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APLICAÇÃO DO REGULAMENTO(UE) N.º 1111/2019
DE 25 DE JUNHO
EM MATÉRIA MATRIMONIAL E DE RESPONSABILIDADE PARENTAL
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
LUGAR DA RESIDÊNCIA
Sumário
I – O Regulamento(UE) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, respeitante a decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental - Regulamento Bruxelas II-B, é aplicável directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses. II - Este tipo de regulamento tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a EU. III – A determinação sobre se a habitação num lugar já tem a duração suficiente para constituir residência, deve decidir-se em face de caso concreto, através da verificação de dois requisitos: um requisito material – a morada em certo lugar – um requisito subjectivo – a intenção ou o ânimo de se fixar nesse lugar, de nele permanecer. IV - A habitação, com alguma duração, em certo lugar pode não configurar residência porque, por exemplo, só circunstâncias acidentais forçam a pessoa a permanecer nessa localidade; ao contrário, a habitação num lugar por período de tempo relativamente curto pode inculcar residência se tudo revela que a pessoa está disposta a fazer desse lugar o centro da sua vida e dos seus interesses.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
Relatório
AA, casado, operário da construção civil, contribuinte fiscal n. º ...07, emigrante na Suíça onde reside em ... ... ..., Suíça, e quando em Portugal em Rua ..., ..., ... ..., intentou a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra BB, casada, contribuinte fiscal n.º ...77, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., pedindo que, julgada a acção procedente, por provada, seja, em consequência, decretada a dissolução, por divórcio, do casamento entre Autor e Ré, com efeitos a partir da data da separação de facto, de Março de 2023 e confiada ao Autor a guarda provisória dos filhos menores do casal.
Alegou, em suma, manter o propósito firme de não restabelecer a vida em comum com a Ré, face aos invocados comportamentos da Ré de violação, de forma grave e reiterada, dos deveres de respeito, fidelidade, coabitação e cooperação a que os cônjuges estão vinculados (artigo 1672.º do C. Civil), que tornam de todo inviável a manutenção do casamento entre Autor e Ré – alínea d) do artigo 1781.º do C. Civil.
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Perspectivada a questão da (in)competência internacional deste tribunal, e oferecido o contraditório, o autor veio, em síntese, alegar que tem, assim como a ré, nacionalidade portuguesa, cujo critério que, à luz dos instrumentos internacionais aplicáveis com prevalência sobre o direito nacional (Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de Junho de 2019 e Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11) deve ser erigido para atribuir aos Tribunais portugueses competência para o divórcio.
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De seguida, foi proferida decisão que julgou verificada a incompetência absoluta do Juízo de Família e Menores de Braga, em razão das regras de competência internacional e, em consequência, absolvo a R da instância.
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II-Objecto do recurso
Não se conformando com a decisão proferida veio o A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes autos, que concluiu pela verificação da exceção dilatória da incompetência absoluta, em razão das regras de competência internacional, a qual tem por consequência a absolvição da Ré da instância (artigo 99.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), julgando verificada a incompetência absoluta deste Tribunal de Família e Menores de Braga, em razão das regras de competência internacional e, em consequência , absolveu a Ré da instância.
II. No entanto, e salvo o devido respeito por opinião contrária, entende o Recorrente que andou mal o Tribunal a quo a considerar-se incompetente e absolver a Ré da instância.
III. Por douta sentença proferida em 23/09/2024, nos autos de processo supra identificados, que corre seus termos pelo Juízo de Família e Menores de Braga, Juiz ..., decidiu o Tribunal a quo com os seguintes fundamentos:
“Dispõe o artigo 59º do CPCivil que: “os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º (…).”.
Por outro lado, dispõe o art. 62º do CPCivil que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português.
Em matéria de divórcio e separação dispõe o artigo 72º do CPCivil que “é competente o tribunal do domicílio ou da residência do Autor”. E, nos termos do disposto no artigo 82º, nº1 do CCivil “A pessoa tem domicílio no lugar da sua residência habitual”.
Ora, o autor tem domicílio e residência habitual na Suíça, pelo que, não se verifica o elemento de conexão constante da alínea a) do art. 62º do CPCivil.
Por outro lado, também não se demonstra o elemento de conexão mencionado na al. b) do art. 62º do CPCivil relativo a “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram”.
Por fim, também não se verifica o elemento de conexão constante da al. c) do art. 62º do CPCivil porquanto sendo o autor residente na Suíça sempre poderá instaurar a acção de divórcio nos tribunais do país onde reside habitualmente.
É certo que, como diz o autor, vigoram na ordem jurídica interna os instrumentos internacionais em matéria de divórcio e responsabilidade parental.
Conheceu-se o Regulamento de Bruxelas n.º 2201/2003 de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 e, por sua vez, foi revogado pelo Regulamento (UE) 2019/1111 DO CONSELHO de 25 de junho de 2019.
Dispõe o artigo 3º do Regulamento 2019/1111, que: São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado- Membro:
a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão; ou
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges. Assim sendo, tratando-se de critérios alternativos, conforme vem sendo, jurisprudencialmente, defendido, os tribunais portugueses seriam competentes à luz da nacionalidade dos cônjuges.
