HOMICÍDIO TENTADO
INTENÇÃO DE MATAR
PERIGO PARA A VIDA
Sumário

I - A intenção de matar é algo do foro subjetivo e íntimo e, por isso, na ausência de uma confissão, só pode ser inferida a partir de fatos objetivos, evidenciados principalmente pelas circunstâncias que envolveram os acontecimentos, pelas lesões apresentadas pela vítima, pelos instrumentos utilizados na agressão e pelo modo de agir do agente.
II - Atendendo às características do instrumento usado pela arguida — uma sachola de jardinagem com cabo de madeira de 14 cm, corpo de metal de 22,5 cm de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular — e às lesões que o mesmo pode provocar (por exemplo, perfurantes), bem como à concreta zona da vítima atingida, a cabeça, o agente tem, seguramente, de admitir que sua atuação criou as condições para a ocorrência do dano morte, conformando-se com esse resultado ao agir e ocasionando a possibilidade concreta de que esse resultado venha a ocorrer.
III- Num juízo ex ante sobre a potencialidade letal da ação desenvolvida, é manifesto que desferir diversos golpes com uma sachola de jardinagem, com as características descritas, na zona da cabeça do ofendido, possui necessariamente um potencial danoso muito além da provocação de dores e lesões, configurando concretamente o risco de tirar a vida da vítima.
IV - É certo que o perigo para a vida da vítima não se concretizou, mas esse perigo não é imprescindível para a imputação do crime de homicídio na forma tentada.

(Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Recurso nº 1147/23.0GBOAZ.P1 (vindo do Juízo Central de ...)






Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:



I. RELATÓRIO


1. Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Colectivo que correm termos no Juízo Central Criminal de ... - J 3, Comarca de Aveiro, com o nº 1147/23.0GBOAZ, efetuado o julgamento, a 05.09.2024 foi proferido o acórdão com o seguinte dispositivo:
«VI. Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem o presente Tribunal colectivo:
a) Absolver a arguida AA da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 14.º, n. º 1, 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 26.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e i) do Código Penal.
b) Por convolação da imputação jurídica presente na acusação, condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a), e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
c) Por considerar que as exigências de prevenção ficam devidamente salvaguardadas, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada, condenando-se assim a arguida AA na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, prisão suspensa na execução pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova, obrigando-se a arguida ao cumprimento do plano de reinserção social que venha a ser homologado e impondo-se, ainda, à arguida, que, nos termos do disposto no artº 54º, nº 3, do Cód. Penal se sujeite a:
- responder a convocatórias dos técnicos de reinserção social, no âmbito da elaboração e acompanhamento dos planos de reinserção social;
- receber as visitas dos técnicos de reinserção social e comunicar-lhes ou colocar à disposição informações necessárias elaboração e acompanhamento do plano de reinserção social;
- informar os técnicos de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
- obter autorização prévia do magistrado, que à data da deslocação seja titular deste processo, para se deslocar para o estrangeiro.
d) Nos termos do disposto no artº 109º, nº 1, do Cód. Penal, determinar a perda a favor do Estado da sachola apreendida neste processo;(…)»

