CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA FUTURA
VENDA DE COISA ALHEIA
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Sumário

I – O acordo de venda de um bem pertencente a terceira pessoa que as partes celebram na perspectiva ou suposição de que esse bem irá ingressar no património do alienante (emptio rei sperate) está sujeito ao regime da venda de bens futuros; faltando aquele pressuposto, estará sujeito regime da venda de bens alheios.
II – Tal como a compra e venda com reserva de propriedade, a compra e venda de coisa futura enquadra-se nas excepções à regra geral prevista no artigo 879.º, al. a), do CC, segundo a qual a transmissão da propriedade opera por mero efeito do contrato. Mas o efeito translativo, embora diferido para o momento em que a coisa passa a ter existência e/ou o direito se constitui na esfera do alienante, continua a ser um efeito automático do contrato, completado por outro facto, não carecendo de subsequente negócio jurídico.

Texto Integral

Proc. n.º 1406/23.2T8AMT-C.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Rua ..., freguesia ..., concelho do Marco de Canaveses, intentou a presente ação de impugnação da resolução em benefício da massa, ao abrigo do disposto no artigo 125.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), contra a Massa Insolvente de BB.
Alegou, em síntese, o seguinte: no início do ano de 2021 comprou ao agora insolvente BB, seu neto, o veículo com a matrícula ..-VH-.. (que este havia comprado com recurso a financiamento, mas cujas prestações não conseguia pagar), pelo valor então em dívida à entidade finaciadora, “A..., S.A”, de cerca de 10.000,00 €; desde então, procedeu ao pagamento das prestações em dívida em nome do insolvente até Dezembro de 2022, altura em que liquidou integralmente o remanescente em dívida e em que foi emitida declaração para cancelamento da reserva de propriedade a favor da credora; o autor procedeu ao registo de aquisição da propriedade a seu favor em Janeiro de 2023, embora o negócio tivesse sido celebrado no início do ano de 2021, altura em que ficou na posse de tal veículo, com ele circulando em exclusivo, pagando todas as despesas a ele inerentes, de manutenção, seguro e via verde, além das prestações em divida à financeira.
Concluiu pedindo a revogação da resolução do referido contrato de compra e venda em benefício da massa insolvente, declarada pela Sra. administradora da insolvência (AI), com a consequente manutenção da validade e da eficácia deste negócio.

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A ré apresentou contestação onde, em essência, reiterou os factos que alegou na carta que enviou ao insolvente a resolver o contato em benefício da massa, alegou a impossibilidade da venda ter ocorrido no início de 2021, visto que nessa data a propriedade do veículo estava reservada a favor de “A..., S.A”, sendo por isso nulo qualquer contato de compra e venda por falta de legitimidade do vendedor, e impugnou os actos de posse alegados pelo autor, afirmando que o insolvente deteve essa posse até à data da compra e venda objecto de resolução.
Concluiu pugnando pela improcedência da ação.
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Tramitada a causa, veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença, que julgou a acção procedente e declarou a invalidade da resolução de negócio comunicada pelo/a Administrador/a de Insolvência, por carta registada com Aviso de Receção, referente à transmissão da propriedade do veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.., celebrado pelo Insolvente com o Autor AA, com averbamento de registo de transmissão de propriedade com a data de 09.01.2023.
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Inconformada, a ré apelou desta sentença, concluindo assim a sua alegação:
«A- Nos presentes autos foi proferida Sentença que julgou procedente a ação, declarando a invalidade da resolução comunicada pela Administradora de Insolvência.
B- A Apelante discorda da douta sentença proferida, uma vez que a mesma padece de nulidade por omissão de pronúncia, bem como padece de reparos e de vícios que a enfermam, razão pela qual vem da mesma recorrer, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à questão de direito, para o que deverá ser reapreciada e produzida diferente decisão de mérito.
C- Na petição inicial, o Recorrido veio apresentar uma inovatória versão dos factos sobre o negócio celebrado com o seu neto/insolvente.
D- Alegou o Apelado que terá adquirido um veículo automóvel ao seu neto em data que o mesmo tinha uma reserva de propriedade em favor da sociedade comercial “A..., S.A.” (NIPC ...).
E- Perante esta desconhecida factualidade e perante o facto de, no entender da Apelante, ser impossível transacionar o imóvel quando existia uma reserva de propriedade, a Recorrente deu nota disso mesmo ao Tribunal.
F- No entanto, o Tribunal a quo desconsiderou o que foi alertado pela Recorrente, imiscuindo-se [sic] de a apreciar quando, mesmo se não alegada, teria obrigação de o fazer uma vez que estamos perante uma nulidade, que é de conhecimento oficioso.
G- Se for seguido este entendimento do Tribunal a quo está encontrada a solução (perigosa) para tornar negócios nulos em negócios válidos, com a chancela dos Tribunais.
H- Esta não apreciação consubstancia-se numa omissão de pronúncia, que fere a sentença de nulidade.
I- A respeito da matéria de facto, entende a Recorrente que, salvo melhor opinião, o ponto “1” e “2” dos factos provados foram incorretamente julgados, bem como deverão ser aditados novos factos à matéria de facto assente, segundo o que resultou da prova produzida em audiência de julgamento e da prova documental junta aos autos.
J- Em resultado da prova documental – os documentos de registo da conservatória – deverão ser aditados os seguintes pontos à matéria de facto dada como provada:
12. Em 08/08/2018, a sociedade comercial “B..., Lda.” (NIPC ...) vendeu o veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.. à sociedade comercial “A..., S.A.” (NIPC ...).
13. Em 12/10/2018 ficou averbado no registo automóvel o negócio celebrado entre as sociedades comerciais “B..., Lda.” e “A..., S.A.”.
14. Em 04/10/2018, a sociedade comercial “A..., S.A.” (NIPC ...) vendeu o veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.. ao insolvente, ficando reservada para aquela a reserva de propriedade do veículo.
15. Em 12/10/2018 ficou averbado no registo automóvel o negócio celebrado entre a sociedade comercia “A..., S.A.” e o insolvente.
K- Deverão ser alterados os pontos 1. e 2. para a seguinte redação:
1. Em 20/12/2022, o Autor e o Insolvente acordaram verbalmente na transmissão da propriedade do veículo com matrícula ..-VH-.., para o Autor, mediante o pagamento da quantia de 6.166,93 euros que o Autor tinha em divida naquela data, para com a sociedade “A..., S.A.” referente ao contrato de crédito que lhe havia sido concedido para aquisição daquele veículo.
2. Acordaram ainda que, o registo de tal transmissão a favor do Autor ocorreria de imediato.
L- Primeiro, não pode ser dado como provado que o negócio se fez em 2021, porque isso corresponde a um negócio nulo, por venda de bens alheios.
