DOMÍNIO PÚBLICO
LOTEAMENTO URBANO
MATÉRIA DE FACTO
Sumário

- na expressão «A área de 1.430 m2 objeto da presente ação quanto ao pedido de acessão industrial imobiliária, nos termos do loteamento do prédio que deu origem ao condomínio prédio CC, faziam parte da área de concessão ao município e logo integrava à data o domínio público municipal», fixada por acordo das partes, a menção à integração da área de concessão no domínio público municipal não pode valer como facto.
- também não pode valer como acordo vinculante sobre questão prejudicial porque tal acordo vinculativo não é processualmente admissível.
- também não pode valer como forma de confissão de factos subjacentes pois estes não foram alegados nem descritos.
- e também não pode valer como reconhecimento de direito (ou, mais latamente, de situação jurídica) a que se aplicaria o regime do art. 458º do CC pois falta a alegação dos factos da relação fundamental, alegação necessária ao funcionamento daquele regime.
- à cedência de parcelas de terreno em loteamento provado em 1974 não se aplica o regime do art. 44º n.º3 do RJUE, na redacção do DL 177/2001, de 04.06, aplicando-se o regime do DL 289/73, de 06.06, do qual não decorre que tais parcelas se integram necessariamente no domínio público municipal, pelo que esta integração dependerá das circunstâncias que a revelem.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

I. A presente acção foi intentada por AA e BB, enquanto proprietários e administradores do Condomínio do Edifício CC em ..., contra o Município de .... e Inframoura – Empresa de Infraestruturas de V…., E.M., pedindo a sua condenação:


I- A reconhecerem os Autores (AA) como proprietários respetivamente das frações “DB” e “AN” do Edifício CC, descrito na Conservatória do Registo Predial de L... sob o n.º ...6.../1988, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …..4º da freguesia de ..., concelho de ..., o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno integrada no logradouro do citado EdifícioCC, com a área de 1.430 m2, onde foi construído, em ..., pela Fogesti – Fomento e Gestão Imobiliária, S.A, a vendedora das frações, no âmbito da licença de construção n.º 2616 de .../.../1988, um court de ténis, um parque de estacionamento e uma zona ajardinada, como fazendo parte integrante do prédio denominado Edifício CC, tal como se encontra construído e delimitado desde o início da sua construção/incorporação;


II- A reconhecerem que os Autores e todos os demais comproprietários do referido Edifício CC adquiriram a mencionada parcela por acessão industrial imobiliária, nos termos do artigo 1.340º do Código Civil, por nela terem sido incorporadas, de boa-fé, as benfeitorias nela efetuadas no valor de Esc. 11.651.272$00 (58.116,30 Euros), sendo que o terreno onde se verificou essa incorporação tinha, à data de ..., o valor de Esc. 3.317.715$00 (16.548,69 Euros), quando foi concedida a licença de utilização do edifício;


III- A reconhecerem que uma área de construção com 388 m2, pertencente ao prédio descrito sob o n.º ...6.../1988 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia de ..., concelho de ..., do lado nascente do prédio em que confina com a ..., incluída no registo predial na sua área total de 4.192 m 2, encontra-se afeta ao domínio público da responsabilidade dos Réus desde ..., com o valor de aquisição pelo construtor em ..., no montante de Esc. 18 511 451$00 equivalente a 92.334,72 Euros;


IV- Por via disso, a reconhecerem que o prédio denominado Edifício CC tem a área total de 5.234 m2, (4.192 m2 – 388 m2 + 1.430 m2) tal como se encontra delimitado, ordenando-se a correção de área do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de L... sob o n.º ...6.../1988, para a citada área de 5.234 m2, por corresponder à totalidade da área do edificado e como tal delimitado, do denominado Edifício CC,


Alegaram para tanto, no que por ora mais interessa para delimitar a pretensão, que:


- são proprietários de fracções de prédio constituído em propriedade horizontal.


- o prédio foi construído em lote do qual o então proprietário, na sua demarcação, deixou de fora da área de construção uma parcela com 388m2, parcela esta que foi usada para estacionamento público e está, desde a construção do edifício, no domínio e fruição pública.


- o prédio foi objecto de licença de construção e de licença de utilização e tem, desde a construção, a configuração que tem hoje.


- na parte poente do lote, numa parcela com a área de 1.430 m2, a proprietária procedeu à construção de um court de ténis e um parque de estacionamento automóvel, realizando o arrelvamento da área circundante, na convicção de que se tratava de terreno da sua propriedade.


- as obras e implantações realizadas têm valor superior ao valor da parcela.


- o pagamento do preço pela incorporação da parcela com 1.430m2 no logradouro do prédio do Edifício CC resultou da compensação com a parcela do lote, destinada a construção urbana, com a área de 388m2.


O Município de .... contestou invocando a necessidade de o Condomínio assumir a qualidade de A.; e a autoridade de caso julgado derivada de anterior acção onde improcedeu pretensão aquisitiva da parcela em causa com base na usucapião. Também impugnou a alegação dos AA. e sustentou que estes estariam a litigar de má fé.


A ………-Empresa de Infraestruturas de V……., E.M., também contestou, tendo invocado a autoridade do caso julgado, impugnado a versão dos AA. e sustentado que estes litigariam de má fé.


Os AA. responderam, sustentando que o condomínio não estaria na causa, não ocorreria a autoridade de caso julgado e nem existiria litigância de má fé.


Realizada a audiência prévia, ficou consignado que «As Partes estão de acordo que os 1.430 m2 objeto da presente ação quanto ao pedido de acessão industrial imobiliária, nos termos do loteamento do prédio que deu origem ao condomínio prédio CC, faziam parte da área de concessão ao município e logo integravam à data o domínio público municipal».


Foi depois proferido despacho nos seguintes termos:


«Considerando a factualidade que está assente, o Tribunal pondera proferir Saneador-Sentença nos autos, nos seguintes termos:-


a). Considerar que o Condomínio CC não é parte nesta ação, por não ter sido demandada e por o mesmo não ter personalidade judiciária relativamente aos pedidos nos autos;-


b). Considerar que não se verifica uma situação de autoridade de caso julgado, por a causa de pedir e o pedido serem distintos dos apreciados no processo n.º 2014/19.8...;-


c). Por entender que não pode haver acessão industrial imobiliária de prédios integrantes no domínio público municipal e por considerar que uma parcela de terreno só pode integrar domínio municipal em caso de tal circunstância resulte da lei expressa ou eventualmente expropriação, o que não ocorre na situação relativamente aos 388 m2.


Notifique as Partes para, querendo, se pronunciarem nos termos do n.º3, do art.º 3.º do C. Processo Civil.»


Foi ainda fixado prazo para resposta, tendo também as partes prescindido da continuação da audiência prévia, salvo se os autos prosseguissem para julgamento.


Os AA. apresentaram requerimento juntando Acórdãos do STJ, e, discutindo «a viabilidade de se verificar a possibilidade de transferência de parcelas do domínio público municipal, no âmbito de loteamento», invocam a acessão na posse tal como qualificada num dos acórdãos citados, e ainda o facto de, sem prova do uso a que a câmara municipal destinou parcela cedida, não se poder concluir que a parcela ingressou no domínio público municipal (tal como o mesmo acórdão sustenta). Invocando também outro acórdão, na definição do que seja a boa fé ou a autorização, para efeitos de acessão, sustentam, face ao despacho proferido pela Mma. Juíza «que entendeu não poder haver acessão industrial imobiliária de prédios integrantes no domínio público municipal e, por considerar que uma parcela de terreno só pode integrar o domínio municipal em caso de tal circunstância resultar da lei expressa ou eventualmente expropriação, o que não ocorre na situação relativamente aos 388 m2, apesar do referido acórdão considerar não ser exigível que a transferência se baseie em ato (translativo) formalmente válido», entendeu ser necessário alterar o pedido.


Para tanto, alegou ainda, em resumo, que:


- adquirido o lote de terreno, nele foi construído edifício, depois constituído em propriedade horizontal, e cuja implantação e alinhamento foi condicionado pelo Município de .... pela licença de construção (tendo depois obtido licença de utilização).


- tendo ocorrido, além do lote, a construção de estacionamento exterior coberto, contíguo ao edifício, e a construção de um court de ténis, também contíguo ao edifício, com um excedente de área de construção útil de 829m2 sobre o domínio público, sendo a área total ocupada de 650m2 para a zona do parque de estacionamento e de 770m2 para a zona do court de ténis.


