold”, “Platinium” ou “Diamond”, o que lhes permite poderem participar no programa da “Uber Eats Pro” e, com base no número de pontos atingidos por mês, desbloquear algumas recompensas que entidades parceiras da UBER EATS oferecem (por exemplo, a Galp e a Wear Your Brand).
IV. Enquadramento jurídico
1. Como se deixou referido supra (sob II.) a questão essencial a decidir consiste em determinar se entre a ré e a cada um dos prestadores de atividade/estafetas (excetuando aqueles em relação aos quais o recorrente manifestou concordância com a decisão da 1.ª instância e, por isso, não recorreu) existe um contrato de trabalho, desde as respetivas datas indicadas.
Tal questão essencial envolve duas sub-questões, a saber: se se mostra verificada a presunção previstas no artigo 12.º-A do Código do Trabalho e, em caso afirmativo, se a mesma se mostra ilidida.
A 1.ª instância concluiu que na concreta situação apenas se verificava a caraterística prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A, do Código do Trabalho, e, por consequência, não existir presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.
Além disso, acrescentou, ainda que se verificasse a referida presunção, existem diversos elementos fácticos nos autos que ilidem tal presunção e apontam decisivamente para a existência de um contrato de prestação de serviço entre cada um dos prestadores de atividade em causa e a aqui recorrida.
O autor/recorrente discorda de tal entendimento, sustentando que no caso se verifica não só a caraterística prevista na alínea a referida alínea e), mas também as caraterísticas previstas nas alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, e, assim, a presunção de contrato de trabalho, concluindo, em conformidade, pela existência de contrato de trabalho entre cada um dos prestadores de atividade em causa e a recorrida.
Vejamos.
Antes de procedermos à concreta análise dos autos, impõe-se deixar uma nota prévia.
O caso em apreço apresenta significativo paralelismo, maxime quanto à matéria de facto, com o que foi decidido por este tribunal em 12-09-2024, no proc. n.º 3842/23.5T8PTM.E1, do mesmo juízo e tribunal: embora nesse processo, com decisão já transitada em julgado, a ré/recorrida fosse distinta da dos presentes autos, os factos são muito idênticos, constando-se, inclusive, que alguns dos prestadores de atividade naquele o são também neste, sendo o traço diferenciador essencial que naquele era peticionado o reconhecimento da existência de contrato de trabalho entre cada um deles e a ali ré, enquanto aqui é peticionado o reconhecimento de contrato de trabalho entre esses (alguns) prestadores de atividade e a aqui, diferente, ré; ou seja, em cada uma das ações e em relação a alguns prestadores de atividade, com base em factualidade essencialmente idêntica é/era peticionado o reconhecimento de dois contratos de trabalho: um com a ré da ação já decidida com trânsito em julgado, outro com a ré dos presentes autos.
Por isso, na presente ação vamos seguir de perto o que escrevemos no proc. n.º 3842/23.5T8PTM.E1.
Deixada esta nota, avancemos.
2. É consabido que o artigo 1152.º do Código Civil e o artigo 11.º do Código do Trabalho contêm a noção de contrato de trabalho, de que se realça, como sua caraterística, a subordinação jurídica, traduzida na dependência necessária do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras e orientações do empregador.
Mas, como adverte Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 22.ª Edição, 2023, Almedina, pág. 140), «[h]á (…) uma progressiva desvalorização dos comportamentos directivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adoptar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-à à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua actividade em proveito de outra, no quadro de uma organização do trabalho (seja qual for a sua dimensão) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador do trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização do trabalho, ainda que execute a sua actividade, sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” – nem, porventura, o beneficiário estar em condições (técnicas ou práticas) de a formular».
Perante as dificuldade que, em termos práticos, se colocam na qualificação de trabalho, a lei (artigo 12.º-A do Contrato de Trabalho) estabelece presunção, ilidível (artigo 350.º do Código Civil), da existência de um contrato de trabalho: assim, presume-se a existência de contrato de trabalho desde que se verifiquem, pelos menos, duas características elencadas nas alíneas.
Importa atender à especificidade do caso, tendo em conta as mudanças que se têm verificado nos últimos anos na forma de organização do trabalho, designadamente o trabalho prestado com recurso a plataformas digitais, que criaram enormes dificuldades na qualificação da relação que se estabelece entre a plataforma digital e o prestador de serviço.
Por isso, como se assinalou no «Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho», 2021, a propósito do trabalho em plataformas digitais (pág. 172), tornou-se necessário «[c]riar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre o trabalhador por conta de outrem e o trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital».
Neste contexto, a Lei n.º 13/2023, de 03-04, aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, que entrou em vigor no primeiro dia do mês seguinte ao da sua publicação – artigo 37.º, n.º 1– ou seja, 1 de maio seguinte, e que estabeleceu presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital: de acordo com o referido artigo 12.º-A, presume-se a existência de contrato de trabalho desde que se verifiquem, pelos menos, duas características elencadas nas alíneas.
Trata-se, porém, de uma presunção ilidível (artigo 350.º, n.º 2 do Código Civil e n.º 4 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho).
