I - Para que se possa falar na existência de servidão predial é essencial que os prédios serviente e dominante pertençam a donos diferentes, já que é antijurídico que, relativamente ao mesmo prédio (rústico) coexistam o direito de compropriedade - que em princípio é um direito absoluto - e um direito que a restringe - servidão de passagem - de harmonia com a máxima "nemini res sua servit".
II - A condenação em custas rege-se pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
AA, residente na Travessa ..., ... ..., ..., instaurou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, residentes na Travessa ..., ..., ..., ..., onde concluiu pedindo:
- a título principal:
a) Seja declarado e reconhecido ao Autor o direito de passagem a pé, durante todo o ano e a qualquer hora, através do lote possuído e fruído pelos Réus designado como lote nº 3 (serviente), referido nos artigos 12º e 19º, e a favor do prédio do Autor (dominante), referido e identificado como lote nº 5 no documento nº 4 e nos artigos 9º e 16º;
b) Sejam os Réus condenados a reconhecer esse direito de servidão de passagem a favor do Autor e, consequentemente, a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam o exercício, gozo ou fruição desse direito,
- a título subsidiário:
c) Sejam os Réus condenados a reconhecer o direito de posse e compropriedade do casal do Autor sobre o poço e as águas nele captadas, referido nos artigos 12º e 13º, bem como a reconhecer o direito de passagem descrito nos artigos 21º, 22º e 24º e a absterem-se da prática de actos que impeçam o exercício desses direitos.
Alega, em síntese, que é comproprietário, juntamente com os réus e com DD, na proporção de 1/3, 1/2 e 1/6, respectivamente, do prédio rústico denominado Campo ... inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27 da União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...29 da dita União de Freguesias.
Acrescenta que pese, embora, o referido prédio não se encontre, em termos oficiais, dividido entre os comproprietários, os mesmos já definiram entre si que partes pertencem a cada um deles, tendo, inclusivamente, procedido à construção de moradias unifamiliares nos lotes que definiram pertencer-lhes.
Refere que no lote pertencente aos réus encontra-se instalado um poço de abastecimento de água, o qual já existia aquando da aquisição do prédio rústico pelos comproprietários e quando não tinha qualquer edificação, sendo que, tal poço fornecia, assim, todo o terreno.
Alega, ainda, que, posteriormente, para permitir que a água do aludido poço abastecesse o lote fruído pelo autor, este aí instalou um motor, o qual acciona regularmente para permitir a rega das suas culturas agrícolas e alimentar os animais.
Mais alega que, para poder aceder ao poço e ao motor, é-lhe necessário atravessar o lote dos réus, o que tem vindo a fazer regularmente a pé e utilizando uma largura não superior a 80cm.
Refere, ainda, que, autor e réus têm mantido a infraestrutura descrita, tendo aquela água vindo a ser utilizada e aproveitada por ambos há mais de 40 anos da forma descrita, período ao longo do qual têm estado na posse da nascente, poço e condutas, o que tem vindo a ser exercido à vista de toda a gente, de modo exclusivo, de forma ininterrupta, de boa fé, de forma pacífica e pública, todos respeitando essa posse, explorando a água e condutas e utilizando-as com o animus de que são donos e legítimos possuidores de coisa própria.
Alega, por fim, que os réus têm vindo a vedar os lotes que lhes cabem, e a propalar que vedarão o lote onde se encontra instalado o poço e motor, e que apenas lhes facultarão a passagem pelo portão a colocar quando assim bem entenderem.
Por excepção, invocaram a ilegitimidade activa e passiva, por preterição de litisconsórcio necessário activo (uma vez que, sendo casado, a acção devia ter sido proposta juntamente pela esposa do autor) e passivo (advogando que a decisão a proferir para produzir o seu efeito útil, devia a demanda ser proposta contra o outro comproprietário do prédio, DD).
Por impugnação, alegaram, em síntese, que foi acordado entre os comproprietários que, quando se operasse a efectiva divisão do terreno, nenhuma servidão poderia existir, sendo que a utilização de água proveniente do poço passaria a ser exclusiva do futuro proprietário do lote no qual o mesmo se encontra construído.
Alega, ainda, que o autor, para ter acesso à água do identificado poço, não necessita de ter acesso ao mesmo.
