DIREITO AO SILÊNCIO
PROVA PROIBIDA
NULIDADE DE SENTENÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

I. Tendo o arguido em audiência de julgamento decidido ficar em silêncio, a versão dos factos vertida na sua contestação não poderá ser valorada pelo juiz na motivação da matéria de facto, sendo prova proibida.
II. Já um aditamento a uma participação de acidente de viação feito voluntariamente pelo ainda não arguido à data, inexistindo qualquer queixa-crime, inquérito a decorrer ou obrigação legal de aquele assumir a posição de arguido, pode vir a ser considerado como prova em julgamento, posto que constava do acervo documental elencado na acusação.
III. Expurgada da motivação a prova considerada proibida, só será de anular a sentença e remeter o processo para a primeira instância se daquela não resultar suficientemente evidenciado que os factos continuam a ter sustentação na demais fundamentação, em obediência ao comando do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
IV. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
No âmbito do processo comum, com intervenção de Tribunal Singular, n.º 1129/19.7PAMTJ, realizou-se julgamento, findo o qual foi proferida a seguinte decisão (transcrição):
a. Condeno o arguido AA, como autor material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa à taxa diária de 6,00€ (seis euros), o que perfaz o total de 300,00€ (trezentos euros).
b. Condeno o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 3 (três) meses e 15 (quinze) dias, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; devendo no prazo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado da sentença, proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria deste Tribunal, ou em qualquer posto policial que a remeterá àquela, sob a cominação de, não o fazendo, ser determinada a apreensão da mesma e incorrer na prática de um crime de desobediência – cf. artigo 500.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal e artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal (cf. Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º 2/2013, in DR, I Série, n.º 5, de 08-01-2013).
Inconformado com esta decisão veio o arguido interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A. A douta decisão ora impugnada, viola claramente o vertido nas alíneas a) b) e c) do nº 2 do artigo 410º do C. P.P;
B. O Tribunal, deu erradamente como provados os factos, 1. a 4., 6., 9., 12. a 15;
C. Tais factos, estão coligados entre si, e para os sustentar, o tribunal, socorreu-se em traços gerais da participação por escrito do acidente, que deu azo ao aditamento n.º 3 à participação do acidente, constante dos autos a fls. 31, da contestação apresentada pelo Arguido e da identificação por parte da Ofendida, do Arguido;
D. Conforme decorre do CPP, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação, que como se afere do artigo 355º, se traduz no facto de a convicção do tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza;
E. Nos presentes autos, jamais, poderá ser valorado tal aditamento, porquanto, não foi o mesmo, produzido, em audiência de discussão e julgamento, não tendo, em momento algum, sido, sujeito ao contraditório, necessário;
F. Pelo que, jamais, poderá tal aditamento, servir de sustentação, para provar a identificação do Arguido aqui em causa;
G. O Arguido, deveria ter sido constituído arguido no momento, do referido aditamento nº 3, nos termos do artigo 59º nº1 do CPP;
H. Conjugando o art.º 61º, nº 1, do C.P.P., que enumera os direitos processuais dos arguidos, com o disposto no art.º 59º resulta que se à abordagem pelo OPC preside uma suspeita de prática de ilícito penal, então o indivíduo terá, logo inicialmente, que ser constituído arguido, antes de qualquer declaração sobre os factos. Um suspeito, enquanto tal, só pode ser validamente ouvido na qualidade de suspeito depois de ser constituído arguido. Se a suspeita surge depois, a regra é sempre a mesma: no momento em que a suspeita surge a inquirição tem que ser suspensa para se proceder à constituição do suspeito como arguido, nos termos referidos. Feito isto a diligência poderá prosseguir;
I. O que resulta na nulidade de tal aditamento, não podendo, pois, ser tal aditamento usado para formar a convicção do tribunal, nomeadamente num facto provado;
J. O tribunal a quo, ao dar como provados os factos ocorridos, nas versões que constam da fundamentação, da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º do CPP violou ainda o douto tribunal o disposto no artigo 355º nº 1 do CPP. Assim, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidos em audiência;
K. Logo, se concluí que da prova produzida, examinada e valorada nos termos sobreditos, resulta a dúvida intransponível do cometimento dos factos imputados pelo arguido, pelo que, os tais factos considerados, nomeadamente os factos, 1. a 4., 6., 9., 12. a 15., devem ser considerados como factos não provados, não podendo ser valorado tal aditamento;
L. No que diz respeito à contestação apresentada pelo Arguido, jamais, poderá valer essa como uma confissão, logo, jamais, poderá sustentar factos provados, contrariamente ao que aconteceu;
M. Pelo que, tal peça processual, jamais, poderá valer de sustentação aos factos dado como provados pelo douto tribunal;
N. Violou assim o douto tribunal o princípio da legalidade, bem como uma vez mais, violou ainda o douto tribunal o disposto no artigo 355º nº 1 do CPP. Assim, de acordo com esta norma, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidos em audiência;
O. O depoimento da ofendida, esteve claramente condicionado, e foi largamente parcial, confuso, e “sem fio condutor”;
P. Jamais poderá ser considerado, como identificação do Arguido;
Q. Porquanto, o Tribunal, não se pode basear tais palavras numa cabal identificação do Arguido, porquanto, estávamos ainda nesse momento, na fase de identificação da Ofendida, a que alude, o artigo 348 nº3 do CPP, pelo que jamais poderá ser considerada, para efeitos de identificação do Arguido, ainda antes de prestar o seu juramento legal, referindo inclusivamente, que tinha algo contra o Arguido;
R. Pelo que jamais, poderá socorrer-se o tribunal da mencionada declaração, como identificação;
S, No decurso do depoimento da ofendida, a mesma, identificou o condutor do veículo que lhe embateu, como, muito míope e que usava óculos;
T. Existe nos autos, prova documental, que o Arguido nos presentes autos, não tem dificuldades de visão, pelo que, jamais poderia ser este o condutor da viatura que embateu na ofendida;
U. A filha da Ofendida, esteve presente na sala de audiências, estando inúmeras vezes a corrigir o depoimento da sua mãe, ofendida, tendo inclusivamente, sido expulsa da sala de audiência, o que, desde logo afeta a credibilidade do depoimento da ofendida;
V. Tendo a Ofendida, referido, que se encontrava no separador central, aquando do alegado embate, e a testemunha BB, referido, que o local do alegado embate, foi no alcatrão, ou seja, na via;
W. Havendo, pois, uma clara contradição na dinâmica do alegado embate;
X. Pelo que se a ofendida, não conseguiu provar a dinâmica dos factos em causa, não conseguindo, por si só, esclarecer, onde se encontrava no local do alegado embate, jamais, poderia identificar o condutor da viatura que alegadamente lhe embateu;
Y. Da prova produzida, em audiência de discussão e julgamento não resulta, por um lado, que, o Arguido nos presentes autos, era efetivamente o condutor da viatura que alegadamente embateu na Ofendida, bem como, da dinâmica do alegado incidente;
Z. Jamais, em algum momento, houve a certeza! provada, de ter sido o Arguido, a conduzir o veículo a conduzir o veículo automóvel que veio alegadamente a embater na ofendida;
AA. O arguido presume-se inocente até prova em contrário, a qual é realizada e escortinada em audiência de discussão e julgamento;
BB. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e analisada nos termos sobreditos, é insuficiente para alicerçar a condenação do arguido;
CC. O princípio do “in dúbio pro” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos;
DD. Este estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet;
EE. Não foram produzidos, elementos probatórios, com os devidos formalismos legais, que nos permitam identificar o Arguido como condutor da viatura;
FF. Da prova produzida, examinada e valorada nos termos sobreditos, resulta a dúvida intransponível do cometimento dos factos imputados pelo arguido, pelo que, os tais factos considerados, nomeadamente os factos, 1. a 4., 6., 9., 12. a 15., devem ser considerados como factos não provados;
GG. Face a todo o exposto, violou, portanto, a sentença recorrida, o princípio do “in dubio pro reo”;
HH. Violando ainda o disposto no artigo, 355º nº 1 do CPP, e ainda o disposto no artigo 410º nº 2 a) b) e c) do CPP;
II. Devendo, pois, ser absolvido do crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual, foi condenado.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO,
DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE
E, EM CONSEQUÊNCIA SER:
- O ARGUIDO ABSOLVIDO DO CRIME DE
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA,
PELO QUAL FOI CONDENADO
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA
JUSTIÇA.