Todavia, conforme resulta dos seus considerandos (9), o Regulamento só se aplica à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento e outras eventuais medidas acessórias.
Ora, na presente acção são, precisamente, discutidas as causas do divórcio (violação dos princípios da cooperação, assistência, coabitação), pelo que, não lhe deve ser aplicada as disposições do Regulamento em referência. Conclui-se, assim, pela verificação da excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão das regras de competência internacional, a qual tem por consequência a absolvição da R da instância (art. 99º, nº 1 do CPCivil)”
IV. O Recorrente intentou a presente ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge contra a Ré, a qual reside em Portugal com os filhos menores do casal, na casa de morada de família na ..., pedindo que, com os fundamentos alegados, seja decretado a dissolução por divórcio do casamento celebrado com a Ré.
V. Perspetivada a questão da (in)competência internacional do Tribunal a quo, e oferecido o contraditório, o Recorrente veio, em síntese, alegar que tem, assim como a ré, nacionalidade portuguesa; critério que, à luz dos instrumentos internacionais aplicáveis com prevalência sobre o direito nacional (Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019 e Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11) deve ser erigido para atribuir aos Tribunais portugueses competência para o divórcio.
VI. E, requerendo que o Tribunal a quo se declarasse internacionalmente competente para preparar e julgar a presente ação de divórcio e determinar o prosseguimento dos autos.
VII. No entanto, veio o Tribunal a quo decidir em sentido contrário.
VIII. O artigo 62º do CPC estabelece quais são os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses.
IX. Ora, o artigo 62º a) do CPC conjuga-se com o artigo 72º do mesmo Código, segundo o qual “para as ações de divórcio (…) é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor”.
X. No caso dos presentes autos, o tribunal recorrido afasta a aplicação da alínea a) do art.62º do CPC, por entender que o Autor reside na Suíça.
XI. Não obstante, esta é uma objeção improcedente.
XII. Ora, a competência do tribunal não pode deixar de aferir-se pelos termos em que a ação é proposta.
XIII. E ela foi proposta pelo Autor indicando logo na petição inicial, “emigrante na Suíça onde reside em ... ... ..., Suíça e quando em Portugal em Rua ..., ..., ... ...”, portanto, em Portugal.
XIV. O Autor, na petição inicial, ao utilizar a expressão “residente, quando em Portugal…”, quis, pois, significar que tinha residências alternadas.
XV. Conclui-se, que o Autor (também) tem domicílio em Portugal, pois o domicílio que
indicou na petição inicial, será pelo menos um domicílio alternativo, nos termos do artigo 82º nº1, do CC.
XVI. Aliás, para que a ação intentada pelo Autor seja apreciada em Tribunal Português, não é preciso que tenha residência habitual em Portugal, basta para o efeito, que tenha domicílio no país, conforme estabelece expressamente o artigo 72º do CPC.(veja-se a este propósito o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21-12-2015, relator João Ramos de Sousa, proc. nº 98/13.1TBPVC-A.L1-1, e o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07/04/2011, relator Mário Canelas Brás, proc. nº 45/10.2TBCBT-C.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);
XVII. Mesmo que assim não se entenda, não podemos olvidar que o Autor apenas trabalha temporariamente na Suíça, de tal forma que a residência do autor na Suíça, deve ter- se como residência meramente ocasional e/ou profissional – artigo 82º nº2 e 83º do CC.
XVIII. Portanto, a residência na Suíça apenas releva, para efeitos da sua profissão, ou seja, e na terminologia legal: «quanto às relações que a esta se referem» - artigo 83º nº1 do CC.
XIX. A douta sentença, violou, pois, o disposto nos artigos 38º, nº1 da LOSJ, os artigos 62º a), e 72º ambos do CPC, e o artigo 82º, nº1, 82º, nº2, e 83º, nº1 do CC.
XX. Como é sabido, a competência dos tribunais expressa a medida da sua jurisdição.
XXI. No caso da competência internacional está em causa o poder jurisdicional dos tribunais portugueses em face dos tribunais estrangeiros, sendo aferida em função das regras que a delimitam.
XXII. Com efeito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora referem que a competência internacional constitui a “fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras” (cfr., Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, p. 198).
XXIII. É entendimento pacífico, entre todos, que a matéria do pressuposto processual que constitui a competência do Tribunal, deve ser determinada face à relação jurídica tal como o autor a configura na petição inicial, devendo na sua apreciação e julgamento ter-se presente o alegado nos articulados pelas partes, sem perder de vista, naturalmente, as regras que regulam o ónus de alegação e prova de tal exceção.
XXIV. E a infração das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a) do CPC), o que constitui uma exceção dilatória (art.º 577º, al. a) do CPC) de conhecimento oficioso (art.ºs 97º e 578º do CPC), que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art.ºs 99º, nº 1, 278º, nº 1, al. a), 576º, nº 2, e 590º, nº 1, também todos do CPC).
