PENHORA
EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EFICÁCIA MERAMENTE OBRIGACIONAL
TRADITIO
POSSUIDOR
Sumário


Tendo o embargante, promitente-comprador, em contrato-promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional, pago a totalidade do preço devido pela aquisição da fracção autónoma e, nessa sequência, obtido a tradição da mesma, e tendo, a partir daí, passado a praticar actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre a dita fracção, com a intenção de exercer tal direito em nome próprio, o mesmo tem o direito de, mediante embargos de terceiro, defender procedentemente a sua posse contra a penhora daquela fracção autónoma na execução intentada contra o promitente vendedor e, desse modo, obter o levantamento da mesma.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

EMP01..., SARL intentou contra AA e esposa, BB, CC, DD e AA acção executiva para pagamento de quantia certa, de que os presentes são apenso, invocando como título executivo uma livrança subscrita pelos dois primeiros e avalizada pelos restantes.

Invocou para tanto que a Banco 1..., SA celebrou com os executados um contrato de abertura de crédito em conta corrente, objecto de várias alterações quanto aos montantes e condições; para garantia do bom e pontual cumprimento das obrigações emergentes do referido contrato foram constituídas as hipotecas que identifica, nomeadamente sobre as Frações ... todas do prédio Urbano, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., afeto ao regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...26, hipotecas estas registadas pela Ap. ...19 de 2012/01/19; os executados incumpriram as obrigações assumidas e emergentes do referido contrato; interpelados para pagamento, não procederam à regularização do montante em divida; em virtude daquele incumprimento procedeu ao preenchimento da livrança nos termos convencionados e que refere; por escritura pública de cessão de créditos e garantias celebrada em 31/12/2018, a Banco 1..., S.A. cedeu à EMP01..., S.À., R.L., ora exequente, os créditos e garantias sobre os executados, cessão essa notificada aos executados.

E nomeou à penhora, no que aos autos releva, a fracção ... do prédio Urbano, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., afeto ao regime da propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...26.

A 14/06/2021 foi junto aos autos, o auto de penhora elaborado na mesma data, em que sob a verba n.º 4 está descrito o seguinte imóvel: fracção autónoma designada pela letra ... correspondente ao ..., ..., a sexta do lado poente do prédio urbano sito em ..., ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...32 e inscrito na matriz sob o artigo ...95, Serviço de Finanças ....

A 12/11/2022 foi junta aos autos certidão de afixação do edital de penhora da referida fracção, afixação essa que teve lugar a 09/11/2022.

Por apenso aos referidos autos EE deduziu embargos de terceiro contra a exequente e os executados AA e esposa, BB pedindo o levantamento da penhora, com o consequente cancelamento dessa inscrição no registo predial.

Invocou para tanto e em síntese que não é parte na acção executiva; no início de novembro de 2022 viajou para ... para ser submetido a duas cirurgias;  a 14/11/2022 foi informado por pessoa de sua confiança que, em dia não concretamente apurado, tinha sido afixado na porta da fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., ..., do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...95º da indicada freguesia e descrito na CRP ... sob o nº ...32... um edital de penhora do imóvel; essa penhora ofende o direito do Embargante sobre o referido imóvel.

Mais alegou que emigrou para ... na década de 1970 com a sua mulher; tendo sido informado que o Embargado AA estava a construir um empreendimento na freguesia ..., em meados de 2006 visitou o mesmo; ficou  interessado na aquisição de um apartamento, de tipologia T2, ainda em construção, o qual estava a ser vendido por € 70.000,00; o Embargado AA comunicou-lhe que o negócio só se efetivaria pelo preço de € 70.000,00 se o Embargante confirmasse o seu interesse na aquisição do apartamento até final do ano de 2006 e entregasse € 50.000,00 até ../../2007, sendo o remanescente do preço pago em data a acordar e que a escritura de compra e venda seria feita quando estivessem reunidos todos os documentos necessários para instruir essa escritura; o Embargante e mulher decidiram adquirir a sobredita fração autónoma, nas condições referidas; por carta de 27.12.2006, o embargante comunicou ao Embargado AA que aceitava adquirir a indicada fração autónoma, com lugar de garagem na cave e terraço, pelo preço de € 70.000,00 e que, por conta desse preço, pagaria a quantia de € 50.000,00 até ao dia ../../2007 e o remanescente em data a acordar, sendo a escritura outorgada logo que reunidos os documentos necessários para o efeito; a 03.01.2007 o Embargante pagou ao Embargado AA a quantia de € 50.000,00 pelo cheque que identifica, de que o Embargado deu quitação; em julho de 2007, o Embargado AA pediu ao Embargante que efetuasse o pagamento do valor remanescente (€ 20.000,00), o que este fez por cheque que identifica; por escrito de 26.02.2008, o Embargado AA declarou ter vendido ao Embargante e mulher a sobredita fração autónoma e que a escritura definitiva seria efetuada logo que todos os documentos estivessem prontos.

Alegou ainda que em agosto de 2008, o Embargante e mulher regressaram definitivamente a Portugal; no início de Agosto de 2008 os Embargados AA e mulher BB entregaram ao Embargante e mulher as chaves do apartamento, da entrada principal do prédio e da garagem; desde então o embargante e mulher passaram a viver na fração supra identificada, sendo a esposa até ao dia em que faleceu (../../2014); era e foi, aí que dormiam, tomavam as suas refeições, recebendo amigos e familiares e a correspondência que lhe era dirigida, gozando todas as utilidades que esse imóvel, incluindo a garagem e o terraço, podia proporcionar; a fração não vinha equipada (só tinha os roupeiros e armários); apetrecharam o imóvel com diverso mobiliário e eletrodomésticos, que adquiriram e pagaram; a 5.08.2008, o Embargante e mulher celebraram um contrato de seguro multirriscos habitação, tendo por objeto a referida fração autónoma; em 2009, o Embargante decidiu fechar uma varanda do apartamento para aí instalar uma máquina de lavar roupa; no mesmo ano, mandou colocar no apartamento radiadores de aquecimento a gás; as faturas respeitantes aos consumos de água e gás registados nessa fração são emitidas em nome do Embargante e por ele pagas; o Embargante contratou um serviço de televisão, internet, telefone e telemóvel associado à mesma morada;  o Embargante, desde que passou a habitar o imóvel e até à presente data, pagou as quotas do condomínio e compareceu, ou fez-se representar, nas assembleias de condóminos; todos os actos referidos foram praticados em nome próprio, como se fosse dono da fração autónoma referida, de forma pública e pacífica, à vista de toda a gente, ininterruptamente, por si, desde julho de 2007, quando liquidaram a totalidade do preço, e pelos seus antepossuidores, desde, pelo menos, 2006, e até à presente data; o Embargante, por si e seus antepossuidores, desde há mais de 1, 10, 15, 20 e mais anos, está na posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé da fração autónoma referida, nomeadamente dos Embargados, que sempre reconheceram o Embargante e mulher como os verdadeiros donos do imóvel em causa; e com o animus de exercer um direito próprio, na convicção de que o referido imóvel lhe pertence, e de não ofender o direito de outrem; invoca ter adquirido a propriedade da fracção autónoma referida por usucapião.