*
O recurso foi admitido por despacho proferido a 11 de Setembro de 2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Pelo Ministério Público foi apresentada tempestiva resposta, na qual, de forma breve e sintética, pugna pela manutenção da sentença recorrida nos seus precisos termos.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer, no qual sustenta dever o recurso ser julgado improcedente.
Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, a arguida nada respondeu a este último parecer.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419.º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de primeira instância (transcrição):
1. No dia ...-...-2019, pelas 10 horas e 30 minutos, o arguido circulava na ..., no Montijo, conduzindo o veículo ligeiro de marca ..., modelo ... com a matrícula ..-BQ-.., de cor cinza no sentido ..., ou seja, no sentido de marcha para quem vem da ... em direção à ..., ambas sitas nesta urbe.
2. No momento em que CC se encontrava no separador central existente em tal artéria, junto ao depósito da água existente, à espera da sua vez para atravessar a estrada na direção da ..., também sita no Montijo, o arguido iniciou uma manobra de marcha atrás com o aludido veículo.
3. Quando a ofendida CC se encontrava em atravessamento da faixa de rodagem, o arguido não prestava atenção à condução que realizava, e aos obstáculos da via, e colheu a mesma nesse local, colidindo com a parte traseira do seu veículo no corpo da ofendida.
4. Ao realizar tal manobra, com o veículo que conduzia, o arguido atingiu CC, na zona lombar, do lado esquerdo, e fê-la perder o equilíbrio e tombar para o lado direito, caindo ao solo.
5. Em resultado da descrita conduta do arguido, CC sofreu ferimentos graves e teve necessidade de receber tratamento médico, tendo de imediato sido transportada para o Centro Hospitalar ... e posteriormente para o Hospital ..., tendo sido submetida a cirurgia, para colocação de uma prótese (colocação de OTS) no braço fraturado.
6. Como consequência direita e necessária da referida atuação do arguido e do embate do veículo do mesmo no seu corpo, para além de intensas dores e mal-estar, resultaram para CC várias lesões, como ferida abrasiva do cotovelo esquerdo e lombalgia bilateral, com aparente deformação, dor à palpação do ombro direito, fratura do úmero proximal direito e trauma da grelha costal, que lhe determinaram o cumprimento de um plano de fisioterapia por 6 (seis) meses e demandaram um período de 210 (duzentos e dez) dias de doença, sendo 30 (trinta) dias, de incapacidade para o trabalho em geral.
7. Não obstante a cirurgia efetuada e os tratamentos realizados, a ofendida CC mantém dores crónicas e que persistirão no futuro, por sequelas permanentes independentemente de consultas efetivadas doravante.
8. A velocidade máxima permitida no local é 50 Km/hora.
9. A via em que circulava o arguido possui duas faixas de rodagem, sendo uma em cada sentido e tem boa visibilidade, não existindo, na data acima indicada, quaisquer obstáculos na via.
10. Nas circunstâncias de tempo em que a situação descrita se verificou, era dia e o tempo encontrava-se limpo e seco.
11. Devido à forma súbita e inesperada como o arguido surgiu a conduzir o veículo no local, a ofendida CC não teve tempo de fugir.
12. Após a colisão, o arguido transportou a ofendida para o Centro Hospitalar ....
13. O arguido conduziu o automóvel referido acima de forma desatenta não lhe permitindo visualizar a ofendida na faixa de rodagem a atravessar a via pública, e realizar as manobras necessárias para não a colher, designadamente, imobilizar o veículo ou desviar-se, já que a largura da faixa de rodagem permite o trânsito de veículos e de peões, circunstâncias estas que eram do seu conhecimento.
14. Agiu o arguido sem observar os cuidados que devia e podia ter observado, mas sem representar a possibilidade de embater no peão, no caso CC.
15. Atuou o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, não se inibindo ainda assim de a realizar.
16. O arguido é reformado e recebe uma pensão de velhice no valor de 841,16€.
17. O arguido não tem condenações registadas em seu nome.
Factos dados como não provados pelo Tribunal de primeira instância (transcrição):
A. O arguido circulava a uma velocidade superior à que lhe teria permitido visualizar a ofendida na faixa de rodagem a atravessar a via pública.
Da contestação:
B) O arguido não viu a ofendida apesar de ter usado os retrovisores laterais e traseiro e ter observado bem antes de efetuar a manobra de marcha atrás.
C) Quando estava no hospital, após ter transportado a ofendida, alguém veio avisar o arguido de que o seu veículo estava mal estacionado, tendo este ido ao carro quando se lembrou que tinha peixe fresco acabado de comprar na praça e poderia estragar-se, tendo de seguida ido a casa levar o peixe e regressado posteriormente ao hospital, sendo que nessa altura a ofendida já não estava no mesmo local.
D) A ofendida está constantemente a cair sozinha.
Motivação da decisão sobre a matéria de facto pelo Tribunal de primeira instância (transcrição):
«Na esteira do plasmado constitucionalmente (vd. artigo 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) as decisões proferidas pelos tribunais, que não sejam de mero expediente, devem ser fundamentadas na forma prevista na lei.
