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SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
INTERESSE PROTEGIDO
Sumário
I. O segredo profissional de advogado cede, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes. II. Na ponderação dos valores conflituantes – por um lado, os da preservação da relação de confiança entre o advogado / cliente e da natureza social da função forense, por outro, o do apuramento da verdade na administração da justiça – deve seguir-se um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos. III. Prevalece o interesse do apuramento da verdade na administração da justiça quando, em acção declarativa de impugnação de contratos por simulação / vício da vontade, a prestação do testemunho de advogado é requerida por ex-cliente deste e respeita a informações transmitidas pelas partes em consulta jurídica que não põem em causa a conduta profissional do advogado, não havendo outros meios de prova directa daqueles factos. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Incidente de Levantamento de Sigilo n.º 1601/19.9T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém - Juiz 2
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto
1º Adjunto: Sónia Moura
2º Adjunto: Elisabete Valente
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I. RELATÓRIO
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A.
(…) propôs contra (…) a acção declarativa com processo comum de que o presente incidente é apenso, pedindo,
- a título principal que: 1º Se declarem nulos, por simulação absoluta, os contratos de cessão de créditos, os contratos de cessão de quotas, a dação em cumprimento, o contrato de compra e venda e os quatro contratos de arrendamento comercial identificados na p.i.; e em consequência 2º Se condene a Ré a restituir ao Autor: a) as duas quotas do valor nominal de € 2.500,00 e € 2.000,00 no capital social da (…); b) as duas quotas do valor nominal de € 18.900,00 e € 15.120,00 no capital social da (…); c) a fração autónoma correspondente à letra AA, correspondente ao 6.º-A para habitação do prédio urbano sito na Rua dos (…), n.º 7, (…) – Loures; d) a moradia sita na (…), 48-A, (…) – Benavente; e e) as rendas recebidas ao abrigo dos arrendamentos comerciais de € 8.000,00 por mês desde dezembro de 2018, acrescidas dos juros de mora que se vencerem, à taxa legal, sobre tal montante desde a condenação até ao seu efetivo e integral pagamento.
- a título subsidiário, a anulação dos mesmos contratos por erro na formação a vontade, com a restituição ao Autor dos respectivos objectos;
- a título subsidiário relativamente aos anteriores, a condenação da Ré a restituir ao Autor tudo aquilo com que injustamente se locupletou.
Ampliou ulteriormente o pedido, aditando aos actos objecto dos pedidos iniciais, as divisões das quotas das sociedades (…) e (…) efetuadas pela escritura outorgada a 19 de agosto de 2019 no Cartório Notarial de (…), bem como de qualquer outro ato que a Ré venha a celebrar sobre os bens em questão nestes autos.
B.
A Ré contestou, impugnando a factualidade alegada pelo Autor e considerando que a acção deve ser julgada improcedente.
C.
Realizou-se audiência prévia a 06.10.2020, no decurso da qual foi proferido despacho-saneador, no qual, entre outras coisas, se fixou o objecto do litígio e identificaram os seguintes temas da prova:
“1) No ano de 2016, o autor e a ré (…) passaram a viver juntos como marido e mulher, partilhando mesa e habitação em condições análogas às dos cônjuges?
2) A celebração dos negócios identificados no ponto i) do objeto do litígio tiveram como objetivo transferir do autor para a ré (…) os bens do primeiro, com o propósito expresso de impedir que os filhos daquele, sendo seus herdeiros, viessem a receber esses bens ou a obter por qualquer modo (ex: redução por inoficiosidade) aquele património do autor, bem como afastar a ex-mulher do autor visto que os seus filhos eram menores?
3) Em compensação, a ré (…) prometeu ao autor que iria desencadear as diligências necessárias para que este viesse a ter residência na Suíça, que o tornaria beneficiário das suas pensões na Suíça quando morresse, que o constituiria usufrutuário da residência do casal na Suíça após a sua morte, bem como sócio-gerente de uma sociedade que iria constituir na Suíça?
4) A ré (…) sempre pressionou o autor, dizendo-lhe que a relação que mantinham terminaria se este não acautelasse rapidamente a sua situação passando a propriedade dos seus bens para ela?