Como se acentuou no “Considerando” n.º 27 da Diretiva (EU) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais, o “princípio do primado dos factos” significa que a existência de uma relação de trabalho se deve basear principalmente nos factos relacionados com a efetiva prestação do trabalho e não na descrição que as partes dão à relação de trabalho.
Assim, não pode ser pela circunstância de estar em causa a prestação trabalho em plataforma digital, ou até de se verificar a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, que tem, forçosamente, que se considerar a existência de contrato: não olvidando que se devem interpretar os conceitos jurídicos à luz deste novo mundo do trabalho, não o é menos que essa subsunção jurídica se deverá fazer, com algum grau de certeza e segurança jurídica e perante os factos em concreto apurados quanto à forma como a prestação da atividade se desenvolveu.
Diremos que “cada caso é um caso”, pelo que só perante a respetiva factualidade apurada se poderá/deverá fazer a subsunção jurídica.
De acordo com o n.º 1 do referido artigo 12.º-A, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador da atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas (portanto, pelo menos duas) das caraterísticas indicadas nas suas diversas alíneas.
No caso, como se deixou referido, o tribunal a quo considerou verificada apenas a característica prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo em referência («A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador da atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através desativação da conta»).
Já quanto às características previstas nas alíneas a), b) e f) – as questionadas pelo recorrente – concluiu não se verificarem.
Atente-se no que consta dessas alíneas:
«a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina as regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
(…)
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação».
3. Analisemos o que consta da matéria de facto, tendo por referência cada uma das referidas alíneas.
i) quanto à alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho
A este propósito, resulta, no essencial, da matéria de facto que:
- os valores de referência a serem utilizados para o cálculo da contrapartida a pagar pela ré pelos serviços de entrega estão pré-estabelecidos na App, mas os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro (n.º 22);
- os estafetas recebem uma quantia variável por cada entrega e o valor a receber não depende do tempo de demora na sua realização ou do tempo de ligação à App (n.º 23);
- adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes (n.º 24);
- os estafetas têm acesso na App às propostas de entrega por valores inferiores ao montante de taxa mínima por km, que definiram, e podem aceitá-las ou rejeitá-las (n.º 26).
Ora, desta matéria de facto resulta que consta da aplicação os valores pré-definidos pelo serviço, recebendo os estafetas uma quantia variável por cada entrega.
Isto significa que é a ré que fixa a remuneração devida ao estafeta pelo serviço por ele prestado.
É certo que os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro e têm acesso na app às propostas de entrega por valores inferiores à taxa mínima de entrega que definiram, e podem aceitá-las ou rejeitá-las.
Contudo, esta circunstância – de o estafeta poder definir uma taxa mínima por quilómetro e poder aceitar ou rejeitar propostas de entrega inferiores a essa taxa mínima – não parece alterar a referida conclusão.
Tenha-se presente que se verifica a característica prevista na referida alínea a) se «[a] plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela».
Ou seja, considera-se verificada a característica (i) se a plataforma fixa a retribuição para o trabalho/serviço efetuado, (ii) ou se a mesma estabelece os limites mínimos e máximos da retribuição.
Pois bem: no caso, como regra geral/padrão a plataforma estabeleceu esse preço; não é pela circunstância de o estafeta poder estabelecer uma taxa mínima por quilómetro que é afastada a regra, que vigora, de ser a plataforma a fixar a contrapartida pelo serviço de entrega.
Haverá que distinguir claramente entre a verificação das características que determinam a existência de presunção de contrato de trabalho, e esta se ter ou não por ilidida: como se disse, e reafirma, face à fixação do preço do serviço pela ré mostra-se verificada a característica constante da alínea a); o facto do estafeta poder fixar a taxa mínima por quilómetro, poder aceitar ou rejeitar um valor inferior, ou até receber gratificações pelos serviços prestados, é matéria que se insere já no âmbito da presunção de laboralidade se ter ou não por ilidida, o que será analisado infra.
Conclui-se, pois, pela verificação da característica estabelecida na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
ii) quanto à alínea b) do n.º 1, do artigo 12.º-A
Extrai-se da matéria de facto que:
- a ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet –, atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados, sendo que para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, (a ré) utiliza os serviços de estafetas que se encontram previamente registados na sua plataforma para esse efeito (n.ºs 2 e 3);
- com a adesão à App os estafetas declararam consentir os termos apostos no documento denominado «Contrato de Parceiro de Entregas Independentes», cuja cópia se encontra junto aos autos (n.º 14);
- a ré gere a App, a qual permite a ligação entre comerciantes (os que fornecem bens e serviços) e clientes (os que adquirem esses bens e serviços), através de serviços de entregas das mercadorias, assegurados por estafetas, sendo tais serviços de entrega geridos e organizados pela ré, designadamente quanto à indicação de locais de recolha e de entrega de mercadorias, recebendo em contrapartida os estafetas um valor por cada entrega (n.º 20);
- os contactos telefónicos entre estafeta e clientes que se justificam pelos serviços de entrega, nomeadamente, se não se conseguem localizar corretamente o endereço de entrega, são assegurados através da plataforma gerida pela ré (n.º 27);
- a App permite o acompanhamento, em tempo real, do trajeto desenvolvido pelos estafetas entre a recolha e a entrega, quer pela ré, quer pelo cliente final (n.º 28);
- os estafetas é que escolhem a roupa com que se apresentam nas entregas (n.º 33);
- a imposição de utilização de mochila, não sendo necessário que contenha o logotipo da ré, deve-se à necessidade de serem adotadas boas práticas de higiene e segurança alimentar, para além de permitirem que o estafeta passa transportar os produtos no veículo utilizado, que poderá ser uma bicicleta ou uma mota (n.º 34).