M- Segundo, da prova documental (documentos do registo automóvel e email do insolvente [doc. 1 da contestação]) que não foi impugnada, nem foi invocada a sua nulidade ou falsidade, resulta que o negócio não foi em 2021, mas o foi em 20/12/2022 ou em 09/01/2023.
N- Em face da prova e dos factos que se consideram ter sido provados, outra deveria ter sido a conclusão jurídica a retirar, resultando numa decisão diferente.
O- Existindo uma reserva de propriedade sobre um veículo automóvel, não é possível que o seu utilizador o venda.
P- A fazê-lo, isso corresponde a uma venda de bens alheios, tornando o negócio nulo.
Q- Nulidade que deve ser declarada, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal.
R- E perante uma nulidade, não pode o Tribunal dar como provados factos que correspondem a um negócio nulo, sob pena de estar a validade um ato contrário ao Direito.
S- Estando pendente um facto sujeito a registo – a propriedade e a reserva de propriedade – caberia à parte que pretende inverter a presunção deriva do registo a sua prova.
T- E o Recorrido não fez prova da inverdade do registo, não provou que em 2021 a propriedade estava no insolvente ou que já não era da sociedade comercial “A..., S.A.” para que o pudesse adquirir.
U- Perante a factualidade apresentada pelo Recorrido, a mesma assemelha-se mais a uma cessão da posição contratual, do que a qualquer compra e venda.
V- A ser rejeitada a versão factual do Recorrido quanto a um negócio manifestamente nulo e a ser aceite a alteração factual propugnada pela Recorrente, face às normas previstas para a resolução do negócio, terá de ser outra a decisão a ser proferida, devendo ser considerado o negócio resolvido em benefício da massa, nos termos do artigo 121.º, n.º 1, h) do CIRE.
W- O negócio terá sido realizado (20/12/2022 ou 09/01/2023) dentro do ano anterior ao início do processo de insolvência (19/10/2023) e foi-o através de uma obrigação assumida pelo insolvente (entrega de veículo no valor de 11.000,00 EUR) que excede manifestamente a obrigação do comprador (preço de 6.166.,93 EUR).
X- Foram violadas, entre outras, as normas dos artigos 120.º e 121.º do CIRE e 344.º, 874.º, 409.º e 892.º do Código Civil.
Y- Por tudo o exposto, deverá ser dado provimento ao recurso, ser revogada a Sentença proferida e ser substituída por uma outra que julgue improcedente a presente ação, fazendo assim justiça».
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A recorrida apresentou resposta a esta alegação, pugnando pela total improcedência do recurso.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes as questões a decidir:
- A nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
- O erro na apreciação da matéria de facto descrita nos pontos 1 e 2 dos factos julgados provados e a necessidade de aditar novos factos provados;
- A verificação dos pressupostos de que depende a resolução em benefício da massa.
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III. Fundamentação
A. Nulidade da sentença
O recorrente arguiu a nulidade da sentença recorrida por excesso de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC, afirmando que, na contestação, alegou ser impossível transacionar o imóvel (querendo certamente referir-se ao automóvel) quando existia uma reserva de propriedade e que o Tribunal a quo desconsiderou esta alegação, não a apreciando, sendo certo que estamos perante uma nulidade de conhecimento oficioso (cfr. conclusões C a H).
Da norma invocada pelo recorrente decorre que o juiz não pode deixar de apreciar alguma questão cuja resolução a lei lhe imponha, ou seja, não pode deixar de conhecer as questões, de facto ou de direito, suscitadas pelas partes ou de que deva conhecer oficiosamente, que se mostrem relevantes para o resultado da lide.
Esta imposição legal não se reporta a cada um dos argumentos esgrimidos pelas partes, exigindo apenas que o tribunal não deixe de apreciar a questão essencial.
Em consonância com o exposto, escreve-se no ac. do STJ, de 05.05.2021 (proc. n.º 64/19.3T9EVR.S1.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da respectiva fonte) que a omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença «[o]corre quando o tribunal deixa de apreciar e julgar questões de facto e/ou de direito que lhe foram submetidas pelos sujeitos processuais ou que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários».
A nulidade de omissão de pronúncia configura um erro de procedimento (tal como as demais nulidades da sentença taxativamente previstas no artigo 615.º do CPC), que apenas afecta a regularidade formal da sentença, por referência aos seus limites, não se confundindo com erros de julgamento, que afectam o próprio mérito da decisão (de facto e/ou de direito). Como se escreve no acórdão do STJ, de 03.03.2021 (proc. n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1), «[h]á que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual – nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma – ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
Voltando ao caso concreto, verifica-se não ser rigorosa a afirmação de que o Tribunal a quo se absteve de apreciar a questão da nulidade do contrato objecto de resolução em benefício da massa, suscitada pela ré recorrente. Tal questão foi, efectivamente, apreciada na sentença recorrida, nos seguintes termos: «não pode ser considerada agora para esta decisão a alegada nulidade da venda do veículo, ocorrida em março de 2021, por existir reserva de propriedade a favor da sociedade “A..., S.A.”, pois tal nulidade da venda não foi invocada como fundamento da resolução do negócio, na carta remetida ao Autor e nesta ação o Juiz só pode atender aos fundamentos invocados pela Sr.ª Administradora de Insolvência na carta remetida a comunicar a resolução».
Defender que o Tribunal não pode considerar a nulidade do contrato, porque esta não foi oportunamente invocada como fundamento da resolução na carta remetida para esse efeito pela AI ao autor – o que, naturalmente, prejudica ou torna inútil a confirmação ou a refutação da ocorrência daquele vício – não corresponde à falta de apreciação da questão suscitada na contestação. Saber se aquela argumentação está correcta ou incorrecta é uma questão que se prende com o mérito da causa e não com a regularidade formal da sentença, designadamente com os seus limites, que foram inequivocamente respeitados. Dito de outro modo, podemos estar perante um erro de julgamento, mas não perante um erro de procedimento, gerador da nulidade da sentença.
Pelo exposto, improcede a alegada nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia.
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B. Os Factos
1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
Por acordo das partes, atentas as versões constantes dos respetivos articulados e por documentos juntos aos autos com força plena e/ou não impugnados, foram considerados assentes os seguintes factos:
A) BB foi declarado insolvente por sentença proferida em 23.10.2023 por ação apresentada a juízo a 19.10.2023.
B) A propriedade do veículo com matrícula ..-VH-.. mostra-se averbada a favor de AA, desde 09.01.2023 e, antes, encontrava-se averbada desde 12.10.2018 a favor de BB, com reserva de propriedade a favor de “A..., S.A.”.
C) BB é filho de CC e de DD, e neto materno de AA e EE.