5) A ré (…) pretendia afastar os filhos do autor da sucessão deste e o autor aceitou que essa fosse a única forma de garantir o seu futuro conjunto com aquela?
6) Quando o autor insistiu com a ré (…) para que a mesma cumprisse a sua parte no acordo, a mesma recusou-se e ainda exigiu que o autor assinasse um “documento de dívida” por estar na Suíça “sem pagar nada”?
7) O capital da sociedade (…), Lda. está avaliado em € 64.048,00 e o capital da sociedade (…) – Cuidados (…), Lda. está avaliado em € 128.000,00?
8) A fração autónoma designada pelas letras AA, correspondente ao 6.º-A para habitação do prédio urbano sito na Rua dos (…), n.º 7, (…), em Loures, em junho de 2008 estava avaliada em € 196.000,00?
9) O prédio urbano destinado a habitação, denominado de Herdade da (…), sito na freguesia de (…), concelho de Benavente, descrito na Conservatória do Registo Predial de Benavente sob o n.º (…), da freguesia de (…), em 10 de agosto de 2008, estava avaliado em € 485.021,00?
10) O pagamento do empréstimo para aquisição do prédio identificado em 9), que a ré (…) contraiu para esta compra não foi, nem nunca seria pago por ela, mas pelos valores das rendas dos arrendamentos comerciais identificados em i) do objeto do litígio?
11) O autor e a ré (…) combinaram entre si fazer constar das escrituras em causa declarações de cessão de créditos das sociedades (…), Lda. e (…) – Cuidados (…), Lda. à ré que não visavam essa cessão em si, mas antes, bem sabendo que os créditos em causa eram dívidas do autor, colocar a ré na fictícia situação de credora do autor e, assim, ter justificação para o pagamento dos preços das cessões de quotas e para a dação em cumprimento da fração autónoma sita na (…), Loures, a favor da ré que fizeram no mesmo dia, com total coincidência entre o valor total daqueles créditos e a soma dos preços/valores das quotas e fração autónoma?
12) As vontades declaradas nos negócios identificados em i) do objeto do litígio, pelo autor e pela ré (…) não correspondem à sua vontade real?
13) O autor só outorgou os negócios identificados em i) do objeto do litígio porque acreditava que a ré (…) ia executar todas as promessas identificadas em 3) dos temas da prova relativamente ao respetivo património pessoal, na perspetiva da vida futura conjunta, como casados?
14) A ré (…) sabia que o autor só subscreveu os negócios em questão em vista do casamento e da vida futura de ambos em conjunto?
15) O autor formou a sua vontade na errónea convicção de que a ré (…) cumpriria as suas promessas e se soubesse que a mesma as não cumpriria, nunca teria subscrito os aludidos contratos?”.
Aos quais foi posteriormente aditado:
“16) Se o autor enquanto gerente das sociedades (…), Lda. e (…) – Cuidados (…), Lda. exigiu à ré o pagamento da dívida do autor e que esta assumiu perante aquelas empresas no âmbito das escrituras que outorgaram e cuja validade é questionada pelo autor na presente ação”.
D.
O Autor indicou como testemunha (na petição inicial e no requerimento de 16.10.2020), o Dr. (…), Advogado inscrito na Ordem dos Advogados com a cédula profissional n.º (…).
O Dr. (…) suscitou, por sua iniciativa, a 13.10.2022, o pedido de dispensa do sigilo profissional que deu origem à decisão do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados com o seguinte extracto:
“Nestes termos, não se mostrando devidamente preenchidos os pressupostos inerentes ao regime excecional da dispensa, plasmados no artigo 92.º, n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, e no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho, DR, I Série –, indefere-se o requerido e, por conseguinte, fica o Exmo. Sr. Advogado Dr. (…) impedido de prestar depoimento, na qualidade de testemunha, no âmbito do Processo Judicial n.º 1601/19.9T8STR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, Juiz 2, em que é Autor … e Ré …. (…)”.
E.