Concluíram, assim, pela procedência da excepção de ilegitimidade das partes, devendo os réus serem absolvidos da instância, bem como pela improcedência total da acção.
Nesse mesmo articulado, o autor requereu o chamamento dos demais comproprietários, DD e mulher FF.
Nessa medida, defendem não ser possível a constituição ou reconhecimento de qualquer servidão de passagem nos autos, uma vez que inexiste um prédio serviente e outro dominante, pertencentes a donos diferentes.
Concluíram, assim, que, apenas poderá ser reconhecido aos autores, em termos genéricos, o direito de compropriedade do poço e águas nele captadas - que os intervenientes não questionam -, devendo a lide improceder.
“a) condenar os réus e intervenientes principais DD e FF a reconhecerem o direito de compropriedade do casal autor e interveniente principal EE sobre o poço e as águas nele captadas, referido em 11. e 12., bem como a absterem-se da prática de atos que impeçam o exercício desse direito;
b) absolver os réus e intervenientes principais DD e mulher FF dos demais pedidos formulados pelo autor e interveniente EE.
Custas da ação a cargo do autor e interveniente principal EE e dos réus na proporção, respetivamente, de 75% e 25%.”
I.Nos presentes autos, ficou designadamente demonstrado (cfr. factos provados 4. a 24.) que, embora o prédio aqui em causa não se encontre, em termos oficiais, dividido entre os comproprietários, todos já definiram que partes/fracções, em termos práticos, são ocupadas e fruídas por cada um deles.
II. E que, designadamente, os comproprietários procederam, há mais de 30 anos, à edificação de moradias familiares nessas «parcelas de terreno/lotes» que definiram como sendo as que são ocupadas e fruídas por cada um deles.
III. E foi essa definição que comunicaram à Câmara Municipal por ocasião de um projecto de constituição de uma «AUGI» para o imóvel em causa e para as construções nele edificadas.
IV. As «parcelas de terreno/lotes» e moradias assinaladas com os números 1 e 2, a que correspondem os «lotes n.ºs 3 e 4» na planta junta como doc. n.º 4 da petição inicial, são ocupados e fruídos pelos réus e o com o número 3, correspondente ao «lote n.º 5» daquela planta, ao casal autor - e em cada um daqueles primeiros, encontra-se edificada uma moradia unifamiliar, de que os réus fruem livremente;
V. Este último «lote», é também fruído livremente pelo autor e por ele utilizado como campo de agricultura, onde tem várias árvores de fruto, que cultiva, e animais (Facto Provado nº 9).
VI. Quando o prédio identificado em 1. foi adquirido pelos seus comproprietários, não tinha qualquer edificação, tratando-se de um terreno de cultivo, no qual estava localizado um poço de abastecimento de água que fornecia todo o terreno.
VII. Esse poço está localizado na fracção pertencente aos Réus, tendo os comproprietários construído um outro poço de formato circular situado a, pelo menos, 5,50m do existente no sentido de aumentar a água «de reserva», também instalado na fracção dos Réus.
VIII. No entanto, para que a água chegasse aos «lotes» seguintes, designadamente ao que coube ao casal do autor, o encanamento não era suficiente pelo que o autor, por necessitar de regar regularmente as suas culturas agrícolas e alimentar os seus animais, procedeu, a expensas exclusivamente suas, já em 1979, à instalação de um motor (e «baixada») na cabine existente ao lado do poço em formato circular.
IX. Motor esse que o autor regularmente acciona no sentido de abastecer de água o depósito que colocou no seu «lote», destinado a assegurar a rega e alimentação das culturas agrícolas e dos seus animais.
X. Para que o autor possa aceder ao poço e ao motor, é-lhe necessário atravessar o «lote» dos réus, o que tem vindo a fazer regularmente.
XI. Tanto o autor como os réus têm preservado e mantido a infra-estrutura descrita, tendo a água vindo a ser utilizada e aproveitada por ambos há mais de 40 anos da forma descrita, período ao longo do qual têm estado na detenção da nascente, poço e condutas,
XII. o que tem vindo a ser exercido à vista de toda a gente, de modo exclusivo, de forma ininterrupta, de boa fé, de forma pacífica, todos respeitando essa detenção, explorando a água e condutas e utilizando-as com a convicção de que são donos de coisa e direito próprios.