D) Com data de 21.12.2022 foi emitida Fatura/Recibo pela “A..., S.A.” em nome de BB referente à liquidação antecipada e comissão de reembolso antecipado no valor global de 6 166,93 euros, referente ao contrato de financiamento para aquisição do veículo com a matrícula ..-VH-...
E) A sociedade “A..., S.A.” emitiu com data de 22.11.2023 uma declaração de Contrato Liquidado, onde declara que o contrato de financiamento relativo à viatura financiada de marca “RENAULT ...” com a matrícula ..-VH-.. celebrado com o mutuário BB e como avalistas EE e AA se encontra naquela data devidamente liquidado.
F) Mostram-se documentados os comprovativos de operação no serviço Banco 1... das transferências realizadas a pedido de AA da conta n.º ..., nos montantes de 203,78 euros, cada uma, nas seguintes datas: 15.03.2021, 15.04.2021, 17.05.2021, 15.06.2021, 15.07.2021, 16.08.2021, 15.09.2021, 15.10.2021, 15.11.2021, 15.12.2021, 17.01.2022, 15.02.2022, 15.03.2022, 19.04.2022, 16.05.2022, 15.06.2022, 15.07.2022, 15.08.2022, 15.09.2022, 17.10.2022, 15.11.2022 e 15.12.2022.
G) Mostram-se documentados os comprovativos de operação no serviço Banco 1... das transferências realizadas a pedido de AA da conta n.º ..., respetivamente nos montantes de 3 166,93 euros e 1 500,00 euros, na data de 20.12.2022, e o montante de 1 500,00 euros, na data de 21.12.2022.
H) Por carta registada com aviso de receção, datada de 15.12.2023, a Sr.ª Administradora de Insolvência comunicou a “AA” a resolução em benefício da Massa Insolvente da transmissão do veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.., de marca RENAULT, com os seguintes fundamentos:
“l. Em 19 de Outubro de 2023, foi requerida a insolvência de BB, portador do NIF: ...;
2. No dia 23 de outubro de 2023, foi proferida a douta Sentença da declaração de insolvência da pessoa singular: BB;
3. E nomeada administradora da insolvência a signatária, conforme documento n.º 1.
4. No decurso das suas funções de Administradora de Insolvência, teve conhecimento, via consulta na plataforma de base de dados públicas, de atos praticados pelo insolvente que são prejudiciais para a Massa Insolvente, pelo que solicitou à conservatória do registo automóvel, o histórico de todas as matrículas que já estiveram registadas em nome do insolvente, concretamente da matrícula ..-VH-.., conforme documentos n.º 2 e 3, que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos.
5. Tendo confirmado que no dia 09-01-2023 haviam sido realizados atos prejudiciais para a massa insolvente, por parte do insolvente.
Ou seja,
EM RELAÇÃO AO 1.º ATO:
6.Conforme histórico da matricula ..-VH-.., da viatura de marca Renault, no dia 09-01-2023 foi efetuado o registo de propriedade n.º ..., a favor de AA, conforme documento n.º 2;
7. O Sr. AA (atual proprietário do veículo em causa) é Avô Paterno do Insolvente, conforme certidão de nascimento que abaixo se anexa — documento n.º 4;
8. A transmissão do veículo, com o registo de propriedade datado de 09-01-2023, ocorreu assim dentro do denominado período de suspeição, isto é, dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (19/10/2023).
9. Sem prescindir, que só por mera hipótese académica se coloca, encontram-se verificados os pressupostos da al. b) do n.º 1 do artigo 121.º do C.I.R.E., o que se invoca para todos os efeitos legais uma vez que:
10. Não existe qualquer referência contabilística ou fiscal do pagamento de qualquer quantia pela venda do veículo automóvel ao insolvente.
11. Porquanto, nenhuma quantia foi recebida, nem devolvida à massa insolvente.
12. Admitindo, por mera hipótese de raciocínio, que o preço da compra a ter sido recebido pelo insolvente (o que se desconhece), não foi apreendido para a Massa Insolvente.
13. E se foi pago, foi por um valor manifestamente inferior ao de mercado / comercial do veiculo.
14. Destarte, o devedor detinha no seu acervo patrimonial a viatura com a matrícula ..-VH-.., com recurso a um financiamento ora concedido pela Instituição Financeira (A..., S.A.".
15. O mútuo a que supra se fez referência beneficiava do aval prestado pelo seu avô "AA". O mútuo para a aquisição da viatura foi objeto de liquidação antecipada, na importância de 6.166,93€.
16. Na data da resolvida transmissão a viatura tinha um valor nunca inferior a €11.000,00 (onze mil euros (cfr. documento n.º 5).
Ora,
17. Ao realizar o negócio nestas condições, os intervenientes tinham plena consciência de que iria resultar uma clara e inequívoca diminuição da garantia patrimonial dos credores do ora insolvente.
18. Aliás, os intervenientes eram conhecedores da situação económica financeira do devedor.
19. Agindo deste modo, pretendeu que o veículo em causa ficasse fora da esfera dos credores e ficando estes com os respetivos créditos irrecuperáveis, atenta a inexistência de outro património ativo do insolvente.
20. Ora, a real intenção das partes, intervenientes no negócio, foi a de enganar terceiros — in caso, os credores do Insolvente e subtrair do património deste, bens que pudessem responder pelas suas dívidas.
21. Não existiu qualquer intenção do Insolvente alienar o veículo, nem tão pouco do interveniente o adquirir.
22. O bem manteve-se na mesma, sem qualquer alteração e na posse dos mesmos (Avô e Neto).
23. As partes criaram uma aparência de negócio translativo da propriedade, pois tinham pleno conhecimento de que o Insolvente atravessava dificuldades financeiras, em virtude das responsabilidades assumidas perante os seus credores e bem sabiam que caso este não pagasse as suas dívidas, o seu património poderia ser apreendido e, posteriormente, vendido.
24. Até porque a debilidade financeira do Insolvente era bem conhecida à data da celebração do negócio.
25. Tratou-se, assim, de um ato celebrado a título gratuito, porquanto do acervo patrimonial do devedor não se integrou qualquer quantia pecuniária que permitisse ressarcir os credores.
26. Mas, por mera cautela, que se concebe mas não se concede, a ter existido a entrega de algum montante pela transmissão do veiculo, decorreria uma desproporção das obrigações assumidas.
27. Encontram assim verificados os pressupostos da al. b) ou da al. h) do n.º 1 do artigo 121.º do C.I.R.E., o que se invoca para todos os efeitos legais.