A este propósito, o Código de Processo Penal consagra, nos seus artigos 97.º, n.º 4 e 374.º, n.º 2, a obrigação de fundamentar a sentença, exigindo que sejam pormenorizadas as razões de facto e de direito nas quais se funda a decisão proferida, incluindo a indicação e exame crítico das provas que serviram para sedimentar a convicção do Tribunal.
No ordenamento jurídico-penal, são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (cfr. artigo 125.º do Código de Processo Penal) e, além do mais, as provas devem ser apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (cfr. artigo 127.º do Código de Processo Penal).
No caso sub judice, na formação da convicção quanto à matéria de facto que supra se enunciou como provada, atentou este tribunal, de forma crítica, à conjugação da prova testemunhal e documental junta e produzida nos autos, integradas com as regras da lógica e da experiência comum e norteada, claro está, pela livre apreciação da prova.
Primeiramente, quanto ao facto 1) e, em específico, quanto à identidade do arguido, que o tribunal formou a sua convicção com base nos seguintes elementos.
Desde logo, o próprio arguido participou por escrito o acidente, o que deu azo ao aditamento n.º 3 à participação do acidente, constante dos autos a fls. 31, sendo que este aditamento identifica o arguido como condutor do veículo de matrícula ..-BQ-... Em acréscimo, independentemente da descrição do acidente e do que o arguido fez constar por escrito na participação, certo é que o mesmo voluntariamente dirigiu-se à esquadra em momento posterior aos factos e identificou-se como condutor do veículo envolvido, o que de resto está corroborado pelo mesmo na contestação deduzida nos presentes autos de fls. 394 e seguintes. Ademais, caso o arguido não fosse o condutor do veículo em causa não teria o mesmo forma de descrever por escrito o acidente nessa qualidade, conforme o fez.
Por outro lado, a ofendida CC identificou o arguido pelo nome em sede de julgamento, tendo referido expressamente, quando questionada se conhecia o Sr. AA, que foi este quem a embateu com o carro nas circunstâncias temporais e espaciais constantes da acusação.
Cumpre ainda referir que a mudança de mandatário durante o processo não afeta a relevância da posição processual e da versão dos factos tomada na contestação pelo arguido, a qual tem de ser devidamente valorada e ponderada pelo julgador.
Nesse conspecto, note-se que o tribunal igualmente valora, porque a isso está obrigado sob pena de omissão de pronúncia, a demais factualidade vertida na contestação, nomeadamente aquela que se elenca nos factos não provados B) a D).
A versão dos factos narrada em contestação pelo arguido não se confunde com uma confissão para efeitos do artigo 344.º do Código de Processo Penal, contudo seria absurdo que o tribunal desconsiderasse a posição assumida pelo arguido naquela sede, a qual deve ser atendida em conjugação com os demais elementos probatórios constantes dos autos.
Assim, verifica-se que o busílis e o âmago da contestação deduzida incidem sobre a dinâmica do acidente e sobre o preenchimento, ou falta dele, do elemento subjetivo do crime pelo qual o arguido vem acusado, bem como na invocação de culpa por parte da ofendida. Nunca, em momento algum, no desenrolar de todos os atos processuais e na produção de prova levada a cabo em sede de julgamento, levantou-se sequer a possibilidade de não ter sido o arguido a conduzir o veículo automóvel que veio a embater na ofendida. Tal posição apenas surgiu invocada pelo Ilustre Mandatário do arguido em sede de alegações orais, após ter sido amplamente discutida a dinâmica do acidente com inquirição das testemunhas arroladas pelo Ministério Público.
A circunstância de o arguido não ter comparecido em julgamento e de ter sido manifestada a sua posição de permanecer em silêncio não o pode prejudicar nem servir de autoincriminação, mas essa opção não poderá por si só beneficiá-lo. Esta consideração não é despicienda porquanto, por um lado, temos os variados elementos referidos anteriormente com relevância probatória que permitem ao tribunal formular a convicção de que o arguido era o condutor do veículo que embateu na ofendida, e por outro lado, de acordo com as regras da experiência e da razoabilidade, se o arguido não tivesse estado naquele dia e hora naquele local não teria deduzido a contestação nos termos em que o fez.
Quanto à identificação do veículo e as circunstâncias temporais e espaciais em que os factos ocorreram, o tribunal formulou a sua convicção com base na participação do acidente de fls. 28 e 29, na imagem do local de fls. 37, bem como no depoimento da ofendida e da testemunha BB que presenciou os factos, uma vez que estava no local quando os mesmos sucederam.
No que concerne à dinâmica do acidente (factos 2) a 4), 9), 10) e 11)), a mesma resultou provada na decorrência dos depoimentos prestados pela ofendida e pela testemunha BB.
A ofendida descreveu, embora com a natural dificuldade adveniente da sua idade, atualmente com 84 anos, e do lapso de tempo decorrido desde a data dos factos, que naquele dia pretendia atravessar a ... em direção à ... pela qual pretendia prosseguir. Descreveu ainda que, sem que estivesse à espera, o veículo conduzido pelo arguido veio a embater-lhe lateralmente (da esquerda para a direita) após ter efetuado marcha atrás de forma inesperada, projetando-a para o solo.
A dinâmica do acidente ficou ainda cabalmente esclarecida com o depoimento imparcial e credível da testemunha BB, reformado que presenciou os factos, o qual assertivamente afirmou ter-se apercebido que o arguido iniciou uma manobra de marcha atrás e que iria colidir com a ofendida, que se encontrava a atravessar a estrada na direção da ..., tendo tentado através de exclamações orais alertar o arguido, sem sucesso. Mais relatou que o arguido não fez a manobra com grande velocidade (dando-se assim como não provado o facto A)), mas que foi o suficiente para causar a colisão, sendo que o mesmo ainda recuou cerca de 15/20 metros.
Por fim, atestou ainda a testemunha em consonância com o que se pode observar na imagem de fls. 37 que não existe passadeira no local onde o embate ocorreu, nem existiam quaisquer obstáculos à visibilidade nem a estrada estava molhada.
De seguida, em face das lesões sofridas pela ofendida, foi o próprio arguido a levá-la ao hospital, conforme igualmente resultou do depoimento de ambas as testemunhas inquiridas, provando-se o facto 12).
As lesões sofridas pela ofendida estão devidamente documentadas nos autos, conforme elementos clínicos de fls. 55 a 59 e 65 a 109, resultando assim provados os factos 5) e 6).
O facto 7) resultou provado em face da sobredita documentação clínica constante dos autos, bem como do depoimento da ofendida, a qual asseverou de forma credível que as lesões sofridas tiveram impacto na sua vida e que ainda sente limitações de mobilidade e dores no braço/ombro.