Sem produção de prova, foi proferido despacho de admissão liminar dos embargos, declara a suspensão da acção executiva e a notificação das partes primitivas para contestar.

Contestou a exequente dizendo que, entre a data de afixação do edital – 9.11.2022 - e a data de dedução dos embargos de terceiros – 12.12.2022 – já tinha decorrido o prazo de 30 dias; o acordo de compra e venda não pode reconduzir-se a um contrato-promessa, nulo à luz do art.º 410º, n.ºs 2 e 3 do CC; não existe traditio do imóvel; existe uma mera detenção; o Embargante não alega que inverteu a posse, pelo que jamais poderá existir aquisição por usucapião.

O embargante respondeu à invocada extemporaneidade dos embargos.

Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou verificados os pressupostos processuais, relegou para final o conhecimento da questão da tempestividade/caducidade dos embargos, fixou o valor da causa, consignou o objecto do litígio - aquilatar da posse e propriedade invocadas pelo embargante relativamente à fração autónoma penhorada no âmbito dos autos principais de execução – e os temas da prova - (i) indagar da tempestividade dos embargos (caducidade); (ii) apurar por que forma decorreu a alegada aquisição do bem penhorado pelo embargante; (iii) averiguar os alegados actos de uso, fruição e manutenção do bem penhorado pelo embargante - e admitiu as provas requeridas.

Realizou-se a audiência final após o que foi proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor:
“ Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal os presentes embargos de terceiro totalmente procedentes, termos em que se determina o levantamento da penhora efectuada nos autos principais sobre a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., ..., do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., ... ..., inscrito à matriz predial sob o artigo ...95º da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...32....---
Custas a cargo dos embargados.--- “

A embargada EMP01..., SARL interpôs recurso pedindo seja revogada a sentença recorrida e, em consequência, os embargos de terceiro serem julgados improcedentes ou, caso assim não se entenda, deverá ser revogada a sentença, na parte em que determinou o levantamento da penhora, devendo, o terceiro/ Recorrido ser chamado à ação para, querendo, reclamar créditos, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo julgou procedentes os embargos de terceiros deduzidos pelo aqui Recorrido EE e, em consequência, determinou o levantamento da penhora sobre a fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., ..., do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., ... ..., inscrito à matriz predial sob o artigo ...95º da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...32;
B) Termos em que, segundo o entendimento do Tribunal a quo, o Recorrido possuí o imóvel e atua em nome próprio, como um verdadeiro titular do direito de propriedade sob o imóvel em causa.
C) Ora, a Recorrente, não pode jamais concordar com a prova dos factos e a subsunção dos factos ao direito aplicável, pelo Tribunal a quo, no que respeita ao reconhecimento da posse do Recorrido e a decisão de levantamento da penhora sobre o imóvel.
D) Nos termos do artigo 342.º, n. º1, do CC «se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
E) Do citado preceito, conclui-se que, são pressupostos ou fundamentos dos embargos de terceiro os seguintes:
(a) que o embargante seja terceiro, não sendo parte na causa onde foi ordenado o ato ofensivo da sua posse;
(b) que esse ato provenha de penhora ou de ato que tenha sido ordenado por autoridade judicial; e,
(c) que esse ato ofenda ou ameace a sua posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
F) Entende, a Recorrente, que não se encontram preenchidos os fundamentos supra mencionados, pelo que, necessariamente, os embargos teriam de ter sido julgados improcedentes.
G) É pressuposto da tutela jurisdicional pretendida que «a penhora ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa» (artigo 342º, nº1 do CPC).
H) Ora, a traditio, operada na sequência do alegado contrato-promessa, não tem a virtualidade de transmitir a posse sobre o bem, apenas investe os promitentes-compradores, numa posse precária ou mera detenção, i.e., corpus possessório, mas sem “animus”.
I) Concluindo-se, portanto, que o terceiro (promitente – comprador), que não seja parte na causa, não pode deduzir embargos de terceiro, uma vez que, não está investido na posse do imóvel, nos termos do artigo 1251.º do CC.
J) Dispõe o artigo 1251.º do CC, o seguinte: «posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
K) Assim sendo, estamos perante um caso de “posse”, quando se encontram reunidos os seguintes elementos: (a) um elemento material (o corpus), que se identifica com os atos materiais de detenção e fruição praticados com o exercício de certos poderes sobre a coisa; (b) um elemento psicológico (o animus) que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticado.
L) Ora, no caso concreto, o Recorrido é um terceiro relativamente à ação executiva, cujo ato da penhora do imóvel – objeto do contrato-promessa – não lesa nem ofende a sua posse precária ou mera detenção nem o seu direito real de garantia (direito de retenção).
M) Mais uma vez, sublinhamos, o promitente-comprador, não fica investido numa verdadeira “posse”, nos termos previstos no artigo 1251.º do CC.
N) Veja-se que, não estando perante a “posse” do imóvel, o Recorrido, na qualidade de promitente-comprador e terceiro (nesta ação) não tem um direito incompatível com a penhora do imóvel pela Recorrente, detentora de garantia hipotecária sobre o mesmo.
O) A lei processual impõe a citação dos titulares de direitos reais de garantia sobre os bens penhorados a fim de reclamarem a verificação e graduação dos respetivos créditos para serem pagos pelo produto da sua venda.
P) E concede mesmo ao credor que não esteja munido de título exequível que intervenha no processo para nele ser reconhecido o seu direito ou para suscitar a sustação da respetiva tramitação em harmonia com o previsto no artigo 869º do CPC.
Q) Se ao titular do direito de retenção fosse consentido que impedisse a penhora nos termos intencionados pelos recorrentes, tal mecanismo processual não faria qualquer sentido pois, em princípio, não haveria sequer concurso de credores.
R) Em suma, o direito de retenção que hipoteticamente aos embargantes assista não é incompatível com a realização da penhora, cabendo ao respetivo titular reclamá-lo na execução pendente (ver sobre o tema Calvão da Silva em Sinal e Contrato-Promessa, 6ªedição, página 154 e Salvador da Costa, Concurso de Credores, 2ª edição, pág. 230 e Lebre de Freitas, A Acção Executiva, pag.231).
S) No caso do Recorrido, este ainda não apresentou reclamação de créditos nos presentes autos ou instaurou ação de execução específica do alegado contrato-promessa, mas tal apenas ao próprio é imputável.
T) Caso assim não se entendesse, o que apenas por mero dever de cautela de patrocínio se equaciona, reconhecida a posse, prevista no artigo 1251.º do CC, a execução sempre teria de prosseguir com a penhora do imóvel sub judice.
U) Em primeiro lugar, o alegado contrato-promessa celebrado com o Executado, não é dotado de eficácia real, motivo pelo qual, a Recorrente não tinha conhecimento – nem tinha o dever de conhecer – da existência do alegado contrato-promessa celebrado sobre a Fração ... objeto de penhora.
V) Motivo pelo qual, não existindo o registo do alegado contrato-promessa na certidão predial do imóvel, a Recorrente, na qualidade de Exequente, apenas poderia demandar o proprietário do imóvel, i.e., o Executado.
W) O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (artigo 7.º do Cod. Registo Predial).
X) Razão pela qual, o aqui Recorrido, não foi parte nesta ação, na qualidade de Executado em conjunto com o devedor principal.
Y) Contudo, a verificar-se a existência da aludida “posse”, pelo Recorrido, prevê o artigo 54.º, n. º4, do CPC, que consagra um desvio à regra geral da legitimidade passiva, a possibilidade de o possuidor do bem ser demandado com o devedor principal.
Z) Neste sentido, também refere o artigo 747.º, n. º1, do CPC o seguinte: «Os bens do executado são apreendidos ainda que, por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro, sem prejuízo, porém, dos direitos que a este seja lícito opor ao exequente»
AA) E, ainda, prevê o seu n. º 2, o seguinte: «No ato de apreensão, verifica-se se o terceiro tem os bens em seu poder por via de penhor ou de direito de retenção e, em caso afirmativo, procede-se imediatamente à sua citação»
BB) O mesmo é dizer que, no caso de considerarmos o Recorrido, o possuidor do imóvel, nunca o Tribunal a quo, poderia ter decidido da forma como decidiu, com o levantamento da penhora sobre o imóvel em causa.
CC) No entendimento da Recorrente, deveria o douto Tribunal a quo, determinar o seu chamamento à ação para, querendo, reclamar créditos ou exercer os direitos que legalmente lhe assiste.
DD) Paralelamente, caso assim entendesse, poderia o Recorrido, lançar mão da ação de execução específica do contrato-promessa, pois em nada colidiria com a penhora e suspensão da venda, até decisão desta eventual ação.