28. Atente-se que os créditos reconhecidos no processo de insolvência ascendem a 12.375,45€ Vide Documento n.º 6;
29. Assim, ao património do Insolvente foi subtraído um veículo automóvel, por um valor inferior ao seu valor de mercado, ou seja, que corresponderá a cerca de 11.000,00€ (onze mil euros);
30. Pelo que o cálculo desse prejuízo deve ser feito atendendo ao valor de mercado do veículo, o qual deveria ter sido determinado por perícia / avaliação.
Acresce ainda,
31. Estão também verificados os pressupostos da resolução condicional nos termos do artigo 120.º do
CIRE.
32. Tendo a transmissão do veículo ocorrido dentro do denominado período de suspeição, de dois anos anteriores ao início do período de insolvência.
33. Tendo participado ou aproveitado pessoa especialmente relacionada com o Insolvente (Avô), para efeitos da al. b), do n.º 1, do artigo 49.º e do n.º 4 do artigo 120.º, ambos do CIRE.
34. Não foi entregue qualquer quantia monetária ao devedor, pela transmissão do veículo.
35. E ainda que se equacione a entrega, por mera cautela, o negócio celebrado resultou em grande prejuízo para a massa insolvente como supra se evidenciou.
36. Sendo certo que os intervenientes eram conhecedores da situação de insolvência, face às dificuldades financeiras do Insolvente.
37. Bem como sabiam que a transmissão do veículo se revelava num ato prejudicial à Massa Insolvente, pois diminuiu a satisfação dos credores do Insolvente.
38. Assim, na verdade, o interveniente (neto) nunca pretendeu alienar, nem o adquirente (avô) pretendeu comprar o aludido veículo.
39. Pretendiam frustrar e dificultar o ressarcimento dos credores da Massa Insolvente, pela subtração do único bem ao acervo patrimonial da Massa Insolvente.
40. Os intervenientes agiram de expressa e confessa má-fé, em desfavorecimento pleno dos credores da massa insolvente.
41. Assim sendo, estão reunidos todos os pressupostos factuais e legais para que seja declarada a resolução incondicional da transmissão do veículo automóvel, a favor da Massa Insolvente, nos termos dos artigos 121.º, e dos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do 120.º, ambos do CIRE.
42. Nos termos da lei, a resolução incondicional dispensa a verificação de quaisquer outros requisitos — previstos no artigo 121.º - que, nos termos do artigo 120.º n.º 3, se presumem prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário — presunção tantum iuris.”
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Após a produção de prova realizada em audiência de julgamento, por referência aos factos alegados pelas partes nos respetivos articulados e atentas as regras de distribuição de ónus da prova, foram também considerados provados os seguintes factos:
1. Em março do ano de 2021, o Autor e o Insolvente acordaram verbalmente na transmissão da propriedade do veículo com matrícula ..-VH-.., para o Autor, mediante o pagamento da quantia de cerca de 10 000 euros que o Autor tinha em divida naquela data, para com a sociedade “A..., S.A.” referente ao contrato de crédito que lhe havia sido concedido para aquisição daquele veículo.
2. Acordaram ainda que, o registo de tal transmissão a favor do Autor ocorreria após o pagamento integral à sociedade “A..., S.A.” do valor em divida referente ao contrato de crédito celebrado pelo Insolvente para aquisição do veículo com matrícula ..-VH-...
3. A partir da prestação vencida em 15 de março de 2021 e até à prestação vencida em dezembro de 2022, foi o Autor quem pagou, com dinheiro seu, à sociedade “A..., S.A.” todas as prestações vencidas neste período.
4. Foi com dinheiro seu que o Autor pagou à sociedade “A..., S.A.”, em 20 e 21 de dezembro de 2022, o remanescente ainda em divida referente ao crédito concedido ao Insolvente para aquisição do veículo com matrícula ..-VH-...
5. Desde março de 2021, o Autor passou a ter consigo o veículo com a matrícula ..-VH-.., circulando com o mesmo.
6. Em março de 2021, o Insolvente já tinha os seguintes créditos vencidos em incumprimento: Banco 2..., desde 02.03.2019, os montantes de 15071,92 euros e 83191,93 euros, e desde 02.04.2019, o montante de 41 478,51 euros.
7. O crédito reconhecido à fazenda Nacional, no montante de 757,55 euros, mostra-se vencido desde 31.08.2021.
8. O veículo com matrícula ..-VH-.. teve as seguintes apólices de seguro com a “C... Companhia de seguros, S.A”:
0045-11-918278, com inicio em 28.08.2018 e término em 28.08.2021, por falta de pagamento, sendo o tomador de seguro e o condutor habitual BB;
0045-12-353635, com inicio em 28.08.2021 e término em 09.01.2023, a pedido, sendo o tomador de seguro BB e o condutor habitual AA;
0045-12-590974, com inicio em 09.01.2023, em vigor, sendo o tomador de seguro e o condutor habitual AA.
9. O pagamento da apólice de seguro de responsabilidade civil do veículo com matrícula ..-VH-.., era efetuado mediante débito direto na conta bancária titulada pelo Autor, com o IBAN ..., desde agosto de 2021.
10. Desde 30 de abril de 2021, o veículo com matricula ..-VH-.. tem instalado um identificador/dispositivo para passagem na VIA VERDE, contrato n.º ..., sendo as faturas emitidas em nome do Autor.
11. À data de 09/01/2023, o veículo automóvel de matrícula ..-VH-.. tinha um valor comercial de cerca de 11 000,00 euros.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
Com interesse para a decisão a proferir não se provaram outros factos essenciais, designadamente, não se provou:
a) Que tenha sido o insolvente quem pagou o Seguro de responsabilidade civil referente ao veículo com a matrícula ..-VH-.. desde o ano de 2021 até 09/01/2023.
b) Que tenha sido o insolvente quem pagou as taxas de portagem e a via verde referente ao veículo com a matrícula ..-VH-.. desde o ano de 2021 até 09/01/2023.
c) Que foi o Insolvente quem pagou as despesas de manutenção e reparação do veículo com a matrícula ..-VH-.. desde o ano de 2021 até 09/01/2023.
d) Que o Insolvente tenha circulado com o veículo com a matrícula ..-VH-.. desde o ano de 2021 até 09/01/2023.
e) A 10/01/2023, o Insolvente não efetuou o pagamento da mensalidade vencida para com o credor D..., Sucursal em Portugal da S.A. Francesa D....
f) O Autor não pagou ao Insolvente qualquer quantia pela transferência de propriedade do veículo, sendo tal transferência a título gratuito.
g) Os pagamento feitos pelo Autor à “A..., S.A.” ocorreram a título de empréstimos efetuados ao Insolvente.
h) O Autor sabia que o Insolvente tinha um passivo superior ao seu ativo.
i) O Autor tinha conhecimento de que o Insolvente tinha uma obrigação prestacional para com um dos seus credores no dia imediatamente a seguir ao da transferência do registo de propriedade do veículo.