Quanto ao facto 8), a velocidade máxima permitida no local consta expressamente da participação do acidente de fls. 28 e 29.
Os factos 13) a 15), concernentes à falta de cuidado e atuação desatenta do arguido, são manifestos à luz das regras da experiência comum e da razoabilidade, bem se sabendo que o cidadão médio colocado na situação em causa tem conhecimento que não podia executar a manobra de marcha atrás naqueles termos e a sua desatenção em específico é evidente porquanto não é verosímil que a ofendida, pessoa de idade e com movimentação lenta que se encontrava a atravessar a faixa de rodagem, tenha surgido de forma surpreendente na via.
Pelo que, ainda que seja certo que a manobra executada pelo arguido acarretaria sempre risco para os peões e trânsito em geral, naturalmente que se o arguido tivesse adotado o devido cuidado conseguiria ter avistado a ofendida e evitado a colisão no corpo daquela, o que de resto foi percetível até por terceiro (testemunha BB) que se apercebeu antecipadamente que o choque iria ocorrer. Assim, resulta não provado o facto B).
O facto 16) resultou provado em face da consulta efetuada na base de dados da Segurança Social, de fls. 408.
O facto 17) dá-se como provado pela análise da informação retirada do certificado de registo criminal do arguido, de fls. 409.
Os factos C) e D) resultaram não provados por absoluta inexistência de elementos probatórios que sustentem a alegação aventada pelo arguido em sede de contestação, ao invés tendo sido desmentidos pela ofendida no seu depoimento.»
III. FUNDAMENTOS DO RECURSO
Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417.º do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).2
A exigência de conclusões nos recursos, quer no âmbito penal quer no contra-ordenacional, tem em vista a determinação precisa e clara por parte dos sujeitos processuais dos aspectos que, por considerados incorrectamente julgados, pretendem ver reapreciados, de modo a permitir ao Tribunal conhecer de forma sintética, mas precisa as razões do pedido que lhe é dirigido.
Como se colhe dos ensinamentos do Professor Alberto dos Reis as conclusões são a enunciação resumida dos fundamentos do recurso, «as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação», sendo elas que delimitam o objecto do recurso, como acima se referiu.
No recurso em apreciação, tendo em consideração as conclusões delimitadoras das pretensões do recorrente, cumpre apreciar:
1. Nulidade da sentença por recurso a prova proibida;
2. Ocorrência dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
1. Invoca o recorrente não podia socorrer-se da versão dos factos por si narrada na contestação que tempestivamente apresentou à acusação contra si deduzida, já em fase de julgamento, como meio de prova. Para o efeito lança mão do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Antes de mais, diga-se que o Tribunal a quo, na sua fundamentação de facto, não considerou a versão do arguido plasmada na respectiva contestação como tratando-se de uma confissão. Como ali expressamente fez constar,
Cumpre ainda referir que a mudança de mandatário durante o processo não afeta a relevância da posição processual e da versão dos factos tomada na contestação pelo arguido, a qual tem de ser devidamente valorada e ponderada pelo julgador.
Nesse conspecto, note-se que o tribunal igualmente valora, porque a isso está obrigado sob pena de omissão de pronúncia, a demais factualidade vertida na contestação, nomeadamente aquela que se elenca nos factos não provados B) a D).
A versão dos factos narrada em contestação pelo arguido não se confunde com uma confissão para efeitos do artigo 344.º do Código de Processo Penal, contudo seria absurdo que o tribunal desconsiderasse a posição assumida pelo arguido naquela sede, a qual deve ser atendida em conjugação com os demais elementos probatórios constantes dos autos.
Assim, verifica-se que o busílis e o âmago da contestação deduzida incidem sobre a dinâmica do acidente e sobre o preenchimento, ou falta dele, do elemento subjetivo do crime pelo qual o arguido vem acusado, bem como na invocação de culpa por parte da ofendida. Nunca, em momento algum, no desenrolar de todos os atos processuais e na produção de prova levada a cabo em sede de julgamento, levantou-se sequer a possibilidade de não ter sido o arguido a conduzir o veículo automóvel que veio a embater na ofendida. Tal posição apenas surgiu invocada pelo Ilustre Mandatário do arguido em sede de alegações orais, após ter sido amplamente discutida a dinâmica do acidente com inquirição das testemunhas arroladas pelo Ministério Público.
O facto do arguido se ter remetido ao silêncio no decurso da audiência de julgamento impede que o tribunal aprecie e valore aquilo que escreveu em peça processual destinada a responder à acusação de que era alvo, o que foi feito através de defensor, nenhum vício da vontade ou outro tendo sido apontado àquela defesa?
Desde logo a própria lei adjectiva que impõe ao julgador que se pronuncie sobre os factos vertidos na contestação3, estando o arguido mesmo impedido, por exemplo, de apresentar uma segunda contestação4.
À semelhança das declarações prestadas por arguido no decurso do inquérito ou da instrução, ressalvadas que estejam certas formalidades, por maioria de razão a versão daquele vertida numa contestação a uma acusação formal, apresentada já em fase de julgamento, vale como elemento de prova a considerar, mas apenas se for confrontada com as mesmas. É que, não olvidemos, para todos os efeitos aquela peça processual é subscrita por um terceiro (advogado), podendo sempre em audiência, por hipótese, o arguido vir dizer que não foi nada daquilo que disse ao seu defensor.
Como bem refere DAMIÃO DA CUNHA5, «parece adquirido genericamente que, num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento, e em especial a produção de prova, assume o lugar central no processo penal. A produção da prova, que deva servir para fundar a convicção do julgador, tem de ser a realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova. Não é, de resto, outra a solução que está prevista no artigo 355.º do CPP. E, estando em causa declarações de sujeitos processuais (ou meros participantes processuais) – no fundo a forma de actuação (o tipo de actos processuais) mais importante no processo penal –, tais princípios terão de vigorar na íntegra».
Assim, as declarações onde se confessem os factos imputados ao arguido podem ter lugar quer na contestação, quer em momento anterior à audiência, não produzindo, nesses casos, os efeitos previstos no artigo 344.º do Código de Processo Penal.
Neste domínio o tribunal está vinculado ao princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal), pelo que o juiz pode valorar todos os elementos trazidos aos autos, incluindo a versão do arguido, desde que essa valoração seja feita com prudência e de forma fundamentada, em conjugação com os demais meios de prova e com a mesma seja o arguido confrontado em audiência.
Como dissemos já, o Tribunal a quo não retirou o efeito jurídico confessório àquilo que o arguido verteu na sua contestação, ao contrário do que diz aquele (cfr. conclusão L), antes utilizou esta versão em conjugação com a demais prova produzida em audiência para formar a sua convicção.