XXV. No caso concreto, estamos seguramente perante um litígio emergente de uma relação plurilocalizada ou transnacional, sendo que existem elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa (a nacionalidade portuguesa dos cônjuges, a celebração do casamento ter ocorrido em Portugal conforme resulta do assento de casamento junto com a Petição sob documento n.º 1) e com o ordenamento suíço onde o Autor tem residência alternativa (residência profissional).
XXVI. A circunstância da transnacionalidade da relação jurídica coloca, pois, o problema da competência internacional para o julgamento da ação, ou seja, quer através das partes interessadas, quer pelo seu próprio objeto, a existência de conexão com várias ordens jurídicas exige a determinação de qual o tribunal que, no âmbito destas, tem competência para dirimir o litígio.
XXVII. As regras relativas à competência internacional usam de certos elementos de conexão para determinar a jurisdição nacional competente.
XXVIII. Tais regras “não são consideradas em si mesmas, normas de competência, porque não se destinam a aferir qual o tribunal concretamente competente para apreciar o litígio, mas apenas a definir a jurisdição na qual se determinará, então com o recurso a verdadeiras regras de competência, qual o tribunal competente para essa apreciação.
XXIX. Dada esta função, as normas de competência internacional podem ser designadas por normas de receção, pois que visam somente facultar o julgamento de um certo litígio plurilocalizado pelos tribunais de uma jurisdição nacional.” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, Lisboa 1997, p. 93-94.
XXX. A legislação portuguesa, como as dos outros países, define os critérios em função dos quais reconhece aos tribunais portugueses competência internacional, que se encontram vertidos nos art.ºs 62º, 63º e 94º do CPC (cfr. ainda art.º 37º, da LOSJ).
XXXI. De acordo com os fatores de atribuição da competência internacional previstos naquele primeiro normativo – art.º 62º, do CPC -, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) Quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na
propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
XXXII. Sucede, porém, que na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, importa ainda salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente o Estado e que prevalecem sobre os restantes critérios.
XXXIII. Isso mesmo é o que resulta do prescrito no art.º 59º do CPC e no art.º 8º, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
XXXIV. Com efeito, o referido art.º 59º, do CPC estabelece que: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.”.
XXXV. Por seu lado, o nº 1 do art.º 8º da CRP estabelece um regime de receção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português.
XXXVI. E o nº 4 do referido preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24.07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.”.
XXXVII. Assim, tal normativo constitucional reflete o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
XXXVIII. Como se refere no ac. do STJ de 27.11.2018, relatado por Cabral Tavares, disponível in www.dgsi.pt: “No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência».
XXXIX. Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art.º 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.).”.
XL. Significa isto que na ordem jurídica portuguesa vigoram em simultâneo dois regimes gerais de competência internacional: o regime comunitário e o regime interno.
XLI. Quando a ação estiver compreendida no âmbito de aplicação do direito comunitário, é esse regime que prevalece sobre o regime interno por ser de fonte hierarquicamente superior e face ao referido princípio do primado do direito europeu.
XLII. Neste sentido, atente-se na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, mormente a referida no ac. da RP de 23.02.2017, relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, disponível in www.dgsi.pt: “Conforme foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia entre vários outros no Acórdão de 8.09.2010, no processo C-409/06 (Winner Wetten GmbH contra Bürgermeisterin der Stadt Bergheim) […] “(…) resulta de jurisprudência assente [que], por força do princípio do primado do direito da União, as disposições do Tratado e os atos das instituições diretamente aplicáveis têm o efeito de, nas suas relações com o direito interno dos Estados - Membros, impedir de pleno direito, pelo simples facto da sua entrada em vigor, qualquer disposição contrária da legislação nacional (v., designadamente, acórdãos Simmenthal, já referido, n.º 17, e de 19 de Junho de 1990, Factortame e o., C-213/89, Colect., p. I-2433, n.º 18).
XLIII. Com efeito, como salientou o Tribunal de Justiça, as normas do direito da União diretamente aplicáveis, que são uma fonte imediata de direitos e obrigações para todos, sejam Esta-dos-Membros ou particulares partes em relações jurídicas abrangidas pelo direito da União, devem produzir a plenitude dos seus efeitos de modo uniforme em todos os Estados-Membros, a partir da sua entrada em vigor e durante todo o seu período de validade (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 14 e 15, e Factortame e o., n.º 18).
XLIV. Resulta igualmente de jurisprudência assente que qualquer juiz nacional, no âmbito da sua competência, tem, enquanto órgão de um Estado-Membro, a obrigação, por força do princípio da cooperação consagrado no artigo 10.º do Regulamento CE n.º 4/2009 de 10 de Janeiro, de aplicar integralmente o direito da União diretamente aplicável e de proteger os direitos que este confere aos particulares, não aplicando nenhuma disposição eventualmente contrária da lei nacional, seja anterior ou posterior à norma do direito da União (v., neste sentido, designadamente, acórdãos, já referidos, Simmenthal, n.os 16 e 21, e Factortame e o., n.º 19).”.
XLV. Decorre do acima expendido e do próprio art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que o regime interno de competência internacional só será aplicável se o não o for o regime comunitário, posto que este advém de uma fonte normativa superior, face ao primado do direito europeu.