J) O Autor tinha conhecimento de que a retirada do veículo da propriedade do Insolvente prejudicava os credores deste.
*
3. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente o cumprimento, pela recorrente, dos ónus primários previstos nas diversas alíneas do n.º 1 não suscita dúvidas. Acresce que, não se fundando a impugnação em qualquer prova gravada, mas apenas em prova documental, o ónus secundário previsto na al. a) do n.º 2 não tem aqui aplicação. Nestes termos, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente os artigos 362.º e seguintes no que respeita à prova testemunhal.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
3.1. No caso vertente, como vimos, a recorrente começa por defender a necessidade de aditar aos factos provados a seguinte factualidade, que considera provada documentalmente:
12. Em 08/08/2018, a sociedade comercial “B..., Lda.” (NIPC ...) vendeu o veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.. à sociedade comercial “A..., S.A.” (NIPC ...).
13. Em 12/10/2018 ficou averbado no registo automóvel o negócio celebrado entre as sociedades comerciais “B..., Lda.” e “A..., S.A.”.
14. Em 04/10/2018, a sociedade comercial “A..., S.A.” (NIPC ...) vendeu o veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.. ao insolvente, ficando reservada para aquela a reserva de propriedade do veículo.
15. Em 12/10/2018 ficou averbado no registo automóvel o negócio celebrado entre a sociedade comercia “A..., S.A.” e o insolvente.
Verifica-se, porém, que a factualidade descrita neste último ponto 15 e na parte final do ponto 14 já consta da al. B) dos factos julgados provados na sentença recorrida, ainda que com uma redacção não inteiramente coincidente, pelo que carece de justificação o seu aditamento, nos termos defendidos pela recorrente.
Quanto à demais factualidade acima descrita, é manifesta a sua total irrelevância para a decisão da causa. Estando em discussão nestes autos a resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda do veículo automóvel com a matrícula ..-VH-.., celebrado entre o insolvente BB e o autor AA, maxime a data em que este contato foi celebrado e o preço acordado, mas não sendo questionado por nenhuma das partes que este veículo havia sido adquirido pelo agora insolvente com reserva de propriedade a favor de “A..., S.A.”, como decorre do registo descrito na referida al. B), é absolutamente inócuo descrever as transmissões anteriores a esta e as respectivas inscrições registais. De resto, a própria recorrente limita-se a afirmar que esta factualidade “resultante dos negócios anteriores e registos a eles associados” é importante para demonstrar a impossibilidade de vingar a tese do recorrido, mas nunca concretiza em que se traduz essa importância.
Pelo exposto, improcede, nesta parte, a impugnação em apreço.
3.2. A recorrente pugna, de seguida, pela alteração da decisão relativa à factualidade descrita nos pontos 1 e 2 dos factos julgados provados, mais concretamente no que respeita à data da celebração do acordo verbal aí descrito (que entende ser 20.12.2022, em vez de Março de 2021), ao preço acordado (que entende ser de 6.166,93 €, em vez dos cerca de 10.000,00 € que o autor devia naquela data a “A..., S.A.”) e ao diferimento do registo da transmissão para momento posterior ao pagamento do crédito que a referida sociedade tinha sobre o ora insolvente (considerando que ficou acordado o imediato registo da transmissão).
Para o efeito, a recorrente começa por alegar que não pode ser dado como provado que o negócio se fez em 2021, porque isso corresponde a um negócio nulo, por venda de bens alheios.
Compreende-se mal esta alegação, que parece confundir o plano da decisão sobre a matéria de facto com o plano da decisão da matéria de direito. Afigura-se de meridiana clareza que a nulidade de determinado acordo não impede que ele tenha sido, efectivamente, celebrado, pois aquele vício não corresponde a impossibilidade ontológica das declarações negociais, ainda que estas não sejam passíveis de produzir os efeitos jurídicos visados pelas partes declarantes. Se assim não fosse, nunca poderíamos falar de contratos nulos, mas apenas contratos inexistentes, o que esvaziaria de sentido e conteúdo a figura jurídica da nulidade das declarações negociais. De resto, quando aprecia a prova e profere a decisão sobre a matéria de facto, o tribunal não faz um juízo técnico-jurídica dos factos sujeitos a prova, mas apenas um juízo sobre demonstração ou não demonstração desses factos pela prova produzida (sem prejuízo de estar obrigado a respeitar as normas de direito probatório material). Nesta fase apenas lhe compete apurar a factualidade provada e não provada, só depois se devendo ocupar do enquadramento legal dos factos assim apurados.
E não se diga, como faz a recorrente, que a factualidade apurada «tem de ser juridicamente possível, sob pena do Tribunal a quo passar a validar negócios nulos». Como dissemos, julgar provado um facto não significa julgá-lo juridicamente válido. Nada impede que o tribunal julgue nulo um negócio que previamente julgou provado. Pelo contrário, a prova do negócio constitui mesmo pressuposto da sua declaração de nulidade.
Nestes termos, carece totalmente de razão a recorrente quando afirma que a nulidade da compra e venda celebrada durante a vigência de uma reserva de propriedade registada a favor de pessoa diversa do vendedor impede que o tribunal julgue provado tal acordo de compra e venda, pois aquela nulidade, mesmo que exista, não implica uma impossibilidade ontológica do acordo.
Ainda no que respeita à data da compra e venda, a recorrente baseia também a sua impugnação no “documento de registo automóvel”, assim aludindo ao requerimento de registo automóvel junto aos autos na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 26.06.2024, alegando que tal documento está assinado pelo recorrido e pelo insolvente, que não foi impugnado pelo primeiro e que nesse documento as partes declararam que a compra e venda do veículo ocorreu em 09.01.2023, concluindo que, deste modo, o apelado aceitou que foi esta a data da compra.
É inegável que este documento indicia que o contrato por via do qual a propriedade do referido veículo foi transmitida para o autor foi celebrado em 09.01.2023 (e não em 20.12.2022 ou em março de 2021).
Mas não mais do que isso, não impedindo que o tribunal se convença do contrário, com base na apreciação deste documento e da demais prova produzida.
No que àquele documento diz respeito, importa realçar que a declaração dele constante, agora invocada pela recorrente, é imputada ao insolvente e não ao autor recorrido, razão pela qual nem sequer se pode equacionar que o mesmo configure uma confissão, com o valor probatório previsto no artigo 376.º, n.º 2, e 358.º, n.º 2, do CC. Na verdade, o que resulta desse documento é que foi assinalada uma cruz e preenchida manualmente a data no seguinte campo, onde tudo o mais estava pré-redigido: «X O contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 09.01.2023 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições (preencher caso se trate de contrato verbal de compra e venda com ou sem reserva de propriedade)».