Veio o Autor suscitar (referência 48855487) incidente de quebra de sigilo profissional da testemunha (…), alegando para o efeito que no âmbito da sua profissão, este prestou consulta jurídica desde 2010 às sociedades “(…) – Cuidados (…), Lda.” e “(…), Lda.”, de que o Autor foi o sócio e gerente e, no início de 2018, recebeu o Autor e a Ré em consulta jurídica sobre as soluções jurídicas possíveis para procederem à transmissão do património da titularidade daquela para esta, pelo que tem conhecimento directo das circunstâncias, motivação, intenções e decisões das partes que estiveram na base da celebração dos contratos questionados nos presentes autos. Mais alegou que a testemunha é a única que teve conhecimento das circunstâncias atinentes à celebração dos negócios impugnados, sendo, assim essencial ao apuramento dos factos controvertidos e, consequentemente, à reposição dos direitos violados do Autor.
F.
Contraditou a Ré (referência 48883582), considerando inexistir razão objectiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes com os elementos disponíveis nos autos, deva ser quebrado o segredo profissional, devendo, assim, improceder a pretensão do Autor.
G.
Foi proferido despacho pela Sr.ª Juíza da 1ª instância, deferindo ao requerido, determinando a autuação do incidente de dispensa de sigilo e a remessa ao Tribunal da Relação de Évora.
H. Questão a decidir
Se existe fundamento para a dispensa do sigilo profissional do ilustre advogado, indicado como testemunha pelo Autor.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra.
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B. De direito
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Do segredo profissional do advogado
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No exercício da advocacia, o segredo profissional está disciplinado no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09.09), o qual dispõe, no n.º 1, que “o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Designadamente quanto: “a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste; b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados; c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante; e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio; f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
E, de acordo com o n.º 2: “A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.”
Das várias alíneas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 92.º do EOA, decorre que estão abrangidas pelo segredo profissional do advogado todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre si e o seu cliente, assim como as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.
O segredo profissional do advogado assume relevância central entre as normas deontológicas da advocacia, como instrumento de garantia do vínculo de confiança necessário ao exercício da profissão. Se o cliente não tiver garantia de que os factos, tantas vezes do foro íntimo ou mesmo prejudiciais da sua posição jurídica, transmitidos a quem se encarrega de defender os seus interesses legais, não podem ser divulgados, não poderá confiar que este os não transmita a terceiros, resultando num ainda maior prejuízo da sua posição.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2018, relatado pelo Juiz Conselheiro Henrique Araújo no processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1 “nas palavras de António Arnaut, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.” [1]
Estamos, assim, perante um interesse que é, simultaneamente, privado, na relação cliente-advogado, e de ordem pública na medida em que a liberdade para o advogado ouvir o seu cliente e manter com este relação de confiança se reflecte, em última instância, numa mais esclarecida defesa dos seus interesses, o que benéfico para a administração da justiça. * Do incidente de levantamento do sigilo
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Dispõe o artigo 417.º do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade” que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados (n.º 1), salvaguardando-se, na alínea c) do n.º 3 que a recusa é legítima se a obediência importar, entre outras, violação do sigilo profissional.
Deduzida escusa ao abrigo de sigilo legalmente tutelado, nos termos da alínea c) do n.º 3, rege o n.º 4, ambos do referido artigo 417.º do CPC, que se aplica, “…com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.”
A remissão conduz-nos ao preceituado no 135.º do Código de Processo Penal, cujos n.ºs 3 e 4 apresentam a seguinte redacção:
“3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável” (sublinhados nossos).
No caso vertente, a ordem profissional – Ordem dos Advogados – pronunciou-se já, a pedido da própria testemunha, em sentido desfavorável ao levantamento do sigilo.
O parecer em apreço é um elemento sem o qual o tribunal não pode tomar posição sobre a suscitada quebra do sigilo profissional, mas o seu sentido não é vinculativo do sentido da decisão judicial.