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O acórdão recorrido foi lavrado com um voto de vencido, com o seguinte teor:
«Votou-se a decisão proferida no processo supra identificado com vencimento relativamente aos factos que vieram a ser dados como não provados (sob as alíneas e) na parte relativa ao intuito de matar, f), h) e i) e, consequentemente, relativamente à subsunção dos factos ao direito.
Concretamente, entende-se que os referidos factos deviam ter sido dados como provados por se considerar que decorre das regras da experiência, lógica e da normalidade que o tipo de instrumento utilizado - perfurante e contundente –, respetivas características – cabo de madeira cm 14 cm, corpo de metal de 22,5 cm de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, cm 12 cm de comprimento e 6 de largura -, e a zona corporal que foi atingida – crânio, zona lateral ao olho direito, e mão direita – implicam a conclusão de que a arguida agiu com o intuito de matar o ofendido, sabendo que a sua conduta era apta a fazê-lo e querendo tal resultado.
Com efeito, tal instrumento utilizado em tal zona vital do corpo não podia deixar de visar tal fito.
O facto de se desconhecer o demais circunstancialismo referido na acusação, que veio a ser dado como não provado, bem como, a circunstância das lesões terem uma gravidade baixa, não afasta tal raciocínio. É que decorre da factualidade provada que somente o ofendido apresentava lesões, que apresentava lesões típicas de defesa (no dorso da mão e dedos) e que a arguida acabou por afirmar perante terceiros que receava ter morto o seu filho. Ou seja, é seguro que apenas a arguida foi a agressora, o que devidamente conjugado com as zonas atingidas e o tipo de instrumento utilizado, são bastantes, no nosso entendimento, para revelar o animus com que atuou.
Decorrentemente, na hipótese aqui defendida, os factos provados implicariam a sua subsunção ao crime de homicídio tentado, mas na sua forma simples, não na forma qualificada.
Encontrando-se assente na doutrina e jurisprudência que as circunstâncias mencionadas no nº2 do artigo 132º do Código Penal não são de funcionamento automático (ou taxativo) (independentemente da tese que se adote quanto à questão de saber se respeitam ao tipo ou à culpa ou a ambas – a este propósito vide Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código Penal", Universidade Católica, 2009, p. 348 e ss., n. 2 e 3 e Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra, 1999, pp. 25 e ss., §2 a 6), sendo necessária a verificação de um tipo de culpa agravada para se concluir pela verificação do crime de homicídio qualificado, cumpriria aferir se os factos revelam essa especial censurabilidade ou se subsumem ao tipo de homicídio simples do artigo 131º do Código Penal.
Partindo deste pressuposto, desde logo, considera-se que os factos provados não permitem concluir que a arguida tenha utilizado qualquer meio insidioso a que se refere a alínea i) do nº2 do artigo 132º do Código Penal, conforme imputação constante na acusação, por o instrumento em causa não corresponder ao meio mencionada na previsão normativa e por não ter ficado provado que o ofendido estivesse a dormir.
Igualmente, no que se refere à previsão contida no artigo 132º, nºs 1 e 2, a) do Código Penal, entende-se que os factos provados não permitem concluir-se pela sua aplicação. Com efeito, a circunstância da arguida ser a progenitora da vítima não revela necessária e automaticamente que atuou com especial censurabilidade.
É que para que se verifique tal especial juízo de censurabilidade é necessário que a conduta do agente tenha vencido “as contra motivações éticas relacionadas com os laços básicos de parentesco” (cfr. Fernanda Palma, in “Direito Penal Especial. Crimes contra as pessoas”, 1983, p. 51 apud Fig. Dias, ob. cit., p. 30). Entende-se, pois, que do que aqui se trata é de vencer os deveres de proteção, assistência e guarda que incumbem a qualquer progenitor.
No caso concreto, além da vítima ser maior de idade e de não padecer que qualquer incapacidade, não necessitando, por isso, de proteção particular, ficou assente ser frequente a ocorrência frequente de discussões entre mãe e filho, além de ficado ainda provado que o ofendido padece de alcoolismo, que tem por hábito colocar musica em volume elevado, no interior da residência, e de já terem corrido inquéritos contra este último pela prática do crime de violência doméstica contra a arguida. Independentemente da veracidade dos factos investigados nestes inquéritos, entretanto até já arquivados, e em respeito do princípio constitucional da presunção da inocência, este conjunto de circunstâncias permite, pelo menos, afirmar que o ambiente familiar não era o mais harmonioso, nem, por isso, que existisse laços de parentesco gratificantes que importassem aqueles deveres de proteção. Daí que, se entende que a factualidade provada não era suficiente para concluir por uma especial censurabilidade da atuação da arguida.
Consequentemente, os factos provados apenas poderiam integrar-se na previsão do homicídio simples tentado dos artigos 14º, nº1, 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nºs 1 e 2, 26º e 131º do Código Penal.
No que se refere à pena, mesmo considerando a moldura do homicídio tentando (1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses de prisão – cfr. arts. 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº1, a) e b) do Código Penal), sempre entenderíamos ser de aplicar uma pena suspensa na sua execução atentas as condições socio-pessoais da arguida e a ausência de pretérito criminal, próxima, ainda que superior, à pena aplicada no acórdão.»
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Inconformado, interpôs o Ministério Público recurso, que finaliza com as seguintes conclusões:
«O acórdão proferido pelo Tribunal a quo condenou, para além do mais, AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeita a regime de prova.
ii. Entende o Ministério Público que, para além dos factos dados como demonstrados, deveriam ainda tê-lo sido os constantes das alíneas e) (na parte relativa à intenção de matar), g), h) e i) da matéria de facto dada por não demonstrada, porquanto a prova testemunhal produzida, devidamente cotejada com os elementos documentais e periciais juntos aos autos e analisadas à luz das regras da experiência, a outra conclusão não poderiam levar do que a intenção da arguida foi, efectivamente, tirar a vida ao seu filho.
iii. Consideramos foi incorrectamente julgada a seguinte Matéria: alíneas e) (quanto à intenção de matar), g), h), e i), dos factos não provados, que deveriam ter sido dados como demonstrados. Mais deveria ser aditado à matéria de facto dada por provada um outro facto, porquanto resultou das declarações prestadas pela testemunha BB (cujas declarações foram consideradas pelo Tribunal coerentes, sinceras e, por isso, credíveis), no sentido de que: “11. Por pensar que tinha tirado a vida ao seu filho, AA deslocou-se à habitação de BB, sua vizinha, a quem referiu: “Oh Ti BB, matei o meu filho!” Acto contínuo, ausentou-se repentinamente da habitação daquela, deslocando-se para o Centro Social ..., anunciando, perante a Directora (…)”.
iv. É das mais elementares regras de experiência comum que quem desfere pancadas com uma sachola na cabeça de outrem não quer só agredi-lo.
E tal facto, cotejado com a circunstância de o ofendido possuir, também, ferimentos na mão (ferimentos estes compatíveis com lesões de defesa) e, bem assim, com o que foi transmitido por parte da arguida, quer à sua vizinha, quer à Directora do Centro Social e à testemunha CC, permitia, sem qualquer margem para dúvidas, dar como demonstrada a aludida intenção de matar o seu filho, por banda da arguida.
v. Por seu lado, a Prova que implica decisão diversa é: a) auto de diligência externa de fls. 35 a 37;b) relatório fotográfico de fls. 38 a 61; c) auto de apreensão e relatório fotográfico de fls. 62 a 66; d) elementos clínicos de fls. 105 a 109, 122 a 126 e 290 a 293; e) Exame pericial ao ofendido; f) As declarações da testemunha BB, passagens de minutos 02m:00s a 3m:00s das declarações por si prestadas a 20-06- 2024, gravadas no sistema mediastudio;
vi. É que, de tais elementos probatórios, devidamente analisados e ponderados à luz das regras da experiência comum, facilmente se devia ter concluído – como, aliás, concluiu a Mma. Juiz que proferiu o voto de vencido – que era intenção da arguida, naquele momento, tirar a vida ao seu filho, que a vinha incomodando e incomodando os vizinhos. A prova produzida não foi, por isso, bem valorada pelo Tribunal a quo.
vii. Não o tendo feito, violou o Tribunal o disposto no artigo 127º, do CPP, devendo, por isso, o acórdão proferido ser substituído por outro que dê como provados tais factos e condene a arguida pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada.
viii. O crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131º, do Código Penal, é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos de prisão. Uma vez que estamos perante crime cometido na forma tentada, a moldura penal abstractamente aplicável é de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses de prisão.
ix. Atendendo a que são elevadas as necessidades de prevenção geral, já que o sentimento que desperta nas comunidades onde é perpetrado é de uma elevadíssima insegurança, pois que significa um ataque ao bem jurídico mais valioso, que se trata de um crime cometido por alguém que tem como função, precisamente, proteger a vida das vítimas, que a ilicitude manifestada na prática do facto é elevada, atento o modo como a arguida actuou, que a arguida agiu com dolo directo, mas não olvidando que, em termos de prevenção especial, as exigências não são acentuadas, atendendo a que não tem antecedentes criminais e que se encontra inserida social e familiarmente, afigura-se-nos que AA deverá ser condenada pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, na pena de 4 anos de prisão.
x. Tal pena deverá ser suspensa na sua execução, atentas as concretas circunstâncias do caso concreto, a idade da arguida, o facto de não ter antecedentes criminais e de tudo nos levar a permitir concluir que a ameaça do cumprimento da pena de prisão será suficiente para a afastar da prática de futuros crimes.
xi. Tal suspensão deverá, contudo, ficar subordinada a regime de prova, por forma a assegurar que a ressocialização da arguida estará realmente garantida, através de uma vigilância apertada.
xii. Não tendo decidido deste modo, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 22º, 23º, 50º e 131º, todos do Código Penal.
Destarte é entendimento do Ministério Público que o Acórdão deverá ser revogado, por violar o disposto nos artigos 22º, 23º e 131º e, consequentemente, o disposto no artigo 50º, todos do Código Penal, e ser substituído por outro que condene a arguida pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova.
TERMOS EM QUE:
Deverá o presente recurso, ser julgado procedente, por provado e, em consequência;
a) Ser o Acórdão recorrido revogado e substituído por outro que, fazendo correcta interpretação e aplicação dos artigos 22º, 23º e 131º, todos do Código Penal, aplique à arguida uma pena de prisão pela prática do supra aludido crime.»
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O recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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A arguida apresentou resposta em que sustenta que o recurso não merece provimento.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer aderindo aos fundamentos do recurso apresentado pelo Ministério Público na primeira instância.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), não foi apresentada resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
- se o tribunal a quo cometeu erro na apreciação da prova, de forma que deu como não provados factos que devia ter dado como provados, a saber os enunciados sob as alíneas e) [apenas no segmento relativo à intenção de matar], g), h) e i);
- se o tribunal a quo cometeu erro na apreciação da prova, de forma que não deu como provada a seguinte factualidade: «Por pensar que tinha tirado a vida ao seu filho, AA deslocou-se à habitação de BB, sua vizinha, a quem referiu: “Oh Ti BB, matei o meu filho!” Acto contínuo, ausentou-se repentinamente da habitação daquela, deslocando-se para o Centro Social ..., anunciando, perante a Directora (…)».
- se o tribunal errou na qualificação jurídico-penal da conduta da arguida, na medida em que considerou que existia um crime de ofensa à integridade física qualificada, quando haveria um crime de homicídio tentado;
- se o tribunal errou na determinação da medida da pena.
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2. Do acórdão recorrido
i. O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1.A arguida AA, nascida a ../../1949, é progenitora do ofendido DD, nascido a ../../1969.
2. Ambos residem, sem outros elementos do agregado, em habitação comum, sita na Rua ..., ..., ..., na freguesia ..., do concelho ....
3. O ofendido padece de alcoolismo, sendo ex-toxicodependente.
4. O ofendido tem por hábito colocar música em volume muito elevado, no interior da residência, principalmente ao fim-de-semana.
5. Igualmente, no interior da residência, ocorrem discussões entre a arguida e o ofendido.
6. Correram já termos os Inquéritos ..., ... e ..., na 2.ª Secção do DIAP de ..., todos arquivados por ausência de indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, pelo aqui ofendido contra a aqui arguida, sendo que esta sempre se recusou a prestar declarações nos respectivos procedimentos criminais, nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
7. Entre o dia 14.12.2023 e as 09 horas do dia 15.12.2023 o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.
8. No dia 14.12.2023, em hora não concretamente apurada, o ofendido colocou, no interior da residência, música em som alto que esteve a ouvir durante algum tempo.
9. No dia 15.12.2023, cerca das 09 horas e 00 minutos, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, a arguida munida de uma sachola de jardinagem, composta por cabo de madeira de 14 centímetros, corpo em metal de 22,5 centímetros de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, com 12 centímetros de comprimento e 6 cm de largura na parte mais larga e desferiu diversas pancadas na cabeça do ofendido, tendo-o atingido, igualmente, na mão direita.
10. Em consequência da supra descrita conduta da arguida, o ofendido sofreu: dores na cabeça e na mão direita; no crânio, cicatriz oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, lateralmente ao olho direito, com 2 cm de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, à palpação, visível a distância social, duas cicatrizes na região parietal direita, com 2 centímetros de comprimento cada, cobertas por cabelo; no membro superior direito, cicatriz horizontal, no dorso do 2.º dedo da mão, que se prolonga para a região interdidital entre o 2.º e o 3.º dedo da mão, com 3 centímetros de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, visível a distância social, mobilidade preservadas; e, ainda, como consequência permanentes, calo ósseo na região das fracturas referidas e cicatrizes na cabeça e no 2.º dedo da mão direita.
11. Por pensar que tinha tirado a vida ao ofendido, seu filho, a arguida, que tinha sangue pertencente ao ofendido nas mãos e na face, dirigiu-se, em seguida, ao Centro Social ..., anunciando, perante a Directora, EE que havia acabado de matar o ofendido com uma sachola.
12. O ofendido foi encontrado pelos Bombeiros Voluntários ..., deitado na cama, em estado de desorientação e gravemente ferido com as lesões já descritas.
13. Foi posteriormente encaminhado para o Serviço de Urgência do Hospital ..., em ..., onde deu entrada pelas 11 horas e 04 minutos daquele dia 15/12/2023.
14. A arguida tinha conhecimento que a sachola se tratava de um instrumento contundente e perfurante, idóneo a ser utilizado como instrumento de agressão contra um corpo humano, sobretudo se fosse usado para desferir pancadas na cabeça que se trata de uma zona vital e essencial do corpo humano.
15. A arguida bem sabia que caso desferisse pancadas com a sachola na cabeça do seu filho, este ficaria ferido.
16. A arguida quis actuar da forma supra descrita, não obstante saber ter-se sempre recusado a colaborar probatoriamente nos vários processos crime que foram movidos para responsabilização criminal do aqui ofendido e deste modo feri-lo, pretendendo, pois, utilizar a sachola para desferir diversas pancadas no corpo do ofendido, tenho-o atingido na cabeça e na mão direita.
17. A arguida, ao agir do modo descrito, sabia e quis dirigir os descritos comportamentos à pessoa do seu filho, querendo e actuando de modo a desferir as pancadas no corpo do ofendido, com o intuito de o ferir.
18. A arguida agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido pela lei penal.
Mais se provou que:
19. Tais lesões terão determinado 30 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional.
20. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido.
21. Não são conhecidos à arguida antecedentes criminais.
Das condições sociais e pessoais da arguida
22. A arguida é viúva, está reformada há cerca de 15 anos.
23.Mantém residência há cerca de 10 anos na Rua ..., .... ..., ....
24. Compunha o agregado materno com DD, filho da arguida e ofendido, com o qual repartia despesas mensais, assumindo as funções de gestora do quotidiano doméstico e familiar.
25. Os outros dois filhos da arguida, FF e GG, com as idades de 52 anos e de 49 anos, estão autonomizados.
26. AA é a secundogénita da prole de quatro, tem como habilitações literárias o 1º ciclo do ensino, tendo iniciado actividade laboral aos 14 anos de idade, como gaspeadeira, e laborou na empresa “A...” durante 43 anos, estando reformada desde os 57 anos.
27. Aufere uma pensão no valor mensal de €600, a qual geria em benefício do seu agregado familiar.
28. Enquanto permaneceu em meio prisional, assegura uma atitude de conformidade à disciplina e à convivência em contexto prisional, beneficiando de acompanhamento médico dos Serviços Clínicos direccionado aos seus problemas hipertensão e dislipidemia.
29. Transmite ser pessoal afável, ajustada e centrada na independência pela concretização profissional, trajecto de vida valorado pela existência de diversos vínculos familiares e sociais.
30. Beneficia do apoio dos seus três filhos, incluindo o ofendido, que entendem como exequível o seu regresso ao meio familiar na morada detida antes da presente reclusão.
31. A arguida deverá ser alvo de uma intervenção direccionada para os problemas de assertividade emocional, de resolução de problemas, de controlo da agressividade, bem como de promoção de novas dinâmicas de relacionamento intrafamiliar.»
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ii. Na decisão recorrida foi dada como não provada a seguinte matéria de facto:
«a) O ofendido encontra-se frequentemente embriagado, mesmo no interior da residência comum.
b) O arguido adopta a comportamento descrito em 4. da factualidade provada, fruto do estado de alcoolemia em que frequentemente se encontra.
c) No dia 14/12/2023, cerca das 21 horas e 00 minutos, o ofendido regressou à residência comum, após ter consumido bebidas alcoólicas.
d) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 8. da factualidade provada, a arguida encontrava-se deitada e a descansar no seu quarto.
e) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. da factualidade provada, a arguida abeirou-se do ofendido de modo a este não se aperceber da sua presença, o que sucedeu, e desferiu-lhe, com a parte pontiaguda, contundente e perfurante da sachola, diversas pancadas na cabeça, com o intuito de o matar.
f) Já ferido e com a região parietal perfurada, o ofendido ainda logrou colocar a mão direita por forma a aparar e se proteger de, pelo menos, mais uma pancada desferida pela arguida, direccionada à cabeça, com aquele instrumento perfurante e contundente, tendo a pancada vindo a acertar e perfurar a mão direita do ofendido.
g) O ofendido só não morreu em consequência da descrita conduta da arguida, porque acabou por conseguir colocar a sua mão direita à sua frente e impedir que a arguida o continuasse a golpear com a sachola, por ter sido rapidamente socorrido pelos bombeiros e recebido assistência hospitalar e, assim, por mero acaso e razão alheia à vontade da arguida.
h) Sabia a arguida que o ofendido podia morrer.
i) A arguida, ao utilizar a sachola para desferir diversas pancadas na cabeça do ofendido, pretendia causar-lhe a morte o que só não sucedeu por mero acaso e por razão alheia à vontade da arguida.
j) Agiu a arguida num momento em que o ofendido nem sequer se havia apercebido da sua presença e numa altura em que nenhuma altercação ou discussão entre ambos ocorrera.»
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iii. Na decisão recorrida consignou-se a seguinte motivação (transcrição parcial na parte relevante):