- obras estas efectuadas pelo construtor de boa-fé, porque foi por imposição do Município de ...., que condicionou o licenciamento da construção à implantação e alinhamento que tem.


- pelo que não pode o Município prevalecer-se desse facto para extrair benefícios.


Pretendeu assim, na parte útil, que se reconhecesse que os AA. adquiriram o direito às benfeitorias correspondentes às construções realizadas na área excedente à área do lote, efectuadas por imposição do Município e que os RR. Que os Réus Município de .... e Empresa de Infraestruturas de V... E.M. não podem prevalecer-se desse facto para desses espaços extraírem benefícios que não lhes foram concedidos, nomeadamente a imposição de taxas de ocupação.


O R. Município pronunciou-se, salientando que os AA. tinham aceitado que a parcela se integrava no domínio público municipal, sendo-lhe inaplicável a solução do acórdão invocado, e opondo-se à pretendida alteração do pedido.


A R. Empresa de Infraestruturas de V... E.M. também se pronunciou, sublinhando igualmente que o bem em causa se integra no domínio público municipal e opondo-se também à pretendida alteração do pedido.


Alegando responder às excepções suscitadas pelos RR., os AA. apresentaram articulado no qual, remetendo para a sua alegação na PI, afirmam não abandonar o entendimento de que é possível a aquisição da propriedade da referida parcela de terreno de 1430m2 por acessão industrial imobiliária, «como é seu pedido», sustentando que «a parcela nunca entrou na dominialidade pública do Réu Município, por este, efectivamente, nunca a haver destinado a um qualquer fim público», tendo ainda promovido nova alteração dos pedidos, passando agora a aditar aos pedidos formulados na PI os pedidos de reconhecimento de que anterior proprietário procedeu à construção do court de ténis e do parque de estacionamento automóvel, executou a sua vedação e realizou o arrelvamento da área circundante, com o conhecimento e aprovação do Réu Município de ...., e reconhecimento que o Réu Município de .... nunca realizou na parcela de 1430 m2 qualquer obra ou benfeitoria, nunca a destinou à realização de qualquer arruamento ou área de lazer, que nunca deliberou fazer uso da mesma para a concretização de quaisquer fins públicos ou privados.


Foi determinada a junção de documentos e, juntos, os AA. pronunciaram-se e opuseram-se ao requerimento de junção do R. Município.


Foi depois decidido:


- não se admitir a alteração do pedido;


- fixar-se o valor da acção no valor constante da PI;


- verificar tabelarmente as condições processuais da acção mas esclarecendo-se que o Condomínio não era parte na acção,


- avaliar o mérito da acção, tendo-se, nesta avaliação, fixado os factos pertinentes, excluído a verificação da autoridade do caso julgado (qualificada como excepção dilatória), e julgado não admissível a aquisição da parcela de 1.430 m2 pelos AA. por estar em causa parcela integrada no domínio público municipal, e bem assim não poder considerar-se integrada no domínio público do R. Município a parcela de 388 m2. Excluiu igualmente a existência de litigância de má fé.


Em consequência, foram os RR. absolvidos dos pedidos.


É desta decisão que vem interposto o presente recurso, no qual os AA. formulam as seguintes conclusões:


I- Diverge-se frontalmente da douta sentença que julgou improcedente a ação interposta pelos Autores agora recorrentes e que, consequentemente absolveu os Réus Município de .... e Empresa de Infraestruturas de V... E.M. dos pedidos deduzidos;


II- Com efeito, a douta sentença errou de facto e de direito;


III- Errou de facto, porque dispensando-se de concretizar e relevar a factualidade fundadora dos pedidos e que os Autores, agora recorrentes, formularam e concernentes à verificação de uma acessão industrial imobiliária, reduziu o campo de apreciação a que estava obrigada a apreciar;


IV- Errou de direito ao produzir a afirmação “as áreas de cedência de uma operação de loteamento integram o domínio público municipal, visando a salvaguarda de interesse público, pelo que não podem ser objeto de comércio, nem adquiridas por particulares por acessão industrial imobiliária ou usucapião, pelo que os Autores (ora Recorrentes) não podem adquirir a propriedade de uma parcela de terreno integrada no logradouro do citado edifício CC com a área de 1.430m2”, não possuindo ela fundamento legal;


V- A sentença de que se recorre desconsiderou completamente as datas em que os factos ocorreram, não relevou o contexto legal vigente no momento em que se verificaram;


VI- Aquela procedeu à apreciação e análise jurídica da situação em apreço na petição dos Autores, decidindo os pedidos deduzidos à luz da legislação atualmente em vigor, ou seja, como se eles tivessem acontecido no domínio do Decreto-Lei n.º 177/2001, e que alterou o n.º 3 do art.º 44.º do Decreto-Lei n.º 555/99 de 16/12;


VII- Na verdade, os factos vertidos na petição têm se ser examinados sob o domínio da legislação então em vigor sobre as operações de urbanização e loteamentos, considerando o que a mesma previa sobre a cedência de áreas à Câmara Municipal de L...;


VIII- É que a parcela de terreno em causa na presente ação chegou à titularidade registral da Câmara Municipal de L... por via de uma operação de urbanização e loteamento, sendo neste âmbito que se deverá apreciar a questão da natureza da mesma;


IX- Na altura da emissão do alvará de loteamento, conforme vertido na petição inicial, nenhuma escritura de transmissão foi realizada, afastando-se, então, do que estava previsto no Código de Notariado – art.º 89.º alínea a);


X- Ou seja, não ficou a parcela a integrar o domínio patrimonial público da Câmara Municipal de L...;


XI- Mutatis mutandis, convoca-se o que ficou exarado no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/03/2017, Proc. 1215/12.4TBVVD.G2, “I – No domínio de aplicação do regime jurídico das operações de loteamento urbano consagrado no Dec.-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro, a transferência para o domínio público (e também para o domínio privado) municipal, da propriedade das parcelas de cedência obrigatória, teria de ser feita por escritura pública, nos termos do então disposto na alínea a) do art.º 89.º do Código do Notariado. II – Tendo sido aprovado o loteamento e emitido o alvará de licenciamento respectivo, que foi publicitado e registado sem que tenha sido celebrada a escritura pública, as áreas de terreno aí indicadas como afectas ao uso directo e imediato do público não podem ter-se por excluídas do comércio jurídico, podendo ser objecto de direitos privados.”.


XII- Por outro lado, na altura da emissão do alvará de loteamento, as áreas a ceder aos municípios pelo agente realizador da operação de urbanização e loteamento podiam integrar o património público ou privado municipal, inexistindo a obrigatoriedade legal que agora existe.


XIII- E posteriormente, até ao agente loteador foi permitido o exercício da reversão nos termos previstos no Código das Expropriações.


XIV- Por outras palavras, porque as parcelas em causa na ação não integram o património público da Câmara Municipal de L..., portante do Município de ...., as mesmas podem ser objeto de usucapião, podendo ser objeto de acessão industrial imobiliária, justamente ao invés do asseverado na sentença recorrida, podendo ser adquirida nos termos pugnados pelos Autores a propriedade de uma parcela de terreno integrada no logradouro do edifício CC com a área de 1.430m2 bem identificada na petição inicial, podendo também a área de 388m2 ser incorporada no domínio público da responsabilidade dos Réus desde ....


XV- Então, e percorrendo a esclarecida jurisprudência citada e a vertida, por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12/07/2023 no âmbito do Processo n.º 4724/18.8T8MTS.P1, a sentença errou na apreciação jurídica que concretizou: violou o disposto no art.º 595.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil pois que a decisão da causa não depende apenas da aplicação e interpretação de normas jurídicas, havendo necessidade de produção de prova para fixação de demais matéria de facto vertida na petição inicial.


XVI- Como violou, ainda, o disposto no artigo 202.º, n.º 2 e 1340.º, ambos do Código Civil, e o artigo 89.º, alínea c) do Código de Notariado, e ainda o previsto no artigo 47.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31/12, e 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29/11.


O R. Município respondeu, sustentando que: face ao incumprimento do regime do art. 640º do CPC, o recurso deverá improceder pois os AA. limitam-se a afirmar a sua discordância com os factos provados e não provados; que os AA. parecem invocar novos fundamentos, designadamente o facto das áreas de cedência ao Município não terem sido (alegadamente) precedidas da outorga de escritura pública, questão esta não colocada na PI e que não pode ser considerada ex novo em sede de recurso; e que tal questão foi objecto de avaliação no proc. 2014/19.8...-E1, devendo manter-se o entendimento aí perfilhado. Invocam ainda factos provados naquele proc. 2014/19 quanto a deliberações dos condóminos que reconheceram a natureza pública da parcela.