Em todo o caso, como já referimos, o Tribunal nunca estaria impedido de lançar mão da restante prova produzida, inclusivamente da prova testemunhal, para interpretar as declarações negociais vertidas no documento (cfr. artigo 393.º, n.º 3, do CC)
Ora, não cremos que a declaração acima referida seja inconciliável com a factualidade descrita nos pontos 1 e 2 dos factos provados, na medida em que nestes se afirma que o acordo verbal de transmissão da propriedade do veículo foi celebrado em Março de 2021, mas as partes logo acordaram que o registo de tal transmissão a favor do autor ocorreria após o pagamento integral do valor em dívida à sociedade “A..., S.A.”, o que que ocorreu em 21.12.2022, conforme definitivamente fixado no ponto 3 dos factos provados.
Como já deixámos implícito, a decisão sobre a matéria de facto tem, necessariamente, de assentar na análise crítica do conjunto da prova produzida, não sendo legítimo isolar e valorar apenas algum ou alguns meios de prova, sem os concatenar com os demais ou, pelo menos, sem esclarecer as razões pela quais a restante prova é desconsiderada.
O tribunal a quo fundamentou assim a sua decisão quanto aos factos agora impugnados:
«Os factos provados em 1, 2, 3, 4 e 5 resultaram do teor das declarações prestadas em audiência de julgamento pelo próprio Autor e pelas testemunhas DD e FF, ambas filhas do Autor, e a primeira mãe do Insolvente, que demonstraram ter conhecimento dos factos em causa, sendo que pese embora as relações familiares com o Autor e com o Insolvente, nos mereceram credibilidade, por terem prestado depoimentos espontâneos, coerentes em si e entre si, corroborados com as declarações de parte do Autor, que igualmente nos mereceu credibilidade, afigurando-se ao Tribunal que foram genuínos e verdadeiros. Ademais tais declarações são corroboradas pelos documentos comprovativos de operação no serviço Banco 1... das transferências realizadas a pedido de AA, juntos com a petição inicial. Mas também, com a informação prestada pela Companhia de Seguros “C... Companhia de seguros, S.A”, em 16.07.2024 e ainda contrato de Seguro e Autorização para pagamento direto juntos em 30.07.2024, e, ainda faturas emitidas pela Via Verde em nome do Autor e referentes ao veículo em causa, juntas aos autos em 30.07.2024».
Concatenada a prova assim analisada com o documento invocado pela recorrente, concluímos, tal como o tribunal a quo, que o insolvente e o autor celebraram verbalmente o acordo de transmissão da propriedade do veículo em causa em março de 2021, embora relegando o registo dessa transmissão para momento posterior, certamente porque estavam cientes de que o insolvente não podia dispor do bem e, por isso, não podia levar ao registo a transmissão de um veículo que havia adquirido com reserva de propriedade a favor do respectivo alienante. Na verdade, só assim se compreende que o autor, para além de assumir o pagamento das prestações devidas ao referido alienante (o que, por si só, poderia justificar-se pelo seu interesse nesse pagamento, enquanto avalista – cfr. al E) dos factos provados), tivesse assumido igualmente todas as demais despesas inerentes à circulação do veículo, inclusivamente o pagamento do seguro obrigatório e da via verde, e que tivesse passado a utilizar ele próprio o veículo a partir da referida data, conforme decorre do ponto 5 dos factos provados, não impugnado pela recorrente.
Totalmente distinta desta é, como já dissemos, a questão de saber se um acordo celebrado nestes termos é passível de produzir os efeitos translativos pretendidos pelas partes, a qual deve ser analisada na sede própria.
No que respeita ao preço acordado, a recorrente começa por afirmar que «[n]ão podendo ser celebrado o “negócio” em março de 2021, não pode ser aceite que as prestações pagas pelo Recorrido diretamente à verdadeira proprietária do veículo fosse o pagamento do preço ao insolvente», mais acrescentando que «perante a impossibilidade jurídica de transacionar o veículo em março de 2021, o Recorrido não alegou a que título foram feitos tais pagamentos anteriores a dezembro de 2022, se o foram como empréstimos ao insolvente, se o foram como sinal, ou outro enquadramento». Mais uma vez, o recorrente parte de pressupostos de ordem puramente jurídica e não da prova produzida nem de factos concretos, pelo que esta argumentação cai pela base, tanto mais que, como vimos, a prova produzida demonstra que as partes celebraram o acordo verbal em Março de 2021, independentemente da sua validade ou invalidade.
Ainda quanto ao preço acordado, a recorrente baseia-se também na correspondência electrónica junta como documento n.º 1 da contestação, na qual o insolvente «diz à Administradora de Insolvência que o “valor total do carro era de 7.166.93” e que o Recorrido adquiriu pelo valor de “6.166.93” correspondente à liquidação antecipada», pelo que «[n]ão pode o Tribunal ignorar que o insolvente confessou que o Recorrido adquiriu o veículo pelo valor de 6.166,93 EUR e nunca por “cerca de 10 000 euros”».
O artigo 352.º do CC define confissão como «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária», acrescentando o artigo 355.º que esta pode ser judicial, quando é feita em juízo, ou extrajudicial, quando é feita de outro modo (n.ºs 1, 2 e 4), e que a confissão judicial só vale no processo em que é feita (n.º 3). De harmonia com o disposto no artigo 356.º do mesmo código, a confissão judicial pode ser espontânea, se for feita nos articulados ou em qualquer outro acto do processo, ou provocada, se for feita em depoimento de parte ou em prestação de informações ou esclarecimentos ao tribunal. Dispõe, por fim, o artigo 358.º, n.º 1, do CC que «[a] confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente».
Perante este regime legal, afigura-se de linear clareza que o documento que a recorrente juntou com a sua contestação sob o n.º 1 não configura uma confissão, desde logo porque não emanou de nenhuma das partes (ou respectivos procuradores, munidos de poderes para o efeito), nomeadamente do autor recorrente, sendo incontestável que apenas as partes do processo podem confessar os factos que lhe são desfavoráveis. De resto, os referidos documentos não são, sequer, da autoria do insolvente, mas da sua mandatária.
Não estamos, portanto, perante prova vinculada, mas sim perante prova sujeita ao princípio geral da livre apreciação.
Em todo o caso, o documento em causa não contradiz a versão do aqui autor recorrido, em especial quando concatenado com a demais prova, designadamente a prova documental.