«(…) In casu, na fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal colectivo baseou-se na apreciação crítica da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal, confrontando-se a prova documental, pericial e oral e aferindo-se do conhecimento de causa, da isenção dos depoimentos prestados, das suas certezas e hesitações, da razão de ciência e da relação com os sujeitos processuais.
Assim, a convicção do tribunal resulta, no caso concreto, da ponderação conjugada, à luz de regras de experiência comum, os depoimentos das testemunhas, depoimentos esses devidamente concatenados com os documentos e relatório de perícia de avaliação do dano corporal ao ofendido DD.
Mais se ponderaram, devidamente concatenadas com os supra referidos meios de prova pericial/documental:
- Relatório pericial para pesquisa de vestígios biológicos, análise de ADN e estudo comparativo, de fls. 294/295;
- Relatório de perícia de avaliação de dano corporal, de fls. 392/393;
-Auto de diligência externa de fls. 35/36;
- Relatório fotográfico de fls. 38/61;
-Auto de apreensão e registo fotográfico de fls. 62/66;
- Assentos de nascimento e dados de identificação civil de fls. 80/85 e 246/247;
- Dados dos inquéritos nº(s) ..., ..., ..., de fls. 132/139, 263/279, 331;
- Elementos clínicos de fls. 105/109, 122/126, 156/161, 290/293;
- Auto de noticia de fls. 254/256.
- Relatório fotográfico de fls. 376/377.
Quanto à prova testemunhal, vejamos:
Prestou depoimento a testemunha EE, assistente social do Centro Social e ..., situado em frente da casa da arguida, conhecendo-a, pois já usufruiu dos serviços do centro, referindo que esta ali habitava juntamente com o seu filho, o aqui ofendido. Nada presenciou, porém, no dia dos factos, encontrava-se a trabalhar e foi chamada pela administrativa CC, pois a arguida tinha-se dirigido ao Centro Social, apresentando-se bastante nervosa, chorosa, com sangue na cara e nas mãos, não estava ferida, com as mãos na cabeça e dizia “Eu matei o meu filho com uma sachola, vão ver se ele está morto”. Entretanto ela foi ao domicilio da arguida acompanhada por duas pessoas, pôs a chave à porta, chamou pelo ofendido mas como não obteve resposta não entrou e chamou a GNR. Mais referiu que nunca antes lhe tinha pedido ajuda para assuntos relacionados com o filho, porém, a arguida queixava-se que o filho tinha problemas etílicos.
Tais declarações foram corroboradas pelo depoimento prestado pela testemunha CC, escriturária no Centro Social ..., a qual referiu que no dia 15 de Dezembro de 2023, por volta das 9 e meia da manhã, a arguida apareceu no Centro, muito chorosa, com as mãos e a roupa ensanguentadas, a dizer que tinha morto o filho, dando-lhe com uma sachola, para elas irem ver, pedindo-lhes para ligarem para a nora (mulher de outro filho. Após, ela e a Drª EE (testemunha anterior) dirigiram-se à casa da arguida, bateram à porta, como ninguém atendeu, não entraram. Entretanto chegaram os bombeiros e a GNR. Não viu o ofendido.
Pela testemunha BB, vizinha da arguida, há cerca de 10 anos, foi dito que no dia dos factos estava em casa na cozinha, com a porta aberta, a arguida chega e diz-lhe “Tia BB, matei o meu filho” e saiu e até hoje não a tinha vista mais. Mais referiu que nunca se apercebeu de discussões entre a arguida e o filho. Ouvia música de casa da arguida, a vizinhança queixava-se, porque não conseguiam descansar com a música, era mais ao fim-de-semana. Ficou admirada com a atitude da arguida.
Prestou igualmente declarações a testemunha HH, vizinha da arguida, há 3 anos, mora no andar de baixo. Ouviu, naquela madrugada, durante toda a noite, música extremamente alta e o barulho de algo a cair no chão e por volta das 9 da manhã viu no local a policia e o ofendido com uma ligadura à volta da cabeça a ser conduzido numa cadeira de rodas pelos bombeiros. Esclareceu que era recorrente ouvir-se música alta vinda da casa da arguida e por norma era sempre de sábado para domingo, o que motivou que chamassem a GNR. Ouvia também várias discussões, que aconteciam todas as semanas, pelo menos uma vez por semana, ouvindo a voz do arguido a chamar puta e cabra à mãe e esta a mandá-lo calar.
Pela testemunha II, inspector da PJ do Porto, foi apenas referido que recolheu o ADN da vitima e procedeu à sua inquirição, esclarecendo que a recolha de vestígios foi realizada pelos elementos da GNR, na cama do ofendido e no sacho e enviados para o Laboratório de Policia Cientifica.
Foi ainda ouvido na qualidade de testemunha, JJ, militar da GNR a qual declarou que no dia dos factos receberam uma comunicação por parte do posto da GNR ... e foram ao local. Ali chegados, tanto vitima como agressor já não estavam no local, só lá estava a GNR ... a isolar o local, uma equipa especializada fez a recolha de vestígios e só depois é que eles entraram, tomou declarações e fez reportagem fotográfica. Viu muito sangue, na cama, na parede, no chão, nas portas, na cozinha, confirmando o auto de diligência externa de fl. 35/37. Confrontado com o teor de fls. 60 e 61 esclareceu que a sachola foi recolhida de cima da cama pelos colegas de ... e foi lá posta novamente para a reconstituição. Referiu ainda que já tinha tido contacto com o ofendido, mas na posição de arguido, tendo este sido detido e presente a 1º interrogatório judicial onde lhe foram aplicadas medidas de coacção, entre elas o afastamento da vitima, a aqui arguida.
Por último foi ouvida a testemunha KK, GNR em ..., esclarecendo que foi o primeiro a chegar, pois estava de patrulha às ocorrências e foram chamados ao local por alegada violência doméstica. Ali chegados, contactaram com a arguida que se apresentava com sangue nas mãos e na cara, mas sem ferimentos, bastante nervosa. Na sala da habitação visualizou várias pingas de sangue, encontrando-se o ofendido deitado na cama, com ferimentos na cabeça, sendo que os bombeiros, ao ajudarem o ofendido a levantar-se, viram a sachola, que ele entregou aos colegas do NIAVE; entretanto vieram as equipas para recolher os vestígios.
Saliente-se que nem a arguida nem o ofendido, seu filho, prestaram declarações quanto aos factos.
Assim, porque sempre mostraram uma postura calma (na voz e na expressão corporal) e um raciocínio coerente, nunca deixando transparecer qualquer contradição dos factos pelos mesmos relatados; atenta a circunstância dos factos terem sido corroborados pelas referidas testemunhas entre si, e porque em momento algum invocaram matéria fáctica que contrariasse as regras da experiência e do normal acontecer dos factos, as mencionadas testemunhas lograram convencer o Tribunal sobre a realidade dos factos tal como foram consideradas provados.
Pois bem.
O Ministério Público deduziu uma acusação que passava pelos seguintes pontos essenciais:
- O ofendido, no dia 14.12.2023, após ter regressado à sua residência embriagado e encontrando-se a arguida deitada a descansar, colocou música em som alto que esteve a ouvir durante algum tempo.
- No dia 15.12.2023, no interior da residência comum, a arguida muniu-se de uma sachola de jardinagem, abeirou-se junto do ofendido de modo a este não se aperceber da sua presença e desferiu-lhe diversas pancadas na cabeça, com o intuito de o matar.
- Já ferido e com a região parietal perfurada, o ofendido ainda logrou colocar a mão direita por forma a aparar e se proteger de, pelo menos, mais uma pancada desferida pela arguida, direccionada à cabeça, com aquele instrumento perfurante e contundente, tendo a pancada vindo a acertar e perfurar a mão direita do ofendido.
Esta versão não é acompanhada, na íntegra, por ninguém. E revela-se, logo à partida, de difícil compreensão, como veremos infra.
Diga-se, desde já, que os dois directos intervenientes, ou seja, arguida e ofendido, não prestaram declarações, sendo que as restantes testemunhas apenas presenciaram aquilo que se passou após a agressão. Porém, mesmo não havendo qualquer testemunha presencial do ocorrido o Tribunal não tem dúvidas em afirmar que foi a arguida quem desferiu, com a sachola (será mais um ancinho?), pancadas na cabeça e na mão do arguido, pois assim conclui dos indícios verificados, como sejam, o arguido viver apenas com a arguida, não se encontrar mais ninguém na residência à data dos factos, os vestígios de sangue visíveis nas mãos, cara e roupa da arguida, não sendo sangue da própria pois não se encontrava ferida e o comportamento posterior da arguida junto das funcionárias do Centro Social, a quem recorreu em busca de ajuda para o seu filho. Aliás, este tipo de comportamento da arguida, permite ao Tribunal efectuar um percurso lógico que começa num ponto de partida: a arguida não terá tido a intenção de matar o seu filho DD.
Sabemos que o conhecimento e vontade é um elemento da vida interior de cada pessoa. O Tribunal não pode entrar no cérebro do agente e verificar, com os seus próprios olhos, o que a arguida sabia ou não sabia, quis ou não quis. Terá, portanto, de se alicerçar em regras de senso comum e presunções de normalidade, devidamente conjugadas com os restantes elementos de prova e factos objectivos.
E por isso chegamos à conclusão que a arguida não quis matar DD por dois motivos.
Primeiro motivo: Se a arguida quisesse, efectivamente, matar o seu filho porque não o fez (ou, pelo menos, o tentou fazer) no momento em que este estava ferido? Então enquanto o ofendido não tinha ferimento, a arguida queria matá-lo e quando este fica debilitado com ferimentos, pára? Quando o viu ferido, perdeu a vontade? Não faz sentido nenhum.
Diga-se, ainda que os vestígios de sangue encontrados na habitação apontam para que o ofendido tivesse andado pela casa ferido, tendo sido encontrado pelos Bombeiros deitado na sua cama, uma vez que além da cama, foram encontrados vestígios de sangue no chão do quarto bem como na porta.
Segundo motivo – a dinâmica sucedânea aos ferimentos.
Foi referido por todas as testemunhas que contactaram com a arguida imediatamente após os factos que a mesma se encontrava muito nervosa, chorosa, pedindo às duas funcionárias do Centro que fossem a sua casa saber do seu filho, dizendo, em choque, que o tinha matado.
Ora, quem pretende matar não vai imediatamente a seguir buscar ajuda nem fica assustada e chorosa com a possibilidade de tal ter ocorrido.
Relativamente às características da sachola (cfr. número 9. dos factos provados), apreendida conforme auto de fls. 62, as características da mesma estão expostas a fls. 64/66, de onde se retirou uma amostra de sangue e nesta onde foi encontrado um perfil de ADN idêntico ao perfil do ofendido.
Relativamente aos ferimentos sofridos pelo ofendido, decorrem da documentação clinica junta aos autos (fls. 105/109, 122/126, 156/161 e 290/293).
Os factos atinentes às consequências em DD decorrem do relatório do INML de fls. 392/393.
A prova da existência de anteriores processos onde a arguida figurava como ofendida e o aqui ofendido como arguido em crime de violência doméstica, resulta da análise do teor dos elementos dos inquéritos nº(s) ..., ..., ..., de fls. 132/139, 263/279, 331 dos autos.
Para dar como assente que o arguido padece de alcoolismo, sendo ex-toxicodependente e que entre o dia 14.12.2023 e as 09 horas do dia 15.12.2023 o arguido ingeriu bebidas alcoólicas, baseou-se o Tribunal nos elementos clínicos juntos aos autos, dos quais se extrai os antecedentes pessoais do ofendido, relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas e de produtos estupefacientes bem como a taxa de 2.7 de etanol que o arguido apresentava nesse dia 15.12.2023.
Quanto ao conhecimento e vontade da arguida, mostra-se aqui perfeitamente adequado e legítimo o recurso aos critérios de razoabilidade, presunções de normalidade e regras de experiência, devidamente articulados com a restante prova, uma vez são elementos da vida interior de cada um e, por isso mesmo, insusceptíveis de directa apreensão pelos sentidos do julgador, só sendo possível de captar através do preenchimento dos elementos objectivos da infracção aliados a presunções de normalidade e regras de experiência.
Ora, a este propósito, já supra expusemos porque razão não acreditámos que a intenção da arguida alguma vez tenha sido a intenção de matar DD, pelo que entendemos que existiu, isso sim, uma vontade de o agredir.
É evidente que a arguida agiu voluntariamente (no sentido de ter domínio da sua vontade), conscientemente (no sentido de conhecer as circunstâncias de facto) e livremente, no sentido de poder agir de forma diferente.
E conhecia plenamente a ilicitude da sua conduta: qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias sabia que, legalmente, não poderia, naquelas circunstâncias, agredi-lo, como viria a agredir, com uma sachola, sabendo da perigosidade da conduta, no entanto, a arguida quis agir como agiu, querendo atingir aqueles resultados (causar ferimentos), como conseguiu, bem sabendo da ilicitude da sua conduta, porque qualquer pessoa nas mesmas circunstâncias o saberia. Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
As condições socioeconómicas da arguida decorrem do relatório social junto aos autos.
A ausência de antecedentes criminais decorre do CRC junto ao processo.