XIII. O autor tem acedido ao poço e ao motor atravessando a pé o «lote» ocupado e fruído pelos réus, no limite do mesmo, utilizando aproximadamente 80 cm e, pelo menos há 5 anos, os réus colocaram esteios na referida fracção, que têm vindo a ocupar e fruir.
XIV. Os réus pretendem vedar todo o «lote» que ocupam, através da colocação de um portão no caminho que o autor usa para aceder ao poço, rede de ferro entre os esteios já existentes, o que já comunicaram aos autores, referindo que sempre que estes pretenderem aceder ao poço terão de solicitar esse acesso aos réus.
XV. O Autor (e a sua mulher, interveniente), peticionou, a final da sua petição, em sede principal, a constituição de um direito de servidão de passagem sobre o «lote» possuído e fruído pelos Réus e, em sede subsidiária, a condenação a reconhecerem o direito de posse e compropriedade do casal do Autor sobre o poço e as águas nele captadas e a reconhecer-lhe o direito de passagem.
XVI. A sentença recorrida condenou os réus (e intervenientes principais) a reconhecerem o direito de compropriedade do casal autor sobre o poço e as águas nele captadas, bem como a absterem-se da prática de actos que impeçam o exercício desse direito - ou seja, julgou procedente o pedido subsidiário.
XVII. Para não reconhecer ao casal do Autor a constituição de um direito de servidão de passagem, a sentença, basicamente, entendeu que «a situação de compropriedade é incompatível com a de sujeição que é inerente à existência de servidão predial de passagem» e tal porque, para «se constituir uma servidão é necessário que existam dois prédios autónomos: o serviente, que fica sujeito e onerado com a servidão; e o dominante, que dela beneficia e aproveita».
XVIII. Não se ignora que o texto da lei é o que a sentença transcreve; há, porém, duas circunstâncias que se afigura obstarem a uma interpretação exclusivamente literal desse texto; já Pires de Lima e Antunes Varela, no seu Código Civil anotado (Vol. III, 5º comentário ao art. 1.543º), referem: «Diz-se, em terceiro lugar, no art. 1543º, que o encargo (sobre o prédio onerado) é imposto em proveito de outro prédio. Esta afirmação literal de uma relação entre dois prédios (…) tem de ser entendida em termos hábeis (…), à luz da história do direito».
XIX. Resulta mormente dos factos provados com os números 4., 5, 6., 7., 8. e 9., que todos os comproprietários do terreno definiram que partes, em termos práticos, são ocupadas e fruídas por cada um deles, designadamente tendo, há mais de 30 anos, edificado de moradias familiares em cada uma dessas partes.
XX. Em termos práticos, encontra-se definido o que pertence a cada um, e cada um, sobre a parte que por acordo entre todos lhe coube, exerce o corpus possessório e o animus possidendi, na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
XXI. Esta «definição dominial de facto» não pode deixar de ter consequências; é sabido que a posse é a base do nosso sistema jurídico no que respeita aos direitos reais; por ela se adquirem e sem ela se perdem direitos; é o primeiro pressuposto da usucapião.
XXII. Cada um dos comproprietários tem, sobre a parte lhe coube na divisão de facto a que procederam, uma intenção dominial em sentido amplo, a intenção de exercer sobre a parte que ocupam um direito real próprio.
XXIII. Os Réus, inclusivamente, ao vedarem a «parte» que lhes coube e de que fruem (factos nºs 22., 23. e 24.), estão a exercer o direito de tapagem, direito esse que o art. 1.356º do Código Civil reserva ao proprietário.
XXIV. Cada um dos comproprietários poderia inclusivamente requerer judicialmente a aquisição da propriedade da parte que ocupa por usucapião - sendo porém óbvio que o Autor não pode substituir-se aos Réus nessa iniciativa.
XXV. Nesta perspectiva, nada impede que sobre a fracção dos Réus seja constituído um direito de servidão de passagem a favor do casal do Autor e que sejam compelidos a absterem-se da prática de quaisquer actos que impeçam o exercício, gozo ou fruição desse direito (cfr., a propósito, o Acórdão da Relação de Guimarães de 2013.10.15, Proc. nº 461.11.2TBFAF.G1, parcialmente citado nesta alegação).