A R. Empresa de Infraestruturas de V... E.M. também respondeu, considerando que a matéria de facto foi devidamente fixada e a impugnação dos AA. deve ser rejeitada por incumprimento do art. 640º do CPC, e que deve ser mantida a decisão de mérito por ser consequência da matéria de facto demonstrada.


Atenta a invocação do regime do art. 640º do CPC, notificados, os AA. sustentaram, na parte relevante, que não intentaram verdadeira impugnação da matéria de facto para os termos do art. 640º do CPC. Aproveitaram para tecer ainda novas considerações jurídicas, as quais excedem o âmbito do contraditório facultado e constituem por isso aproveitamento indevido do acto processual, a não atender.


II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».


Assim, atendendo aos termos do recurso, e à forma como estes são depois sintetizados nas conclusões, verifica-se que os AA., entendem primacialmente que, das parcelas em causa, a parcela destinada ao município mas que se mostra ocupada pelos AA. e outros não integraria o domínio público do Município de ...., sendo passível de aquisição por acessão industrial imobiliária, o que implicaria que fossem discutidos os factos que os AA. alegam para sustentar essa aquisição (não discutem a titularidade da parcela, antes da acessão, mas apenas a sua integração no domínio público). É esta, pois, a questão a avaliar.


Liminarmente, cabe esclarecer que, independentemente do mérito da alegação, a questão de forma constitui questão de conhecimento oficioso, inerente à avaliação do mérito da acção (inexistindo por isso preclusão relevante).


III. Foram tidos por assentes os seguintes factos:


1) Por escritura pública de ... foi constituído em propriedade horizontal o bloco de apartamentos construído no Lote N2, do sector 1-A, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., denominado Edifício CC, o qual foi descrito na Conservatória do Registo Predial de L... sob o n.º ...6.../1988, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o artigo 9374º, composto por edifício de cave, rés-do-chão, 1.º a 7.º andar e logradouro com piscina, a confrontar a norte com lote N1, a sul com lotes N3 e N4, a nascente e poente com terrenos da Câmara Municipal de L..., com a área total de 4.192 m2, sendo área coberta 2.968 m2 e área descoberta 1.224 m2, conforme documentos nos 1 e 2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


2) O lote N2 do sector 1-A, sito em ..., da freguesia de ..., onde foi construído o edifício denominado CC, era propriedade da sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A., o qual foi licenciado através do alvará de loteamento n.º 3/74, emitido pela Câmara Municipal de L... em ........1974.


3) Em .../.../1982 a referida sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. requereu junto da Câmara Municipal de L... aprovação para as obras de construção do referido edifício Y1, a implantar no referido lote de terreno, a que coube o processo de obras n.º 79/82.


4) Em .../.../1988 a Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. requereu autorização para iniciar as escavações e fundações, o que lhe foi concedido, tendo então procedido à delimitação, marcação e vedação do citado lote, aliás como os demais.


5) Por escritura pública de compra e venda datada de ........1988, a sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. declarou vender à sociedade Fogesti – Fomento e Gestão Imobiliária, S.A., que declarou comprar, pelo preço de Esc. 200.000.000$00, o referido lote de terreno com o projeto de construção.


6) Tendo sido concedida pelo Município de .... à sociedade Fogesti – Fomento e Gestão Imobiliária, S.A. a respetiva licença para obras n.º 2616 de .../.../1988, pelo valor de Esc. 1.744.860$00, conforme documento n.º 3, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


7) DD, com intervenção principal da Imorolux – Sociedade Imobiliária Lda, ambos na qualidade de condóminos do Edifício CC, intentaram contra os ora Réus, a ação n.º 2014/19.8... do J3 do Juízo Cível do Juízo Central Cível de Faro do Tribunal da Comarca de Faro, nos termos da qual peticionam que seja reconhecido judicialmente por sentença a proferir nos autos que o parque de estacionamento exterior, o court de ténis confinante com o mesmo e o espaço relvado com cerca de 300 m2, compreendido entre a piscina exterior do edifício, por um lado, e o court de ténis e o parque de estacionamento exterior, por outra banda, são partes comuns do Edifico CC por, desde ... de ... de 1995 até à presente data, terem sido usados e fruídos pelo autor e demais condóminos, de forma ininterrupta, pública e pacifica, na plena convicção de que tais espaços pertenciam e eram partes comuns do Edifício CC”, por assim terem sido apresentados pelo agente imobiliário que intermediou a venda da fração “N” de tal edifício ao autor, posse que vem sendo exercida nos termos atrás descritos, de tais espaços pelo autor e demais condóminos, embora não esteja titulada, já perdura há muito mais de 20 anos, termos em que tais espaços, atento o disposto, conjugadamente, nos artigos 1291º, 1287º, 1288º, 1289º, 1293º “a contrário” e no artigo 1294º, al. b), todos do Código Civil, devem ser considerados usucapidos pelo autor e demais condóminos do Edifício CCe, em consequência, devendo ser retificada a descrição predial n.º 2764/19880804 da Conservatória do Registo Predial de L..., freguesia de ..., por forma a que passem a constar como partes comuns do Lote N 2 do Sector 1 A – “CC – Edifício Y 1”, sito em ..., o parque de estacionamento exterior, o court de ténis e a faixa relvada com cerca de 300 m2, confinante com estes e com a piscina exterior, e corrigida a menção à área descoberta constante de tal descrição, que deverá ser alterada de 1224 m2 para 2.654,65 m 2, conforme documento n.º 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


8) A ação n.º 2014/19.8... do J3 do Juízo Cível do Juízo Central Cível de Faro do Tribunal da Comarca de Faro foi julgada totalmente improcedente, por decisão transitada em julgado, constando da sentença da 1ª instância:


“Fundamento de facto - provados


1- A sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. era proprietária de um lote de terreno, para construção urbana, designado por Lote N2, do sector 1-A, sito em ..., o qual se encontra licenciado pelo alvará de loteamento n.º 3/74, emitido pela Câmara Municipal de L... em ........1974- cf. doc. de fls. 213/215, cujo teor se dá por reproduzido.


2- Em ........1982 a sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. requereu junto da Câmara Municipal de L... aprovação para as obras de construção do edifício Y1, situado no referido lote de terreno, a que coube o processo de obras n.º ...- cf. doc. de fls. 103/210, cujo teor se dá por reproduzido.


3- Em .../.../1988 requereu autorização para iniciar as escavações e fundações- cf. doc. de fls. 103/210 e 34vº, cujo teor se dá por reproduzido.


4- Por escritura pública de compra e venda datada de ........1988, a sociedade Lusotur – Sociedade Financeira de Turismo, S.A. declarou vender à sociedade Forgesti – Fomento e Gestão Imobiliária, S.A., que declarou comprar, o referido lote de terreno- cf. doc. de fls. 213/215, cujo teor se dá por reproduzido.


5- No qual esta sociedade construiu um bloco de apartamentos, com 142 fogos destinados a habitação, 2 ocupações destinadas a serviços, 2 para comércio e 1 para comércio ou indústria- cf. doc. de fls. 103/210, cujo teor se dá por reproduzido.


6- Em ........1989 a Câmara Municipal de L... deliberou “por unanimidade e em minuta, exigir em todas as construções a levar a efeito no Concelho, nos prédios com mais de 3 pisos, espaço destinado a estacionamento correspondente a um auto por fogo e um auto por cada 60 m2 de construção para outros fins. Mas foi deliberado, por unanimidade e em minuta, que todos os espaços destinados a esse fim integrado na própria construção ou em logradouro, será pertença do condomínio, não sendo permitidas quaisquer divisórias”- cf. doc. de fls. 33, cujo teor se dá por reproduzido.


7- Por escritura pública de ... foi constituído em propriedade horizontal o bloco de apartamentos construído no Lote N2, do sector 1-A, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., denominado Edifício CC- cf. doc. de fls. 241/289, cujo teor se dá por reproduzido.