Desta factualidade decorre, no essencial, que os prestadores de atividade se encontram previamente registados na plataforma para poderem proceder à entrega dos produtos, que esses serviços de entrega são organizados e geridos pela ré, designadamente quanto à indicação do local de recolha e de entrega de produtos, que caso os estafetas não consigam localizar o endereço da entrega, o contacto entre os mesmos e os clientes é assegurado através da plataforma gerida pela ré, que a aplicação desta permite o acompanhamento em tempo real do trajeto desenvolvido por aqueles e ainda que por razões de higiene e segurança alimentar têm que utilizar uma mochila para transportar os produtos.
Ora, perante esta matéria de facto – e é apenas à mesma que temos que nos ater, uma vez que não vem impugnada – é questionável que se possa concluir pela existência de poder de direção ou determinação das regras específicas pela ré, nomeadamente quanto à apresentação do prestador da atividade (de acordo com a matéria de facto é ele que escolhe a roupa que usa), sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.
Mas admitamos que sim, uma vez que é a ré que gere a plataforma digital em que atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados, sendo que para tal há necessidade, entre o mais, de registo e recurso às entregas através de prestadores de atividade, o que permite intuir que existe todo um modus operandi pré-definido que os prestadores de atividade têm que observar, não só tendo em vista a prestação da mesma, como, posteriormente, no respetivo exercício efetivo.
Dito de outro modo: tendo em conta a plataforma digital explorada pela ré, e o documento “Contrato de Parceiros de Entregas Independentes” admite-se que quer com vista ao início da atividade, quer no exercício da mesma, a ré pré-definiu e regulou, no essencial e através de procedimentos padronizados, a conduta a observar por qualquer prestador da atividade/estafeta perante o utilizador/cliente, bem como a própria prestação da atividade em si.
Neste enquadramento, e quanto à determinação pela ré da conduta do prestador da atividade/estafeta perante o utilizador do serviço/cliente e prestação de atividade em si, aceita-se – embora numa solução não isenta de dúvidas, face ao que se referiu – que se inscreve na referida alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
iii) quanto à alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A
A 1.ª instância considerou verificada esta caraterística, tendo para tanto desenvolvido a seguinte fundamentação:
Prevê-se no «Contrato de Parceiro de Entregas Independentes» que «no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5, supra), incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a protecção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. Podem existir circunstâncias em que não lhe poderemos facultar informação sobre denúncias no decurso de uma investigação (quer seja uma investigação nossa ou de terceiros, como as autoridades policiais (…)» o que, as nosso ver, consubstancia a faculdade de exercício de poderes de auto-tutela pela ré, em face do eventual incumprimento pela contraparte, permitindo-lhe que decida se o estafeta pode deixar de ter acesso à App, quando a visualização de propostas de entrega depende necessariamente da consulta da App.
Neste ponto, entende-se que se verifica o preenchimento desta característica: a ré pode desactivar a conta de um estafeta segundo o seu critério exclusivo.
Efetivamente, de acordo com o referido “Contrato de Parceiros de Entregas Independentes”, em abstrato e em situações que podem não se prender diretamente com a prestação da atividade (por exemplo decorrente de ordem judicial ou administrativa, para proteção de terceiros, etc.), a ré pode decidir que o estafeta deixe de ter acesso à app respetiva e, por essa via, que lhe continue (a ela, ré) a prestar a atividade, o que se insere na “exclusão de futuras atividades na plataforma através da desativação da conta” inscrita na referida alínea e).
Por isso, aceita-se que se considere verificada a referida caraterística.
Questão diversa será apurar da relevância de tal caraterística tendo em conta a concreta factualidade no que respeita à forma como são feitas as entregas dos produtos, à recusa de entregas ou pela não ligação à app, uma vez que de acordo com o que consta do n.º 32 da matéria de facto não existem penalizações pelo modo como os estafetas realizam as suas entregas, pela recusa destes em fazerem entregas ou por não se ligarem on line à App.
Tal significa que nos termos do “Contrato de Parceiros de Entregas Independentes”, a ré podia desativar a conta dos prestadores em causa, mas não pelos motivos referidos no n.º 32 da matéria de facto.
iv) quanto à alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A
Recorde-se que está em causa a característica de os equipamentos ou instrumentos de trabalho utilizados pertencerem à plataforma digital.
E de acordo com o n.º 2 do artigo 12.º-A, «(…) entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.» .
Desta definição extrai-se, pois, que a existência de aplicação informática para o exercício da atividade desenvolvida pela pessoa coletiva, é um dos elementos integradores do conceito de plataforma digital.
E no caso que nos ocupa, tenha-se presente que no exercício da sua atividade profissional a ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores/clientes – através de uma aplicação móvel ou através da internet – atua como intermediária na entrega de produtos encomendados, serviço a efetuar pelos estafetas que, para esse efeito, se encontram registados na plataforma.