Quanto à factualidade não provada, a mesma resulta do que ficou dito em sentido contrário e da falta de meios de prova que, sustentadamente, a corroborasse. Desde logo, desconhecem-se totalmente as circunstâncias em que decorreu a agressão. Se é certo que o ofendido apresentava um corte na mão direita, desconhece-se se a mesma foi provocada antes ou depois dos ferimentos na cabeça.
Por outro lado, e como já se referiu supra, foram encontrados vestígios de sangue em outras partes da casa e não somente na cama do ofendido, pelo que nenhuma prova foi produzida no sentido de se poder dar como assente que a arguida se abeirou do ofendido de modo a este não se aperceber da sua presença e numa altura em que nenhuma altercação ou discussão entre ambos ocorrera.
Quanto à parte da sachola usada para desferir as pancadas, veja-se que no relatório fotográfico de fls. 376/377, são visíveis vestígios avermelhados não só no cabo da sachola mas igualmente na sua parte lateral, pelo que se desconhece qual a parte de tal objecto usada pela arguida para agredir o ofendido.»
*

3. Apreciação do recurso
Cumpre agora apreciar as questões colocadas pelo recorrente:
1. Impugnação da matéria de facto
Como é sabido as questões relativas à matéria de facto podem ser sindicadas por duas vias: a chamada revista alargada (ou impugnação restrita da matéria de facto) e a impugnação ampla da matéria de facto.
Recorre o Ministério Público invocando a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal.
Quanto a este tipo específico de recurso cumprirá referir, ainda que sinteticamente, por um lado, os requisitos legais da sua invocação e, por outro lado, os critérios orientadores que norteiam a reapreciação, por este tribunal superior, da prova produzida em primeira instância.
Esta via de impugnação da matéria de facto, visa a revisão de um possível erro de julgamento quanto à apreciação da prova produzida em audiência (testemunhal, documental, pericial ou de outra natureza), em contraste com a revista alargada, que se restringe aos vícios decisórios evidentes. Cabem aqui todos os casos de erro (não notório) na apreciação da prova de que o tribunal de recurso se aperceba na reanálise dos pontos de facto apreciados e permitidos pelo recurso em matéria de facto. Entram neste campo o error in judicando (erro de julgamento), no qual se inclui o erro na apreciação das declarações orais prestadas em audiência e devidamente documentadas e a não ponderação ou errada ponderação de prova documental, erros que, não sendo notórios, impõem uma diversa ponderação.
De acordo com a jurisprudência mais avalizada, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou quando viole, de forma manifesta, as regras de experiência comum e da lógica ou o princípio in dubio pro reo.
Ao contrário da revista alargada, a impugnação ampla da matéria de facto implica a análise de toda a prova documentada, desde que o recorrente cumpra o ónus de especificação previsto no artigo 412º.
O tribunal de recurso deve, então, reapreciar as provas, mas dentro dos limites estabelecidos pelo recorrente, e não procede a um novo julgamento da matéria de facto. O recurso não implica reavaliar toda a prova como se fosse o tribunal de primeira instância, que beneficia da imediação e oralidade no julgamento, mas apenas verificar se houve um erro de apreciação. O tribunal de recurso altera a decisão factual apenas se os elementos probatórios impuserem uma decisão diversa, e não apenas uma alternativa possível. Se existirem várias soluções de facto possíveis, e se a decisão de primeira instância estiver devidamente fundamentada e dentro de uma das soluções possíveis, ela prevalecerá.
A reapreciação da matéria de facto só pode ocorrer dentro dos limites impostos pela gravação dos atos da audiência e pela necessidade de o recorrente especificar:
• Quais os pontos de facto incorretamente julgados.
• Quais as provas que impõem uma decisão diversa da recorrida, referenciando os suportes técnicos de gravação.
A fundamentação do recurso deve ser precisa, indicando quais as passagens das provas que demonstram o erro de julgamento, e discutindo esses elementos probatórios de forma a mostrar como o tribunal a quo errou na sua análise. O recorrente não pode limitar-se a alegar genericamente que as provas foram mal apreciadas, devendo, em vez disso, apontar concretamente as partes da prova que demonstram o erro, e relacionar esses elementos com a decisão.
Ao tribunal de recurso cabe verificar se o tribunal de primeira instância fez um bom uso do princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, que estabelece que o julgamento deve ser feito com base na livre convicção do julgador, segundo as regras da experiência comum e a lógica. Contudo, a livre convicção do juiz não é ilimitada, devendo estar sempre fundamentada de forma lógica e motivada, de acordo com o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
*
Passamos então a analisar se houve erro de julgamento nos factos impugnados, à luz dos critérios que enunciamos anteriormente.
Tais factos são os seguintes:

«e) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. da factualidade provada, a arguida abeirou-se do ofendido de modo a este não se aperceber da sua presença, o que sucedeu, e desferiu-lhe, com a parte pontiaguda, contundente e perfurante da sachola, diversas pancadas na cabeça, com o intuito de o matar.
f) Já ferido e com a região parietal perfurada, o ofendido ainda logrou colocar a mão direita por forma a aparar e se proteger de, pelo menos, mais uma pancada desferida pela arguida, direccionada à cabeça, com aquele instrumento perfurante e contundente, tendo a pancada vindo a acertar e perfurar a mão direita do ofendido.
g) O ofendido só não morreu em consequência da descrita conduta da arguida, porque acabou por conseguir colocar a sua mão direita à sua frente e impedir que a arguida o continuasse a golpear com a sachola, por ter sido rapidamente socorrido pelos bombeiros e recebido assistência hospitalar e, assim, por mero acaso e razão alheia à vontade da arguida.
h) Sabia a arguida que o ofendido podia morrer.»