O embargante contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida (...)

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

A questão que cumpre apreciar é a de saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, ao considerar que o embargante, promitente-comprador de uma fracção autónoma, a quem a mesma foi entregue por traditio, é considerado possuidor e, assim, é-lhe facultado usar dos embargos de terceiro contra a penhora dessa fracção autónoma.

3. Fundamentação de facto

i) O tribunal recorrido consignou a seguinte fundamentação de facto:
A) Os factos provados, com interesse para a decisão da causa, são os seguintes:---
[Da tempestividade/caducidade dos embargos]
3.1. Nos autos de execução de que os presentes constituem apenso procedeu-se à penhora da fração autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., ..., do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., ... ..., inscrito à matriz predial sob o artigo ...95º da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...32....---
[Da tempestividade/caducidade dos embargos]
3.2. O Embargante, no início do mês de novembro do ano de 2022, viajou para ... onde ia ser submetido a duas cirurgias às cataratas, estando a primeira agendada para dia 8 e a segunda para dia 15 do referido mês.---
3.3. No dia 14.11.2022, depois da primeira cirurgia e antes da segunda, quando se encontrava em casa de uma das filhas em ..., o Embargante foi contactado por uma pessoa da sua confiança que o informou que, em dia que não concretamente apurado, tinha sido afixado na porta da fração id. em 3.1. um edital de penhora do imóvel.---
[Do mérito dos embargos]
3.4. Em 2006, o Embargante e a esposa, que se encontravam emigrados em ... há mais de 30 aos, tendo decidido regressar a Portugal procuraram adquirir casa neste País.---
3.5. Para o efeito, e tendo-lhe sido recomendado, o Embargante dirigiu-se ao empreendimento que o Embargado AA estava a levar a cabo a construção na freguesia ... do concelho ..., mostrando interesse na aquisição de um apartamento, de tipologia T2.---
3.6. Como esse empreendimento estava ainda em fase de construção, acordaram, então, que o negócio se efetivaria pelo preço de € 70.000,00, tendo para o efeito o Embargante entregue àquele AA no dia 03.01.2007 a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), por cheque bancário n° ...32, do que este último deu quitação por declaração-recibo datada de 03.01.2007.---
3.7. Acordaram ainda que o remanescente do preço seria pago em data a acordar e que a escritura de compra e venda seria feita quando estivessem reunidos todos os documentos necessários para instruir essa escritura.---
3.8. Entretanto, no mês de julho de 2007, o Embargado AA pediu ao Embargante que efetuasse o pagamento do valor remanescente, de € 20.000,00, o que este fez por cheque bancário n° ...86....---
3.9. O Embargado AA, por escrito datado de 26.02.2008, declarou ter vendido ao Embargante e mulher a sobredita fração autónoma, cujo preço já tinha sido totalmente liquidado, e que a escritura definitiva seria efetuada logo que todos os documentos estivessem prontos.---
3.10. No mês de agosto de 2008, o Embargante e mulher regressaram definitivamente a Portugal e passaram a viver na fração supra identificada, tendo-lhes para o efeito, sido entregues pelos Embargados AA e mulher, BB, as chaves da porta que dava acesso ao apartamento, as chaves da entrada principal do prédio e as chaves da garagem.---
3.11. No dia 04.08.2008, o Embargado AA, na qualidade de Presidente da Junta de Freguesia ..., declarou que o Embargante e mulher eram residentes na Travessa ..., ..., ..., ... ....---
3.12. Foi naquele apartamento que o Embargante e mulher passaram a residir, sendo esta até ao dia ../../2014, quando esta faleceu, a partir de então fazendo-o apenas aquele primeiro.---
3.13. Era aí que tomavam as suas refeições, recebendo amigos e familiares e a correspondência que lhe era dirigida, gozando todas as utilidades que esse imóvel, incluindo a garagem e o terraço, podia proporcionar, a partir de então tendo o Embargante passado a fazê-lo sozinho.---
3.14. Como a fração adquirida não vinha equipada (só tinha os roupeiros e armários), apetrecharam o imóvel com diverso mobiliário eletrodomésticos, que adquiriram e pagaram.---
3.15. No dia 05.08.2008, o Embargante e mulher celebraram um contrato de seguro multirriscos habitação (casa segura), tendo por objeto a referida fração autónoma (apólice nº ...11), contrato esse que se mantém nesta data.---
3.16. As faturas respeitantes aos consumos de água, gás, televisão e telecomunicações registados nessa fração são emitidas, desde Agosto de 2008, em nome do Embargante e por ele pagas.---
3.17. O Embargante, desde que passou a habitar o imóvel e até à presente data, pagou as quotas do condomínio e compareceu, ou fez-se representar, nas assembleias de condóminos.---
3.18. Os actos descritos em 3.13. a 3.17. foram praticados pelo Embargante em nome próprio, como se fosse dono da fração autónoma id. em 3.1., à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, por si, desde julho de 2007, quando liquidaram a totalidade do preço, e pelos seus antepossuidores, desde, pelo menos, 2006, e até à presente data, na convicção de que o referido imóvel lhe pertence e de que não ofende o direito de outrem.---

*
B) Da matéria de facto não provada
Inexistem factos não provados, com interesse para a decisão da causa.---
*
ii) Ao abrigo do disposto no art.º 663º n.º 2, em referência ao art.º 607º n.º 4, 2ª parte, ambos do CPC e do disposto no art.º 371º do CC, com base na certidão da CRPredial junta pela Sra. Agente de Execução aos autos de acção executiva a 14/06/2021, impõe-se aditar aos factos provados o seguinte:
3.1.a) A penhora referida em 3.1. foi inscrita na CRP pela 4074 de 2021/05/27.