O arguido, ao ter-se votado ao silêncio, como era aliás seu direito, não se pronunciou sobre a dita versão dos factos constante da sua contestação, pelo que, parece-nos, estava vedado ao Tribunal a quo recorrer à mesma para a formação da sua convicção.
1.2. Defende ainda o recorrente que não podia o Tribunal a quo socorrer-se da participação que o mesmo fez, de forma voluntária, em 04/09/2019, na PSP, bem como deveria ter sido aquele participante previamente constituído como arguido.
Não lhe assiste razão.
Aquela participação constava do elenco da prova documental constante da Acusação, sendo que a ela o arguido teve pleno acesso e não carecia de qualquer forma especial de produção, como ocorre, por exemplo, no caso de declarações para memória futura ou de declarações prestadas pelo arguido em fase prévia do processo (v.g. artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal).
Valerá aqui, mutatis mutandis, o entendimento já expresso pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão de n.º 440/99, de 8 de Julho6, segundo o qual, «o art.º 129º, nº 1 (conjugado com o art.º 128º, nº 1) do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatam conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso, não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal forma não é inconstitucional».
Acresce que aquele aditamento está por si assinado e valerá, como meio de prova, enquanto documento, não como declarações formal ou informalmente prestadas a órgão de polícia criminal. É que, «se [a]s percepções dos O.P.C., concretamente por conversas com o suspeito antes da abertura formal do inquérito são valoráveis»7, não poderá deixar de ser o comunicado por escrito por agente naquela mesma fase.
Aqui valerá a pena determo-nos no conceito de documento.
Decidiu já, de forma clara e lapidar, este Tribunal8:
I. De harmonia com o disposto no n.º 1 do art.º 164.º do CPP, «é admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal».
II. A esta luz, reveste a natureza de documento toda a declaração materializada num escrito, perceptível para a generalidade das pessoas, que, possibilitando reconhecer o emitente, seja idónea a provar um facto juridicamente relevante.
III. Se para a definição do conceito de documento se atendesse apenas ao indicado n.º 1 do art.º 164.º do CPP e às alíneas a) e b) do art.º 255.º do C.P., para que aquele remete, qualquer auto lavrado num processo, contivesse ou não declarações, seria um documento e, como tal, poderia ser valorado para a formação da convicção do tribunal nos termos e nas circunstâncias enunciadas no art.º 355.º daquele Corpo de leis.
IV. Uma tal conclusão entraria em conflito com o disposto nos arts. 356.º e 357.º, ambos do CPP, disposições que obstam, por regra, a valoração, para a formação da convicção do tribunal, de diligências de prova realizadas nas fases preliminares do processo, designadamente a valoração de autos de inquérito que abarquem declarações do assistente.
V. Para delimitar os conceitos processuais de prova documental e de auto (art.º 99.º do CPP), deve partir-se da ideia de que o objecto representado pelo documento é um acto realizado fora do processo ao qual ele vem a ser junto.
VI. Se, pelo contrário, o objecto representado é um acto do processo em causa, qualquer que ele seja, então estamos perante um auto que é nele lavrado e que está sujeito a um regime diferente do reservado à prova documental.
VII. Um auto não pode, nomeadamente, ser valorado para a formação da convicção do tribunal a não ser nos apertados limites traçados pelos arts. 356.º e 357.º ambos do CPP.
O aditamento n.º 3, ora em causa, foi feito pelo arguido, não na sequência de qualquer sorte de convocação pelo OPC, mas por sua iniciativa, numa altura em que existia apenas uma participação de ocorrência lavrada pela polícia relativa a um acidente de viação. Não existia inquérito-crime e muito menos queixa por parte da ofendida. Por isso mesmo, como infra se dirá, tampouco se impunha a constituição do ali participante como arguido.
Do ora exposto resulta não poder o mesmo aditamento assumir a natureza de «auto».
Por outro lado, o facto de tal aditamento não ter sido lido em audiência em nada afecta a sua validade. Como se decidiu já, «o facto de o Tribunal do julgamento se ter servido de prova documental pré-constituída e junta ao processo, mas que não foi produzida ou examinada na audiência, mas cuja leitura não seria proibida, não viola quer o princípio do contraditório quer o direito de defesa do arguido»9.
Por outro lado, atente-se que a denúncia só foi apresentada pela ofendida em 19/12/2019, portanto em momento posterior àquela participação, pelo que tampouco, aquando da apresentação desta, existia a obrigação de constituição do participante como arguido (cfr. artigo 58.º, n.º 1 do Código de Processo Penal)10.
1.3. Persiste, assim, a questão suscitada pelo recorrente: os elementos probatórios existentes, ressalvada a versão do arguido plasmada na contestação (que, como vimos, não pode ser valorada), são suficientes para sustentar a condenação daquele? A resposta não pode deixar de ser afirmativa. É que a consequência da valoração de prova proibida acarreta a nulidade da sentença.
A par da supra referida participação temos os depoimentos da ofendida e da testemunha BB, que descreveram a dinâmica do acidente e que foram valorados para aquele efeito pelo Tribunal a quo, nos termos em que supra transcrevemos, bem como a imagem impressa do local do acidente.
Se bem lermos a fundamentação da matéria de facto, o recurso à versão dos factos narrada na contestação será apenas um plus em relação à demais prova que sustenta os factos dados como assentes. Assim, expurgados aqueles cinco parágrafos (págs. 5 e 6 da sentença), vemos que o tribunal a quo se estribou na participação do arguido em fase prévia ao inquérito, nas declarações da ofendida e no depoimento de uma testemunha presencial para dar como provados os factos típicos do ilícito, nomeadamente quem conduzia o veículo e como se deu o atropelamento.
Daqui decorre que não se impõe anular a sentença, visto que da respectiva fundamentação – retirando-se a alusão à contestação – é manifesto que os factos dados como provados continuam a ter sustentação clara e lógica, não carecendo daquela prova julgada proibida. Ao proceder desta forma estamos a dar cumprimento ao comando do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.11
Podemos então avançar para a apreciação dos demais fundamentos do recurso.
2. Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e, por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida. O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, mesmo constantes do processo12.
Estes vícios não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Pois o que releva «é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art.º 410º, nº 2 do C.P.P, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos»13.
Estes vícios, que também são de conhecimento oficioso, repita-se, têm, pois, a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e são decorrência do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terão que ser auto-suficientes.
Caso não seja possível demonstrar o vício em que incorreu o julgador sem recurso ao registo áudio ou outro elemento, então é porque o erro não emana directamente do texto da sentença recorrida, ficando logo definitivamente afastada a sua integração no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, como vício decisório.