Como se escreveu no referido acórdão deste tribunal de 12-09-2024 (proc. n.º 3842/23.5T8PTM.E1) a aplicação informática/plataforma digital gerida pela ré apresenta-se, pois, indispensável, conditio sine qua non, para o exercício da atividade profissional em causa.
Todavia, não pode olvidar-se, por um lado, que, de acordo com a mesma matéria de facto, que para realizar as suas tarefas os estafetas utilizam um veículo (bicicleta ou ciclomotor), um telemóvel e uma mochila térmica, que pertence a cada um deles (n.ºs 40, 41); por outro, a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A encontra-se adaptada e visa precisamente situações de trabalho nas plataformas digitais, pelo que em tais situações terá que existir, necessariamente, uma aplicação informática/plataforma digital para o exercício da atividade.
Daí que, embora numa solução não isenta de dúvidas, se entenda que para que se verifique a característica em análise se exige mais, exige-se que alguns equipamentos/instrumentos de trabalho pertençam à ré, pois de outro modo, ou seja, se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f).
Note-se que, com resulta do já referido, o software (app) instalado e utilizado no telemóvel dos estafetas é indispensável para os estafetas receberem as propostas de entrega de produtos e as aceitarem ou recusarem (n.º 26); e os contactos para os serviços de entrega que se justifiquem entre os estafetas e os clientes são feitos através da plataforma gerida pela ré (n.º 27), permitindo a referida aplicação informática o acompanhamento, e tempo real, pela ré e pelo cliente final, do trajeto desenvolvido pelos estafetas entre a recolha e a entrega.
Todavia, tendo presente o disposto no n.º 2 do citado artigo 12.º-A, tal não deixa de se inscrever no âmbito da utilização da plataforma digital, lato sensu, pelo que, ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, não vislumbramos que a utilização da app pelos estafetas possa ganhar autonomia para se poder considerar um instrumento de trabalho para efeitos previstos na alínea f) do n.º 1 do artigo 12.ª-A.
Por consequência, entende-se não se verificar a característica prevista na referida alínea.
Em síntese, tendo em conta o objeto do recurso entende-se verificarem-se as características previstas nas alíneas a), b) e e) (esta identificada na decisão recorrida) do n.º 1, do artigo 12.º-A, do Código do Trabalho) e, por consequência, estar preenchida a presunção de existência dos contratos de trabalho em causa.
4. A questão que ora se coloca consiste em saber se a presunção de contrato de trabalho se mostra ilidida.
A nossa resposta, adiante-se já, é afirmativa.
Expliquemos porquê.
De acordo com a factualidade que assente ficou:
- os estafetas podem bloquear comerciantes ou clientes com quem não desejam contactar/fazer entregas (n.º 18);
- os estafetas podem recusar uma oferta de entrega sugerida pela App (n.º 19);
- os estafetas é que decidem os dias e os períodos em que trabalham, definindo o seu próprio horário, bastando para o efeito colocar-se online na App nos períodos respetivos, sem que estejam sujeitos a horários pré-estabelecidos ou a turnos, nem a indicação prévia dos seus horários (n.º 21);
- os valores de referência a serem utilizados para o cálculo da contrapartida a pagar pela ré pelos serviços de entrega estão pré-estabelecidos na App, mas os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro (n.º 22);
- os estafetas recebem uma quantia variável por cada entrega e o valor a receber não depende do tempo de demora na sua realização ou do tempo de ligação à App (n.º 23);
- os estafetas têm acesso na App às propostas de entrega por valores inferiores ao montante de taxa mínima por km, que definiram, e podem aceitá-las ou rejeitá-las (n.º 26);
- não existem penalizações pelo modo como os estafetas realizam as suas entregas, pela recusa destes em fazerem entregas ou por não se ligarem on line à App (n.º 32);
- os estafetas é que escolhem a roupa com que se apresentam nas entregas e na mochila que utilizam não é necessário que contenha o logotipo da ré (n.ºs 33 e 34);
- para validar o seu registo na App e incluí-los na oferta de entregas, a ré não efetua um escrutínio sobre a experiência e qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos estafetas (n.º 35);
- a ré não efetua avaliação da qualidade da atividade dos estafetas (n.º 36);
- alguns estafetas têm outras profissões com horário de trabalho completo e fazem entregas à noite e aos fins-de-semana como «part-time» (n.º 37);
- a maioria dos estafetas identificados faz entregas para a ré e em simultâneo para outras empresas/plataformas que também se dedicam às entregas de refeições, nas mesmas áreas geográficas (exemplo «Glovo», «Bolt», etc.) (n.º 38);
- os estafetas podem substituir-se por outra pessoa na realização de entregas, desde que o terceiro tenha conta ativa na App como «Parceiro de Entrega Independente» (n.º 39);
- para realizar as suas entregas os estafetas utilizam um veículo (bicicleta ou ciclomotor), um telemóvel e uma mochila térmica (que não tem que ter o logotipo da ré), equipamentos que pertencem a cada um deles (n.ºs 40 e 41).