4. Fundamentação de direito
4.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o art.º 342.º, n.º 1 do CPC que:
 “Se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

No que aos autos releva, dispõe o art.º 735º n.º 1 do CPC que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda.
 E dispõe o n.º 2 que, nos casos especialmente previstos na lei, podem ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra ele.

Os embargos de terceiro deduzidos contra a penhora são um dos meios de reacção contra a violação dos limites subjectivos da penhora (Miguel Teixeira de  Sousa in CPC Online, pág. 258, anotação ao art.º 342º).

Refere Rui Pinto, in Acção Executiva, AAFDL, 2018, pág. 700 (sublinhados nossos), que os embargos de terceiro são o incidente pelo qual quem não é parte no processo executivo, ou seja, não é exequente, nem executado, pede a extinção da penhora, apreensão ou entrega judiciais ofensivas de posse ou direitos seus.

A “ofensa” traduz-se no seguinte: não é possível ao terceiro manter a plena afectação do bem jurídico nos termos do seu direito, em simultâneo com o acto de apreensão executiva, a qual produz a indisponibilidade material, traduzida na perda da posse efectiva sobre a coisa penhorada (Rui Pinto, ob. cit. pág. 707) ou na sua indisponibilidade jurídica (idem, pág. 708) sintetizando que a incompatibilidade ou ofensa integrante da causa petendi dos embargos de terceiro refere-se a toda e qualquer inibição total ou parcial, material ou jurídica, do titular exercer o seu direito sobre o bem jurídico respectivo

E defende (pág. 713) e acompanhamos que “posse ou qualquer direito incompatível”, são posse ou direito licitamente oponíveis. A licitude dessa oponibilidade apenas pode ser avaliada pelo direito material, pelo que a incompatibilidade é a qualidade de oponibilidade material do próprio direito ofendido que cause um desvalor de ilicitude, neste caso, à penhora.
E por isso o embargante deverá alegar e provar a titularidade da posse ou do direito ofendido, a qual determina, ao mesmo tempo, a legitimidade e a causa de pedir nos embargos de terceiro (aut. e ob. cit. pág. 710).

No que aos autos releva, importa considerar a posse incompatível com a realização de uma penhora.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (art.º 1251º do Cód. Civil).

Na doutrina existem divergências quanto à natureza jurídica da posse - um direito ou uma situação de facto juridicamente protegida –, mas sobretudo quanto à concepção de posse assumida pelo legislador, defendendo uns (sem preocupação de ser exaustivo) a tese objectivista (apenas é elemento da posse o corpus, não sendo elemento da posse o animus) – Oliveira Ascensão, in Direitos Reais, 4ª edição, págs. 42 e segs., Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1º, págs. 563 e segs., Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª edição, págs. 274 e segs., Luís Menezes Leitão, 2009, pág. 124, José Vieira, A Posse, 2018, pág. 431 e segs. e Direitos Reais, pág. 538 e segs - e a tese subjectivista ( são elementos da posse o corpus e o animus – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, págs. 3 e 4, Mota Pinto, Direitos Reais, pág. 189, Henrique Mesquita, Direitos Reais, págs. 69 e segs. e Orlando de Carvalho, RLJ, ano 122º, págs. 65 e segs.

Quanto à segunda questão, na jurisprudência a posição unânime é a de que o CC adoptou a concepção subjectivista.

A tal não será estranho o AUJ de 14/05/1996, publicado no DR IIS DE 24-06-1996, em que estava em causa saber se, face ao exercício de um poder de facto sobre uma coisa, era de presumir que quem exerce tal poder possui em nome próprio (art.º 1252º n.º 2 do CC), sem necessidade de provar o elemento subjectivo da posse ou, ao invés, se deve considerar que se está perante uma situação de mera detenção, por não ter sido feita prova do animus.

O referido AUJ fixou jurisprudência no sentido de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.”.

E, para o que releva, escreveu-se:
“Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção subjectiva da posse.
Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.
Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados (…).
O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.
Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n. 2 do artigo 1252, como já o fazia o parágrafo 1 do artigo 481 do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus) (..).

E na linha deste AUJ escreveu-se no Ac. do STJ de 12/05/2016, processo 9950/11.8TBVNG.P1.S1:
“Segundo a generalidade da doutrina e da jurisprudência, a posse estrutura-se na base de dois elementos [...]
a) – o corpus, consistente numa materialidade empírica consubstanciada no exercício efetivo de poderes materiais sobre a coisa ou na possibilidade física desse exercício; 
b) – o animus, traduzido na intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
Assim, a doutrina e a jurisprudência, salvo raras exceções, têm vindo a adotar uma conceção subjetiva de posse, na tradição de Savigny, segundo a qual o fenómeno possessório não prescinde do elemento psicológico, designado por animus, consistente na intencionalidade de quem atua no exercício dos poderes de facto sobre a coisa […].”
Sucede que, por vezes, o corpus possessório assume tal nitidez significante – como na generalidade da prática reiterada prevista na alinea a) do artigo 1263.º do CC – que dele se poderá presumir com relativa facilidade o animus correspondente ao conteúdo de determinado direito real; noutros, porém, essa materialidade apresentar-se-á tão equívoca de sentido ou tão esbatida que chega a confundir-se com situações de mera detenção, casos em que o animus assumirá papel de relevo na caracterização da posse.
Foi, pois, ante tal dificuldade que o n.º 2 do artigo 1252.º do CC passou a estatuir que:
Em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º
Sobre a interpretação e aplicação deste este normativo, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) do STJ, de 14/05/1996, publicado no Diário da República, II Série, n.º 144, de 24/06/1996, firmou doutrina no sentido de que:
Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.
Por seu lado, o n.º 2 do artigo 1257.º prescreve o seguinte:
Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou.
Encontramo-nos assim perante duas presunções legais iuris tantum confinantes, importando determinar o âmbito de aplicação de uma e de outra.
A esse propósito, Pires de Lima e Antunes Varela [C anotado, III, pág. 8] referem que:
   «O n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus), salvo se não foi o iniciador da posse (referência ao n.º 2 do art. 1257.º).» 
Significará isto que, para funcionar a presunção estabelecida no n.º 2 do artigo 1252.º do CC importa que o pretenso possuidor se apresente como iniciador da posse, desligado portanto de qualquer possuidor antecedente, como nos casos de aquisição originária da posse por prática reiterada ou por inversão do título de posse, previstos, respetivamente, nas alíneas a) e c) do artigo 1263.º do CC. Já nos casos de aquisição derivada da posse, como sucede com a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior possuidor, prevista na alínea b) do mesmo artigo, prevalecerá a presunção ilídivel estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º, segundo a qual se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, mormente o negócio em se fundou aquela traditio.  
(…) parece não haver dúvida que a sobredita presunção [n.º 2 do art.º 1252º ] foi estabelecida em favor do pretenso possuidor, pelo que, não logrando ele provar o animus, recairá então sobre a parte contrária a prova da falta deste, sob pena de funcionar a respetiva presunção, a partir da factualidade demonstrada quanto ao corpus, na linha do AUJ do STJ, de 14/05/1996.”