8- O qual foi descrito na Conservatória do Registo Predial de L... sob o n.º ...6.../1988, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., sob o art.º ..., composto por edifício de cave, rés-do-chão, 1.º a 7.º andar e logradouro com piscina, a confrontar a norte com lote N1, a sul com Lotes N3 e N4, a nascente e poente com terrenos da Câmara Municipal de L..., com área total de 4192m2, sendo área coberta 2968m2 e área descoberta 1224m2- cf. fls. 28/32, cujo teor se dá por reproduzido.


9- Em ........1993 foi emitido alvará de licença de utilização n.º ..., cf. doc. de fls. 28/32 e fls. 132, cujo teor se dá por reproduzido.


10- O autor e a interveniente são proprietários de frações autónomas do referido prédio urbano- cf. doc. de fls. 11/12 e 64/66, cujo teor se dá por reproduzido.


11- Em data não concretamente apurada, foi edificado um court de ténis, que ocupa uma área de 512m2, contígua ao edifício, com a configuração constante do doc. de fls. 306vº, cujo teor se dá por reproduzido.


12- E um parque exterior de estacionamento, que ocupa uma área de 317m2, contígua ao edifício, com a configuração constante do doc. de fls. 306v.º, cujo teor se dá por reproduzido.


13- Em ambos os lados da entrada do parque de estacionamento exterior estiveram colocados dois sinais com indicação de parque privado, um cadeado com corrente e uma cancela, os quais limitavam o acesso de terceiros estranhos ao condomínio.


14- Entre esse parque de estacionamento exterior, o court de ténis e o edifício e piscina exterior existe uma extensão de relvado com aproximadamente 300 m2, onde se encontram implantadas quatro palmeiras, com a configuração constante do doc. de fls. 306v.º, cujo teor se dá por reproduzido.


15- Esse court de ténis, o estacionamento exterior e o relvado sempre estiveram vedados e separados da via pública por rede e sebe viva.


16- Sendo tratados pelo condomínio e utilizados pelos condóminos do Edifício CC, os quais suportam os custos com a sua manutenção, com a câmara de vigilância do parque de estacionamento exterior e com a iluminação do court de ténis.


17- Desde pelo menos ... até aos dias de hoje, à vista de todos e sem oposição, com a convicção de que pertencem ao edifício CC.


18- Por documento particular, datado de ........2018, denominado contrato-programa, foi acordado entre a Câmara Municipal de L... e a Empresa de Infraestruturas de V... E.M. que esta assumia a gestão e manutenção de infraestruturas na área de ... e Passeio das Dunas, nomeadamente a construção, gestão e manutenção de redes viárias principais e secundárias, espaços verdes, sistema de drenagem de águas pluviais, rede de iluminação pública, estacionamento público e limpeza urbana, bem como a cobrança de tarifa relativa à qualidade das infraestruturas e ambiente e a fiscalização do espaço público- cf. doc. de fls. 217/221, cujo teor se dá por reproduzido.


19- A Empresa de Infraestruturas de V... E.M. enviou à administração do condomínio do Edifício CC carta datada de ........2018, na qual identificava a área utilizada pelo condomínio para parque de estacionamento e court de ténis como pertencente a área pública e fora do lote, reclamando o pagamento de taxa de ocupação da área de 1430,65m2, do valor anual de €51.657,08- cf. doc. de fls. 16, cujo teor se dá por reproduzido.


20- Na Assembleia Geral de Condóminos do Edifício CC de ........2018 foi deliberado, por maioria, a entrega da parcela de terreno por alegadamente integrar domínio público- cf. doc. de fls. 56v.º/58, cujo teor se dá por reproduzido.


21- Na Assembleia Geral de Condóminos do Edifício CC de ........2019 foi deliberado, por maioria, a remoção do parque de estacionamento externo e do court de ténis e a celebração de um acordo com a Empresa de Infraestruturas de V... E.M. para permitir a utilização destes espaços mediante o pagamento de uma taxa de ocupação com um teto de €11.000,00- cf. doc. de fls. 17/25v.º, cujo teor se dá por reproduzido.


22- Na Assembleia Geral Extraordinária de Condóminos do edifício CC de ........2019 foi deliberado, por maioria, a revogação das deliberações tomadas nas assembleias de condóminos de ........2018 e de ........2019 referidas em 20. e 21.- cf. doc. de fls. 79/83, cujo teor se dá por reproduzido.


23- Em data não apurada, foi retirada a cancela que vedava o acesso ao parque de estacionamento exterior, por indicação da administração do condomínio exercida pela sociedade “Condomoura”.


24- Existe uma área de 388m2 localizada à face da ..., a qual integra o lote de terreno N2, com a configuração constante do doc. de fls. 306v.º, cujo teor se dá por reproduzido.


25- A qual não se encontra vedada e é utilizada por todos aqueles que por ali passam, a qual foi objeto de intervenção/requalificação no ano de ... pela Empresa de Infraestruturas de V... E.M..


26- As áreas em que se encontram edificados o parque de estacionamento, o court de ténis e o relvado integram áreas de cedência ao Município de ...., conforme planta de síntese junta com o alvará de loteamento n.º ....”.


9) Na ação n.º 2014/19.8... do J3 do Juízo Cível do Juízo Central Cível de ... do Tribunal da Comarca de ... foram considerados não provados os seguintes factos:


a) a deliberação da Câmara Municipal de L... de ........1989 identificada em 6. foi tomada no processo de obras n.º 79/82 referente ao Edifício CC e deliberou que o parque de estacionamento exterior do condomínio a construir nas suas traseiras seria pertença do mesmo;


b) a “Fogesti- Fomento e Gestão Imobiliária, S.A.” acordou com a Câmara Municipal de L... a troca da faixa de terreno a nascente, sita entre o prédio implantado e a ..., com os terrenos sitos na traseira do lote, onde construiu o parque de estacionamento, o campo de ténis e parte do relvado que circunda a piscina;


c) o lote de terreno N2 possui uma área total descoberta de 2654,65 m2;


d) a Inframoura- Empresa Municipal, E.M. sempre reconheceu o parque de estacionamento exterior como pertencendo ao Edifício CC.


10) A área de 1.430 m2 objeto da presente ação quanto ao pedido de acessão industrial imobiliária, nos termos do loteamento do prédio que deu origem ao condomínio prédio CC, faziam parte da área de concessão ao município e logo integrava à data o domínio público municipal.


IV.1. O R. Município e a R. Empresa de Infraestruturas de V... E.M. colocam, ambos, a questão da falta de cumprimento pelos AA. dos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto constantes do art. 640º do CPC, o que justificaria a rejeição de tal impugnação (rejeição esta que a R. Empresa de Infraestruturas de V... E.M. expressamente invoca).


Sucede que os AA. não impugnaram nenhum dos factos tidos por assentes (e não foram descritos factos não provados, por isso também não impugnados). Eles referem, na verdade, que a decisão recorrida errou de facto, mas, como expressamente também referem, tal ocorre não porque aquela decisão deu como assentes factos que não estariam demonstrados (ou vice-versa) mas porque não atendeu aos factos que os AA. alegaram quanto à verificação da acessão industrial imobiliária. E, nesta parte, os AA. também não os consideram demonstrados, caso em que se poderia colocar a questão da aplicação daquele art. 640º do CPC, fazendo antes assentar o «erro de facto» que invocam na circunstância de entenderem que tais factos deveriam ser discutidos (justamente por não ocorrer o obstáculo à sua consideração decorrente da integração da parcela no domínio público). É manifesto, assim, que os AA. não desencadearam uma impugnação factual, relevante no quadro do art. 640º do CPC, que possa, ou deva, ser rejeitada.


2. Atendendo à posição dos AA., estão em causa duas parcelas. Uma, com 1.430 m2 (doravante parcela 1), que seria objecto de cedência ao Município no âmbito do loteamento realizado, e que, não fazendo assim parte do seu lote, foi ocupada (com court de ténis, parqueamento e relvado) aquando da construção do edifício de que os AA. são condóminos. Outra, com 388 m2 (doravante parcela 2), que pertenceria ao lote mas que não foi ocupada nem pela construção do edifício nem por equipamentos anexos, sendo usada pelo público em geral.


Pese embora os AA. falem indistintamente nas duas parcelas, e na verdade as invoquem em conjunto, elas encontram-se em situações diversas.


3. Quanto à parcela 1, a que os AA. pretendem ter direito por acessão industrial, a decisão recorrida excluiu a viabilidade desta pretensão por aquela parcela estar integrada no domínio público municipal. Esta asserção vem discutida pelos AA. essencialmente a partir do regime legal que seria aplicável.