XXVI. No que respeita à responsabilidade pelas custas, uma vez que, dos dois pedidos formulados pelos Autores, um foi julgado procedente, afigura-se que, na hipótese da improcedência do recurso, as custas deveriam ser suportadas em partes iguais pelo casal do Autor e pelos Réus.
O Tribunal a quo considerou assentes os seguintes factos:
1. Pela Ap. ...6 de 1990/01/20 encontra-se registada a favor de GG casado com HH no regime da separação de bens, AA casado com EE no regime da comunhão de adquiridos e BB casado com CC no regime da comunhão de adquiridos, a aquisição por compra do prédio rústico denominado «Campo ...», sito em Lugar ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...27 da União de Freguesias ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...9/19900102, a confrontar a norte com II, a sul e nascente com JJ e poente com caminho.
2. Pela Ap. ...9 de 1995/11/08 encontra-se registada a favor de DD casado com FF no regime da comunhão de adquiridos, e KK casado com LL no regime da comunhão de adquiridos, a aquisição da quota de 1/3 do prédio identificado em 1., por sucessão por morte deferida em partilha de GG.
3. Pela Ap. ...0 de 2000/10/11 encontra-se registada a favor de BB casado com CC no regime da comunhão de adquiridos, a aquisição da quota de 1/6 do prédio identificado em 1. por compra a KK casado com LL no regime da comunhão de adquiridos.
4. Embora o prédio identificado em 1. a 3. não se encontre, em termos oficiais, dividido entre os comproprietários, nunca tendo sido sujeito a qualquer operação legal de loteamento que determinasse a sua divisão em prédios autónomos, o certo é que todos já definiram que partes, em termos práticos, são ocupadas e fruídas por cada um deles.
5. Designadamente, os comproprietários em causa na presente ação procederam, há mais de 30 anos, à edificação de moradias familiares em «parcelas de terreno/lotes» que definiram como sendo as que são ocupadas e fruídas por cada um deles.
6. Houve, inclusivamente, um projeto de constituição de uma «AUGI» para o imóvel em causa e para as construções nele implantadas, iniciativa da Câmara Municipal ..., (legalização de «Áreas Urbanas de Génese Ilegal»), projeto a que a edilidade atribuiu o n.º ..., mas que, pelo menos por ora, se frustrou;
7. sendo que, para efeitos da constituição dessa «AUGI», os comproprietários do imóvel identificada em 1. a 3. comunicaram à Câmara Municipal a divisão em «parcelas de terreno/lotes» a que haviam procedido do mesmo, mormente para efeitos de determinação, pelo Município, das obras necessárias à legalização das construções e do que é ocupado e fruído por cada um.
8. As «parcelas de terreno/lotes» e moradias assinaladas com os números 1 e 2, a que correspondem os «lotes n.º3 e 4» na planta junta como doc. n.º4 da petição inicial, são ocupados e fruídos pelos réus e o com o número 3, correspondente ao «lote n.º5» daquela planta, ao casal autor.
9. Em cada um daqueles primeiros, encontra-se edificada uma moradia unifamiliar, de que os réus fruem livremente; este último «lote», é também fruído livremente pelo autor e por ele utilizado como campo de agricultura, onde tem várias árvores de fruto, que cultiva, e animais.
10. Os «lotes/parcelas de terreno» ante referidos são ladeados, a poente, por um caminho que dá acesso a cada um, sem interferir com os demais.
11. Quando o prédio identificado em 1. foi adquirido pelos seus comproprietários - GG (pai do interveniente principal DD, do réu marido e da interveniente EE), pelo réu e pelo autor - não tinha qualquer edificação, tratando-se de um terreno de cultivo, no qual estava localizado um poço de abastecimento de água que fornecia todo o terreno.
12. Esse poço estava (e está) localizado no «lote nº 3» da planta junta como doc. n.º 4 da petição inicial.
13. Quando os comproprietários identificados em 11., definiram entre si, o que passaria a ser ocupado e fruído por cada um deles, acordaram em construir um outro poço de formato circular situado a, pelo menos, 5,50m do existente no sentido de aumentar a água «de reserva» (este também instalado no «lote n.º 3», ocupado e fruído pelos réus), estando os dois ligados por uma mina e em edificarem uma conduta subterrânea no sentido sul-sudeste, por forma a que os «lotes» situados nessa direção pudessem ser abastecidos de água.