A presunção resultante do n.º 2 do art.º 1252º do CC pode ser ilidida através da prova de uma situação enquadrável juridicamente como mera detenção, sendo certo que, iniciada uma mera detenção, a mesma presume-se que continua como tal, a menos que se provem os factos consubstanciadores da inversão do titulo, como causa de aquisição da posse (cfr. art.ºs 1290º  e 1263º al. d), ambos do CC).

As situações de detenção estão inscritas no art.º 1253º do CC o qual dispõe:
São havidos como detentores ou possuidores precários:
a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;
c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.

A detenção ou posse precária (cfr. art.º 1253º do CC) não permite a aquisição por usucapião, a menos que haja inversão do título.

Mas, face à sentença recorrida, não é isso que está em causa.

Para completar o enquadramento jurídico impõe-se referir, ainda, o seguinte.

Sobre um objecto podem exercer-se actos de gozo material ou real e actos de gozo ideal ou jurídico.
Aqueles compreendem todas as formas de utilização directa do objecto possuído – o uti, frui, consumere; estes compreendem todas as formas indirectas de utilização – o arrendamento, o comodato, o aluguer, a alienação.
           
Uma relação possessória é uma relação material; mas para a constituir não é indiferente a natureza da materialidade do acto. Esta, para constituir um acto de investidura é condicionada por vários elementos, entre os quais, a natureza do bem: móvel ou imóvel.

No caso dos imóveis e de um modo geral, pode dizer-se que importa atender à energia do acto de apreensão, e à natureza do direito que se pretende adquirir.

É necessário aferir se o acto ou série de actos têm, segundo o consenso público, a energia suficiente para significar que entre uma coisa e determinado individuo, se estabeleceu uma relação permanente, duradoura.

Na verdade, sendo a relação possessória permanente, duradoura, ela só pode resultar de um facto ou de um conjunto de factos que, segundo o modo normal de conceber as coisas, signifiquem que, aquele que em determinado lugar os praticou, pretende exercer sobre a coisa um poder permanente.

No que diz respeito à aquisição da posse e no que releva, um dos modos é a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito – art.º 1263º, alínea a) do CC.

A “prática reiterada” significativa da aquisição da posse não é, necessariamente, uma repetição da actuação material, mas a prática de um acto ou de uma série de actos que, no consenso público e em função da natureza do bem – móvel ou imóvel -, sejam considerados como meio de criar uma “relação” duradoura, importando, portanto, atender à energia do acto de apreensão e à natureza do direito que se pretende exercer.

Como refere José Alberto Vieira, in Direitos Reais, 3ª edição, pág. 530, um “controlo material que seja episódico, efémero, transitório, não é suficiente para o apossamento. Este requer que o possuidor esteja em condições de actuar duradouramente sobre a coisa, ou seja, de a conservar debaixo do seu poder.”

Outro modo de aquisição da posse é a tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor – art.º 1263º, alínea b).

Traduz-se na entrega, material ou simbólica, da coisa, pelo anterior possuidor, ao novo possuidor, ainda que em rigor a tradição deva ser definida como a colocação da coisa, por parte do anterior possuidor, à disposição do novo possuidor.

Exige-se, para a verificação deste modo de aquisição da posse, que quem entrega a coisa seja possuidor.
Se alguém entrega uma coisa a outrem, sem que se prove que era possuidor, não se pode falar em tradição da coisa.

Aquele a quem é transmitida a posse nos termos referidos pode, à luz do disposto no n.º 1 do art.º 1256º do CC, juntar à sua a posse do antecessor (é o que se denomina de acessão na posse), muito embora, como dispõe o n.º 2, se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito.

Precise-se que a acessão de posses só opera entre posses (José Alberto Vieira, in Direitos Reais, 3ª edição, pág. 389) e, portanto, para o actual possuidor poder juntar à sua posse, a posse do antecessor, beneficiando da acessão na posse, terá de alegar e provar actos de posse pelos antecessores.

Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 1268º do CC, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.

Finalmente, nos termos do disposto no art.º 1285º do CC, o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo.

Na medida em que a penhora de um bem tem em vista a realização coactiva da prestação devida pelo executado ao credor exequente, por via da venda ou adjudicação da coisa penhorada, é com ela incompatível o direito de terceiro que inviabilize, por exemplo o direito de propriedade plena sobre ela (Salvador da Costa in Incidentes da Instância, 12ª Edição, pág. 153).

É incompatível com a penhora, a posse em nome próprio que constitua presunção da titularidade dum direito (art.º 1268º do CC), com ela (penhora) incompatível (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Volume 1º, 3ª edição, pág. 661).

No mesmo sentido Miguel Teixeira de Sousa, in CPC Online, pág. 259, anotação ao art.º 342º, que acrescenta que uma simples detenção (1253º CC) nunca justifica a dedução de embargos de terceiro e que a posse incompatível é a posse que se baseia num presumido direito incompatível.

Também Salvador da Costa, in ob. cit. pág. 156 refere que o direito do possuidor, em nome próprio, de embargar, advêm-lhe, sobretudo, de beneficiar da presunção da titularidade do direito de fundo correspondente à sua posse, nos termos do art.º 1268º, n.º 1 do CC.

A oponibilidade material da posse está sujeita a uma condição: deve ser anterior à penhora, por força do art.º 819º do CC (Rui Pinto, ob.ci., pág. 715, 731 e 733).

Tem sido colocada a questão de saber se o promitente comprador de um imóvel pode deduzir embargos de terceiro contra a penhora desse imóvel numa execução intentada contra o promitente vendedor.

A jurisprudência e a doutrina têm considerado várias situações (vd. ex. in Marco Carvalho Gonçalves in Lições de Processo Civil Executivo, 5ª edição, pág. 462-463).

No que aos autos releva, uma das situações que tem sido considerada é a de ter havido traditio, o promitente comprador tenha pago a totalidade do preço e se comporte como um verdadeiro possuidor em nome próprio, isto é, como titular do direito correspondente.

A este respeito, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, III volume, 2ª edição, pág. 6-7:
“O contrato promessa com efeito não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois na situação de mero detentor ou possuidor precário.
São todavia concebíveis situações em que posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse. Suponha-se, por exemplo, que havendo sido já paga a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência) a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espirito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.”

No mesmo sentido Antunes Varela, in comentário ao Ac. do STJ de 25.02.86, in RLJ, 124º, pág. 347-348.

Também Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva, 1995, pág. 310 refere que “em certos casos, o promitente-comprador que beneficia da tradição da coisa pode comportar-se como verdadeiro possuidor em nome próprio, isto é, como titular do correspondente direito real (nomeadamente a propriedade). Suponha-se, por exemplo, que o promitente-comprador pratica actos correspondentes ao direito de propriedade, como a requisição em seu nome, da ligação da água e da energia eléctrica; estes factos permitem concluir que esse promitente actua como possuidor em nome próprio, pelo que pode embargar de terceiro.”