XLVI. Por conseguinte, uma vez que Portugal - país da nacionalidade de ambas as partes - integra a União Europeia, tal significa que a aludida transnacionalidade da relação jurídica em causa nos autos demanda que se convoquem as normas jurídicas europeias que estatuem sobre a matéria da competência judiciária.
XLVII. Este é o entendimento que vem sendo acolhido de forma praticamente unânime pela jurisprudência nacional. Vejam-se, nomeadamente, o acórdão do STJ de 7.10.2020, relatado por Rosa Tching; o acórdão da Relação do Porto de 11.07.2018, relatado por Manuel Domingos Fernandes; os acórdãos da Relação de Coimbra de 1.07.2014, relatado por Anabela Luna de Carvalho e de 12.09.2023, relatado por Moreira do Carmo; o acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2023, relatado por Rui Oliveira; o acórdão da Relação de Évora de 18.12.2023, relatado por Maria João Sousa e Faro e os acórdãos desta Relação de Guimarães de 23.11.2017, relatado por Ana Cristina Duarte; de 4.10.2018, relatado por Elisabete Coelho de Moura Alves; de 17.12.2018 e de 7.05.2020, ambos relatados por Sandra Melo e de 24.03.2022, relatado por Afonso Cabral de Andrade, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
XLVIII. Isto posto, no caso, importa analisar, em primeiro lugar, se existe algum regulamento europeu ou instrumento internacional que atribua aos tribunais portugueses competência para julgar a presente ação de divórcio e só, em caso negativo, se se verifica alguns dos elementos de conexão referidos nos art.ºs 62º e 63º do CPC.
XLIX. Como tal - não havendo conhecimento da existência de qualquer instrumento internacional que vincule em simultâneo e de forma recíproca Portugal e a Suíça sobre esta matéria -, é evidente que para efeitos de definição do foro internacionalmente competente haverá que ter presente as regras estabelecidas no Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho, de 25.06, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças.
L. Note-se que tal Regulamento veio, nos termos do seu art.º 104º, nº 1, revogar o Regulamento (CE) nº 2201/2003, sendo aplicável às ações intentadas a partir de 1.08.2022 (cfr. ainda o art.º 100º), como ocorre com a presente (vide, ponto 4. do elenco dos factos apurados).
LI. O art.º 1º do mesmo diploma estabelece expressamente, quanto ao seu âmbito de aplicação material, que o mesmo se aplica, em matéria civil, relativamente ao divórcio [cfr. al. a)].
LII. E no que concerne à competência em “questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento” estabelece o art.º 3º do dito Regulamento que a mesma se defere aos tribunais do Estado-Membro:
a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano
imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão;
ou
b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.”
LIII. A última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida – a última residência foi em Portugal na Rua ..., ..., ... ..., sendo que a Requerida ainda aí reside com os dois filhos menores do casal, no imóvel que é a casa de morada de família e constitui o núcleo central da vida familiar;
LIV. A residência habitual do requerido – a Ré/Requerida mora em Portugal na mencionada Rua ..., ..., ... ...;
LV. Da nacionalidade de ambos os cônjuges – ambos os cônjuges são de nacionalidade Portuguesa e contraíram matrimónio em Portugal, conforme certidão de casamento junta sob documento n.º 1 com a petição inicial de divórcio.
LVI. Em face das normas referidas, manifesto é que, do art.º 3º, nº 1, decorre a existência de dois critérios gerais fundamentais que definem a competência internacional de um Estado- Membro para de uma ação de divórcio poder conhecer, sendo um o da residência habitual e o outro o da nacionalidade de ambos os cônjuges, como sucedia já no âmbito do Regulamento Bruxelas II-A e do Regulamento Bruxelas I [em matéria matrimonial, as disposições do regulamento ora vigente pouco diferem das disposições equivalentes dos referidos Regulamento Bruxelas II-A e do Regulamento Bruxelas I].
LVII. Acresce dizer que os critérios de competência enumerados no referido art.º 3º são, inequivocamente, alternativos, não sendo estabelecida qualquer hierarquia ou ordem de precedência entre uns e outros. Cfr., a este propósito, o “Guia prático para a aplicação do Regulamento Bruxelas II-B”, da Comissão Europeia, disponível no Portal Europeu da Justiça, com referência ao acórdão do TJUE de 16.07.2009, Hadadi/Hadadi, no processo C-168/08, Colet. 2009, p. I-6871 em que o TJUE teve de decidir se essa hierarquia existia, respondendo que “O sistema de repartição de competências instituído pelo Regulamento em matéria de dissolução do vínculo matrimonial não visa excluir a pluralidade de foros competentes. Pelo contrário, prevê-se expressamente a existência paralela de vários foros competentes hierarquicamente equiparados”.
LVIII. Neste mesmo sentido, ver ainda Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia, O Regulamento (UE) 2019/1111, Editora D’Ideias, p. 68, apud ac. da RE de 18.12.2023 e toda a demais jurisprudência acima já citada.
LIX. Indiscutível é, também, que o Regulamento (CE) 2019/1111 se aplica diretamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, nos termos do citado art.º 8º, nº 4, da CRP.