Desta factualidade decorre, quanto à fixação da retribuição [alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A)], que pese embora seja a ré a fixar a retribuição, os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro, assim como podem aceitar ou rejeitar valores superiores ou inferiores à taxa mínima que definiram, e podem ainda recusar ofertas de entrega sugeridas pela app, o que indicia que, em última análise, eles podem decidir aceitar ou rejeitar livremente a retribuição fixada pela ré.
Quanto ao poder de direção da ré [alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º], ainda que a recolha e entrega de produtos se realize em locais indicados pela ré, e que para isso exista todo um modus operandi pré-definido que os prestadores de atividade têm que observar (por exemplo, a utilização de mochila, que, contudo, note-se, não tem que conter o logotipo da ré), não deixa de ser impressivo que os estafetas possam recusar ofertas de entregas, inclusive possam bloquear comerciantes ou clientes com quem não desejam contactar/fazer entregas, decidam os dias, os períodos e até o local onde trabalham; ou seja, são os estafetas que escolhem quando querem prestar a atividade para a ré, e até onde a querem prestar (desde que se trate de uma zona coberta pela app e, intui-se, se situe nas zonas de ... e ...), o que vale por dizer que têm autonomia para aceitar ou recusar a prestação da atividade.
E quanto ao exercício pela plataforma digital dos poderes laborais sobre o prestador da atividade [alínea e) do n.º 1 do artigo 12.º-A)], haverá que ponderar que ao registar os estafetas na app e incluí-los na oferta de entregas a ré não efetua qualquer avaliação sobre a experiência, caraterísticas pessoais e técnicas dos estafetas, não efetua a avaliação da qualidade da atividade por eles exercida, alguns deles fazem entregas para a ré e em simultâneo para outras plataformas digitais que também se dedicam à mesma atividade na mesma zona (porventura por isso, na mochila que utilizam não tenha que constar o logotipo da ré) e na realização de entregas os estafetas podem-se fazer substituir por outras pessoas, desde que estas tenham conta ativa na app como “Parceiros de Entrega Independente”.
Como se assinalou na 1.ª instância, na motivação da resposta à matéria de facto, as testemunhas/estafetas ouvidos «(…) aludiram aos horários e aos locais de recolha para onde se deslocavam, que dependiam unicamente da decisão unilateral do estafeta e não de qualquer solicitação ou imposição da ré, e foram particularmente incisivos na possibilidade de recusar entregas (se não lhe interessassem), da formação do «preço» (que assenta e critérios variáveis, designadamente a taxa mínima definida pelo estafeta), da possibilidade de bloquearem certos clientes ou fornecedores de bens e serviços (com quem não pretendiam trabalhar), sem que daí resultasse qualquer represália ou penalização por parte da ré.».
Quanto a esta última referência, a matéria de facto é expressa, ao nela se afirmar que «[n]ão existem penalizações pelo modo como os estafetas realizam as suas entregas, pela recusa destes em fazerem entregas ou por não se ligarem on line à App» (facto n.º 32).
Ora, é certo, quando se ligam à plataforma digital os prestadores de atividade/estafetas passam a integrar um serviço organizado e concebido pela ré; e como se retira do já afirmado, o facto dos prestadores estarem adstritos a observar parâmetros de organização e funcionamento definidos poderia levar a considerar que se submetem à autoridade da ré na organização desse trabalho e, nessa conformidade, da existência de um contrato de trabalho com cada um deles.
Todavia, elementos existem nos autos, que se afiguram particularmente relevantes e que apontam em sentido contrário ou, se se quiser, que ilidem a presunção de existência de contrato de trabalho.
Assim, desde logo importa ponderar que não existe qualquer processo de avaliação dos prestadores da atividade/estafetas, quer na validação e no registo inicial na app para serem incluídos na oferta de entregas quer, sobretudo, posteriormente, de avaliação da qualidade da atividade por eles prestada.
E essa atividade prestada podem exercê-la quando e onde (dentro da área geográfica de vários concelhos) quiserem, podem definir uma taxa mínima por quilómetro, podem bloquear comerciantes ou clientes com quem não desejam contactar/fazer entregas, assim como podem aceitar ou não a realização do serviço; ou seja, e dito de forma direta: os prestadores de atividade trabalham se, onde e quando quiseram, sendo eles a imporem algumas condições e sem que essa prestação, ou a sua recusa, esteja sujeita a controlo ou avaliação pela ré, que possa acarretar consequências para eles na relação de trabalho.
Além disso, exercendo alguns prestadores/estafetas outras profissões, com horário de trabalho completo, fazem as entregas em causa à noite e ao fim-de-semana, em “part-time”, e a maioria em simultâneo para outras empresas/plataformas, que também se dedicam a entrega de refeições na mesma área geográfica (prestam, portanto, em simultâneo a atividade para empresas da “concorrência”), não havendo sequer necessidade de na mochila que transportam constar o logotipo da ré; por isso, desconhece-se em absoluto se a atividade que prestam à ré, ainda que em “part-time”, assume caráter regular e periódico e se assume relevância na respetiva “vida” profissional.
Acresce que se podem fazer substituir por outra(s) pessoa(s) na realização das entregas desde que essa(s) pessoa(s) também tenham conta ativa na app como “Parceiro de Entrega Independente”.
Ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, afigura-se que face à concreta factualidade provada, a prestação da atividade não se enquadra, ou se se quiser não se “encaixa”, num contrato de trabalho, tal como definido com o artigo 1152.º do Código Civil e artigo 11.º do Código do Trabalho, apontando ao invés que o trabalho era prestado à ré com efetiva autonomia e que à mesma (ré) o que interessava era o resultado desse trabalho.
Nesta sequência, entende-se que se mostra ilidida a presunção de laboralidade, não se encontrando os prestadores de atividade sujeitos ao poder de direção e poder disciplinar da ré (cfr. n.º 4 do artigo 12.º-A) e, consequentemente, não se demonstrando a existência de contrato de trabalho entre cada um dos prestadores/estafetas objeto do recurso e a ré, impondo-se, pois, a improcedência deste.
5. Não são devidas custas, face à isenção de que goza o Ministério Público/recorrente (artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento de Custas Processuais, artigo 9.º do Estatuto do Ministério Público e artigo 186.º-K do Código de Processo do Trabalho).
V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas.
*
Évora, 16 de janeiro de 2025
João Luís Nunes (relator)
Paula do Paço
Emília Ramos Costa (votou vencida)
Declaração de voto de vencida:
Apesar de se concordar que se mostram verificadas as presunções de laboralidade prevista no art. 12.º-A, n.º 1, als. a), b) e e), do Código do Trabalho, discorda-se do entendimento maioritário quanto à não verificação da presunção prevista na al. f) desse mesmo artigo, bem como quanto à circunstância de se entender que as referidas presunções se mostram ilididas.
Quanto à verificação da presunção prevista na al. f) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho:
Diferentemente do que defendemos no nosso voto de vencida, proferido no acórdão de 07-11-2024, no âmbito do processo n.º 1625/23.1T8BJA.E1, que se mostra publicado no site www.dgsi.pt, no qual considerámos que esta presunção não se mostrava verificada, após aprofundada reflexão, entendemos que efetivamente a mesma se mostra verificada.
Na realidade e apesar do que consta na definição do n.º 2 do art. 12.º- A do Código do Trabalho (e transcrita no presente acórdão), entende-se que, sendo embora infeliz tal redação, onde tudo aparenta estar englobado (pessoa coletiva, a aplicação informática, o modo de organização nessa aplicação informática, que terá de pressupor um serviço à distância e a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento), efetivamente a pessoa coletiva que se dedica a uma determinada atividade, no caso a Ré, não pode ser confundida nem com os instrumentos que utiliza para o desenvolvimento da sua atividade, nem com a forma como organiza e gere esses instrumentos. O que a definição prevista no citado n.º 2 procura fazer é concretizar a atividade desenvolvida pelas empresas ou pessoas que se dedicam à atividade das plataformas digitais, já não confundir tais empresas ou pessoas com essa atividade e sobretudo excluir do conceito de equipamentos ou instrumentos de trabalho o software por aquelas utilizado. Atente-se que é nesse software que toda a atividade dos estafetas se mostra minuciosamente organizada (e será tanto menor a autonomia do estafeta quanto maior e mais precisa for a organização estabelecida nesse software), atribuindo, ainda, a Ré, a cada um dos estafetas, uma conta individual e intransmissível, sendo apenas através dessa conta, que lhe foi diretamente atribuída pela Ré, que o estafeta pode fazer login in na aplicação (veja-se a cláusula 5, m) do Contrato de Parceiro de Entregas Independentes, dado como integralmente reproduzido pelo facto provado 14).
Subscrevemos, assim, inteiramente o mencionado no voto de vencido proferido no acórdão de 07-11-2024 no âmbito do processo n.º 1625/23.1T8BJA.E1, publicado no site www.dgsi.pt, que transcrevemos:
Com efeito, não pode ser esquecido que os prestadores são obrigados a utilizar uma das ferramentas de trabalho mais poderosas inventadas pela humanidade, pertencente à Ré e desenvolvida para esta prosseguir o seu escopo económico: o algoritmo, por si criado, por si desenvolvido e por si administrado.
Na “Proposta de directiva relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais” – com o procedimento legislativo concluído no passado dia 14.10.2024, com a aprovação no Conselho Europeu, aguardando-se a sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia – escreve-se o seguinte no parágrafo 34 do Preâmbulo: “As plataformas de trabalho digitais têm uma visão completa de todos os elementos factuais que determinam a natureza jurídica da relação, em especial os algoritmos através dos quais gerem as suas operações. Por conseguinte, as plataformas de trabalho digitais deverão ter o ónus da prova quando alegam que a relação contratual em causa não é uma relação de trabalho.”
É através do algoritmo, alojado nos seus servidores, que a Ré gere toda a sua operação.
Por isso exige que os prestadores tenham um telemóvel com ligação à internet e descarreguem uma aplicação de acesso – para ser estabelecida a ligação permanente com os servidores da Ré onde está alojado o seu algoritmo – e que o sistema de geolocalização (GPS) esteja sempre activado (impondo sanções disciplinares caso seja interrompido o funcionamento da aplicação e do GPS).
Deste modo, a Ré tem absoluto controlo sobre a actividade do prestador.