14. Essas obras (poço e condutas) foram realizadas e custeadas pelos três comproprietários da altura, concretamente, autor, réu e pai do réu e da interveniente principal EE.
15. No entanto, para que a água chegasse aos «lotes» seguintes, designadamente ao denominado «lote n.º 5», fruído pelo casal autor, não era e não é suficiente o respetivo encanamento, sendo necessária a sua conduta, pelo que o autor, por necessitar de regar regularmente as suas culturas agrícolas e alimentar os seus animais, procedeu, a expensas exclusivamente suas, já em 1979, à instalação de um motor (e «baixada») na cabine existente ao lado do poço em formato circular.
16. Motor esse que o autor regularmente aciona no sentido de abastecer de água o depósito que colocou no seu «lote», destinado a assegurar a rega e alimentação das culturas agrícolas e dos seus animais.
17. Dentro da cabine referida em 15. existia, ainda, um outro motor de extração de água colocado pelo réu, bem como dois contadores de energia elétrica, autónomos e independentes, colocados cada um pelo autor e pelo réu, no sentido de poder ser determinada a energia que cada um, separadamente, consome.
18. O poço referido em 11. e o motor referido em 15., encontram-se instalados num «lote» ocupado e fruído pelos réus, mormente no «lote n.º 3».
19. Para que o autor possa aceder ao poço e ao motor, é-lhe necessário atravessar o «lote» dos réus assinalado na planta junta como doc. n.º 4 da petição inicial com a designação de «lote n.º 3», o que tem vindo a fazer regularmente.
20. Tanto o autor como os réus têm preservado e mantido a infraestrutura descrita, tendo a água vindo a ser utilizada e aproveitada por ambos há mais de 40 anos da forma descrita, período ao longo do qual têm estado na detenção da nascente, poço e condutas, o que tem vindo a ser exercido à vista de toda a gente, de modo exclusivo, de forma ininterrupta, de boa fé, de forma pacífica, todos respeitando essa detenção, explorando a água e condutas e utilizando-as com a convicção de que são donos de coisa e direito próprios.
21. O autor tem acedido ao poço e ao motor atravessando a pé o «lote» ocupado e fruído pelos réus, no limite do mesmo, utilizando aproximadamente 80 cm.
22. Há cerca de 30 anos, os réus colocaram um portão que dá acesso à moradia unifamiliar que se encontra nesse «lote n.º 3».
23. Há pelos menos 5 anos, os réus colocaram esteios no «lote n.º 3», que têm vindo a ocupar e fruir.
24. Os réus pretendem vedar todo o «lote n.º 3», através da colocação de um portão no caminho que o autor usa para aceder ao poço, rede de ferro entre os esteios já existentes, o que já comunicaram aos autores, referindo que sempre que estes pretenderem aceder ao poço terão de solicitar esse acesso aos réus.
25. Até à atualidade, o casal autor continua a aceder regularmente ao poço e motor supra identificados.
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Da compatibilidade da situação de compropriedade com a de sujeição à existência de servidão predial;
- Da repartição das custas.
4.1 Da compatibilidade da situação de compropriedade com a de sujeição à existência de servidão predial
Pugnam os Apelantes pela compatibilidade, no caso vertente, da situação de compropriedade com a de sujeição à existência de servidão predial.
Adiantamos, desde já, que a análise jurídica que consta da sentença não nos merece reparo.
Com efeito, o direito de compropriedade exprime a titularidade plural do direito de propriedade - artigo 1403º do Código Civil - sendo os direito dos consortes sobre a coisa comum, qualitativamente iguais embora possam ser quantitativamente diferentes - nº 2 do citado artigo.
Já a servidão predial é um direito real menor que pressupõe um encargo a que se acha sujeito um prédio, em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente.
Destarte, a situação de compropriedade é incompatível com a de sujeição que é inerente à existência de servidão predial.
Com efeito, a servidão predial consiste num encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio, pertencente a dono diferente, di-lo o artigo 1543º do Código Civil.
Ou seja, a servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio serviente).