Na verdade, como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.05.2005, relatado pelo Juiz Conselheiro Pereira Madeira no processo n.º 05P1300[2], aludindo ao efeito do parecer da ordem profissional de quem está abrangido pelo sigilo profissional, “…ilegítima é a pretensão de ali ver concedida uma decisão com força para o exterior, «erga omnes», bastante para se impor aos próprios tribunais com a agravante de se configurar uma espécie de «julgamento» antecipado, em que a Ordem respectiva dificilmente poderia deixar de ser vista, de algum modo, como intervindo em causa própria, é dizer, em defesa de um seu filiado ou associado. (…)”. E, mais adiante, citando Germano Marques da Silva, que “perante o conflito de deveres de guardar segredo e colaborar com a Justiça, (artigos 131.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, do CPP) a lei confere à autoridade judiciária o poder de decidir qual é o dever predominante, impondo à testemunha o dever de colaborar com a justiça, considerando ilegítima a escusa de depor com fundamento no dever de sigilo (…). A intervenção da autoridade judicial, no caso, o Tribunal da Relação, é justificada ante a violação do sigilo (…), colidindo afinal com direitos fundamentais salvaguardados na Constituição da República, não pode ficar ao critério de uma qualquer entidade administrativa ou policial” (sublinhados nossos).
Na mesma linha, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.01.2016, relatado pelo Juiz Desembargador António Sobrinho no processo n.º 2488/10.2TJVNF-A.G1, [3] refere que “…a interpretar assim este conjunto de normas, no sentido de que é atribuída ao organismo de representação profissional a competência para decidir em definitivo sobre a legitimidade e a justificação do pedido de escusa, ficando o tribunal vinculado à decisão do organismo de representação profissional, ela é inconstitucional, por violar o princípio da independência dos tribunais e o princípio da prossecução da verdade material, próprios de um Estado de Direito, e constituir um encurtamento inadmissível das garantias de defesa (artigos 2.º, 32.º, n.º 1 e 203.º da CRP), e subordinar e submeter a actividade dos tribunais á de outras entidades e assim subverter o disposto no artigo 205.º, 2, da CRP. É que a decisão sobre a quebra do sigilo exige a ponderação de diversos valores constitucionais revestindo por isso natureza constitucional, e a decisão em causa está reservada legalmente aos tribunais, e por isso uma interpretação daquela natureza não se compadece com as citadas normas e princípios constitucionais.” [4]
Assim, vem sendo considerado que o procedimento acolhido na jurisprudência uniforme tirada em matéria de sigilo bancário no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2008, datado de 13.02.2008, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça,[5] tem aplicação quando são invocados outros segredos profissionais, competindo, em primeira linha, ao tribunal perante o qual a escusa é invocada, apreciar a sua legitimidade e, quando conclua pela sua inexistência, ordenar a prestação do depoimento. Se, pelo contrário, considerar a matéria em causa abrangida pelo dever de sigilo, haverá lugar ao incidente de quebra de segredo profissional.
Os fundamentos do supracitado acórdão do STJ de 15.02.2018, vão nesse sentido quando aponta para o carácter não absoluto do segredo profissional que ao tribunal se impõe, em última instância, verificar: “evidentemente que, como qualquer outro segredo profissional (v.g. médicos, enfermeiros, funcionários públicos, contabilistas certificados, agentes de execução, etc.), o segredo profissional de advogado não é absoluto. Ele cede, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes”.
O incidente em apreço, suscitado junto do Tribunal da Relação é, portanto, a sede própria para ponderar os valores em conflito, a fim de indagar se a recusa, embora legítima, deve ou não ceder perante o dever de colaboração com a realização da justiça sendo que o critério fundamental para tal decisão consiste na determinação do interesse que em concreto se deva considerar preponderante, levando em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção dos bens jurídicos em presença.
Na ponderação dos valores em conflito, deve seguir-se um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa, tendo sempre presente o caso concreto.
No caso vertente, o Autor pede a declaração de nulidade / anulação, por simulação ou erro / vício da vontade, de vários contratos de cessão de créditos / quotas, dação em cumprimento, contrato de compra e venda e arrendamento comercial, alegando para o efeito um conjunto de factos referentes à real intenção das partes quando celebraram tais negócios, cuja prova directa é difícil. Segundo o Autor, a testemunha (…) recebeu, em consulta jurídica, as partes, sendo, por essa razão, a única pessoa em condições de testemunhar que presenciou e tem conhecimento directo dos referidos factos.