Esta posição é reafirmada in João Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, II, pág. 861 e in CPC Online, anotação ao art.º 342º, pág. 259-260.

Também Menezes Cordeiro, in a Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais, 1997, pág. 77 considera que o promitente-comprador será possuidor nos casos em que a entrega do objecto do contrato promessa de compra e venda visou antecipar o cumprimento do contrato definitivo, o que ocorre com maior frequência nos casos em que o preço se encontre totalmente liquidado ou em grande parte.

E o mesmo aut., in A posse, Almedina, 2000, pág. 77, refere que a conclusão quanto à natureza da posse do promitente-adquirente que obteve a tradição da coisa, depende da vontade das partes, havendo que interpretar o acordo relativo à traditio, sendo possíveis várias hipóteses: numa delas, a traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo, situação frequente em casos em que o preço esteja todo pago: nesta o promitente-adquirente é então e desde logo investido num controlo material semelhante ao do proprietário, podendo falar-se em posse em termos de propriedade; neste caso a posse é boa para usucapião, podendo proporcionar, por essa via, a aquisição da propriedade.

Calvão da Silva, in Sinal e Contrato promessa, 14ª edição, pág. 211, nota 271 refere:
“Não nos parece possível a priori qualificar de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe esse corpus. Se o promitente-comprador tiver animus possidendi – o que não é de excluir à priori – será possuidor, o que pode acontecer derivadamente nos termos da alínea b) do art.º 1263º (…)”.

Finalmente Marco Carvalho Gonçalves in Lições de Processo Civil Executivo, 5ª edição, pág. 462-464 refere que “em duas situações excepcionais, em que é possível ao promitente- comprador, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda com eficácia meramente obrigacional, deduzir embargos de terceiro.
A primeira dessas excepções diz respeito aos casos em que o promitente comprador tenha obtido a tradição da coisa e se comporte como efectivo possuidor da coisa. (…). É o que acontece, por exemplo, se o promitente-comprador tiver, entretanto, celebrado contratos de fornecimento de água, de energia eléctrica, de gás ou de telecomunicações por referência ao bem imóvel objecto do contrato-promessa de compra e venda, bem como se pagou a totalidade do preço e realizou obras de remodelação no imóvel prometido comprar e vender.”

Impõe-se aqui uma breve referência à traditio.

A tradição da coisa prometida comprar e vender, traduz-se na sua entrega, material ou simbólica, conferindo ao promitente comprador a disponibilidade da mesma, permitindo-lhe exercer o poder material correspondente ao direito que há-de adquirir.

O facto constitutivo da tradição da coisa prometida comprar e vender, não é a lei, porque a ela não se refere como efeito da celebração do contrato promessa (ainda que se a ela se refira, no n.º 2 do art.º 442º do CC, para regular as consequências do incumprimento do contrato promessa pelo promitente vendedor, no caso de celebração de contrato promessa de alienação). A celebração do contrato promessa apenas gera a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. E, deste modo, o contrato-promessa não é, em si mesmo, um acto idóneo a transferir a posse.

Assim, a tradição da coisa só poderá resultar de um acordo de vontades entre as partes, válido à luz do disposto no art.º 405º do CC.

O facto constitutivo da tradição da coisa é sempre uma convenção entre as partes. Não constitui um puro acto material, nem um acto unilateral, mas sim um acto complexo, em que estão presentes “um acto volitivo de disposição receptícia“ e ”a vontade do […] outro sujeito de assumir aquele “ poder” que lhe é atribuído – Arturo Dalmartello, La Consegna della cosa, Milano, 1950, pág.s 107 a 110 e 181 a 188 citado por Ana Prata, O Contrato promessa e o seu regime civil, pág. 832 e nota 1936.

A transmissão do uso e fruição do bem não corresponde a uma liberalidade do promitente transmitente nem sequer a uma situação de mera tolerância, com a precariedade que lhe é própria. Pelo contrário, a convenção abarca normalmente contrapartidas recíprocas, associadas a vantagens para ambas as partes, tais como as emergentes do reforço do sinal a favor do promitente transmitente, da correspectiva antecipação de um dos efeitos principais da compra e venda (entrega da coisa) e das consequentes vantagens retiradas do uso e fruição da coisa – Antunes Varela, RLJ, 128º, 147.

A jurisprudência é antiga e vasta, pelo que se recolhem apenas alguns exemplos:

- Ac. do STJ de 19/11/1996, proc. 96A362, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário consta:
I - Em contrato-promessa de compra e venda de imóvel, a tradição da coisa para o promitente-comprador, acompanhada de factos que traduzam o "animus sibi habendi", transfere a respectiva posse para este, sem necessidade de registo, podendo ele defender a sua posse mediante embargos de terceiro em execução movida contra o promitente-vendedor, ainda que tenha havido penhora registada.
II - Efectivamente, a tradição da coisa para o promitente-comprador, após este ter feito o pagamento integral do respectivo preço, recebido as chaves e ocupado o imóvel em que passou a fazer obras de beneficiação, traduz o "animus sibi habendi" acompanhado do corpus, ainda que, no título inicial do contrato-promessa, se haja estipulado que a posse só seria transmitida após a escritura definitiva de compra e venda.

- Ac. do STJ de 11/05/2006, proc. 06B404, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário consta:    
I. Em sinalizadas promessas de compra e venda de prédios urbanos, a tradição material da coisa objecto mediato do negócio a favor do promitente-comprador, tanto pode determinar uma situação de posse precária, como de verdadeira posse.
II. Ocorrerá a 2ª hipótese quando, v.g., a traditio ocorrer, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção aos contraentes, de efectivação de uma transmissão em definitivo, o espírito que àquela preside sendo o da própria compra e venda, só não formalizada a fim de evitar despesas ou precludir o exercício de um direito de preferência, o promitente comprador passando, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa imóvel entregue.

- Ac. do STJ de 23/05/2006, proc. 06A1128, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário se afirma:
I - A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.
II - O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
III - Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.
IV- Todavia, são concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.
V- É o caso do promitente comprador, emigrante em ..., que se encontra no gozo de um apartamento que lhe foi entregue pelo promitente vendedor, mostrando-se já paga a totalidade do preço e que desfruta desse apartamento em vários períodos do ano, com a família e amigos, aí estabelecendo a sua residência em Portugal, procedendo ao pagamento do respectivo imposto municipal sobre o imóvel, do consumo de electricidade e do condomínio, tendo a coisa sido entregue ao embargante pelo promitente vendedor, há cerca de vinte anos, como se sua fosse já e sendo nesse estado de espírito que o promitente comprador lá estabeleceu a sua residência em Portugal e praticou diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre ele o direito real correspondente.
VI - À relevância da posse do embargante não obsta a nulidade resultante da inobservância da forma legal do contrato promessa de compra e venda, pois um acto jurídico nulo tem o valor de imprimir à posse o seu carácter, sendo por ele que se há-de averiguar qual o animus do adquirente.