Para apoiar a impugnação indica o recorrente o auto de diligência externa de fls. 35 a 37, o relatório fotográfico de fls. 38 a 61, o auto de apreensão e relatório fotográfico de fls. 62 a 66, os elementos clínicos de fls. 105 a 109, 122 a 126 e 290 a 293 e o exame pericial ao ofendido.
Além disso, o recorrente sustenta que o depoimento prestado pela testemunha BB impõe que se considere como provado que: «Por pensar que tinha tirado a vida ao seu filho, AA deslocou-se à habitação da BB, sua vizinha, a quem referiu: “Oh Ti BB, matei o meu filho Acto contínuo, ausentou-se repentinamente da habitação daquela, deslocando-se para o centro Social e ...».
Como meios de prova que imporiam a pretendida alteração, o recorrente indica segmentos do depoimento da testemunha (que localiza por referência ao registo áudio).
Começando pela última questão suscitada pelo recorrente em matéria de facto nas suas conclusões. A este respeito, cumpre começar por notar que não se verifica qualquer erro nesta parte por parte do tribunal recorrido. Não será acolhido o alegado aditamento à matéria de facto mencionando pelo recorrente na Conclusão iii. do recurso, uma vez que se trata de algo não alegado nas peças processuais que constituem o objeto do processo, nem o recorrente requereu, até ao encerramento da audiência, que fosse considerada como alteração não substancial dos factos, nos termos do disposto no artigo 358º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal. Ademais, trata-se de uma factualidade meramente acessória, sendo completamente irrelevante e inócua. A mencionada matéria não oferece qualquer justificação relevante para a definição dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime imputado à arguida, nem para o tipo de crime pelo qual o recorrente defende que arguida deve ser condenada, ou para a determinação da sua culpa.
Analisemos agora o derradeiro ponto impugnado - indemonstração da intenção de matar. No fundo, está em causa a decisão dos factos relativos ao elemento subjetivo do crime de homicídio.
A consciência com que a arguida agiu, a forma como no seu espírito representou os factos, e a vontade e a intenção que lhes deu na execução, são aspetos que relevam do seu «mundo interior» e, que na ausência de uma confissão, por regra apenas podem ser extraídos, em presunção judicial decorrente dos factos objetivos que se tenham por assentes, apreciados à luz das regras de normalidade, de racionalidade e de lógica.
Atentemos, pois, aos factos provados (não impugnados) e vejamos se, como defende o recorrente, estes factos impedem o afastamento da intenção de matar por parte da arguida, como acabou por decidir o tribunal recorrido.
Provou o tribunal de primeira instância que, no dia 15.12.2023, cerca das 09 horas e 00 minutos, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, a arguida munida de uma sachola de jardinagem, composta por cabo de madeira de 14 centímetros, corpo em metal de 22,5 centímetros de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, com 12 centímetros de comprimento e 6 cm de largura na parte mais larga e desferiu diversas pancadas na cabeça do ofendido, tendo-o atingido, igualmente, na mão direita.
Apuradas as zonas atingidas, temos como relevante a demonstração, igualmente provada, das lesões causadas que são feridas de diversos tamanhos ao longo do couro cabeludo e na mão direita que deixaram diversas sequelas: «no crânio, cicatriz oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, lateralmente ao olho direito, com 2 cm de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, à palpação, visível a distância social, duas cicatrizes na região parietal direita, com 2 centímetros de comprimento cada, cobertas por cabelo; no membro superior direito, cicatriz horizontal, no dorso do 2.º dedo da mão, que se prolonga para a região interdidital entre o 2.º e o 3.º dedo da mão, com 3 centímetros de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, visível a distância social, mobilidade preservadas; e, ainda, como consequência permanentes, calo ósseo na região das fracturas e cicatrizes na cabeça e no 2.º dedo da mão direita
Deu ainda como provado o Tribunal que, «o ofendido foi encontrado pelos Bombeiros Voluntários ..., deitado na cama, em estado de desorientação e gravemente ferido com as lesões já descritas» e que «A arguida tinha conhecimento que a sachola se tratava de um instrumento contundente e perfurante, idóneo a ser utilizado como instrumento de agressão contra um corpo humano, sobretudo se fosse usado para desferir pancadas na cabeça que se trata de uma zona vital e essencial do corpo humano (…)».
Chegou a maioria dos juízes do tribunal coletivo a quo ao convencimento da dinâmica dos acontecimentos sucedidos da forma como ficou a constar da matéria de facto, precisamente da conjugação dos elementos prova convocados pelo recorrente, a saber: auto de diligência externa de fls. 35 a 37, o relatório fotográfico de fls. 38 a 61, o auto de apreensão e relatório fotográfico de fls. 62 a 66, os elementos clínicos de fls. 105 a 109, 122 a 126 e 290 a 293 e o relatório de perícia de avaliação de dano corporal, de fls. 392/393.
Na leitura da maioria dos senhores juízes do tribunal a quo não ficou demonstrada a intenção de matar.
Importa, desde já, afirmar que discordamos.
Como já o dissemos, a intenção de matar é algo do foro subjetivo e íntimo, e, por isso – na ausência de uma confissão -, só pode ser inferida a partir dos factos objetivos. Esses factos são evidenciados, principalmente, pelas circunstâncias que envolveram os acontecimentos, pelas lesões apresentadas pela vítima, pelos instrumentos utilizados na agressão e pelo modo de actuar do agente.
No caso concreto, observa-se que as múltiplas lesões apresentadas pelo ofendido, localizadas no crânio, indicam que foram desferidos vários golpes. Destaca-se ainda o facto de a arguida ter atingido a vítima naquela zona anatómica, onde, qualquer pessoa de condição mediana tem presente que é uma parte do corpo onde se situam órgãos vitais do corpo humano e que qualquer golpe com um instrumento cortante-perfurante – como é a ferramenta acima descrita - neste local tem virtualidades de poder atingir um desses órgãos e provocar a morte do lesado. Todo este contexto deve ser apreciado à luz das regras da normalidade e da experiência comum, consideradas estas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do C. de Processo Penal.
Na verdade, atendendo às características do instrumento usado pela arguida - cabo de madeira cm 14 cm, corpo de metal de 22,5 cm de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, cm 12 cm de comprimento e 6 de largura -, e às lesões que o mesmo pode provocar (por exemplo, perfurantes), bem como à concreta zona da vítima atingida, na cabeça, o agente dos factos tem, seguramente, de admitir que a sua actuação criou as condições para a ocorrência do dano morte, conformando-se com esse resultado para assim agir e ocasionar que efectivamente o resultado possa vir a ocorrer.
Neste ponto sufragamos a argumentação da senhora juíza vencida, vertida no voto divergente que lavrou sobre a matéria de facto da decisão recorrida, cujo teor foi anteriormente transcrito.
Ademais, no caso concreto, tendo em conta o tipo e o número de lesões, não é possível que se tratassem de golpes superficiais, sendo necessário que a arguida tenha feito alguma força e pressão. Assim, ela teria necessariamente de saber que estava a atingir o ofendido daquela forma e de prefigurar a possibilidade de ocorrência do resultado morte. Ainda assim, as lesões não foram mais graves porque a vítima se defendeu, colocando a mão direita entre a cabeça e o instrumento. Tal facto é evidenciado pelas lesões observadas na mão direita, as quais podemos afirmar tratar-se de lesões defensivas.
Por outro lado, exigindo uma maior intensidade e até uma determinada motivação a intenção direta ou até necessária, os elementos apurados, mesmo de acordo com as regras de normalidade e experiência comum, não são suficientes para concluir pela existência de uma conduta directamente ou necessariamente dolosa.
Aliás, o facto de ter saído do local e de, em seguida, se ter dirigido ao Centro Social ..., anunciando que havia acabado de matar o filho, indicia exatamente o contrário dessa intenção direta ou, pelo menos, necessária, ficando a intenção apenas ao nível do que se pode designar por intenção eventual.
É importante ainda realçar que, porque ligado ao referido principio da livre apreciação da prova e não a uma qualquer presunção “de iure ou iuris tantum”, inadmissível em direito penal, é perfeitamente aceitável recorrer às denominadas “presunções naturais” (não jurídicas), ligadas ao “princípio da normalidade ou da regra geral” e às máximas da vida e regras da experiência (cfr. Figueiredo Dias, in «Ónus de alegar e provar em processo penal?», citado por Lourenço Martins, in «Droga e Direito, 1994, pág. 111).
No mesmo sentido se pronunciou o S.T.J. de 02.04.1986, B.M.J. 356, pág. 122, onde se afirma que “as ilações que as instâncias extraem dos factos constituem uma forma correcta de avaliação de conduta dos réus, na medida em que sejam meras consequências ou prolongamentos daqueles factos”. Jurisprudência que se mantém actual, como se pode ver, por exemplo, nos Acs. do S.T.J. de 12.03.2009, com o nº de processo 09P0237, de 6.10.2010, com o nº de processo 936/08.JAPRT e de 12.01.2012, com o nº de processo 987/06.0TBFAF.G1.S1, todos publicados na internet, em www.dgsi.pt.
A maioria dos senhores juízes do tribunal coletivo recorrido entendeu que não ficou demonstrada a intenção de matar, argumentando que, se a arguida quisesse, efetivamente, matar o seu filho, não faria sentido que não o tivesse feito no momento em que este estava ferido e debilitado.
Com o devido respeito, discordamos. A arguida não deu continuidade à execução do crime porque convenceu de que a vítima já estava morta. Foi essa a razão pela qual limitou a sua conduta aos golpes desferidos.
Assim, o facto de ter deixado o local e, de seguida, se ter dirigido ao Centro Social ..., afirmando que havia acabado de matar o filho, evidencia precisamente que a arguida estava convencida que o filho já estava morto. Não se verifica, portanto, a incoerência apontada pela maioria dos senhores juízes do tribunal a quo. O comportamento ulterior da arguida é, portanto, compatível e coaduna-se com a decisão de incluir nos factos provados a intenção eventual de matar.
Por outro lado, tratando-se de uma tentativa de homicídio, a inexistência de um perigo concreto para a vida, por si só, não releva para o afastamento da tentativa.
Pronunciou-se nesse sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 25.09.2018 (processo n.º 55/17.9JAPTM.E1): «(…) tratando-se de uma tentativa (de homicídio), a (in)existência de um perigo concreto para a vida, só por si, não releva para o visado afastamento da tentativa (de homicídio). Pois na configuração da tentativa, mais concretamente na avaliação dos actos de execução em conjunto com o plano do agente, o que releva não é o juízo ex post sobre as consequências concretas dos actos praticados (aquele a que o invocado perigo se refere), mas um juízo ex ante, sobre a potencialidade letal da acção desenvolvida.
É certo que a punição da “tentativa” funda-se sempre em razões “de perigo”. E a conduta de um agente, mesmo que actue imbuído de uma intenção de matar, não será punível perante uma inexistência objectiva de perigo para o bem jurídico. Assim sucede nos casos de tentativa manifestamente impossível. Como ensina Fernanda Palma, “a grande fronteira que o Direito Penal não pode ultrapassar é, sem dúvida, a da não punição, em si e por si, de meros pensamentos, intenções, resoluções e atitudes” (Da Tentativa Possível em Direito Penal, 2006, p. 35). “Não podemos prescindir de qualquer facto externo significativo (activo ou omissivo). Como decorrência de princípios constitucionais, o Direito Penal reclama que o ilícito se construa a partir do confronto com a Ordem Jurídica de modificações da realidade operadas pela livre vontade e não apenas de puras manifestações de vontade. “A culpa, a censurabilidade pessoal e a ideia imanente de liberdade exigem uma noção de acção voluntária constitutiva da realidade que se confronta com a norma. Por isso, uma análise do acontecimento e das suas consequências é não só apoio da compreensão da acção mas também objecto do juízo de imputação” (Fernanda Palma, loc. cit., p. 40).