Assim, “conditio sine qua non” para se poder falar na existência de uma servidão é que os prédios, serviente e dominante, pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que, relativamente à mesma coisa, coexistam o direito de propriedade - que em princípio é absoluto - e um direito que o restringe como é a servidão - “nemini res sua servit”.
No caso vertente, o facto de os Apelantes exercerem o direito de passagem para acesso ao poço e à água é manifestação do direito de compropriedade. Ora, para que se possa falar em servidão é necessário que haja prédios pertencentes a donos diferentes e que num deles, haja sinais visíveis e permanentes que revelem serventia de um para o outro.
Se, na constância da indivisão, os Apelantes utilizavam a passagem como comproprietários, como os demais co-titulares de quotas indivisas, e depois da alegada autonomização continuaram a exercer tal posse, com o referido “animus”, não se alterou, o seu estatuto jurídico de comproprietários pelo que não podemos falar em constituição do direito de servidão de passagem por não se mostrarem provados e preenchidos os pressupostos necessários para o efeito.
Concluímos, assim, que a situação jurídica dos AA. e dos RR., bem como dos demais comproprietários, em relação ao caminho de passagem para acesso ao poço e à água, é de compropriedade.
Assim, não podemos deixar de corroborar a argumentação do Tribunal a quo quando defende:
“(…), embora exista, em boa verdade, adianta-se, um acordo celebrado entre os comproprietários quanto ao gozo da coisa comum, o certo é que, até ao momento, as partes dos autos (autor, réus e intervenientes principais) são comproprietários do mesmo e único prédio, mormente o identificado no ponto 1. dos factos provados [(factos provados em 1. a 3)].
Dispõe o art. 1403º, n.º 1 do Código Civil que, «existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.»
Por seu turno, estabelece o art. 1405º, n.º 1 do Código Civil que, os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos das coisas, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes.
Nesta linha, preconiza o art. 1406º, n.º 1 do mesmo diploma legal que, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[1], «a possibilidade de uso integral da coisa, como se, nesse aspecto, o contitular da propriedade fosse titular único da coisa, vale apenas como princípio supletivo e nos termos que adiante se desenvolvem. Em primeiro lugar, há que respeitar o que houver sido acordado entre os interessados. Este acordo tanto pode constar do título constitutivo da compropriedade, como resultar de acordo posterior, ditado pelo consenso unânime dos interessados ou pela simples maioria dos consortes, nos termos em que esta decide sobre a administração da coisa. A maioria, porém, nunca poderá privar qualquer dos consortes, sem o respectivo consentimento, do uso da coisa a que tem direito. Apenas lhe será lícito disciplinar esse uso, de modo a evitar conflitos e choques de interesses entre os vários comproprietários». «Há [continuam os mesmos autores] casos em que os comproprietários harmonizam os seus interesses conflituantes no uso da coisa comum, mediante uma divisão material do gozo dela. Sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade, os condóminos podem acordar em usar, separadamente, as dependências em que dividem a casa comum, ou os vários lotes de terreno em que repartem para o efeito o prédio rústico comum».
Do exposto, decorre desde logo que, sem prejuízo da eventual superveniência dos requisitos da usucapião, dividir materialmente o gozo da coisa não é o mesmo que dividir materialmente a coisa.
Seguindo de perto as conclusões vertidas no aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.10.2005[2], «no primeiro caso [da divisão material do gozo da coisa], cada comproprietário usará a parte determinada da coisa que lhe foi atribuída sabendo que o seu direito é constituído por uma quota ideal da coisa e não por aquela parte específica. O que não sucederá no segundo [na divisão material da coisa], em que cada comproprietário passará a considerar-se proprietário exclusivo da parte que, fruto da divisão, lhe coube. […] Ou seja, acordado entre os comproprietários que cada um ficaria a gozar de uma parte determinada da coisa comum, não se vê impedimento, a não ser que a maioria expressamente o decidisse, a que todos ou alguns exerçam os respectivos direitos através de terceira pessoa. O que nenhum comproprietário pode é, a pretexto de que a lei lhe faculta o uso integral da coisa, comportar-se como se fosse proprietário exclusivo, privando os demais consortes do uso a que, tal como ele, têm direito.» – considerações últimas cuja pertinência infra se aludirá.
Aplicando os princípios acima enunciados ao caso dos autos, verificamos que o autor e réus usam, de acordo com a divisão do gozo oportunamente feita com os demais consortes, as partes determinadas do prédio que lhes foram atribuídas.