É ela – através do seu algoritmo – quem recebe as propostas dos clientes, quem identifica quais os estafetas mais próximo para efectuar a entrega e lhes apresenta o serviço, quem identifica o prestador que aceitou a entrega, quem define a ordem das entregas, quem define o percurso a percorrer, quem define a taxa de entrega, quem procede à autofacturação, quem segue o percurso que o prestador toma, quem recebe as avaliações dos clientes, e quem exige o auto-retrato para detectar situações de partilha de contas.
O algoritmo é tão sofisticado, gere de forma tão eficaz as operações da Ré, que dispensa outras ferramentas de trabalho, como uniforme, terminais de pagamento (são feitos através da aplicação) ou meios de transporte pertencentes à plataforma.
Não são necessários, o que é relevante é que os prestadores estejam ligados aos servidores da Ré, com a internet e o GPS ligados em permanência, que o algoritmo fará a gestão de toda a actividade e a Ré atingirá o seu objecto lucrativo.
A este propósito, Pedro Santos – in “Qualificação contratual: o “estafeta” e a plataforma digital”, publicado no Prontuário de Direito do Trabalho, 2023-II, págs. 235-276, estando a passagem citada a págs. 262 – escreve o seguinte: “mesmo que todos os equipamentos e instrumentos de trabalho corpóreos sejam dos prestadores da actividade, existe um instrumento de trabalho que consideramos essencial, que é propriedade da plataforma digital. Esse instrumento de trabalho é a aplicação informática em que a plataforma se consubstancia e/ou utiliza e que permite o exercício de toda a actividade, constituindo a pedra angular de toda a organização desta. Não é só a aplicação que permite o desenvolvimento de toda a actividade, a angariação de clientes e pedidos, a conexão com os restaurantes e com os distribuidores e a organização de toda a actividade de entrega, mas, sobretudo, coloca na disposição da plataforma o conhecimento de toda a informação sobre o negócio e o controlo da informação, dos clientes, dos fornecedores e dos distribuidores.”
Enfim, porque para nós é uma evidência que os prestadores utilizam um instrumento de trabalho pertencente à Ré e essencial a toda a sua actividade, também esta característica está demonstrada.
Nesta conformidade, entendemos que também se mostra verificada a presunção prevista na mencionada al. f).
Assim, encontrando-se verificadas as presunções previstas nas als. a), b), e) e f) do art. 12.º-A do Código do Trabalho, consideramos ainda que tais presunções não se mostram ilididas pela Ré.
É verdade que se provou que os estafetas podem recusar as ofertas de entrega sugeridas pela APP; podem bloquear comerciantes ou clientes com quem não desejem trabalhar; podem escolher o período horário em que se ligam à plataforma; podem, dentro dos valores mínimos e máximos definidos pela Ré, decidir um valor mínimo remuneratório por quilómetro, abaixo do qual não pretendem aceitar ofertas de entrega; podem escolher a roupa com que se apresentam; podem não usar na mochila térmica, que é obrigatória, o logotipo da Ré; não estão sujeitos a avaliação da qualidade da sua atividade; podem ter outras profissões, inclusive em outras empresas que se dediquem à mesma atividade da Ré; podem fazer-se substituir por outra pessoa desde que esta também se encontre registada na APP da Ré; e utilizam veiculo de transporte, telemóvel e mochila que lhes pertencem.
Porém, aquilo que realmente interessa para apurar qual o tipo de relação contratual em apreço, não é o período em que dura a relação contratual entre os estafetas e a empresa que gere a plataforma digital ou se os estafetas podem ou não escolher o horário em que exercem a atividade; antes sim, que tipo de relação se estabelece a partir do momento em que aderem à plataforma digital. Assim, desde o momento em que fazem log in tudo é determinado e é feito em conformidade com as regras estabelecidas na empresa gestora dessa plataforma, deixando os estafetas de possuir qualquer autonomia. Na realidade, até as aparentes possibilidades de autonomia, resultam das cláusulas gerais tipo da empresa Ré, sobre as quais os estafetas não possuem qualquer poder negocial. É verdade que podem recusar as propostas que lhes surgem no écran do telemóvel ou bloquear comerciantes e/ou clientes, no entanto, não possuem qualquer controlo sobre as propostas que lhes são enviadas, nem controlam o critério desse envio, e apenas podem bloquear comerciantes e/ou clientes porque a Ré a isso os autorizou, sendo que quanto mais propostas recusarem ou quanto mais comerciantes e/ou clientes bloquearem, menos ganham. É verdade que os estafetas podem definir o valor da taxa mínima por quilómetro, no entanto, se tal taxa for muito elevada, terão acesso a menos oportunidades de trabalho, sendo que, mesmo quando definem uma taxa mínima (claro que dentro dos parâmetros fixados pela Ré), têm acesso na App às propostas de entrega por valores inferiores ao montante por eles fixados, de forma a que as possam aceitar (pelo que o critério mínimo aparentemente definido pelo estafeta não o impede de visualizar outras propostas que a Ré entenda indicar-lhe).