Na previsão do art. 22º, nº 1, do CP “há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se”.
No nº 2 definem-se “actos de execução” como “os que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime” (al. a)), “os que forem idóneos a produzir o resultado típico (al. b)), ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores” (al. c)). Sendo de excluir uma punição da mera intenção, há que proceder à avaliação da conduta externa do agente e determinar se essa conduta consubstancia “acto(s) de execução” do crime que o mesmo agente terá decidido cometer.»
Na situação concreta, «num juízo ex ante sobre a potencialidade letal da acção desenvolvida» é manifesto que a acção de desferir diversos golpes com uma sachola de jardinagem com as descritas características, na zona da cabeça do ofendido teve (tem), necessariamente, um potencial danoso muito além da provocação de dores e lesões – em concreto, o de retirar a vida à vítima. É certo que o perigo para a vida da vítima não se concretizou, mas esse perigo não é, nos termos anteriormente explanados, imprescindível para a imputação do crime de homicídio na forma tentada.
Aliás, como se explicita no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.7.2018 (processo n.º 208/17.0PBEVR): «A ocorrência de lesões causadoras de perigo concreto para a vida nunca seria juridicamente exigível, na medida em que nem o é a própria causação de lesão física (pense-se, por exemplo, na tentativa de homicídio com utilização de arma de fogo em que o agente falha o alvo)».
Donde, concluindo: nos apontados segmentos o tribunal recorrido não fundamentou de modo razoável e suficiente a sua convicção, com enquadramento no artigo 127º, do Código de Processo Penal. A fundamentação da convicção do Tribunal, em conjugação com a matéria de facto fixada, revela que é errada, ilógica, contrária às regras da experiência comum.
Por conseguinte, olhando para os meios de prova convocados pelo acórdão recorrido e pelo recorrente, e consideradas as regras da experiência comum, procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, nos seguintes termos:
Os pontos 9º e 17º dos factos dados como provados passam a ter o seguinte texto:
«9. No dia 15.12.2023, cerca das 09 horas e 00 minutos, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, a arguida munida de uma sachola de jardinagem, composta por cabo de madeira de 14 centímetros, corpo em metal de 22,5 centímetros de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, com 12 centímetros de comprimento e 6 cm de largura na parte mais larga, desferiu diversas pancadas na cabeça do ofendido, atingindo-o igualmente na mão direita, a qual utilizou para se proteger das pancadas desferidas pela arguida.»
17. «A arguida agiu com o propósito de atingir o ofendido na cabeça, zona vital do corpo, com o sachola de jardinagem, sabendo que ao fazê-lo poderia atingir órgãos vitais deste e, consequentemente, poderia causar-lhe a morte, situação com a qual se conformou, pois, não obstante tal conhecimento, não se coibiu de assim agir, só não ocorrendo o aludido resultado por circunstâncias estranhas à sua vontade, decorrentes de o ofendido ter conseguido proteger a zona da cabeça com a sua mão direita, o que evitou o atingimento de órgãos internos vitais, e de este ter sido logo socorrido e intervencionado da forma descrita nos pontos 12 e 13.»
Assim, os pontos 15º e 16º dos factos provados são eliminados.
Elimina-se da alínea e) dos factos não provados o segmento «e desferiu-lhe, com a parte pontiaguda, contundente e perfurante da sachola, diversas pancadas na cabeça, com o intuito de o matar.»
É eliminada a alínea h) dos factos não provados.
E as alíneas f) e i) dos factos não provados passam a ter o seguinte texto:
«f) O ofendido quando foi atingido pela arguida na mão direita já se encontrava com a região parietal perfurada.»
«i) A arguida ao actuar do modo descrito no ponto 9, agiu directamente com o intuito de provocar a morte do ofendido.»
Em resultado do exposto, é este o novo alinhamento dos factos provados e não provados:
Factos Provados:
1. A arguida AA, nascida a ../../1949, é progenitora do ofendido DD, nascido a ../../1969.
2. Ambos residem, sem outros elementos do agregado, em habitação comum, sita na Rua ..., ..., ..., na freguesia ..., do concelho ....
3. O ofendido padece de alcoolismo, sendo ex-toxicodependente.
4. O ofendido tem por hábito colocar música em volume muito elevado, no interior da residência, principalmente ao fim-de-semana.
5. Igualmente, no interior da residência, ocorrem discussões entre a arguida e o ofendido.
6. Correram já termos os Inquéritos ..., ... e ..., na 2.ª Secção do DIAP de ..., todos arquivados por ausência de indícios suficientes da prática do crime de violência doméstica, pelo aqui ofendido contra a aqui arguida, sendo que esta sempre se recusou a prestar declarações nos respectivos procedimentos criminais, nos termos do disposto no artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
7. Entre o dia 14.12.2023 e as 09 horas do dia 15.12.2023 o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.
8. No dia 14.12.2023, em hora não concretamente apurada, o ofendido colocou, no interior da residência, música em som alto que esteve a ouvir durante algum tempo.
9. No dia 15.12.2023, cerca das 09 horas e 00 minutos, no interior da residência comum, por motivos não concretamente apurados, a arguida munida de uma sachola de jardinagem, composta por cabo de madeira de 14 centímetros, corpo em metal de 22,5 centímetros de comprimento e uma ponta em formato bicudo e triangular, com 12 centímetros de comprimento e 6 cm de largura na parte mais larga, desferiu diversas pancadas na cabeça do ofendido, atingindo-o igualmente na mão direita, a qual utilizou para se proteger das pancadas desferidas pela arguida.
10. Em consequência da supra descrita conduta da arguida, o ofendido sofreu: dores na cabeça e na mão direita; no crânio, cicatriz oblíqua de cima para baixo e de posterior para anterior, lateralmente ao olho direito, com 2 cm de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, à palpação, visível a distância social, duas cicatrizes na região parietal direita, com 2 centímetros de comprimento cada, cobertas por cabelo; no membro superior direito, cicatriz horizontal, no dorso do 2.º dedo da mão, que se prolonga para a região interdidital entre o 2.º e o 3.º dedo da mão, com 3 centímetros de comprimento, com ligeira área de fibrose subjacente, visível a distância social, mobilidade preservadas; e, ainda, como consequência permanentes, calo ósseo na região das fracturas referidas e cicatrizes na cabeça e no 2.º dedo da mão direita.
11. Por pensar que tinha tirado a vida ao ofendido, seu filho, a arguida, que tinha sangue pertencente ao ofendido nas mãos e na face, dirigiu-se, em seguida, ao Centro Social ..., anunciando, perante a Directora, EE que havia acabado de matar o ofendido com uma sachola.
12. O ofendido foi encontrado pelos Bombeiros Voluntários ..., deitado na cama, em estado de desorientação e gravemente ferido com as lesões já descritas.
13. Foi posteriormente encaminhado para o Serviço de Urgência do Hospital ..., em ..., onde deu entrada pelas 11 horas e 04 minutos daquele dia 15/12/2023.
14. A arguida tinha conhecimento que a sachola se tratava de um instrumento contundente e perfurante, idóneo a ser utilizado como instrumento de agressão contra um corpo humano, sobretudo se fosse usado para desferir pancadas na cabeça que se trata de uma zona vital e essencial do corpo humano.
15. (eliminado)
16. (eliminado)
17. A arguida agiu com o propósito de atingir o ofendido na cabeça, zona vital do corpo, com o sachola de jardinagem, sabendo que ao fazê-lo poderia atingir órgãos vitais deste e, consequentemente, poderia causar-lhe a morte, situação com a qual se conformou, pois, não obstante tal conhecimento, não se coibiu de assim agir, só não ocorrendo o aludido resultado por circunstâncias estranhas à sua vontade, decorrentes de o ofendido ter conseguido proteger a zona da cabeça com a sua mão direita, o que evitou o atingimento de órgãos internos vitais, e de este ter sido logo socorrido e intervencionado da forma descrita nos pontos 12 e 13.
18. A arguida agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser o seu comportamento proibido e punido pela lei penal.
Mais se provou que:
19. Tais lesões terão determinado 30 dias com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional.
20. Do evento não resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido.
21. Não são conhecidos à arguida antecedentes criminais.
Das condições sociais e pessoais da arguida
22. A arguida é viúva, está reformada há cerca de 15 anos.
23.Mantém residência há cerca de 10 anos na Rua ..., .... ..., ....
24. Compunha o agregado materno com DD, filho da arguida e ofendido, com o qual repartia despesas mensais, assumindo as funções de gestora do quotidiano doméstico e familiar.
25. Os outros dois filhos da arguida, FF e GG, com as idades de 52 anos e de 49 anos, estão autonomizados.
26. AA é a secundogénita da prole de quatro, tem como habilitações literárias o 1º ciclo do ensino, tendo iniciado actividade laboral aos 14 anos de idade, como gaspeadeira, e laborou na empresa “A...” durante 43 anos, estando reformada desde os 57 anos.
27. Aufere uma pensão no valor mensal de €600, a qual geria em benefício do seu agregado familiar.
28. Enquanto permaneceu em meio prisional, assegura uma atitude de conformidade à disciplina e à convivência em contexto prisional, beneficiando de acompanhamento médico dos Serviços Clínicos irecionada aos seus problemas hipertensão e dislipidemia.
29. Transmite ser pessoal afável, ajustada e centrada na independência pela concretização profissional, trajecto de vida valorado pela existência de diversos vínculos familiares e sociais.
30. Beneficia do apoio dos seus três filhos, incluindo o ofendido, que entendem como exequível o seu regresso ao meio familiar na morada detida antes da presente reclusão.
31. A arguida deverá ser alvo de uma intervenção irecionada para os problemas de assertividade emocional, de resolução de problemas, de controlo da agressividade, bem como de promoção de novas dinâmicas de relacionamento intrafamiliar.»
*
Factos não provados:
«a) O ofendido encontra-se frequentemente embriagado, mesmo no interior da residência comum.
b) O arguido adopta a comportamento descrito em 4. Da factualidade provada, fruto do estado de alcoolemia em que frequentemente se encontra.
c) No dia 14/12/2023, cerca das 21 horas e 00 minutos, o ofendido regressou à residência comum, após ter consumido bebidas alcoólicas.
d) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 8. Da factualidade provada, a arguida encontrava-se deitada e a descansar no seu quarto.
e) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9. Da factualidade provada, a arguida abeirou-se do ofendido de modo a este não se aperceber da sua presença, o que sucedeu.
f) O ofendido quando foi atingido pela arguida na mão direita já se encontrava ferido e com a região parietal perfurada.
g) (eliminada)
h) (eliminada)
i) A arguida ao actuar do modo descrito no ponto 9, agiu directamente com o intuito de provocar a morte do ofendido.
j) Agiu a arguida num momento em que o ofendido nem sequer se havia apercebido da sua presença e numa altura em que nenhuma altercação ou discussão entre ambos ocorrera.»
**