4. Não obstante, e em momento prévio à discussão sobre o regime legal a aplicar, verifica-se que dos factos provados consta que «A área de 1.430 m2 objeto da presente ação quanto ao pedido de acessão industrial imobiliária, nos termos do loteamento do prédio que deu origem ao condomínio prédio CC, faziam parte da área de concessão ao município e logo integrava à data o domínio público municipal».


Esta descrição deriva de acordo das partes, através dos seus mandatários (mas com a presença dos AA.), alcançado na audiência prévia. É especialmente relevante o seu segmento final, onde se diz que a área em causa: i. fazia(m) parte da área de concessão ao município e ii. logo integrava à data o domínio público municipal.


A primeira parte desta afirmação (ponto i.) é descritiva da inserção da parcela 1 na área de cedência prevista no loteamento. A segunda parte (ponto ii.) reporta a inserção daquela parcela no domínio público municipal. Esta inserção leva implícita a prévia transferência do domínio sobre a parcela dos titulares do prédio loteado para o Município, mas tal transferência não era realmente discutida pelas partes (apenas surge, e de forma algo ambígua, no recurso). A integração da parcela no domínio público municipal é que está no cerne da decisão recorrida.


5. A referida segunda parte da descrição em causa poderia ser encarada como um facto (tal como fez a decisão recorrida, ao menos quando a incluiu no elenco de factos assentes), mas não parece que tal seja admissível.


A integração de uma parcela de terreno no domínio público depende de duas circunstâncias: que tal parcela tenha passado a integrar o domínio de um ente público; e, em especial, que exista um título que determine que tal parcela se integre no domínio público (por oposição ao domínio privado). Do art. 84º n.º1 al. f) e 2 da CRP deriva que, para imóveis como o presente (1), a sua inserção no domínio público é deferido para regulamentação legal. O DL 280/2007, de 07.08, prevê que os imóveis do domínio público sejam os que assim sejam classificados pela Constituição ou por lei, individualmente ou mediante a identificação por tipos (art. 14º). Sucede que, para além do elenco do referido art. 84º n.º1 da CRP, inexiste uma classificação legal abrangente dos bens que integram o domínio público, razão pela qual se continua, em linha aliás com a previsão do art. 16º daquele DL 280/2007 (que atribui relevo especial à afectação do bem), a entender que a integração no domínio público depende da existência de título específico, título esse que pode ser a lei, um acto administrativo ou a forma de afectação do bem (à sua afectação a interesses públicos seguir-se-ia, por natureza, a sua inserção no domínio também público). A menção em causa (contida nos factos provados) dirige-se especialmente a este aspecto da dominialidade pública, atribuindo uma certa natureza à parcela.


A estar em causa uma transmissão da parcela ex lege e uma integração no domínio público também por força da lei, a menção é, então, uma clara afirmação jurídica: descreve aquilo que da lei resultaria.


A estar em causa uma outra forma de transmissão do bem e de integração no domínio público municipal (que não estritamente por força da lei), verifica-se que os factos que concretizam aquelas realidades não são directamente descritos ou perceptíveis a partir da formulação usada. O segmento em causa oferece-se como uma pura qualificação da natureza do bem face à ordem jurídica e assim como uma qualificação jurídica (integrando-a numa certa categoria dogmática), sem radicar numa realidade factual perceptível.


É sabido que a distinção entre facto e direito não obedece a critérios seguros nem a delimitações fixas, e que se vêm admitindo, para fazer prevalecer o material sobre o formal, formulações que não correspondem a puros eventos da vida real ou a rigorosas proposições de facto, desde que contenham ainda um sentido apreensível reportado a realidades ou ocorrências empíricas, e mesmo que envolvam juízos que constituam conclusões derivadas de outros factos apreensíveis ou tenham até um significado jurídico (assim se tendendo a admitir, pois, afirmações conclusivas, de um lado, e asserções jurídicas, de outro, desde que tenham ainda uma refracção descritiva reconhecível). Não obstante, o facto e o direito continuam a postular uma distinção entre si por assentarem em substratos distintos. O facto, ainda que vestido de denominações jurídicas, tem que, em último termo, corresponder a eventos reais, do mundo empírico, enquanto o direito assenta em construções normativas que supõe uma realidade destacada (os factos) a que se aplica. Eliminar a distinção equivale a confundir os planos do ser e do dever-ser. Sendo que a manutenção da distinção, ainda que se aceitando como mais fluida e permeável, não pode levar a prescindir do ónus de alegação (e demonstração) dos factos relevantes, nem pode conduzir à substituição da discussão factual de tema central do litígio pela mera afirmação de uma qualificação jurídica. Assim, o que se admite pacificamente, a utilização de formulações com pendor jurídico, ou que correspondam a conceitos jurídicos, será admissível quando tenham também um significado corrente, precipitado na experiência comum, sendo assim reconhecíveis e apreensíveis como dados de facto. Mas com um limite insuperável: tal aproveitamento não pode ocorrer quando a formulação esteja directamente ligada à questão jurídica a resolver, em termos tais que a fixação factual determina logo, ainda que parcialmente, a interpretação e aplicação da lei (dispensando aquela e impondo esta) que sustenta o juízo de mérito (ou seja, quando sejam reconduzíveis a conceitos normativos que directa e decisivamente intervêm na avaliação jurídica, determinando directamente o sentido da aplicação do direito e assim a decisão).


Ora, no caso, afirmar que certa parcela se integra no domínio público constitui, como se disse, a fixação de um dado estritamente normativo (por referência a um conceito dogmático), sem qualquer suporte na realidade descrita (ou discutida), e dado este que directamente contende com o cerne da discussão. O distanciamento da afirmação face ao mundo dos factos (empírico) é ainda mais patente dada a circunstância de ela ser efectuada não como constatação em si mas como corolário da afirmação anterior, como se esta integração da parcela no domínio público fosse mero ou imediato efeito da previsão da sua cedência constante do loteamento: por isso se utiliza a conjunção «logo», dando conta que a segunda afirmação é efeito da anterior, ou que esta primeira causa a segunda. Assim, afirmar tal integração como mero efeito do loteamento equivale também a uma operação normativa, pois supõe dados legais que o justifiquem (supõe, na verdade que a lei determine que à previsão da cedência no loteamento se segue logo a transmissão do domínio e uma certa natureza jurídica da área cedida). Acresce que, como referido, a asserção corresponde a uma certa qualificação jurídica que, a ser usada, determinaria directamente o sentido da decisão. A natureza estritamente jurídica da afirmação é, por fim, também corroborada pelo facto de a decisão recorrida não invocar directa ou claramente esta afirmação para sustentar a posição decisória que assume (a qual, contudo, inclui nos factos tidos por provados), sustentando-se antes no regime do art. 44º n.º3 do RJUE.


Mesmo quando se aceite que o título jurídico controvertido (por exemplo, a propriedade) pode ser directamente descrito como facto desde que a factualidade que o suporta esteja descrita na motivação da decisão sobre a matéria de facto (2), a verdade é que tal solução também não poderia ser acolhida no caso pois inexiste a discussão (na motivação) de qualquer factualidade que suporte aquela asserção.


Não pode, pois, a menção em causa valer como matéria de facto, não podendo intervir, por si, na discussão jurídica do mérito da causa (devendo, a pretender-se que seja tida por facto, ter-se como não escrita, solução que se justifica (3), no quadro do art. 607º n.º4 e 662º n.º2 al. c) do CPC, considerando que no elenco de factos devem constar apenas os factos e que decisão que não respeite a limitação se mostra deficiente - no sentido de desconforme, e não de insuficiente).


6. A afirmação podia ser ainda entendida como uma forma de reconhecimento pelos AA. de uma situação jurídica prejudicial, no sentido de que aceitariam aqueles a existência de certo estado jurídico (integração no domínio público), e estado jurídico este que surge como impeditivo da sua pretensão - e já que a integração da parcela no domínio público tenderia a inviabilizar a acessão (daí a sua prejudicialidade).