Mas daí não se retira que não possa haver um erro de julgamento por errada valoração da prova, nos termos do disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal, situação diversa da dos vícios da decisão. Ou seja, pode até inexistir qualquer um dos vícios decisórios e, ainda assim, a prova ter sido mal apreciada pelo tribunal a quo, situação em que se configura, neste último caso, um verdadeiro erro de julgamento, cujos pressupostos de conhecimento são os previstos no aludido artigo 412.º, que com os primeiros vícios não se confundem por não transparecerem do texto da decisão recorrida.
Como se extrai do recurso, o recorrente funda a sua pretensão de modificação da matéria de facto na errada valoração que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, sustentando que a mesma – que conduziu o Tribunal a um estado de dúvida – se apresenta contrária às regras da lógica e das regras de experiência comum. Ora, tal alegação corresponde juridicamente à alegação de violação do princípio da livre apreciação da prova, princípio que, como decorre do artigo 127.º do Código de Processo Civil, preside à apreciação da prova e do qual decorrem limitações ao controlo da decisão sobre a matéria de facto, em sede de recurso.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal a quo se estribou nestes pressupostos, o Tribunal ad quem não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal) que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição [«é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc. (…) «E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»14].
Da conjugação do regime legal vigente em matéria de apreciação e valoração da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, resulta que a tarefa do Tribunal de recurso se reconduz a aferir se o Tribunal a quo apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Ou seja, e como inicialmente dissemos, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível apelar a elementos estranhos àquela para o fundamentar – como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento –, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente15.
Serão, pois, falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
Esta interpretação, para além de acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o Acórdão de 23/09/201016, em cujo sumário se sintetiza que o «erro notório na apreciação da prova, da al. c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».
A este propósito, citemos ainda impressivo trecho de aresto do mesmo Tribunal Supremo17:
No enquadramento jurídico-processual que é feito dos vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, estes assumem-se como erros de julgamento a relevar da contextualização interna da decisão, ou da própria estrutura da decisão, congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.
(…)
Não se podem esgrimir argumentos opinativos quanto ao julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem criticar o processo formativo cognitivo – racional que arrimou uma tal ou qual apreciação factual ou valoração probatória, a menos que eles sejam cruciantes para o senso comum, et pour cause, o tornem inane para validação do acto de julgamento efectuado.
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção. Já não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Assim estabelecidos os limites da análise suscitada, cumpre proceder à análise da prova e da exposição motivacional do Tribunal recorrido e aferir da invocada violação do princípio da livre apreciação da prova, com fundamento na inobservância, por este, das regras da lógica e da experiência comum (juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstracta decorrentes da observação empírica de factos anteriores semelhantes e que autorizam a apreciação de determinado comportamento com recurso à generalização, usando para o efeito um raciocínio indutivo que permite concluir que, em iguais circunstâncias, voltarão a ocorrer dessa forma18), e bem assim do uso de meios de prova proibidos.
Neste último aspecto, alega o recorrente que o Tribunal a quo não podia ter valorado a participação por escrito do acidente de viação, que deu aso ao aditamento n.º 3 à participação do mesmo acidente; mais sustenta que a contestação apresentada pelo arguido não poderia nunca valer como confissão. Estas questões foram já tratadas no ponto anterior deste Acórdão.
Quanto ao mais, nomeadamente as imprecisões ou contradições no depoimento da ofendida, tal enquadra-se na impugnação ampla da matéria de facto, cujos requisitos de admissibilidade constam do artigo 412.º do Código de Processo Penal, não tendo o arguido a este fundamento recursório aderido (aliás, expressamente invoca, no início da sua motivação, ser o recurso restrito a matéria de direito). Assim, está vedado ao Tribunal a quem sindicar a matéria de facto nesses moldes.
Quanto à existência na sentença de qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal e supra enquadrados, da leitura da decisão, e mais concretamente da sua motivação da matéria de facto acima transcrita, não vislumbramos nenhum deles.
O Mmo. Juiz faz uma apreciação cuidada e crítica de toda a prova produzida, interligando-a, para concluir, de forma lógica e fundamentada, que não subsiste qualquer dúvida quanto à prática dos factos pelo arguido nos moldes em que este vinha acusado (isto já expurgando a valoração da versão dos factos vertida na contestação). E, não nos esqueçamos, foi aquele Julgador quem teve o privilégio da imediação, explicando de forma coerente as imprecisões, falhas ou contradições que apreciou nos depoimentos que ouviu.
Concluindo, não sobressai da Sentença recorrida, por si só e/ou com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha evidente na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário, não existindo por isso lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo Arguido AA e, em consequência, confirmam a Sentença recorrida.
Vai o recorrente condenado nas custas do recurso, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida – artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro).
Notifique.
*
Lisboa, 19 de Dezembro de 2024
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Ana Marisa Arnêdo (vencida conforme voto infra)
Eduardo de Sousa Paiva

Declaração de voto de vencida
Conforme resulta das conclusões recursivas, para o que ora importa, o recorrente invoca substantivamente a nulidade da sentença por utilização de prova proibida.
Em síntese, insurge-se contra a circunstância de o Tribunal a quo ter fundado a motivação, por um lado, na participação do acidente - aditamento n.º 3 - e, por outro, na contestação por ele apresentada.
E pacificamente, como resulta da motivação, o Sr. Juiz do Tribunal a quo no que respeita aos factos dados como provados, em particular, do ponto 1 e no que se refere à identidade do arguido «(…) formou a sua convicção com base nos seguintes elementos:
Desde logo, o próprio arguido participou por escrito o acidente, o que deu azo ao aditamento n.º 3 à participação do acidente, constante dos autos a fls. 31, sendo que este aditamento identifica o arguido como condutor do veículo de matrícula ..-BQ-...
Em acréscimo, independentemente da descrição do acidente e do que o arguido fez constar por escrito na participação, certo é que o mesmo voluntariamente dirigiu-se à esquadra em momento posterior aos factos e identificou-se como condutor do veículo envolvido, o que de resto está corroborado pelo mesmo na contestação deduzida nos presentes autos de fls. 394 e seguintes. Ademais, caso o arguido não fosse o condutor do veículo em causa não teria o mesmo forma de descrever por escrito o acidente nessa qualidade, conforme o fez.
(…) Cumpre ainda referir que a mudança de mandatário durante o processo não afeta a relevância da posição processual e da versão dos factos tomada na contestação pelo arguido, a qual tem de ser devidamente valorada e ponderada pelo julgador.
Nesse conspecto, note-se que o tribunal igualmente valora, porque a isso está obrigado sob pena de omissão de pronúncia, a demais factualidade vertida na contestação, nomeadamente aquela que se elenca nos factos não provados B) a D).