- Ac. da RC de 24/11/2009, proc. 150-D/1996.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, em cujo sumário consta:
IV – Como regra, o promitente-comprador que obteve a traditio da coisa apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – sendo, nesta perspectiva, um possuidor ou detentor precário.
V – Todavia, pode em circunstâncias excepcionais a tradição da coisa, em contrato-promessa, envolver a transmissão da posse a favor do promitente-comprador (transformando este num verdadeiro possuidor), tudo dependendo do animus que acompanha o corpus, e a forma como ambos são exercidos ou se revelam na concreta realidade.

- Decisão individual da RL de 17/06/2010, proc.  2211/06.6TBSXL-B.L1-8, consultável in www.dgsi.pt/jtrl em cujo sumário consta:     
O promitente comprador de um bem imóvel com eficácia meramente obrigacional, pode deduzir embargos contra penhora desse bem em execução movida contra o promitente-vendedor, em determinadas situações específicas, nomeadamente quando este beneficie da entrega do imóvel e se comporte como um verdadeiro possuidor em nome próprio, ou seja, como titular do direito correspondente.

- Ac. da RL de 25/10/2011, proc. 237/06.9TBMTJ-A.L1-7   consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em cujo sumário consta:
O promitente comprador de um bem imóvel pode deduzir embargos de terceiro contra a penhora desse bem em execução movida contra o promitente vendedor, em determinadas situações, nomeadamente quando tenha havido traditio, tenha pago a totalidade do preço e se comporte como um verdadeiro possuidor em nome próprio, isto é, como titular do direito correspondente

- Ac. desta RG de 29/11/2012, proc. 2748/08.2TBBCL-B.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta:         
I. O contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.
II. São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
III. É o que sucede quando o promitente comprador, a quem foi traditada uma fração autónoma, mantém a fração sob a sua alçada há pelo menos 10 anos, sobre ela praticando e sendo chamado a praticar atos que são próprios do proprietário, tais como colher os rendimentos da fração, dispor livremente da fração, pagar todos os encargos inerentes ao condomínio, pagar a quota parte relativa a obras gerais sobre o prédio, pagar seguros, taxas e impostos.

- Ac. do STJ de 21/03/2013, proc. 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário consta:
I. O promitente comprador a quem foi entregue o imóvel prometido vender, pode, nos casos limite, ser considerado um possuidor e não um detentor precário, nomeadamente, quando se puder deduzir que as partes, com aquela entrega, pretenderam antecipar os efeitos do contrato definitivo.

- Ac. desta RG de 22/10/2015, proc. 12582/12.5TBVCT-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg em cujo sumário consta:
I - O contrato promessa não é susceptível de, por si só, transmitir a posse ao promitente-comprador;
II - O pagamento da totalidade do preço associado à entrega da coisa prometida vender, à realização de obras nesta pelo promitente-comprador e ao recebimento por parte deste da renda da arrendatária do 1º andar desse imóvel configuram uma situação de prática de actos de posse, em nome próprio.
III – Tais actos conferem ao possuidor, promitente-comprador, legitimidade para defender a sua posse, contra penhora que a ofendeu, através do procedimento de embargos de terceiro.

- Ac. do STJ de 12/05/2016, proc. 810/14.1TAVR-A.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário consta:         
III - O promitente adquirente pode ser havido como possuidor em nome próprio conquanto, além da entrega da coisa, pratique, em nome próprio, atos materiais correspondentes ao exercício do direito em causa com o intuito de o exercer.

- Ac. da RL de 05/04/2022, proc. 15619 /17.2T8LSB-C.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em cujo sumário consta:         
2.–O contrato promessa não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente comprador e a tradição da coisa prometida vender assenta na pressuposição e expectativa de que será cumprido o contrato definitivo, equivalendo, quando muito, à outorga ao promitente comprador de uma situação equiparável a um direito pessoal de gozo.
3.–Admitindo-se que na situação em que o promitente comprador tenha beneficiado da entrega do imóvel anterior à celebração do negócio translativo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma ponderação casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado, como posse em nome próprio, como nos casos excepcionais em que já se encontra paga a totalidade do preço ou em que as partes têm o deliberado e concertado propósito de não realizar a escritura pública, para evitar despesas, e a coisa foi entregue ao promitente-comprador em definitivo, como se dele fosse já.

- Ac. da RC de 21/05/2024, proc. 830/04.4TBCLD-C.C2, consultável in www.dgsi.pt/jtrc em cujo sumário se afirma:
IV – Nos casos em que o promitente comprador beneficiou da entrega do imóvel em data anterior à celebração do negócio translativo, a qualificação da natureza da sua posse, dependerá de uma ponderação casuística que revele o exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado, como posse em nome próprio, como nos casos excecionais em que já se encontra paga a totalidade do preço.
V – Tendo-se apurado que houve pagamento integral do preço e tradição da coisa e que os atos praticados no imóvel foram realizados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção dos embargantes serem donos do imóvel, estão reunidos os elementos integrantes da posse: corpus e animus, pelo que lhes assiste o direito de beneficiarem da tutela da posse, mediante embargos de terceiro.

Em face de tudo o exposto pode afirmar-se que no âmbito de um contrato promessa de compra e venda, com eficácia meramente obrigacional, o promitente- comprador pode deduzir embargos de terceiro nos casos em que, tendo pago a totalidade do preço e, tendo obtido a tradição da coisa, passou a praticar actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, com a intenção de exercer tal direito em nome próprio.

4.2. Em concreto

Não está colocado em crise que entre o embargante e o executado AA foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda da referida fracção autónoma, o que resulta dos seguintes pontos dos factos provados:
3.4. Em 2006, o Embargante e a esposa, que se encontravam emigrados em ... há mais de 30 aos, tendo decidido regressar a Portugal procuraram adquirir casa neste País.---
3.5. Para o efeito, e tendo-lhe sido recomendado, o Embargante dirigiu-se ao empreendimento que o Embargado AA estava a levar a cabo a construção na freguesia ... do concelho ..., mostrando interesse na aquisição de um apartamento, de tipologia T2.---
3.6. Como esse empreendimento estava ainda em fase de construção, acordaram, então, que o negócio se efetivaria pelo preço de € 70.000,00, tendo para o efeito o Embargante entregue àquele AA no dia 03.01.2007 a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), por cheque bancário n° ...32, do que este último deu quitação por declaração-recibo datada de 03.01.2007.---
3.7. Acordaram ainda que o remanescente do preço seria pago em data a acordar e que a escritura de compra e venda seria feita quando estivessem reunidos todos os documentos necessários para instruir essa escritura.---
3.8. Entretanto, no mês de julho de 2007, o Embargado AA pediu ao Embargante que efetuasse o pagamento do valor remanescente, de € 20.000,00, o que este fez por cheque bancário n° ...86....---
3.9. O Embargado AA, por escrito datado de 26.02.2008, declarou ter vendido ao Embargante e mulher a sobredita fração autónoma, cujo preço já tinha sido totalmente liquidado, e que a escritura definitiva seria efetuada logo que todos os documentos estivessem prontos.---

Neste ponto impõe-se referir que não tem qualquer cabimento a invocação da recorrente de que o embargante é mero titular de um direito de retenção e tudo o que isso envolve e as consequências que daí extrai (sobre a posição jurídica do promitente-comprador titular de direito de retenção, vd. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, AAFDL, II, pág. 861-862).