Em rigor, estariam a reconhecer efeitos jurídicos derivados do licenciamento do loteamento. A referida utilização da expressão «logo», com a associação do efeito jurídico (transmissão e integração no domínio público) ao loteamento parece justamente apontar neste sentido: as partes aceitam que o loteamento tem por efeito jurídico aquela transmissão e integração. Ou seja, estariam assim os AA. a admitir (a reconhecer) que por mero efeito do loteamento se operou a integração da parcela no domínio público. Tal solução não se mostra, na falta de norma que o admita, compatível com o sistema processual, o qual não prevê que as partes fixem por acordo sentidos jurídicos. Isto porque os efeitos em causa dependem da norma que os prevê e sobre esta matéria não podem as partes dispor por, de um lado, ela caber à lei (sendo irrelevante a fixação convencional de efeitos que são estritamente legais) e, de outro lado, dela conhecer o tribunal livremente, nos termos do art. 5º n.º3 do CPC (pelo que aquela fixação não teria que ser respeitada pelo tribunal) (4). Neste sentido, a menção é inconsequente (nota-se que a situação se diferencia das situações subjacentes à desistência ou confissão do pedido, que se dirigem a certo efeito prático jurídico, e não ao efeito da norma).


7. Aquela posição podia valer também como reconhecimento de factos (máxime, confissão) ou como reconhecimento de direito (ou, mais latamente, de situação jurídica) a que se aplicaria o regime do art. 458º do CC (5).


Como não estão em causa factos concretos, aquele reconhecimento não pode, porém, valer como confissão de factos.


Quanto ao reconhecimento de direito ou de situação jurídica, este supõe a aplicação do art. 458º n.º1 do CC, segundo o qual se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário. Naturalmente, não se trataria de aplicação directa (por não estar em causa situação obrigacional) mas devidamente adaptada (por analogia, como se admite, por exemplo, no âmbito do reconhecimento de direitos reais). Como é pacificamente aceite, o sentido da norma não consiste em consagrar uma admissão sem causa mas em presumir essa causa (assente numa relação fundamental prévia), ficando o beneficiário do reconhecimento dispensado de a demonstrar. Significaria isto que aquela admissão dispensaria os beneficiários da presunção (os RR.) de demonstrar os factos supostos pelo reconhecimento. Sucede, contudo, que o recorte legal deste reconhecimento quadra mal com uma situação jurídica complexa e que não está na disponibilidade das partes pois aquela pressupõe a definição de regimes legais e de regras aplicáveis (como adiante se verá) que não dependem da vontade das partes, o que deveria obstar à aplicação do regime citado à situação vertente. Acresce que se tem consolidado o entendimento jurisprudencial que, na sequência da posição assumida por L. de Freitas, sustenta que a presunção da causa não dispensa o beneficiário da presunção de alegar os factos que corporizam aquela causa (6). Ou seja, o funcionamento da presunção depende ainda da alegação dos factos da «relação subjacente» que sustentam a situação jurídica presumida (embora já não dependa da prova desses factos: desta prova é que ficaria o beneficiário da presunção dispensado). Trata-se de solução que se mostra justificada pelas razões adiantadas por aquele Professor, que em súmula se reconduzem ao seguinte: o ónus da alegação e o ónus da prova podem não coincidir e, exigindo a lei processual a alegação da causa de pedir (art. 552º n.º1 al. d) do CPC), a dispensa de alegar a causa da dívida reconhecida só seria defensável se se entendesse que o acto de reconhecimento constitui a própria causa da obrigação, isto é, se, como ocorre com a subscrição da letra ou da livrança, fosse entendido como negócio abstracto, o que na lei portuguesa não é (7) - aditando ainda a necessidade de tal alegação para permitir delimitar o caso julgado (e já que este seria definido pela relação fundamental). Esta asserção tende também a ser revelada pelo regime do art. 438º n.º2 do CC quanto à exigência de forma (o qual pressupõe o conhecimento da relação fundamental). Solução esta que se entende ter sido, com a reforma processual, implicitamente corroborada pelo regime processual a partir da exigência de indicação da causa de pedir na execução, quando não conste do título executivo (art. 724º n.º1 al. e) e 703º n.º1 al. c) do CPC), apesar de este título já incorporar, por definição, o direito à prestação exequenda (que não necessita de ser demonstrado). Ou seja, o legislador expressamente aceitou a insuficiência do reconhecimento do direito, exigindo ainda a alegação dos seus factos constitutivos. Sendo esta solução que se justifica também para permitir delimitar a oposição do executado (8), também deve valer, pela mesma razão, para a acção declarativa. O que se mostra congruente com a redacção do referido art. 552º n.º1 al. d) do CPC, quando exige a alegação dos factos constitutivos. Significa isto que, não tendo sido alegados factos que sustentem a situação jurídica reconhecida, não teria aquela declaração de reconhecimento qualquer valor jurídico-processual.


7. Assim, não tem aquela afirmação significado próprio na avaliação do mérito da questão.


8. Resta avaliar se seria possível por outra via alcançar a solução da decisão recorrida, e alcançá-la com a segurança que dispensa o prosseguimento dos autos.


A decisão recorrida parte de duas observações complementares ou em parte sobreponíveis. Afirma, de forma sucessiva, que:


- «pretendendo os Autores a acessão industrial imobiliária de uma parcela de terreno que fazia parte do domínio público municipal, a sua pretensão não tem fundamento legal


- «nos autos estão em causa áreas de cedência ao Município de .... no âmbito de um loteamento. O artigo 44º, n.º 3 do RJUE (DL 555/99, de 16 de dezembro, com as alterações do DL 177/2001, de 4 de junho) estabelece que as parcelas de terreno cedidas ao município no âmbito de uma operação de loteamento integram-se no domínio público municipal».


O fundamento da decisão proferida assenta sempre, pois, na integração da parcela em causa no domínio público municipal (e na sua inerente indisponibilidade). O suporte para esta integração encontra-o a decisão recorrida no regime legal que expressamente invoca. Importa, pois, avaliar o regime legal mobilizável.


9. O loteamento em causa foi titulado por alvará em ........1974. Nessa data encontrava-se em vigor o DL 289/73, de 06.06, diploma que, prevendo a cedência às câmaras municipais de áreas para instalação dos equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos urbanos (como se depreendia do seu art. 19º n.º2, associada à imposição de condições aos loteamentos, como decorria do n.º1 do mesmo art. 19º), nada previa sobre a forma de transmissão daquelas áreas ou a natureza (pública ou privada) do domínio municipal em que as áreas se integravam. A mera menção à instalação de equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos, por demasiado vaga, não implicava só por si uma integração directa num dos domínios municipais. Aliás, esta menção não determina a dominialidade pública ou privada das parcelas cedidas, podendo apenas apontar para uma destinação pública que o município ficava vinculado a lhes dar (9) [sendo que no caso nem existe qualquer tipo de utilização pública].


Este diploma foi revogado pelo DL 400/84, de 31.12, cujo regime não se aplicava aos pedidos de loteamentos anteriores à sua entrada em vigor (e, assim e por maioria de razão, também aos loteamentos já anteriormente licenciados) - art. 84º n.º1 e 2 deste DL 400/84. Duas notas relevantes se retiram, ainda, do seu regime. De um lado, previa-se expressamente que a operação de loteamento envolvia a cedência à câmara municipal, obrigatoriamente e a título gratuito, de parcelas de terreno relativas a: a) Praças, arruamentos, passeios adjacentes, baias de estacionamento de veículos e de paragem de transportes públicos e faixas arborizadas anexas; b) Áreas públicas livres envolventes das edificações destinadas ao movimento e estar de peões; c) Equipamentos públicos, tais como os destinados a educação, saúde, assistência, cultura e desporto, a superfícies verdes para convívio, recreio e lazer e bem assim a parques de estacionamento (art. 42º). Pese embora a natureza (pública) da utilização reservada às áreas a ceder, previa-se expressamente que no alvará constassem, além das cedências obrigatórias, a especificação das parcelas a integrar respectivamente no domínio público ou privado municipal (art. 48º n.º1 al. f)). Ou seja, o tipo de utilização visado não bastava, de acordo com o legislador, para integrar desde logo as áreas cedidas no domínio público municipal (sendo ainda necessário para tanto um acto de especificação). O que mais conforta a referida asserção de que a mera menção à instalação de equipamentos gerais, no diploma anterior, também não servia como critério legal do tipo de domínio municipal em que as áreas cedidas se integram. Este diploma também nada dizia sobre a forma como se operavam as cedências, ou seja, como se transferia o domínio sobre as áreas cedidas.