A versão dos factos narrada em contestação pelo arguido não se confunde com uma confissão para efeitos do artigo 344.º do Código de Processo Penal, contudo seria absurdo que o tribunal desconsiderasse a posição assumida pelo arguido naquela sede, a qual deve ser atendida em conjugação com os demais elementos probatórios constantes dos autos»
Ou seja, inequivocamente, o Sr. Juiz do Tribunal a quo valorou (em conjunto com o depoimento da ofendida) a narrativa e a assinatura constantes do referido aditamento n.º 3 à participação do acidente e a contestação apresentada pelo arguido/recorrente para sustentar a factualidade dada por assente no ponto 1 e, depois, por inferência, os demais pontos no que concerne à identidade do agente.
Assim sendo, adquirido que o arguido/recorrente, apesar de ter apresentado contestação se remeteu ao silêncio em julgamento, impõe-se a descrição sumária e cronológica das circunstâncias em que surgem nos autos o predito aditamento.
Como resulta do processo:
- A PSP elaborou a participação do acidente em causa no dia ... de ... de 2019 (dia seguinte à ocorrência), resultando da mesma que a autoridade policial não esteve no local do acidente, que se deslocou ao Hospital onde estava internada a vítima e colheu, desta e de um segurança que naquele desempenhava funções, as primeiras informações;
- Em 19 de Julho de 2019 é efectuado um (primeiro) aditamento à participação do acidente, no qual foi consignado que havia sido apurada a matrícula do veículo interveniente no acidente;
- No dia 4 de Setembro de 2019 surge nos autos um novo aditamento à participação do acidente, no qual a autoridade policial consignou que o ora arguido/recorrente compareceu na Esquadra da PSP e enxertou no mesmo as declarações daquele relativamente à dinâmica do acidente; imediatamente a seguir surge um formulário da PSP, denominado auto de descrição do acidente, preenchido manualmente e assinado pelo agora arguido/recorrente (aditamento n.º 3);
- A queixa foi apresentada no dia 23 de Dezembro de 2019 e só ocorreu a constituição como arguido em 5 de Janeiro de 2021.
Deste iter processual decorrem, para já e com clareza, duas asserções:
- A primeira é que, no mínimo, será muito duvidosa a invocada voluntariedade do ora arguido/recorrente ao dirigir-se à esquadra da PSP em momento posterior aos factos e ao identificar-se como condutor do veículo envolvido, pois que, com muita probabilidade, uma vez apurada a matrícula do veículo interveniente, terá sido, sequencialmente, convocado19 a ali comparecer;
- A segunda a de que o referido aditamento n.º 3 que o Sr. Juiz valorou (valoração que veio a ser ratificada pela posição que fez vencimento) consubstancia, inequivocamente, um acto processual documentado, no qual está acoplada uma declaração por escrito (do ora arguido/recorrente) em formulário da PSP, denominado auto de descrição do acidente, com a assumpção da sua intervenção naquele.
Ou seja, salvo o devido respeito, não está em causa prova documental, nos termos propugnados na posição que fez vencimento.
Com efeito, «Deverá distinguir-se documentos enquanto meio de prova qua tale e atos processuais documentados (v.g. autos ou atas). Se é certo que estes últimos se podem apelidar de documentos (documentos intra-processuais ou latu sensu por contraposição com documentos extra-processuais ou stricto sensu) são diferenciáveis os dois conceitos em termos penais. O legislador “separa” a disciplina normativa entre o regime da prova por documento e os atos processuais (…)
Estão sujeitos a um diferente regime jurídico, nomeadamente em relação à valoração em julgamento. No que concerne à valoração dos atos processuais deverá atender-se ao art.º 355º/2 e 356º (bem como art.º 357º especificamente em relação às declarações do arguido), enquanto que a prova por documento ficará sujeita às regras gerais quanto à sua admissibilidade»20
Como decorre do art.º 355º, do C.P.P., não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (n.º 1) ressalvando-se as contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes (n.º 2).
E tanto assim é que, a valoração de declarações e depoimentos (mesmo os formalmente) produzidos, na qualidade de arguido, de assistente, ou de testemunha, em momento prévio à audiência de julgamento, apenas pode ocorrer nos casos expressamente previstos e desde que verificados os necessários pressupostos, conforme decorre dos artigos 355º, 356º e 357º do C.P.P.21
In casu, não estão em crise declarações prestadas na fase de inquérito e/ou de instrução pelo arguido/recorrente, em tese susceptíveis de valoração, uma vez observados aqueles pressupostos, designadamente a sua leitura ou reprodução em audiência de julgamento, nem estão em causa, de todo, declarações prestadas por pessoa a agentes policiais antes de ser constituída arguida22.
Vale tudo por dizer que, valorar-se aquela declaração por escrito, como assumpção da intervenção no acidente23, equivale a elevá-la «à categoria de “confissão” pré-processual. E isso está vedado ao tribunal. Desde logo (…) pelas cautelas de que o efeito confessório é rodeado pela ordem jurídica» e porque aceitar o declarado por escrito «como equiparado a “confissão” é inviabilizar direitos, designadamente o direito ao silêncio e, aliás, ao próprio direito a um julgamento em audiência pública, redundando em completa negação da imediação e da oralidade e, “máxime”, do acusatório»24,
«Mesmo que se defenda que o direito ao silêncio nasce apenas no momento em que o arguido é constituído nessa qualidade, o seu exercício em concreto – pelo arguido, como arguido – não pode deixar de silenciar, apagando, tudo o que fora por ele declarado anteriormente no processo, verificando-se como que um efeito expansivo do exercício do silêncio.
O núcleo irredutível do nemo tenetur reside na não obrigatoriedade de contribuir para a auto-incriminação através da palavra, no sentido de declaração prestada no processo e para o processo. A auto-incriminação, a existir, tem de ser livre, voluntária e esclarecida»25
Por outro lado, no que à contestação concerne, pese embora nos mereça concordância a conclusão da proibição de valoração a que chegou o acórdão26, urge aditar e esclarecer o seguinte:
«(…) o regime das proibições de prova e que relevam da sua dimensão material-substantiva: i) revestem carácter não taxativo, não dependendo, por conseguinte, de consagração legal expressa (…) ; ii) são de conhecimento oficioso; iii) têm carácter erga omnes; e iv) são insanáveis (recorde-se que mesmo as nulidades ditas “insanáveis” do art.º 119.º do CPP são, em rigor, sanáveis por força do caso julgado), constituindo, por isso, motivo de recurso de revisão, nos termos do art.449.º-1/e) do CPP, introduzido pela Reforma do CPP de 2007 (Lei 48/2007, de 29ago)»27
«Declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afecta a mesma decisão o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado»28
«(…) a ideia subjacente é a de que a sentença que se funda em prova nula é também ela nula - nulidade que é do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa e 6°, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, sendo outra a cominação, proibições de prova que os obliteram poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis»29
Ou seja, no caso, mesmo na perspectiva mitigada (que fez vencimento), impunha-se que fosse declarada a nulidade da sentença recorrida, por utilização, na fundamentação da matéria de facto, de prova proibida e, em consequência, determinada a prolação de nova sentença, que excluísse como meio de prova a contestação apresentada.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27 de Novembro 2013, processo n.º 319/06.7TASPS.C1, in www.dgsi.pt. «I. Quando o meio de prova proibido é o único que permite a prova de determinado facto, o Tribunal da Relação, conhecendo de recurso interposto, pode/deve sanar a nulidade.