LX. Aliás, o próprio Regulamento prevê que “O presente regulamento é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável nos Estados-Membros, em conformidade com os Tratados”.
LXI. E, se assim é, então a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para julgar, nomeadamente, ações de divórcio deve ser feita à luz dos critérios (alternativos) consagrados no art.º 3º, nº 1, als. a) e b), do Regulamento 2019/1111.
LXII. Com efeito, os critérios de atribuição de competência previstos do Regulamento (CE) 2019/1111 aplicam-se de forma plena e obrigatória, no que se refere, nomeadamente, a matéria de divórcio, prevalecendo e substituindo, portanto, os critérios previstos nos art.ºs 62º e 63º do NCPC.
LXIII. Daqui se pode concluir com toda a segurança que, no caso que nos ocupa, o Tribunal a quo não podia ter gizado toda a sua decisão apenas apoiada no direito interno português.
LXIV. Resta salientar que o disposto no Regulamento (EU) nº 1259/2010 do Conselho, de 20.12 não resolve a questão em discussão nos presentes autos de recurso, pois o mesmo destina-se a aferir a lei aplicável em matéria de divórcio, e não da competência internacional dos tribunais para julgar a ação de divórcio.
LXV. No caso, ainda que não se esteja perante um conflito de jurisdições ou ainda que mais nenhuma das jurisdições em jogo, para além de Portugal, seja a de um Estado-Membro da União Europeia, é o referido Regulamento (CE) 2019/1111 que tem aplicação, sendo de acordo com o mesmo que deve ser aferida a competência dos tribunais portugueses.
LXVI. É que tal regulamento não visa regular conflitos de jurisdições (entre Estados-Membros), mas atribuir competência internacional aos tribunais dos diversos Estados-Membros para decidir das matérias nele previstas.
LXVII. Com efeito, o Regulamento nº 2019/1111 tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a União Europeia.
LXVIII. Sobre o referido carácter universal do âmbito de aplicação espacial do Regulamento nº 2019/1111, veja-se igualmente o que escreveu no supra citado Acórdão da Relação de Évora de 18.12.2023, o qual trata uma situação em que também estava em causa um litígio plurilocalizado que continha elementos de conexão com Portugal e com a Suíça, ou seja com um Estado –Membro da União Europeia e com outro que não o é.
LXIX. A atuação da União em matéria de regulamentação do direito de conflitos, não tem, exclusivamente, por objeto a regulamentação de conflitos transnacionais no âmbito do seu espaço de integração, mas, visa contribuir, também, para a unificação universal.
LXX. De facto, relativamente às “regras de competência internacional, para o Regulamento ser aplicável não é necessário que estejam em causa situações transfronteiriças no interior da União, ou seja, não se aplica apenas aos litígios que implicam relações entre órgãos jurisdicionais de Estados-Membros. É necessário, sim, que os fatores de competência nele previstos atribuam a jurisdição a um Tribunal de um Estado-Membro.
LXXI. De acordo com o TJUE, aquela delimitação territorial não resulta do regulamento e “as regras uniformes de competência contidas no Regulamento (…) não se destinam a ser aplicadas unicamente a situações que tenham um vínculo efetivo e suficiente com o funcionamento do mercado interno que envolvam, por definição, vários Estados-Membros [Anabela Susana de Sousa Gonçalves, in Matérias Matrimoniais e Responsabilidades Parentais na União Europeia, O Regulamento (UE) 2019/1111, Editora D’Ideias, p. 54]”.
LXXII. Decorre ainda da sentença proferida pelo Tribunal a quo que, “Todavia, conforme resulta dos seus considerandos (9), o Regulamento só se aplica à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento e outras eventuais medidas acessórias. Na presente ação são, precisamente, discutidas as causas do divórcio (violação dos princípios de cooperação, assistência, coabitação), pelo que, não deve ser aplicada as disposições do Regulamento em referência.”
LXXIII. Salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, o autor na elaboração da Petição Inicial seguiu os requisitos previstos no artigo 552.º n.º 1 do Código de Processo Civil;
LXXIV. Ou seja, o Recorrente expôs os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação, tal como lhe era exigido!
LXXV. Aliás, nunca foi pedido ao Tribunal a quo para decidir sobre as causas do divórcio, mas sim, que decretasse a dissolução por divórcio do vínculo matrimonial entre Autor e Ré.
LXXVI. Até porque o Autor e a Ré já estão separados de facto desde março de 2023, conforme mencionado na Petição Inicial.
LXXVII. Ora, de acordo com o artigo 1781.º, al. a), do CC, a separação de facto por um ano consecutivo constitui causa do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.
LXXVIII. Pelo que, este facto constitui, por si só, fundamento bastante de separação judicial de pessoas e bens ou de divórcio e, assim seja provado, determina a dissolução do vínculo matrimonial.
LXXIX. Bastando, pois, apenas este fundamento para levar a que o Tribunal se achasse competente para tramitar a acção de divórcio, não ficando dependente de outras causas e/ou fundamentos.