2. Erro na subsunção dos factos ao direito
Cumpre, desde logo, ressaltar que a impugnação de facto obteve procedência parcial, razão pela qual a sindicância da decisão relativa à subsunção jurídica dos factos incidirá sobre a factualidade efectivamente apurada.
A arguida foi acusada da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nº 2, als. a) e i), do Código Penal.
Contudo, o Tribunal a quo considerou que a arguida incorreu na prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada, p.p. pelas disposições conjugadas dos arts 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a), e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea a), todos do Código Penal.
O recorrente, por sua vez, sustenta que a arguida deve ser condenada pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 14.º, n. º 1, 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 26.º, 131.º, todos do Código Penal.
Vejamos.
No tipo legal fundamental previsto no artigo 131º do Código Penal, pune-se a conduta de quem matar outra pessoa.
O bem jurídico protegido aqui é a vida das pessoas, que é o bem jurídico considerado como o mais precioso e que por isso exige a maior protecção jurídico-penal.
Qualquer pessoa pode ser agente deste crime (é um crime comum) e qualquer pessoa pode ser também sujeito passivo do mesmo.
A conduta tipificada é a de matar, ou seja, “o facto humano destinado a provocar a morte de alguém”, o que pode ocorrer por acção ou omissão.
Tem ainda de existir nexo de causalidade entre o resultado morte e a conduta do agente, resultando aquela directamente desta.
Trata-se, pois, de um crime instantâneo, que se consuma com a morte e aí se esgota, de um crime que pode ser executado por qualquer forma e de um crime de resultado, já que para se consumar é necessário que a morte ocorra (cfr. Leal-Henriques - Simas Santos, Código Penal anotado, 1996, anot. ao art. 131º).
Ademais, importa destacar que o tipo legal em questão, por se tratar de um crime de resultado, admite a figura da tentativa, uma vez que a sua estrutura normativa é intrinsecamente compatível aos «crimes tentados».
A tentativa, nos termos do artigo 22.º do Código Penal, verifica-se quando o agente realiza actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este venha a se consumar. Consideram-se actos de execução:
- os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
- os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou
- os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies ora elencadas.
Transpondo as considerações expostas para o caso em análise nos autos, verifica-se que a conduta praticada pela arguida integra o tipo legal de crime previsto no artigo 131º do Código Penal, na forma de tentativa.
De facto, a arguida praticou actos que preenchem o elemento típico de matar outra pessoa e que eram idóneos a produzir o resultado morte, pois, utilizando uma sachola de jardinagem, com as características já descritas, desferiu golpes na cabeça e na mão direita do ofendido, causando-lhe as lesões descritas no facto provado 10.
Além disso, a tentativa é punível no presente caso, uma vez que ao crime corresponde pena de prisão de 8 a 16 anos e a não consumação não resultou de uma conduta voluntária da arguida, mas de circunstâncias completamente alheias à sua vontade, decorrentes de o ofendido ter conseguido proteger-se com a mão direita das investidas da arguida, o que evitou o atingimento de órgãos internos vitais, e de este ter sido imediatamente socorrido e intervencionado da forma descrita nos pontos 12º e 13º (cfr. arts. 23º, nº 1 e 24º do C.P.).
Não restam, portanto, dúvidas de que se encontram preenchidos todos os elementos objectivos do tipo legal fundamental de crime de homicídio, na forma tentada.
Entretanto, a arguida encontrava-se ainda acusada de ter cometido o crime em questão, mas na sua forma qualificada, com fundamento nas alíneas a) e i) do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal.
É sabido que o legislador utilizou a denominada técnica dos exemplos-padrão para a qualificação do crime de homicídio, por referência a um tipo de culpa mais grave, que figurou por intermédio da cláusula geral inserta no nº 1 do art.º 132º do C.P., qual seja, a de a morte ter sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade.
No que respeita à alínea i), apenas poderia estar em causa a utilização de meio insidioso.
Todavia, tendo em conta a descrição fáctica apurada sobre a situação ocorrida entre a arguida e o ofendido, e considerando resultado não provado de que a arguida se tenha aproximado do filho de modo que este não se apercebesse da sua presença, não se verifica a ocorrência de qualquer actuação insidiosa, razão pela qual não está preenchida a circunstância prevista na aludida al. i).
Imputa a acusação à arguida também a qualificativa prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 132º. Esta alínea aponta como exemplo-padrão a circunstância do agente ser ascendente da vítima, como sucede no caso concreto.
Obviamente que, como já afirmámos, estando em causa um exemplo-padrão e que não funciona automaticamente como agravante, não basta que ocorra qualquer uma dessas especiais relações entre o agente e a vítima. É necessário que, no caso concreto, a existência dessa relação traduza uma especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente.
No contexto descrito, apesar de a vítima ser descendente da arguida e assim, se incluir no círculo daqueles a que se reporta a qualificativa da alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, indiciadora de uma especial censurabilidade, em consequência das concretas circunstâncias da ação, cremos ser de afastar o funcionamento da referida qualificativa por se mostrar a conduta daquela ainda a coberto da censura do tipo matricial de homicídio.
Concretizemos.
A razão da agravação é a de que, para a maioria das pessoas, os laços afetivos estabelecidos por uma relação de maternidade são um factor específico de contenção, que não ocorreria se a vítima fosse outra qualquer pessoa. É evidente que, não funcionando nenhuma das qualificativas de forma automática, esta também derivará, não apenas do facto de o agente ter consciência da sua relação de parentesco com a vítima, mas também de a forma da sua actuação se apresentar especialmente desvaliosa, estando em causa a mãe, e/ou de se revelarem características da personalidade igualmente desvaliosas.
Na cultura em que vivemos, a maternidade estabelece relações pessoais, que idealmente, são pautadas por uma ligação de amor, ou, pelo menos, por deveres fortes de respeito e solidariedade. No entanto, essa perspectiva pode ser alterada diante de circunstâncias que se traduzam em motivos relevante para a atenuação da culpa.
Parece-nos que este é um desses casos. O ofendido, nascido em ../../1969, uma pessoa adulta que à data dos factos, contava com 52 anos de idade, sofria de alcoolismo e tinha o hábito de ouvir música em volume muito elevado no interior da residência que partilhava com a mãe. No dia em que os factos ocorreram, o ofendido havia ingerido bebidas alcoólicas e, no dia anterior, voltou a colocar música em som alto. Ficou ainda comprovado que eram frequentes as discussões entre mãe e filho, o que aponta para uma dinâmica familiar tensa, disfuncional e conflituosa, como também se pode perceber pelo número de queixas apresentadas pela arguida contra o ofendido, relacionadas com episódios de alegada prática de violência doméstica.
Portanto, com base nos factos provados, não é possível concluir que a conduta da arguida tenha demonstrado uma gravidade excepcional, pois não houve uma violação significativa dos deveres de proteção familiar. A ausência de harmonia no ambiente familiar e a recorrência de desentendimentos entre mãe e filho indicam que a relação estava distante de ser ideal, o que diminui a ideia de que o vínculo entre ambos exigiria uma reprovação excessiva da atitude da arguida.
Embora seja verdade que a relação de maternidade entre ambos deveria, em condições de normalidade, ter constituído um facto de contenção para os impulsos agressivos da arguida, também é certo que as circunstâncias apuradas são susceptíveis de atenuar o valor indiciário associado ao exemplo padrão previsto naquela alínea a).
Daí que não podemos concluir pela existência das referidas circunstâncias qualificativas imputadas à arguida, não existindo também quaisquer outros contornos do caso dos quais se possa concluir pela existência de uma especial censurabilidade ou perversidade daquela.
Pelo que, apenas estão verificados os elementos objectivos do tipo legal fundamental de crime de homicídio, na forma tentada, e já não os do tipo legal qualificado.
Quanto aos elementos subjectivos, resulta da matéria de facto que a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito de atingir o ofendido na zona da cabeça, zona vital do corpo, com a sachola de jardinagem, sabendo que ao fazê-lo poderia atingir órgãos vitais deste, e, consequentemente, poderia causar-lhe a morte, situação com a qual se conformou, pois, não obstante tal conhecimento, não se coibiu de assim agir.
Tal actuação revela a existência de dolo (estão preenchidos os seus elementos intelectual e volitivo) e na forma de dolo eventual, nos termos do disposto no artigo 14º, nº 3 do C.P.: quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Significa assim que está também preenchido o elemento subjectivo do crime.
Note-se que hoje em dia se tem por pacificada a questão da compatibilidade do dolo eventual com a tentativa.
Como recentemente se decidiu no Acórdão desta Relação do Porto de 28.10. 2020 (processo n.º 2139/19.0JAPRT): «Há que salientar que a jurisprudência vem considerando (na esteira de Figueiredo Dias e contra a opinião da Faria Costa) que são compatíveis a tentativa e a atuação com dolo eventual (ver, neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 10 de novembro de 1993, in C.J.-S.T.J. 1993. III, pgs. 228 e segs, e de 2 de abril de 2009, proc. n.º 08P3277, relatado por Souto Moura, in dgsi.pt, e os acórdãos desta Relação de 25 de fevereiro de 2004, proc. n.º 0344749, relatado por Isabel Pais Martins, de 20 de outubro de 2004, proc. n.º 0413680, relatado por Élia São Pedro, e de 2 de junho de 2013, proc. n.º 267/05.5GBMBR.P2, relatado por Maria dos Prazeres Silva). Na verdade, a “decisão” de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado próprio do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas».
Para que sobre a arguida recaia um juízo de desvalor jurídico-penal é ainda necessário que a sua conduta tenha sido culposa, ou seja, que ela seja imputável e que tenha actuado com consciência da ilicitude, o que se verifica, uma vez que a arguida, além de agir livre e conscientemente, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei .
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3. Da escolha e determinação da medida da pena
Perante o novo enquadramento jurídico-penal dos factos operado nesta instância, impõe-se, então, determinar a pena e sua medida, correspondentes ao crime em causa.
Nos termos do artigo 40º do Código Penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo a pena em caso algum ultrapassar a medida da culpa.
A determinação da medida concreta da pena faz-se, nos termos do art. 71º do Código Penal, em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele.
Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
Ao crime de homicídio simples corresponde a moldura penal de prisão de oito a dezasseis anos (artigo 131º do C.P.).
Como estamos perante a prática do crime na forma tentada, nos termos dos artigos. 23º, nº 2, e 73º, nº 1, do Código Penal, no caso concreto a moldura penal aplicável é de um ano e sete meses e seis dias a dez anos e oito meses de prisão.
Há que relevar especialmente o seguinte:
- o dolo, que ocorreu na modalidade de dolo eventual, portanto na sua modalidade menos grave, mas por outro lado demonstrando alguma insensibilidade perante o valor da vida humana;
- o modo de execução do facto, visto que a arguida utilizou uma sachola de jardinagem e com ela desferiu diversos golpes na cabeça e na mão direita do ofendido, causando-lhe lesões e sequelas permanentes (calo ósseo na região das fracturas e cicatrizes na cabeça e no 2.º dedo da mão direita), traduzindo alguma possibilidade de atingir órgãos vitais, não tendo, contudo, resultado, em concreto, perigo para a vida daquele, o que significa que, de entre todas as formas que podem ser utilizadas para praticar a conduta em causa nos autos, esta não reveste significativa (na medida em que estamos perante uma situação de dolo eventual, esta maior ou menor perigosidade dos meios utilizados tem relevância na apreciação das circunstâncias concretas da actuação do arguido);
- as consequências que resultaram para o ofendido da conduta da arguida, nomeadamente ao nível das lesões por este sofridas, e das sequelas subsequentes, conforme descrito na matéria de facto;
- o grau de violação dos deveres impostos à arguida, atenta a relação de parentalidade com o ofendido;
- a circunstância de, no caso concreto, e considerando o que foi a actuação da arguida, serem elevadas as exigências de prevenção geral, desde logo face ao cada vez maior número de casos de desavenças entre familiares que terminam com resultados graves e muitas vezes trágicos;
- mostrando-se também elevadas as exigências de prevenção especial, ligada ao agente que pratica o facto, que se pretende mantenha consciência de que deve respeitar o direito e os valores da vida em sociedade, nomeadamente com o respeito devido aos direitos à vida e à integridade física das outras pessoas;
- por outro lado, e atenuando as exigências de prevenção especial, o facto de a arguida não ter antecedentes criminais e de se encontrar familiar, social e profissionalmente inserida, demonstrando ser uma pessoa com hábitos de trabalho regulares, e sendo bem visto pelas pessoas das suas relações, sempre tendo aparentado anteriormente ser uma pessoa de valores e de comportamentos conformes ao direito, como decorre do que consta da matéria de facto;
Assim, afigura-se adequada ao caso a pena concreta de 4 anos de prisão.
*