Tal acordo divide apenas o gozo e não a coisa. Pelo que, juridicamente e de direito, no caso que nos ocupa existe um único prédio, o identificado em 1. dos factos provados, de que são comproprietários as partes e intervenientes dos autos.
Chegados aqui, e atendendo que, dos pedidos formulados a título principal, o autor pugna pela declaração e reconhecimento de uma servidão de passagem no prédio identificado em 1., cumpre analisar a viabilidade de tal pretensão em face da realidade predial existente.
Ora, sem necessidade de maiores delongas, quanto a nós, entendemos que a situação de compropriedade é incompatível com a de sujeição que é inerente à existência de servidão predial de passagem.
«Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.» - art. 1543º do Código Civil.
O preceito acabado de transcrever define o conceito legal de servidão predial. Nesta noção são identificáveis quatro ideias-chave: (i) a servidão predial é um encargo; (ii) o encargo recai sobre um prédio; (iii) aproveita exclusivamente a outro prédio; (iv) os prédios devem pertencer a donos diferentes.
Na linha do que é explanado por Maria Elisabete Ferreira[3], a servidão traduz-se numa limitação ao direito de propriedade sobre o prédio onerado, implicando uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio serviente impedindo-o de praticar atos que possam prejudicar o exercício da servidão.
Representando um encargo, a servidão recai sobre um prédio (o prédio serviente) e aproveita exclusivamente a outro prédio (o prédio dominante), pelo que, apenas só são admitidas servidões em relação a prédios. Assim, parece inquestionável que, para se constituir uma servidão é necessário que existam dois prédios autónomos: o serviente, que fica sujeito e onerado com a servidão; e o dominante, que dela beneficia e aproveita.
Ademais, “conditio sine qua non” para se poder falar na existência de uma servidão é que os prédios, serviente e dominante, pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que, relativamente à mesma coisa, coexistam o direito de propriedade - que em princípio é absoluto - e um direito que o restringe como é a servidão- “nemini res sua servit”» - vide, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.03.2004[4], e, também, Maria Elisabete Ferreira[5]. Citando o exemplo facultado por estar autora «se, hipoteticamente, um proprietário de um prédio fizesse através dele a passagem de animais utilizados na exploração de um outro prédio, também da sua propriedade, não poderíamos em rigor falar de uma verdadeira servidão sobre o primeiro prédio, pois para se arrogar o direito de passagem é suficiente a invocação do seu direito de propriedade plena.»
O direito de propriedade plena é incompatível com a coexistência, sobre o mesmo objeto, de outros direitos reais que o restrinja. É por tal razão que a extinção da servidão se verifica pela reunião dos dois prédios, dominante e serviente, no domínio da mesma pessoa (art. 1569º, n.º1 do Código Civil).
Vertendo ao caso dos autos, como supra se consignou, para além de não existirem dois prédios autónomos e distintos, que possam assumir-se como serviente e dominante, na aceção e para os efeitos do estatuído no art. 1543º do Código Civil, o prédio sub judice pertence aos mesmos donos. E, como se viu, para que se possa falar em servidão de passagem é necessário que hajam prédios (plural) pertencentes a donos (plural) diferentes - o que, nos presente caso, não se verifica.
Na verdade, o facto do casal autor aceder ao poço e ao motor atravessando a pé a parte/lote usado e fruído pelos réus, no limite do mesmo, utilizado aproximadamente 80 cm, é, no caso em apreço, a manifestação legítima do direito de propriedade de que são contitulares, conjuntamente com réus e intervenientes, sobre o prédio sub judice.
Daí que, sem outras considerações, se imponha declarar a improcedência dos pedidos formulados em I, alªs. a) e b), assim como da pretensão real extraída a partir dos mesmos.”.
Assim, tendo em conta as considerações inicialmente tecidas complementadas pelas do Tribunal a quo que não nos merecem qualquer reparo à luz da factualidade provada, impõe-se, neste segmento, o não provimento da apelação.
4.2 Da repartição das custas
Pugnam, ainda, os Apelantes que as custas da apelação deveriam ter sido repartidas, por ambas as partes, em proporção idêntica.