Nesse documento, a mandatária do insolvente começa afirmar o seguinte: «Segue em anexo comprovativo das transferências feitas pelo Sr. AA, no dia 20-12-2022, para a instituição financeira num total de 6.166.93». Daqui apenas se pode extrair que ascenderam a este valor as transferências feitas naquele dia, o que está em total consonância com a al. D) dos factos assentes. Mas não se extrai que tenha sido este o único valor pago pelo autor – o que é desmentido pela al. F) dos factos assentes e pelos documentos aí aludidos, que atestam 22 duas transferências realizadas anteriormente, da conta do autor para uma conta da sociedade financeira acima aludida, no valor global de 4.483,16 €. Estas transferências anteriores e a sua natureza de preço são ainda corroboradas pelo documento em análise, no qual a mandatária do insolvente acrescenta o seguinte: «Como explicado telefonicamente, o Sr. AA era avalista do insolvente e a partir do momento em que ele deixa de ser capaz de pagar as prestações, o Sr AA, que necessitava de comprar um carro, liquida o valor em falta e adquire-o». Por fim, esta análise é ainda confirmada pela demais prova produzida, como decorre da motivação vertida na sentença recorrida, acima transcrita.
Em suma, a decisão sobre a matéria de facto mostra-se consentânea com a prova produzida e bem fundamentada, pelo que improcede, na totalidade, a impugnação dessa decisão.
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C. O Direito
1. Alega a recorrente que o contrato de compra e venda celebrado entre as partes em Março de 2021 é nulo, por falta de legitimidade do transmitente, visto que naquela data se matinha a reserva da propriedade do veículo em causa a favor da sociedade “A..., S.A.”. Na verdade, acrescenta a recorrente, por força desta reserva, a propriedade (reservada) mantinha-se na titularidade da referida sociedade, cabendo ao insolvente uma mera expectativa real de aquisição do veículo, acrescida de um direito de gozo da coisa oponível erga omnes. Assim, conclui, a venda a terceiros configura uma venda de bens alheios, nula nos termos do disposto nos artigos 892.º do CC, vício que é do conhecimento oficioso do Tribunal.
Não se questionam as considerações dogmáticas que a recorrente tece a respeito da compra e venda com reserva de propriedade, tal como não se questiona a possibilidade da venda efectuada a terceira pessoa pelo titular da expectativa real de aquisição poder subsumir-se ao regime legal da venda de bens alheios.
Contudo, pra além da nulidade prevista no artigo 892.º do CC, este regime prevê, no artigo 893.º do mesmo código, que a venda de bens alheios fique sujeita ao regime da venda de bens futuros, se as partes os considerarem nessa qualidade.
Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao artigo 880.º do CC (Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra, 1986, p. 174), «coisas futuras são aquelas que não estão no poder do disponente ou a que este não tem direito ao tempo da declaração negocial. Podem ser coisas inexistentes, sendo os exemplos mais vulgares desta variante a venda de coisa que o vendedor construirá ou fabricará e a de frutos futuros; mas podem as coisas existir e podem pertencer a terceiro. Neste último caso, para que a coisa seja havida como futura, é necessário que o contrato se realize na perspectiva (suposição) de que ela vem a entrar no património do alienante (cfr. anotação ao art. 211.º) – emptio rei speratae. Se falta esse pressuposto negocial, e se a coisa alienada pertence a terceiro, a venda é de coisa alheia e não de coisa futura».
Os mesmos autores apontam como «caso característico de venda de coisa futura existente no património de terceiro (…) o da venda, por um comerciante, de mercadorias ainda pertencentes ao fornecedor (vide anotação ao art. 893.º). Como venda de coisa existente in rerum natura, mas não pertencente a terceiro, pode citar-se o caso do caçador que vende a caça antes de a ocupar, ou o do pescador que vende o peixe antes de o pescar». Em anotação ao artigo 893.º (cit., p. 191) dão um outro exemplo: «o de o vendedor ser um promitente-comprador dos bens, ou o de a lei lhe conferir direitos de preferência na alienação feita pelo proprietário».
No mesmo sentido, António Fontes de Almeida (Comentário do Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, Coord. António Agostinho Guedes/Júlio Vieira Gomes, Universidade Católica Editora, 2023, pp. 55-56) distingue assim a venda de bens futuros da venda de bens alheios: «A diferença reside no facto de na venda de bens futuros as partes não ignorarem que o bem não pertence ao vendedor, sendo o negócio celebrado na expectativa de ele vir a integrar o património deste, no futuro».
No caso em apreço, afigura-se claro que foi nessa qualidade de coisa futura que o veículo foi havido pelos contraentes. Como decore dos factos provados, em Março de 2021, o autor e o insolvente acordaram verbalmente na transmissão, para o primeiro, da propriedade do veículo com matrícula ..-VH-.., mediante o pagamento da quantia de cerca de 10.000 euros que o insolvente devia à titular da propriedade reservada desse mesmo veículo, logo acordando que o registo de tal transmissão ocorreria após esse pagamento, o que veio a suceder em 21.12.2022, data em que a referida titular da propriedade reservada declarou estar liquidado o preço que lhe era devido, tendo então o insolvente e o autor diligenciado pela registo da transmissão, em cumprimento do acordo celebrado em 2021.
Perante esta factualidade, afigura-se inequívoco que as partes – ainda que sem domínio dos conceitos jurídicos envolvidos – celebraram o referido acordo na perspectiva de que o veículo viria a entrar no património do alienante, agora insolvente, até porque isso dependia exclusivamente do pagamento integral do preço devido à titular da propriedade reservada, assumido pelo adquirente, aqui autor. Dito de outro modo, celebraram o referido negócio na suposição de que o veículo era, na perspectiva do alienante, uma coisa futura, nos termos definidos no artigo 211.º do CC.
De novo nas palavras dos autores que vimos citando (ob. cit., vol. I, 4.ª ed., 1987, p. 204), «[n]ão estão, por isso, sujeitos ao regime dos negócios sobre coisa alheia, mas antes ao regime dos negócios sobre bens futuros, os actos de disposição de coisa alheia, quando esta seja tomada pelas partes em tal qualidade e não como própria do disponente».
Tal como a compra e venda com reserva de propriedade, a compra e venda de coisa futura enquadra-se nas excepções à regra geral prevista no artigo 879.º, al. a), do CC, segundo a qual a transmissão da propriedade opera automaticamente, por mero efeito do contrato, sem dependência da entrega da coisa ou do pagamento do preço.
Como escreve Pedro Romano Martinez (Contratos em Especial, Universidade Católica Editora, 2.ª ed., Lisboa, 1996, pp. 32-34), «[p]or via de regra, o efeito real (transmissão da propriedade ou de outro direito real) está associado com a celebração do contrato, sendo de produção imediata, mas pode estar igualmente relacionado com outros factores, por força dos quais diferida no tempo.
(…) Estando em causa a venda de coisa relativamente futura, o efeito translativo fica na dependência da constituição da propriedade (ou de outro direito real) sobre essa coisa futura por parte do alienante. Deste modo, quando são vendidos bens alheios nessa qualidade, o direito real só se transfere para o adquirente na data em que o direito se constituir na esfera jurídica do alienante.