II - Mas sempre que o tribunal da 1.ª instância funda a sua convicção, conjuntamente, em meios de prova proibidos e em meios de prova válidos, só ele está em condições de voltar a decidir com base nos meios de prova legais, de refazer o seu juízo crítico sobre a prova e expô-lo para eventual nova sindicância em função de novo recurso que venha a ser interposto»30.
«O normal será que a prova proibida concorra com uma bateria de meios admissíveis, numa teia dificilmente extrincável de influência e codeterminação recíprocas. (…) nada, por isso, mais aleatório e inseguro do que a tentativa de identificar e isolar o peso que o meio de prova terá tido na convicção do julgador (…). Nestas hipóteses só pela via da revogação da decisão se poderão assegurar a reafirmação contrafáctica das normas violadas e a actualização do respectivo fim de protecção. O que terá de fazer-se prevenindo-se o perigo de a convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido, entretanto lograda – e para a qual contribuiu, a seu modo, o meio proibido de prova – ter já operado uma reinterpretação cognitiva do significado e da valência probatória dos meios sobrantes e legítimos de prova. A renovação da prova motivada pelas proibições de valoração suscita, assim, exigências a que, por princípio, só através do Reenvio (…) se poderá dar resposta ajustada».31
Em síntese, teria, pois, declarado a nulidade da sentença recorrida, por utilização na fundamentação da matéria de facto de prova proibida e determinado que fosse prolatada nova sentença, que excluísse comos meios de prova o aditamento n.º 3 à participação do acidente e a contestação apresentada.
Ana Marisa Arnêdo

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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Diário da República – I Série, de 28/12/1995
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção (www.dgsi.pt).
3. Assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 05/06/2024 – Proc. 1683/20.0T9CLD.C1 (www.dgsi.pt): «O Tribunal de julgamento está vinculado a emitir juízo de prova sobre os factos alegados pelo arguido na contestação, a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir».
4. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09/06/2020 – Proc. 215/18.5T9PTL-A.G1 (www.dgsi.pt).
5. O Regime Processual de Leitura de Declarações na Audiência de Julgamento, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 7, Julho-Setembro 1997, págs. 405-406.
6. Diário da República, Série II, de 09/11/1999.
7. TIAGO CAIADO MILHEIRO, Breve Excurso pela Prova Penal na Jurisprudência Nacional, JULGAR n.º 18 – 2012, pág. 38.
8. Acórdão de 18/05/2011, Proc. 199/07.5GHSNT.L1-3 (www.dgsi.pt).
9. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12/07/2023, Proc. 536/21.0T9AGD.P1 (www.dgsi.pt).
10. Como parece ser o entendimento da jurisprudência, «a proibição de prova relativa a declarações prestadas a agentes policiais por pessoa antes de ser constituída arguida se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição e se aquelas não constituírem confissão de factos» - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/04/2015, Proc. 1161/11.9PBFAR; no mesmo sentido, Acórdão do mesmo Tribunal, de 28/03/2023, Proc. 389/17.2PBELV.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/11/2023, Proc. 49/22.2GBVIS.C1. (www.dgsi.pt).
11. Sobre questão análoga vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/12/2021, Proc. 7/12.5JALRA.C1.S2 (www.dgsi.pt).
12. Neste sentido, e de entre muitos outros, MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 2002, pág. 808.
13. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça referente ao Proc. n.º 3453/08-3, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Lisboa, 2020, pág. 76.
14. ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, Volume II, Coimbra, 2010, págs. 201 e 273.
15. Cfr. MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, Coimbra, 2002, pág. 808; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, vol. III, Lisboa, 1994 pág. 326; SIMAS SANTOS E LEAL HENRIQUES, em Recursos em Processo Penal, Lisboa, 2020, págs. 81 e ss.).
16. Acessível em www.dgsi.pt.
17. Acórdão de 11/10/2017 (www.dgsi.pt).
18. Vide a propósito Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 21/01/2020 (www.dgsi.pt).
19. Previsivelmente, de modo informal.
20. Tiago Calhado Milheiro, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo II, p. 506/507.
21. A respeito, maxime, no que às declarações prestadas pelo arguido concerne, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2023, de 9 de Junho, DR I Série.
22. Nas quais a jurisprudência tem vindo a entender maioritariamente que a proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido, antes de este o ser ou haver obrigação de constituição, se não houver culpa das forças policiais no atrasar da formalização daquela constituição.
23. Sabido que a confissão pode ser integral ou parcial.
24. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/10/2014, processo n.º 40/11.4GTPTG.E2, in www.dgsi.pt.
25. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9/10/2022, processo n.º 199/11.0 GDFAR.E1, in www.dgsi.pt.
26. Ao invés da posição titubeante que ficou exarada, afigura-se inolvidável que à confissão integral ou parcial efectuada na contestação não pode, por natureza e definição, ser assacado qualquer valor probatório se aquela não for confirmada em audiência de julgamento perante o juiz. A respeito e neste sentido, José António Rodrigues da Cunha, A COLABORAÇÃO DO ARGUIDO COM A JUSTIÇA — A CONFISSÃO E O ARREPENDIMENTO NO SISTEMA PENAL PORTUGUÊS, Julgar n.º 32, 2017, p. 8/9 e Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2ª edição, p. 470.
27. João de Matos-Cruz Praia, “Proibições de prova em processo penal: algumas particularidades no âmbito da prova por reconhecimento e da reconstituição do facto”, Julgar Online, Dezembro de 2019, p. 14.
28. Santos Cabral, Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, Almedina, pág. 407.
29. A propósito os Acórdãos do S.T.J. de 6/10/2016, processo nº 535/13.5JACBR.C1.S1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 20/3/2018, processo n.º 124/16.2PELSB, ambos in www.dgsi.pt.
30. No mesmo sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do S.T.J. de 6/10/2016, proc. nº 535/13.5JACBR.C1.S1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/6/2019, proc. n.º 185/15.1IDLRA.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 2/2/2022, proc. n.º 161/16.7GAVLG.P2 e de 9/11/2022, proc. n.º 471/20.9PIVNG.P1 e do Tribunal da Relação de Évora de 22/10/2024, proc. n.º 164/23.5JAFAR.E1, todos in www.dgsi.pt.
31. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 1992, págs. 65/66.