Considerando a pena concreta fixada e face à redacção do art. 50º, nº 1, do Código Penal, que permite a suspensão da pena de prisão aplicada em medida até 5 anos, é possível equacionar da suspensão da execução da pena de prisão.
Atendendo à inexistência de antecedentes criminais por parte da arguida e principalmente à sua situação pessoal, descrita na matéria de facto, da qual resulta que se encontra familiar, profissional e socialmente inserida, tudo inculcando a ideia de se estar perante um acto isolado da sua vida, pode fazer-se um juízo de prognose favorável quanto à manutenção para o futuro de condutas conformes ao direito, acreditando o tribunal que a simples censura do facto ínsita na presente decisão e a ameaça da pena de prisão são suficientes para que se consciencialize e interiorize a antijuridicidade da sua conduta e a necessidade de se abster da prática de condutas do mesmo tipo para o futuro, assim realizando de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - art. 50, nºs 1 e 4, do Código Penal.
Nos termos do artigo 50º, nº 5, do Código Penal, o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.
Opta-se, então, por suspender a execução da pena de prisão aplicada à arguida pelo período de quatro anos, período correspondente ao da pena de prisão aplicada, com regime de prova e sujeição às mesmas obrigações anteriormente impostas no acórdão recorrido.
***

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, nestes termos:
A. Altera-se a matéria de facto dada como provada e não provada, ficando esta alinhada nos termos supra descritos;
B. Revoga-se a decisão recorrida na parte em que condena a arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelas disposições conjugadas dos artºs 143º, nº 1 e 145º, nº 1, al. a), e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea a), todos do Código Penal;
C. Condena-se a arguida pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º e 131º, todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 4 (quatro) anos, suspensão esta acompanhada de regime de prova e subordinada ao cumprimento pela arguida do plano de reinserção social que venha a ser definido em concreto pela D.G.R.S.P., contendo, de acordo com as directivas fixadas no art. 54º, nº 4, do Código Penal, os objectivos de ressocialização a atingir, cabendo ainda àquela entidade vigiar e apoiar a execução do plano e ficando aquela sujeito ao acompanhamento e fiscalização pela mesma do cumprimento de tal plano;
No mais, confirmar o acórdão recorrido.
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Não há lugar a custas nesta instância (artigo 513º, nº 1, a contrario sensu, do Código de Processo penal).

Notifique.
*





Porto, 04.12.2024

(texto processado e revisto pela relatora, assinado electronicamente).




Os Juízes Desembargadores,

(Amélia Carolina Teixeira - Relatora)

(Paulo Costa – 1º Adjunto)

(Paula Cristina Guerreiro– 2ª Adjunta)