Seguiu-se o DL 448/91, de 31.12, o qual, regulando as cedências à câmara municipal de parcelas de terreno no âmbito dos loteamentos, veio estabelecer que as parcelas de terreno cedidas à câmara municipal se integravam automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará e não podiam ser afectas a fim distinto do previsto no alvará, valendo este para se proceder aos respectivos registos e averbamentos (art. 16º n.º3, original, passando a art. 16º n.º2 com a alteração introduzida pela Lei 25/92, de 31.08 (10)). Ou seja, previu-se, pela primeira vez, a integração necessária daquelas áreas no domínio público (11) (e também, ao menos de forma expressa, a transferência do domínio das áreas cedidas por mero efeito do licenciamento do loteamento). As alterações introduzidas depois neste diploma não alteraram o sentido deste regime. O regime transitório deste diploma (art. 71º e 72º) revela que este não visava regular situações pretéritas consumadas, salvo em caos de alteração de alvará anterior - alteração que não consta que tenha ocorrido no caso.


O DL 555/99, de 16.12 (RJUE), substituiu aquele DL 448/91, prevendo que as parcelas de terreno cedidas ao município se integram automaticamente no domínio municipal com a emissão do alvará (art. 44º n.º3). Assim, mantendo embora a transferência automática, deixaria de definir qual o domínio em que se integravam as parcelas cedidas (que, portanto, deixavam de estar necessariamente afectas ao domínio público). Este art. 44º n.º3, com a redacção exposta, não chegou, porém, a ter efectiva aplicação pois a vigência do RJUE foi suspensa pela Lei 13/2000, de 20.07, suspensão prorrogada pela Lei 30-A/2000, de 20.12, entrando em vigor depois, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001, de 04.06 (art. 4º daquela Lei 30-A/2000) (12).


Aquele art. 44º n.º3, na redacção dada por este DL 177/2001, passou a prever que «o proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente ao município as parcelas para implantação de espaços verdes públicos e equipamentos de utilização colectiva e as infra-estruturas que, de acordo com a lei e a licença ou autorização de loteamento, devam integrar o domínio municipal» (n.º1), sendo que «as parcelas de terreno cedidas ao município integram-se automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará» (n.º3). Este regime retomou, pois, a integração automática das parcelas cedidas no domínio público.


Tal solução foi novamente abandonada na redacção daquele art. 44º n.º3 do RJUE introduzida pela Lei 60/2007, de 04.09, passando a prever-se que «as parcelas de terreno cedidas ao município integram-se no domínio municipal com a emissão do alvará ou, nas situações previstas no artigo 34.º [comunicação prévia] (13)], através de instrumento próprio a realizar pelo notário privativo da câmara municipal no prazo previsto no n.º 1 do artigo 36.º, devendo a câmara municipal definir no momento da recepção as parcelas afectas aos domínios público e privado do município». De novo, passou a caber ao município a definição do domínio onde as parcelas cedidas se integrariam.


Esta solução manteve-se na redacção dada àquele art. 44º n.º3 do RJUE pelo DL 26/2010, de 30.03 (que apenas alterou a forma de formalização das cedências nos casos previstos no art. 34º do RJUE).


E manteve-se também na redacção dada pelo DL 136/2014 (que alterou apenas a contagem do prazo e a forma como operava a afectação ao domínio público ou privado).


A mesma solução ficou ainda a constar daquele art. 44º n.º3 na redacção do DL 136/2014, de 09.09, mas aditando-se que devia a câmara municipal definir no momento da recepção as parcelas afectas aos domínios público e privado do município. Deixando de novo clara a inexistência de afectação ex lege (sendo que a alteração da norma não visou esclarecer esta questão, que já vinha de trás, mas apenas fixar o momento no qual o município deveria fazer a opção).


Por fim, e na mesma linha de sentido, a redacção actual da norma (dada pelo DL 10/2024, de 08.01) prevê que as parcelas de terreno cedidas ao município integram-se no domínio municipal com a emissão da licença ou, nas situações previstas nos artigos 6.º e 34.º através de escritura pública, documento particular autenticado ou do procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédio urbano em atendimento presencial único, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 263-A/2007, de 23 de julho, na sua redação atual, a realizar no prazo de 20 dias após a receção da comunicação prévia ou no caso de isenção antes do início dos trabalhos, devendo a câmara municipal ali definir, as parcelas afetas aos domínios público e privado do município.


10. A aplicação do regime decorrente do RJUE (art. 44º n.º3, na redacção do DL 177/2001) não se mostra ajustada.


Com efeito, e de um lado, inexiste norma no RJUE que, em qualquer uma das suas versões, preveja tal aplicação. Assim, e para a versão decorrente daquele DL 177/2001, previa-se que este RJUE não se aplicaria, em regra (com especificidades que não interessam aqui), a loteamentos pendentes (art. 128º do RJEU - artigo depois revogado e substituído pelo art. 6º da Lei 60/2007, de 04.09, de alcance idêntico). E previa-se ainda que, quanto aos alvarás anteriores (mormente emitidos ao abrigo do DL 289/73), o RJUE se aplicaria (apenas) às suas alterações - art. 125º. A mesma solução decorria do art. 4º do DL 177/2001. Mantinha-se assim a regra geral (já contida nos diplomas anteriores) segundo o qual o novo regime não afectava o regime de licenciamentos anteriores, ou seja, a regra segundo a qual o loteamento se regia pelo regime ao abrigo do qual foi concedido. Sendo estes princípios que foram sendo mantidos nas sucessivas alterações ao RJUE (apenas se oscilando na aplicação imediata, ou não, das alterações aos procedimentos pendentes).


De outro lado, não se mostra possível encontrar suporte para afirmar estar em causa uma norma interpretativa ou com vocação retroactiva. Aliás, o próprio regime transitório do RJUE contra isso depõe, ao excluir a sua aplicação a situações pretéritas (e mesmo no quadro do art. 12º do CC, que se admite também valer, como regra de vocação geral que é, no âmbito administrativo, não podia o novo regime ir regular os efeitos passados de situações consolidadas). O que está de acordo, também, com a ressalva das situações consolidadas. Aliás, a opção pela aplicação deste regime deixa por perceber a razão determinante dessa escolha, no âmbito dos vários regimes sucessivos descritos e que também podiam ser convocados.


11. Esta sequenciação de regimes aponta, pois, para a aplicação do regime decorrente do DL 289/73, de 06.06, e para a inexistência, à data do licenciamento do loteamento em causa, de norma legal que previsse a identificação do domínio municipal (púbico ou privado) em que as áreas cedidas deveriam ser integradas (e bem assim de norma reguladora da forma de transmissão do domínio). Existindo tendência jurisprudencial para aceitar que, antes do DL 448/91, a integração da parcela no domínio público ou privado municipal dependia de actuação ad hoc, que definisse essa afectação (igualmente tendendo a aceitar que a transferência das parcelas cedidas dependeria, antes do DL 448/91, de acto translativo autónomo). Assim, o Ac. do STJ proc. 7815/05.1TBSTB.S1 excluiu a aplicação do art. 16º n.º2 do DL 448/91 a loteamento sujeito ao regime do DL 400/84 (afirmando não estar em causa lei interpretativa nem retroactiva), aditando que a transmissão, naquele DL 400/84, exigia escritura pública por via do Cód. do Notariado; do seu texto, e na linha dos vários Autores que cita, deriva que a solução seria a mesma para o DL 289/73 (14). O Ac. do STJ proc. 263/16.0T8CSC.L1.S1, reportando-se ao DL 289/73, afirma que não previa em que domínio se integravam as parcelas cedidas, concluindo que, na falta de definição da afectação, se integravam no domínio privado do município - a qual constituiria assim a forma de integração normal ou natural (solução compreensível pois a integração no domínio público supõe certas condições adicionais; na sua falta, queda apenas a integração no domínio privado). No que à forma respeita, este Ac. do STJ cita ainda Autor que sustentava que os DL 46.673 de 29.11.1965, 289/73 e 400/84 de 31.12 eram omissos «em relação à formalização da transferência da propriedade e ao estatuto dos terrenos cedidos, daí se concluindo que era obrigatória a celebração da escritura pública e que os mesmos ingressavam no domínio privado do município» (António Pereira da Costa, Domínio público local e urbanismo, CEJUR, Junho de 2006, páginas 59 e ss.). Também quanto a esta formalização, o Ac. do STJ proc. 5528/05.3TCLRS.L1.S1, referindo-se ao DL 400/84 e aos dois diplomas que o antecederam (o referido DL 289/73 - e o Dec. 46673 de 29.11.1965 (15)), sustenta que, no âmbito de vigência daqueles regimes, era obrigatória a utilização de escritura pública para formalizar a transferência das parcelas cedidas. No mesmo sentido, no quadro do DL 400/84, também Ac. TRP proc. 4724/18.8T8MTS.P1 - ou TRG proc. 1215/12.4TBVVD.G2; também no mesmo sentido, mas reportando-se quer ao DL 400/84 quer aos diplomas anteriores, Ac. STJ proc. 5528/05.3TCLRS.L1.S1. Esta referida tendência não é inteiramente pacífica, já que, por exemplo, o Ac. do TRP proc. 9050668 sustentou que a transmissão operava de modo automático (com o licenciamento) no quadro do DL 289/73 (também assim, aparentemente, o Ac. do TRL proc. 0072136, que assim é citado embora o sumário seja ambíguo e o texto integral não esteja disponível). E também o Ac. do STJ proc. 5979/12.7TBMTS.P1.S1 parece adoptar solução agregadora dos vários regimes (16). De qualquer modo, trata-se de questão que não funda a decisão recorrida e que, na verdade, não está realmente esclarecida (quanto à existência ou não de título, sendo a própria exigibilidade desse título também questão controvertida).