Estamos, deste modo, perante circunstâncias que advieram ao conhecimento da testemunha no quadro da relação de aconselhamento jurídico havida com o Autor, sendo este também o cliente que mostra interesse na sua revelação. Note-se que não está em causa a conduta observada pela testemunha no exercício da sua profissão, mas apenas aquilo que levou as partes a procurá-lo. Na verdade, o Dr. (…) limitou a sua intervenção à prestação de consulta jurídica, acabando por não patrocinar as partes na realização de qualquer negócio (cfr. artigo 5º das conclusões de recurso).
Por outro lado, concorda-se com o Autor quando este sustenta que a prova dos factos é difícil. Normalmente, não é possível apresentar prova directa de factos com tal natureza. No caso, segundo o Autor, a Ré nunca escrevia nos documentos atinentes aos contratos em causa, inutilizava os que o Autor tinha na sua posse, apagava os respectivos ficheiros dos computadores, razão pela qual o testemunho em apreço se mostra essencial para a descoberta da verdade e, por isso, necessário à defesa dos direitos arrogados pelo Autor.
Caso não seja dispensada a testemunha do segredo profissional, pode ficar seriamente comprometido o direito de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, por parte do Autor.
Assim sendo, ponderados os interesses inerentes ao dever de sigilo – tutela da confiança do cliente no mandato outorgado ao seu advogado e a dimensão social do exercício da profissão da testemunha – e os interesses que com ele conflituam nos autos – o apuramento da verdade na realização a justiça material do caso – afigura-se-nos que devem ser os primeiros a sofrer restrição, prevalecendo o interesse público da realização da justiça, com a consequente quebra do sigilo profissional e dever de prestação do testemunho do Dr. (…).
Termos em que deverá julgar-se procedente o presente incidente.
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Custas:
Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente incidente está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 539.º, n.º 1 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento da taxa de justiça nos incidentes é do requerente e, havendo oposição, do requerido.
No caso vertente, a Requerida deduziu oposição, pelo que deve suportar as custas.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o colectivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:
1.
Em julgar procedente o presente incidente e, consequentemente, autorizar a dispensa do sigilo profissional à testemunha, Dr. (…), a fim de prestar depoimento no âmbito dos autos principais, sobre os factos dos temas da prova alegados pelo Autor.
2.
Condenar a Recorrida no pagamento das custas do presente incidente.
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Notifique.
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Évora, 05 de Dezembro de 2024
Relator: Ricardo Miranda Peixoto
1º Adjunto: Sónia Moura
2º Adjunto: Elisabete Valente
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[1] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7ee68b9575042d7380258236003bf8b1?OpenDocument
[2] In “Colectânea de Jurisprudência do STJ”, Ano XIII, Tomo 2, pág. 186.
Também disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2e6331a3a68545cb80256ff100399773?OpenDocument
[3] Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/b656ce17179832aa80257f71005881b7?OpenDocument
[4] Ainda no sentido de que o parecer das ordens profissionais não é vinculativo, aventando outros argumentos, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.07.2011, relatado pelo Juiz Desembargador Cetano Duarte no processo n.º 342/05.9TVLSB-A.L1-8, refere que “o parecer da Ordem dos Advogados não pode ser vinculativo pela simples razão de tal vinculação originar uma decisão judicial sem qualquer sentido: a decisão judicial, limitando-se a confirmar o parecer, seria meramente redundante e, como tal, um acto inútil.” Também o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.05.2019, relatado pela Juíza Desembargadora Fernanda Almeida no processo n.º 42896/18.8YIPRT-A.P1, considerou que “cabendo ao tribunal decidir se a violação do segredo profissional é, in casu, absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, justifica-se a consulta prévia da instituição que, em primeira linha, não só tem por missão decidir estes temas, como se encontra em situação privilegiada para verificar os interesses daqueles que tem por função representar, concorrendo na definição concreta do princípio da prevalência do interesse preponderante, embora a sua posição não seja vinculativa”.
[5] Publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 63, de 31.03.2008 e com o seguinte dispositivo:
“1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; 2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal; 3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo”.