LXXX. Ademais, e como já explanado supra, da petição inicial apresentada pelo Autor, decorrem vários elementos de conexão com ordem jurídica portuguesa passíveis de conferir competência internacional dos tribunais portugueses para decidir da acção de divórcio - nacionalidade de ambos os cônjuges, a última residência habitual dos cônjuges, na medida o Autor reside alternadamente em Portugal e na Suíça e a Ré permanece a viver em Portugal, onde tem a sua residência habitual [cfr. als. a) e b), do art.º 3º, do Regulamento (CE) 2019/1111 de 25.06.]
LXXXI. E, sendo assim, como é, em face de tudo o supra exposto, ter-se-á, forçosamente, que julgar o tribunal português onde a ação foi proposta como competente (internacionalmente) para a tramitar, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio/residência das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio (que, aliás, e como vem alegado em sede de petição inicial, ocorreram em Portugal).
LXXXII. Realçar, e como resulta das várias decisões jurisprudenciais citadas nas presentes alegações, ser entendimento praticamente unânime na nossa jurisprudência, que em situações como a dos presentes autos, por aplicação do critério da nacionalidade previsto artigo 3.º, n.º 1 al. b) do referido Regulamento (CE) 2201/2003, os tribunais portugueses são competentes para decretar o divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa, ainda que ambos estivessem a residir na Suíça.
LXXXIII. Assim, porque ambos os cônjuges têm nacionalidade portuguesa, tendo inclusivamente casado em Portugal, pode o Recorrente fazer funcionar o critério da nacionalidade de ambos os cônjuges, tal como o refere a apontada alínea b) do art. 3º do Regulamento 2019/1111 do Conselho, como o fez, para intentar a ação no tribunal português;
LXXXIV. Sendo, pois, totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio;
LXXXV. Para efeitos da aplicabilidade do Regulamento é indiferente o país onde os cônjuges tiverem a sua residência habitual – seja um Estado-Membro ou um terceiro Estado.
LXXXVI. A sentença em crise violou também o artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e b) do referido Regulamento (CE) 2201/2003 e o artigo 1781.º, al. a), do CC.
LXXXVII. Mal andou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação dos normativos correspondentes aos institutos de direito vindos de invocar e apreciar.
NESTES TERMOS, e noutros que V.ªs Ex.ªs sabiamente suprirão:
- Requer-se a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida, devendo a mesma ser substituída por douto acórdão que julgue o Tribunal a quo competente (internacionalmente) para tramitar a presente acção especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge.
Assim decidindo, mais uma vez, Venerandos Desembargadores, será feita a ACOSTUMADA E NECESSÁRIA JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III. O objecto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir sobre se, no caso, os tribunais portugueses são ou não, internacionalmente, competentes para preparar e julgar uma acção de divórcio de dois cônjuges de nacionalidade portuguesa e que celebraram o casamento em Portugal, considerando que o A. trabalha na Suiça, tem domicílio também em Portugal, a Ré reside também no nosso País e os factos que constituem a causa de pedir do divórcio, segundo o que é alegado, ocorreram cá em Portugal. Fundamentação de facto
- a matéria fáctico-processual constante do ponto I, do relatório, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
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Fundamentação jurídica
Face à questão objecto do presente recurso, há que ter em conta que a competência internacional respeita ao exercício do poder jurisdicional de um Estado em relação a um conflito que tenha um ou mais elementos de conexão com o estrangeiro, isto é, com uma ou várias ordens jurídicas distintas.
Hoje em dia decorrente da crescente mobilidade transnacional das pessoas, o número de conflitos transfronteiriços ou plurilocalizados aumentou, com a consequente necessidade de determinar qual o tribunal internacionalmente competente para dirimir esses conflitos, preparando e julgando o mérito de uma acção que tenha subjacente uma relação jurídica plurilocalizada.
Assim, «a competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras» (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra editora, 2.ª ed., 1985, p. 198).
A infracção das regras de competência internacional determinam a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96.º al. a) do CPC), o que constitui uma excepção dilatória (art.º 577.º al. a) do CPC) de conhecimento oficioso (arts. 97.º e 578.º do CPC), que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (art.ºs 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1 al. a), 576.º, n.º 2, e 590.º, n.º 1, do CPC).
Coloca-se, por conseguinte, a questão de saber se o tribunal português, onde foi intentada a acção, é competente para a preparar e julgar, o que, como se viu, implica verificar se o poder jurisdicional se mostra atribuído aos tribunais portugueses.
Ora, nos termos do disposto no art.º 37.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.08), é a lei de processo que fixa os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, sendo certo que esta fixa-se no momento em que a acção é proposta, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (cfr. art.º 38.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário).
A este respeito dispõe, então, o art.º 59.º do CPC que «sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º».
De acordo com os factores de atribuição da competência internacional previstos no CPC (art.º 62.º do CPC), os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
b) Quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
Sucede que, na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses, importa portanto salvaguardar o que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que vinculem internacionalmente o Estado e que prevalecem sobre os restantes critérios (o que resulta do citado art.º 59.º do CPC e do art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa).
Como tal, há que atentar no Regulamento(UE) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, respeitante a decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental - Regulamento Bruxelas II-B, que veio revogar o Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, com efeitos a partir de 01.08.2022 (cfr. respectivo art.º 104.º, n.º 1).