Mas o que releva no caso é que o fundamento invocado pela decisão recorrida para concluir pela improcedência da acção (integração da parcela no domínio público municipal) não está, de acordo com os elementos por ela invocados, verificado e, assim, ela não pode subsistir nesses termos.


E que também não é ainda seguro que ocorra motivo fundado para avaliar a existência de circunstância impeditiva (mormente quanto à existência de título claro de integração da parcela no domínio público municipal, à luz dos regimes expostos), dada a amplitude da discussão possível (e a limitação dos factos tidos por demonstrados ou mesmo alegados), pelo que deverá a acção prosseguir os seus termos. Retomando-se a fase de saneamento (em sentido amplo), mantém o tribunal a quo, naturalmente, todos os poderes de intervenção inerentes a essa fase.


12. Quanto à segunda parcela (parcela 2), os AA. ainda a integram no recurso interposto, embora sem invocarem razões especiais. Como, porém, essa parcela está associada à forma como os AA. articulam a sua pretensão relativamente à acessão industrial, a revogação da decisão, para avaliação subsequente do mérito da pretensão dos AA., implica o arrastamento desta questão. Com efeito, a questão não surge com verdadeira autonomia mas como elemento da própria acessão invocada (forma de evitar o pagamento, através de uma espécie de compensação). A própria formulação usada no pedido o indicia, com os AA. a afirmarem apenas que a parcela «encontra-se afeta ao domínio público da responsabilidade dos Réus, desde ...», sem verdadeiramente invocarem um título de aquisição mas apenas uma situação fáctica consumada. Sendo que, a não poder operar a pretendida «compensação», nem por isso se deixará de avaliar o sentido da eventual acessão, à luz das regras e do regime que se tenha por pertinente (após o apuramento dos factos que sustentem a aplicação desse regime), mormente quanto à natureza da aquisição e aos termos do eventual pagamento (atendendo também a que o Município, à luz do loteamento, continua ao menos a ter direito à parcela, a qual também não pertencerá aos AA..).


13. Por fim, nota-se que os factos tidos por provados em outra acção só poderiam relevar nesta sede através do valor do caso julgado ou da autoridade de caso julgado da decisão daquela prévia acção (na medida em que tais factos integrem o silogismo judiciário que o caso julgado ou a sua autoridade torna operante em outra acção). Caso julgado e sua autoridade que foram já excluídos nos autos, em decisão que pelo menos esgotou o poder jurisdicional do tribunal sobre a questão (art. 613º n.º1 do CPC) (17). A invocação de tais factos é, por isso, inconsequente (18).


14. Decaindo, respondem os RR. pelas custas (art. 527º n.º1 do CPC).


V. Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se a decisão de mérito proferida, devendo o processo prosseguir os seus termos nos moldes referidos.


Custas pelos RR..


Notifique-se.


Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):

(…)

Datado e assinado electronicamente.

Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).

1. As demais hipóteses referidas naquele art. 84º da CRP não correspondem à situação dos autos.↩︎

2. Assim, A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. I, Almedina 2023, pág. 776, em posição que, porém, se mostra difícil de acompanhar pois a realidade jurídica não deriva directamente de certa realidade factual, suponto uma tarefa interpretativa e subsuntiva mediadora (e também criativamente concretizadora do direito) que, nesta solução, era deslocada para o âmbito da motivação da decisão da questão de facto (v.g., descrever a propriedade como se fosse facto com base nos factos atinentes à posse discutidos na motivação de facto equivale a colocar nesta sede a discussão sobre, por exemplo, os caracteres que a posse deve ter para conduzir à usucapião, ou sobre as condições da acessão na posse).↩︎

3. A solução alternativa passa por apenas recusar a sua utilização como facto no momento da aplicação do direito.↩︎

4. V. A. Varela/M. Bezerra/S. e Nora, Manual de processo civil, Coimbra editora 1985, parte final da nota 3 iniciada na pág. 537, e L. Freitas, Introdução ao processo civil, Gestlegal 2023, pág. 159 e ss..↩︎

5. V. A. Varela/M. Bezerra/S. e Nora, cit. nota 3 da pág. 537 nota 3 e L. de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora 1991, págs. 434 e ss..↩︎

6. Trata-se de orientação que ultimamente se tem mostrado tendencialmente consolidada: v. Acs. do STJ proc. 373/08.7TBOAZ-A.P1.S1 (ainda antes do actual regime e em termos gerais, apesar de prolatado no âmbito da acção executiva), proc. 1566/22.0T8GMR-A.S1, proc. 303/2002.P1.S1, proc. 3249/13.2TBVFX.L1.S1 ou proc. 1766/20.7T8VCT-G.G1.S1, ou Ac. do. TRL proc. 7830/19.8T8LRS.L1-6, todos em 3w.dgsi.pt.-↩︎

7. Síntese colhida em Da falta da causa de pedir no momento da sentença final de embargos à execução titulada por documento de reconhecimento de dívida, ROA III/IV 2018, pág. 746; v. também A confissão, op. cit., pág. 387 e ss..↩︎

8. Assim, já no direito anterior, T. de Sousa, A exequibilidade da pretensão, Cosmos 1991, pág. 42.↩︎

9. Por isso que no âmbito do RJUE, quando se admite que o município defina a integração das parcelas no domínio público ou privado, se afirme que «a inclusão das parcelas de terreno no domínio privado do município não significa que tais parcelas não devam continuar afectas ao fim de utilidade pública a que foram destinadas, de acordo com o fixado no alvará» (João Pereira Reis e Rui Ribeiro Lima, Cedências de terrenos para espaços verdes, equipamentos e infra-estruturas, Revista de Direito Público e Regulação, n.º 3, pág. 9 - disponível online). Ou seja, neste domínio, a afectação pública não implica, sem mais, uma dominialidade pública.↩︎

10. Mas mantendo-se a mesma redacção (esta norma não foi afectada por alterações posteriores).↩︎

11. Ressalvando a possível desnecessidade de cedência de áreas para equipamentos públicos, previu-se o pagamento de compensação, que podia ser realizada em espécie pela cedência de parcelas de terreno que se integrariam no domínio privado municipal (art. 16º n.º5 e 6).↩︎

12. Em rigor, o RJUE na redacção original esteve em vigor entre 14 de Abril e 21 de Julho de 2020 mas com aquela Lei 13/2000 o regime anterior passou a ser aplicado aos processos em curso, excluindo-se assim a aplicação do RJUE (ressalvando-se no essencial apenas os direitos adquiridos) - art. 1º da Lei 13/2000.↩︎

13. Trata-se de situação onde inexistia licença (alvará) que pudesse titular a transferência do domínio.↩︎

14. Aliás, tal é natural dado o paralelismo das previsões dos diplomas em causa, em oposição ao carácter diferenciador e inovador do DL 448/91.↩︎

15. Não referido supra por anterior aos factos em discussão.↩︎

16. Todos os acórdãos citados estão disponíveis em 3w.dgsi.pt.↩︎

17. Sem necessidade de avaliar eventual trânsito em julgado.↩︎

18. O que poderia valer seriam os meios de prova que sustentaram tais factos, no âmbito do aproveitamento extraprocessual das provas, mas não é isso que está em jogo.↩︎