E isto porque se trata de realidade que o mesmo não invocou em momento algum, sendo certo que ao abrigo do principio do dispositivo, a ele cabia, única e exclusivamente, a liberdade de decisão sobre a instauração do processo, como a conformação do objecto – causa de pedir e pedido –,  o que o mesmo fez, pretendendo obter a tutela inerente aos embargos de terceiro – consistente no levantamento da penhora – invocando a posse correspondente ao direito de propriedade (sobre a distinção entre quem invoca o direito de retenção sobre a coisa objecto de penhora e quem pretende tutelar a posse correspondente ao direito de propriedade, vd. Ac. do STJ de 24/09/2020, proc. 14731/16.0T8PRT-B.PL.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

De referir que a recorrente também não invocou.

Destarte, estamos perante uma questão absolutamente nova e, por isso, fora dos poderes de apreciação deste tribunal.

Os embargos fundaram-se na posse em nome próprio do promitente comprador, parte num contrato promessa com eficácia meramente obrigacional e, portanto, é única e exclusivamente a essa luz que os mesmos devem ser apreciados.

Como não tem qualquer cabimento a invocação pela recorrente de que o contrato-promessa dos autos não é dotado de eficácia real e tudo o que isso envolve e as consequências que daí extrai.
É que não é nesse âmbito que se situa a questão dos autos (embora também ela seja tratada na doutrina e jurisprudência – cfr. Marco Carvalho Gonçalves in ob. cit. pág. 461-462 e João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, AAFDL, II, pág. 861), mas sim no âmbito de um contrato promessa de compra e venda, com eficácia meramente obrigacional e neste, a de saber se o promitente-comprador pode deduzir embargos de terceiro nos casos em que, tendo obtido a tradição da coisa, passou a praticar actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, com a intenção de exercer tal direito em nome próprio.

De referir que o promitente-comprador/embargante pagou a totalidade do preço, como resulta dos pontos 3.6. e 3.8.

Também não há dúvidas de que no caso ocorreu a traditio da referida fracção autónoma para o embargante, pois isso mesmo resulta dos seguintes pontos de facto:
3.10. No mês de agosto de 2008, o Embargante e mulher regressaram definitivamente a Portugal e passaram a viver na fração supra identificada, tendo-lhes para o efeito, sido entregues pelos Embargados AA e mulher, BB, as chaves da porta que dava acesso ao apartamento, as chaves da entrada principal do prédio e as chaves da garagem.---

Resta a questão de saber se o embargante passou a praticar actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade, com a intenção de exercer tal direito em nome próprio.

A resposta é sem margem para dúvidas positiva, como resulta dos seguintes pontos dos factos provados:
3.12. Foi naquele apartamento que o Embargante e mulher passaram a residir, sendo esta até ao dia ../../2014, quando esta faleceu, a partir de então fazendo-o apenas aquele primeiro.---
3.13. Era aí que tomavam as suas refeições, recebendo amigos e familiares e a correspondência que lhe era dirigida, gozando todas as utilidades que esse imóvel, incluindo a garagem e o terraço, podia proporcionar, a partir de então tendo o Embargante passado a fazê-lo sozinho.---
3.14. Como a fração adquirida não vinha equipada (só tinha os roupeiros e armários), apetrecharam o imóvel com diverso mobiliário eletrodomésticos, que adquiriram e pagaram.---
3.15. No dia 05.08.2008, o Embargante e mulher celebraram um contrato de seguro multirriscos habitação (casa segura), tendo por objeto a referida fração autónoma (apólice nº ...11), contrato esse que se mantém nesta data.---
3.16. As faturas respeitantes aos consumos de água, gás, televisão e telecomunicações registados nessa fração são emitidas, desde Agosto de 2008, em nome do Embargante e por ele pagas.---
3.17. O Embargante, desde que passou a habitar o imóvel e até à presente data, pagou as quotas do condomínio e compareceu, ou fez-se representar, nas assembleias de condóminos.---
3.18. Os actos descritos em 3.13. a 3.17. foram praticados pelo Embargante em nome próprio, como se fosse dono da fração autónoma id. em 3.1., à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente, por si, desde julho de 2007, quando liquidaram a totalidade do preço, e pelos seus antepossuidores, desde, pelo menos, 2006, e até à presente data, na convicção de que o referido imóvel lhe pertence e de que não ofende o direito de outrem.---

E assim sendo e à luz do disposto no art.º 1268º do CC, o embargante beneficia da presunção da titularidade do direito de propriedade.

Em face do exposto, não tem cabimento a alegação da recorrente de que o embargante era um mero detentor.
Ficou provado sem margem para dúvida que o embargante/promitente-comprador actuou como possuidor em nome próprio.

Finalmente não está colocada em crise a penhora que incide sobre a fracção autónoma designada pela letra ..., correspondente ao ..., ..., do prédio urbano, constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., ... ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...95º da indicada freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...32... (cfr. ponto 3.1. dos factos provados), penhora essa que, como resulta do ponto 3.1.a) (aditado por esta Relação) foi inscrita na CRP pela 4074 de 2021/05/27.

Da conjugação entre os pontos 3.10. e 3.12 a 3.18. e o ponto 3.1.a) (aditado por esta Relação) resulta que a posse do embargante iniciou-se em data anterior ao do registo da penhora ofensiva dessa posse.

De referir que também não está colocado em crise que o embargante não é parte na acção executiva em que ocorreu a penhora.

Em face do exposto, impõe-se afirmar que a referida posse, que faz presumir o direito de propriedade, é incompatível com a referida penhora, na medida em que a manter-se esta, iria desembocar na venda ou adjudicação da fracção autónoma, com a consequente extinção da posse do embargante, pelo que não se pode manter.

Em síntese: tendo o embargante/promitente-comprador pago a totalidade do preço devido pela aquisição da fracção autónoma e, nessa sequência, obtido a tradição da mesma, e tendo, a partir daí, passado a praticar actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre a dita fracção, com a intenção de exercer tal direito em nome próprio, o mesmo tem o direito de, mediante embargos de terceiro, defender procedentemente a sua posse contra a penhora daquela fracção autónoma na execução intentada contra o promitente vendedor e, desse modo, obter o levantamento da mesma.

E desse modo, a decisão recorrida deve manter-se e, em consequência, o recurso deve ser julgado improcedente.

4.3. Custas
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.

No caso em análise, a recorrente ficou vencida, pelo que é a mesma responsável pelas custas.

5. Decisão

Termos em que acordam os juízes que constituem a 1ª Secção desta Relação em manter a decisão recorrida e, em consequência, julgar improcedente o recurso.

Custas da apelação pela recorrente

Notifique-se
*
Guimarães, 28/11/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
José Alberto Martins Moreira Dias