Nos termos do seu art. 3.º, atinente ao divórcio, separação e anulação do casamento, preceitua-se que:
São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro: a) Em cujo território se situe:
i) a residência habitual dos cônjuges,
ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida,
iii) a residência habitual do requerido,
iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges,
v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou
vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão;
ou b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges
Os critérios de competência enumerados nesse preceito, como da sua redacção decorre, são, inequivocamente, alternativos, não sendo estabelecida qualquer ordem de precedência entre uns e outros.
Indiscutível é, também, que esse regulamento se aplica directamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, nos termos do art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático» -neste sentido o ac. do STJ de 7.10.2020, relatado por Rosa Tching; o ac. da RP de 11.07.2018, relatado por Manuel Domingos Fernandes; os acs. da RC de 1.07.2014, relatado por Anabela Luna de Carvalho e de 12.09.2023, relatado por Moreira do Carmo; o ac. da RL de 23.02.2023, relatado por Rui Oliveira; o ac. da RE de 18.12.2023, relatado por Maria João Sousa e Faro e os acs. desta Relação de Guimarães de 23.11.2017, relatado por Ana Cristina Duarte; de 4.10.2018, relatado por Elisabete Coelho de Moura Alves; de 17.12.2018 e de 7.05.2020, ambos relatados por Sandra Melo e de 24.03.2022, relatado por Afonso Cabral de Andrade, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Igualmente como se entendeu já, este tipo de regulamento tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a EU (neste sentido Patricia Orejudo Prieto de los Mozos, in Diez años de aplicación e interpretación del Reglamento Bruselas II bis sobre crisis matrimoniales y responsabilidad parental (análisis de los aspectos de competencia judicial internacional), publicado en La Ley. Unión Europea, núm. 21, 2014, pp. 5-22).
Também Nuno Ascensão Silva, in Regulamento Bruxelas II bis [Regulamento (CE) 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, disponibilizado in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/Direito_Internacional_Familia_Tomo_I.pdf), considera que «O Bruxelas IIbis regula exclusivamente a competência internacional e supõe, por isso, a existência de uma situação plurilocalizada. Mas a internacionalidade da relação não terá de se traduzir necessariamente na ligação a um Estado-Membro: ou seja, as regras do Regulamento são o direito comum da competência internacional dos Estados-Membros dentro do âmbito de matérias por ele abrangidas» (no mesmo sentido, quanto parece, veja-se Maria Helena Brito, in O Regulamento(CE) n.º 2201/2003 do Conselho, Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, I, Almedina, p. 319 e segs.).
Temos, pois, que, apesar de a Suíça não ser Estado-Membro da União Europeia, à luz da definição de Estado-Membro contida no art. 2.º, n.º 4, do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, o caso vertente não pode deixar de estar coberto pelo âmbito espacial deste Regulamento, na medida em que, sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente acção tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido respectivo art.º 3.º.
Ora, nos termos previstos na alínea b) do n.º 1 do art.º 3.º do Regulamento n.º 2201/2003, a nacionalidade comum de ambos os cônjuges é, por si só, suficiente para conferir competência internacional aos tribunais do Estado-Membro de que ambos os cônjuges sejam nacionais.
Donde se conclui, inequivocamente, pela competência internacional do tribunal recorrido para preparar e julgar a presente acção, sendo totalmente irrelevante o lugar do domicílio das partes ou o lugar da ocorrência dos factos que constituem a causa de pedir do divórcio, apesar de também com base nessas circunstâncias se chegar a essa mesma conclusão, dado que a Ré reside em Portugal e os factos ocorreram também cá (neste sentido o acórdão desta RG de 07.05.2020, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo nº 3355/13.3TBVIS-A.C1 de 07/01/2014 e do Tribunal da Relação de Évora, no processo 1330/16.5T8FAR.E1 em 12/15/2016, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo 6987/13.6TBALM.L1.S1 de 01/28/2016, todos in www.dgsi.pt).
A já apontada preocupação de uniformização dos critérios de competência dentro dos Estados-Membros, nomeadamente pela dispensa do exequátur e a integração que o direito comunitário assume na nossa ordem jurídica, levam a que se conclua que os critérios fixados neste Regulamento que atribuem competência internacional à nossa ordem jurídica sejam aqui aplicáveis, mesmo perante conflitos em que existam elementos de conexão com outras ordens jurídicas que não pertençam a Estados membros da União Europeia.
A decisão recorrida considera não ser de aplicar ao caso o referido Regulamento (CE) por não abranger questões como as causas do divórcio.
Ora, como decorre do art.º 1º do mesmo diploma, quanto ao seu âmbito de aplicação material, aí se diz sem mais que é aplicável, em matéria civil, ao divórcio [cfr. al. a)].
Apenas decorre do considerando 9, desse mesmo regulamento, que ‘q[Q]uanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deverá ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial. Não deverá abranger questões como as causas do divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias. As disposições do presente regulamento sobre reconhecimento não deverão abranger as decisões que rejeitam a dissolução do vínculo matrimonial’.