Dispõe o n.º 1, do artigo 527º do Código de Processo Civil que “A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.”
Acrescenta o n.º 2, do referido preceito e diploma que “Entende-se que dá causa às custas do processo, a parte vencida, na proporção em que o for.”
A conjugação do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 com o n.º 6 do artigo 607.° e o n.º 2 do artigo 663.º do Código de Processo Civil permite concluir que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito, mas tal não sucede quanto à taxa de justiça, cuja responsabilidade pelo seu pagamento decorre automaticamente do respectivo impulso processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A condenação em custas rege-se, pois, pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida[6].
Destarte, dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento[7].
Nos casos em que não haja vencedor nem vencido, onde, por isso, não pode funcionar o princípio da causalidade consubstanciado no da sucumbência, rege o princípio subsidiário do proveito processual, de acordo com o qual pagará as custas do processo quem deste beneficiou.
Como tal, sempre que haja um vencido, com perdimento de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial[8].
Quando não haja uma parte vencida, se também não existir uma outra vencedora, será responsável pelas custas aquele (ou aqueles) cuja esfera se mostrar favorecida, e também na sua exacta medida, em face do teor da decisão.
Existindo um vencedor, por princípio e natureza, não lhe pode ser imputada a responsabilidade pela obrigação do pagamento das custas por ser de afastar, naturalmente, a causalidade. Ou seja, por regra, o vencedor é aquele que obteve ganho de causa. Ainda que este ganho de causa implique necessariamente um proveito, não é este proveito que releva quando se recorre ao respectivo princípio subsidiário, pois que, tal como resulta do n.º 1 do artigo 527º, do Código de Processo Civil, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito.
Mas havendo um vencedor e não se encontrando uma parte vencida, esta não pode ser condenada no pagamento de custas porque não se verifica a causalidade (não deu causa à acção ou ao recurso), mas também aquele não o pode ser precisamente por ter havido vencimento (o que afasta o critério do proveito).
Nestas situações, impõe-se encontrar uma outra solução.
Será apenas quando perante a resolução do litígio não se descortine nem um vencido, nem um vencedor, que a responsabilidade tributária terá de assentar então no critério do proveito, isto é, em função das vantagens obtidas.
Na situação sub judice, atendendo à improcedência total dos pedidos principais formulados pelo casal autor, e uma vez que o pedido subsidiário apenas procede parcialmente, sendo apenas os réus e intervenientes a estes associados condenados a reconhecerem o direito de compropriedade do casal autor e interveniente EE sobre o poço e as águas nele captadas, bem como a absterem-se da prática de actos que impeçam o exercício desse direito, entendemos, em sintonia com o Tribunal a quo, adequado e proporcional condenar o autor e interveniente principal EE em 75% e os réus (BB e CC) em 25% das custas da acção, proporção esta que não nos merece reparo à luz dos critérios atrás referidos.
De resto, conforme bem refere o Tribunal a quo, sendo o direito de propriedade um direito real por excelência oponível erga omnes e que permite ao seu titular exigir que terceiros que não o violem, a condenação dos réus a se absterem de praticar qualquer acto que impeça ou restrinja o direito dos autores, é uma mera decorrência legal do reconhecimento daquele direito de compropriedade.
Afigura-se-nos, por isso, não merecer reparo a referida repartição de custas.
Consequentemente, quanto a esta questão, também não merece provimento o recurso.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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Nestes termos, acorda-se neste Tribunal da Relação do Porto no não provimento do recurso de apelação, confirmando a decisão recorrida.
Porto, 11 de Dezembro de 2024
Os Juízes Desembargadores
Relator: Paulo Dias da Silva
1.º Adjunto: Francisca Mota Vieira
2.º Adjunto: António Carneiro da Silva
(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Cfr. Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 357.
[2] Cfr. processo n.º 2262/05, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Comentário ao Código Civil - Direitos das Coisas, Universidade Católica Portuguesa, outubro de 2021, anotação ao art. 1543º, págs. 697 e seguintes.
[4] Cfr. processo n.º 040972.
[5] Cfr. obra citada, pág. 699.
[6] Cfr. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pág. 359.
[7] Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 419.
[8] Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8-10-1997, processo n.° 97S079, disponível nas Bases Jurídico-documentais do IGFIEJ em www.dgs,gt.