Sendo vendida coisa absolutamente futura, o direito só será adquirido pelo comprador a partir do momento em que a coisa tiver existência, isto é, passar a coisa presente.
(…) Em todas estas situações, a transferência do direito real funciona sempre de modo automático; continua a ser efeito do contrato, mas completado por outro facto. Por isso, nestes casos, a transmissão ou constituição dos direitos reais não se dá no momento da celebração do contrato, mas posteriormente, sem carecer de subsequente negócio jurídico. Dito de outro modo, a transferência da propriedade pode não ser efeito imediato do contrato, mas será sempre efeito directo do contrato».
No mesmo sentido, António Fontes de Almeida (loc. cit.) afirma que «[v]erificado o facto de que depende o efeito translativo, o contrato de compra e venda produzirá automaticamente os seus efeitos ex nunc».
Ainda no mesmo sentido, Ana Afonso, em anotação ao artigo 408.º do CC (Comentário do Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Coord. José Brandão Proença, Universidade Católica Editora, 2018, pp. 72-73), escreve o seguinte:
«Atendendo a que nas situações apresentadas a produção do efeito real (maxime a transmissão da propriedade) resulta de dois factos jurídicos: o contrato e um outro facto sucessivo complementar, segundo entendimento professado por FERREIRA DE ALMEIDA, 2005: 11, não se poderia dizer que o efeito real (transmissão da propriedade) é resultado direto do contrato. Este seria apenas um facto componente, requisito necessário, mas não suficiente para aquele efeito: a transmissão da propriedade seria afinal produto de um «facto complexo de formação sucessiva». O entendimento dominante é, porém, o de que basta o contrato para a produção do efeito real; nas hipóteses contempladas no n.º 2 deste 408.°, a constituição ou transmissão do direito real é ainda efeito do contrato, apenas o efeito jurídico-real não opera no momento da celebração do contrato mas em momento ulterior, com a prática de determinados atos dependentes (concentração, separação) ou não da vontade das partes. No n.º 1, o direito real constitui-se ou transmite-se por efeito e no momento do contrato; no n.º 2 a constituição ou transmissão dá-se por efeito do contrato, mas não no mesmo momento. Neste sentido, ver, nomeadamente, RAÚL VENTURA, 1983: 593-594; 618; ANA MARIA PERALTA, 1990: 152; RAUL GUICHARD, 2007: 285. (…) Sendo certo que ao nosso sistema pode ser endereçada a crítica de deixar desacautelados os interesses de terceiros adquirentes, não o é menos que há institutos e mecanismos que servem esse fim (vd. artigo 291.°; regras do registo predial; instituto da usucapião) e que um sistema de consensualidade tem a vantagem da simplicidade e da salvaguarda dos interesses do adquirente».
Nestes termos, o diferimento do efeito translativo do direito de propriedade não retira ao contrato de compra e venda (de coisas futuras) a sua natureza de contrato real quoad effectum, por oposição aos contratos reais quoad constitutionem, nos quais «o elemento consensual ou volitivo não é suficiente para a produção dos efeitos jurídico-negociais, sendo indispensável que às declarações de vontade das partes se aditem certos atos reais ou materiais» (loc. cit.).
No caso concreto, o efeito translativo da propriedade do veículo VH continua a ser um efeito do acordo celebrado entre o agora insolvente e o aqui autor em Março de 2021, embora esse efeito tenha sido diferido para o momento do ingresso do respectivo direito de propriedade na esfera jurídica do ora insolvente, o que ocorreu em 21.12.2022 (e não na data do registo dessa transmissão, o qual não tem efeitos constitutivos). Isto mesmo decorre do disposto no artigo 408.º, n.º 2, do CC, nos termos do qual se a transferência respeitar a coisa futura, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante.
Atento o exposto, não restam dúvidas de que o contrato resolvido pela AI foi celebrado em Março de 2021, tendo produzido todos os seus efeitos, ainda que alguns, como o pagamento do preço e transmissão da propriedade, tenha sido diferidos para momentos posteriores.
Assim, considerando que o CIRE apenas permite a resolução em benefício da massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 120.º do CIRE, dos actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, e a resolução incondicional, ao abrigo do disposto no artigo 121.º, n.º 1, do mesmo código, dos actos descritos nas suas diversas alíneas, praticados nos períodos temporais aí definidos, correspondendo o mais alargado aos mesmos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, considerando também que o presente processo de insolvência foi intentado em 19.10.2023, concluímos que o negócio resolvido pela AI da insolvência foi celebrado fora dos referidos períodos temporais, pelo que falece um dos pressupostos indispensáveis da sua resolução.
Tanto basta para que conclua pela procedência da presente acção de impugnação da resolução em benefício da massa e, consequentemente, se julgue improcedente a apelação e se confirme a sentença recorrida, o que dispensa o conhecimento dos demais argumentos aduzidos pela recorrente.
Mas sempre se dirá que de tudo quanto ficou exposto anteriormente já decorre que não assiste razão à recorrente quando invoca a presunção derivada do registo para afirmar que o negócio foi celebrado em 09.01.2023, pois ficou demonstrado que esse negócio foi celebrado em Março de 2021, embora com diferimento da transmissão da propriedade para 21.12.2022, ainda que, ou melhor, precisamente porque a reserva de propriedade se manteve até esta data.
Do mesmo modo, pelas razões já expostas, também não partilhamos do entendimento da recorrente quando enquadra o negócio em apreço na figura da cessão da posição contratual. De resto, nada foi alegado e, por conseguinte, nada ficou demonstrado a respeito do consentimento da sociedade “A..., S.A.”, que o artigo 424.º do CC erige em requisito da cessão da posição contatual, revelando-se totalmente espúria a alusão da recorrente a uma cessão não formalizada.
Por fim, tendo improcedido a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, designadamente no que concerne ao preço da venda resolvida pelas AI, improcede igualmente a alegação de que a obrigação assumida pelo insolvente excede manifestamente as da contraparte, pois, como se afirma na sentença recorrida, resulta dos factos provados que o veículo tinha o valor de 11.000,00 € e que a contrapartida entregue pelo recorrido ascendeu a 10.650,09 €.
E não será demais acrescentar que, tendo a sentença recorrida considerado não estar demonstrada a má-fé do adquirente, enquanto requisito da resolução em benefício da massa insolvente consagrado no artigo 120.º, n.º 4, do CIRE, a recorrente nada alegou em sentido contrário.
Em conclusão, impõe-se julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Na improcedência da apelação, as respectivas custas são da responsabilidade da recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Porto, 11 de Dezembro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Pinto dos Santos
Anabela Dias da Silva