O que está abrangido nesse considerando é a decisão na parte em que decretou o divórcio, sujeita ao regime de reconhecimento e declaração de executoriedade, ou seja, num momento posterior e não anterior, em nada interferindo as respectivas razões para o pedido de dissolução do casamento com a determinação da competência para a causa.
De qualquer das formas, crê-se que também pela aplicação do direito nacional igualmente se teria de concluir pela competência internacional do tribunal recorrido.
Entendeu o tribunal a quo que não estão também verificados os elementos de conexão previstos no art.ºs 62.º e 63.º do CPC.
Ora, quanto ao primeiro requisito, estabelece-se no artigo 72.º, do mesmo diploma, que é competente para as acções de divórcio e de separação de pessoas e bens é o tribunal do domicílio ou da residência do autor.
Para afastar essa conexão entendeu-se que o Autor assumidamente vive na Suíça e que a factualidade que é causa de pedir na acção é a violação dos deveres de respeito, fidelidade e separação de facto que aponta não enquadrar o segundo elemento de conexão da alínea b), e existir a evidente possibilidade dos Tribunais Suíços apreciarem a acção que afasta o elemento de conexão residual previsto na alínea c) decorrente do principio da necessidade.
Vejamos.
Por norma, domicílio e residência coincidem, visto que o domicílio é o lugar onde a pessoa singular tem a sua residência habitual – que não se confunde nem com a residência permanente nem com a residência ocasional (art.º 82, n.ºs 1 e 2, do Código Civil). Podem, porém, não coincidir, ou porque a pessoa tem o seu domicílio necessário num lugar e a residência efectiva noutro ou porque a pessoa tem diversas residências onde vive alternadamente. As dificuldades de aplicação da regra legal surgem, assim, na determinação do conceito de residência. A residência supõe uma certa fixação, uma certa permanência num lugar. Assim, não reside numa localidade quem se encontra nela acidentalmente, de passagem. Residência inculca estabilidade. No nexo de uma pessoa com uma localidade, o domicílio exprime a ligação mais forte: é a residência habitual; a simples residência supõe ainda uma certa fixidez, uma certa demora, a habitação estável e prolongada – mas não excluiu a habitação durante algum tempo noutro lugar, dado que a lei figura, precisamente, o caso de uma pessoa ter mais que uma residência onde viva alternadamente (art.º 82.º, 2ª parte, do Código Civil). A residência ocasional ou acidental é o laço mais ténue entre uma pessoa e uma localidade, dado que se traduz no facto de a pessoa se encontrar momentaneamente em determinado lugar (art.º 82.º, nº 2, do Código Civil).
Isto mostra a impossibilidade de fixar um conceito rígido de residência. Exige-se, para esta, estabilidade e continuidade. Contudo, a determinação sobre se a habitação num lugar já tem a duração suficiente para constituir residência, deve decidir-se em face de caso concreto, através da verificação de dois requisitos: um requisito material – a morada em certo lugar – um requisito subjectivo – a intenção ou o ânimo de se fixar nesse lugar, de nele permanecer. A habitação, com alguma duração, em certo lugar pode não configurar residência porque, por exemplo, só circunstâncias acidentais forçam a pessoa a permanecer nessa localidade; ao contrário, a habitação num lugar por período de tempo relativamente curto pode inculcar residência se tudo revela que a pessoa está disposta a fazer desse lugar o centro da sua vida e dos seus interesses.
De tudo isto se conclui que o conceito de residência habitual é um conceito elástico, irremediavelmente necessitado de concretização jurisprudencial, o que torna particularmente difícil encerrá-lo numa definição que seja, a um tempo, suficientemente compreensiva para nada deixar de fora, e tão precisa quanto necessária para evitar quaisquer dúvidas sobre a sua aplicação aos casos concretos da vida.
Ora, tal como é referenciado pelo recorrente/A., por trabalhar na Suíça, para onde emigrou para esse fim, reside em ... ... ..., Suíça, tendo em Portugal casa, na Rua ..., ..., ..., onde actualmente a esposa reside, por ser a casa de morada de família.
Por outro lado, tal como foi alegado, após a vinda da R. para Portugal por razões imperiosas de apoio familiar à mãe desta, é que os deveres conjugais foram alegadamente violados pela Ré.
Daqui decorre que o recorrente/A. tem também cá em Portugal domicílio, tendo também sido em território português que os factos que servem de causa de pedir na acção ocorreram.
Como tal, quer por via do referido regulamento, quer por via do que se dispõe na lei adjectiva, é o tribunal português competente para apreciar e decidir a causa.
No caso dos autos, estamos, inequivocamente, em face de um conflito plurilocalizado, na medida em que existem elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa (a nacionalidade, o lugar da celebração do casamento, a residência familiar situada em Portugal e os factos que constituem a causa de pedir do divórcio).
Nestes termos, tem, pois, de proceder o recurso, revogando-se, consequentemente, o decidido.
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IV– Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo A. e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, declarando-se o tribunal recorrido internacionalmente competente para preparar e julgar a presente acção e determinando o prosseguimento dos autos.
Sem custas.