Acresce que o valor por quilómetro que os estafetas auferem não depende do tempo de demora na realização da tarefa ou do tempo de ligação do estafeta à App, o que faria sentido caso fossem verdadeiros prestadores de serviço, dependendo sim, pelo valor do quilómetro que dista entre o ponto de levantamento do pedido e o ponto de entrega do pedido, segundo o caminho indicado pela Ré no seu GPS (cláusula 6, c), do Contrato de Parceiros de Entregas Independentes), ou seja, é calculado apenas segundo os critérios da Ré.
De igual modo, apesar de os estafetas poderem vestir-se como entenderem, o recebimento de uma reclamação por incumprimento dos costumes locais e boas prática pode determinar, por parte da Ré, o direito a restringir o acesso e utilização da App por esse estafeta (cláusula 11, b) do Contrato de Parceiros de Entregas Independentes). É verdade que se deu como provado que não existem penalizações pelo modo como os estafetas realizam as suas entregas (facto provado 32), no entanto, mostrando-se tal cláusula subscrita pelos estafetas, nada impede a Ré de, querendo e sempre que assim o entender, a utilizar.
E se é verdade que a Ré não efetua o escrutínio sobre a experiência e qualificações académicas dos estafetas, bem como sobre as características pessoais e técnicas destes, não deixa de lhes exigir a apresentação de um conjunto de informações e documentos que são obrigatórias para o registo na aplicação e posterior exercício da respetiva atividade (cláusulas 5, b) e i) do Contrato de Parceiros de Entregas Independentes).
Existe ainda a possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outro estafeta, mas apenas porque a Ré os autoriza a tal, mas também aqui apenas por outro estafeta registado na plataforma, sendo que o outro estafeta terá de entrar com a sua própria conta e não com a conta do estafeta substituído, não se compreendendo, assim, qual possa seja a razão para que exista este tipo de substituição.
É verdade que podem se inscrever em plataformas concorrentes, mas quando estão a atuar nesta plataforma têm de respeitar as determinações e agir de acordo com os programas que constam dessa plataforma, pois de outra forma, não se conseguem ligar, não conseguem aceitar o pedido, não se conseguem deslocar entre o local da recolha e o local da entrega. E qualquer benefício que a Ré lhes conceda, uma vez que não foi pelos estafetas negociado, tem de constar da plataforma e os estafetas têm de seguir as orientações do programa para o obter.
Consta ainda da matéria factual que a Ré não efetua avaliação da qualidade da atividade dos estafetas, porém, isso não a impede de receber reclamações sobre o comportamento dos estafetas e, assim o entendendo, restringir-lhes o acesso e a utilização da App, notificando-os por escrito das razões para tal restrição (cláusula 11, b) do Contrato de Parceiros de Entregas Independentes). Daqui não parece resultar que os estafetas sejam sequer ouvidos sobre as reclamações apresentadas.
Por fim, apesar de ter resultado provado que o veículo de transporte, o telemóvel e a mochila térmica pertençam aos estafetas, é a Ré quem lhes impõe a especifica utilização destes instrumentos de trabalho.
Pelo exposto, é nosso entendimento que todos estes fatores, a que acresce toda a atividade que os prestadores têm de efetuar segundo o programa informático, ou seja, segundo as diretivas dadas pela Ré e que constam desse programa informático, é manifesto que estamos perante um poder de direção, onde existe uma inequívoca subordinação do prestador à empresa.
Acresce que se mostra também verificado o poder disciplinar da Ré para com os estafetas, conforme resulta do disposto nas cláusulas 11, b) e 16, b) do Contrato de Parceiros de Entregas Independentes, sendo que, neste último caso, a Ré, unilateralmente, sem prévio aviso e sem audição dos estafetas, pode vedar-lhes o acesso à APP, bastando, para o efeito, entre outras, que o estafeta tenha infringido as obrigações constantes do contrato (veja-se a cláusula 5) ou que tenha havido uma denúncia sobre a violação por parte do estafeta de ter agido de forma não segura ou de ter violado o contrato ou a legislação.
Pelo exposto, quanto aos cinco estafetas abrangidos pelo presente recurso, mostra-se verificada a existência de um contrato de trabalho, não só porque se verificam quatro presunções previstas no art. 12.º-A do Código do Trabalho, como também porque a Ré não conseguiu ilidir tais presunções, sendo evidente a subordinação jurídica dos estafetas a esta plataforma dominada e gerida pela Ré.
Conforme bem refere António Monteiro Fernandes, em “Emprego na era digital: um novo conceito de trabalhador”, Estudos APODICT 9, p. 244:
Com efeito, a plataforma digital envolve “uma delegação ou transferência da execução imediata do controlo da prestação de trabalho para o algoritmo e para os clientes, que avaliam os resultados do serviço através da aplicação”. Mas trata-se de uma máscara que disfarça o exercício da direcção e controlo do trabalho pela empresa criadora e gestora da plataforma – ou, se se preferir, uma “nova face” de um velho esquema que é o da subordinação jurídica. Essa nova face pode, quando muito, aconselhar que o elenco dos indícios de subordinação seja enriquecido e afinado.
Assim, e em conclusão, declararia a existência de contrato de trabalho relativamente a estes cinco estafetas.
Évora, 16 de janeiro de 2025
Emília Ramos Costa
Sumário elaborado pelo relator (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
1. Relator: João Nunes; Adjuntas: (1) Paula do Paço, (2) Emília Ramos Costa.↩︎