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AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
USUCAPIÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário
1- O código de 2013 “deixou cair” a possibilidade de livre ampliação do pedido (e da causa de pedir) na réplica, como figurava nos códigos de 39, 62 e 95. Actualmente, em face do art.º 265º nº 2 do CPC/13, o autor pode ampliar o pedido, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. Esta alteração legislativa teve em vista o princípio da protecção do demandado, dado que esta parte não pode ver-se obrigada, sem mais, a defender-se de um novo objecto. 2- A ampliação cumulativa é válida quando o pedido é um desenvolvimento do pedido inicial e também é válida quando é uma consequência do pedido inicial. 3-O limite de qualidade e de nexo da ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quere dizer, a ampliação há-de estar contida, virtualmente, no pedido inicial e não estar, apenas, com ele relacionada. 4- Tratando-se de uma acção de simples apreciação negativa - se declare que o direito de propriedade dos réus, justificado notarialmente, sobre o prédio não existe - nesse objecto inicial não pode considerar-se que esteja virtualmente contido, para permitir a ampliação, o pedido de declaração de a autora ter adquirido o mesmo prédio por usucapião. Ou seja, de um objecto/pedido de simples apreciação negativa, não pode considerar-se como sua consequência ou desenvolvimento um pedido de declaração positiva contrário: que a autora adquiriu por usucapião. 5- O Tribunal da Relação pode deixar de apreciar impugnação da matéria de facto quando, no caso concreto, a factualidade que se pretende ver alterada se mostre irrelevante para alterar a decisão do recurso. 6- A má fé processual a que se reporta o subtipo da alínea b) do art.º 542º nº 2 do CPC, consubstancia-se na alteração intencional de factos ou, ainda, na alegação errada ou incompleta da realidade dos factos fundada numa grosseira indagação dessa mesma realidade. 7- Da alteração legislativa efectuada no art.º 27º nº 3 do RCP pela Lei 7/2012 de 13/02 – que passou a estabelecer como limite da multa por litigância de má fé na quantia de 100 UC - decorre que o legislador pretendeu sancionar a litigância de má fé com multa especialmente agravada, aumentando dez vezes mais o limite máximo que anteriormente vigorava. 8- Visa-se, com aquele enorme aumento do limite máximo da multa, que a sanção a aplicar penalize o litigante de má fé pelo dano que, com a sua conduta causou ao sistema de administração da Justiça e, indirectamente, a toda a colectividade, visto que a actuação de má fé lesa toda a colectividade enquanto potencial utilizador da máquina judiciária com interesse na célere resolução das controvérsias. 9- Em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância ad quem ou sobre pedidos que nela não foram formulados.
Texto Integral
Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO.
1- SFF, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra, CAS e mulher, FFS e contra MFP, pedindo:
a) Se declare a inexistência dos factos constitutivos do direito a que os 1.ºs Réus se arrogaram na escritura de justificação referida em 1, ordenando-se e consequência o cancelamento de todas as inscrições a favor dos RR.;
b) Declarar-se nula e de nenhum efeito a doação efetuada pelos 1.ºs Réus à 2.ª Ré com o inerente cancelamento do registo a favor desta;
c) Entregar à A. o imóvel referido em 1 livre e desembaraçado de quaisquer pessoas e bens;
d) Condenar-se os RR. a pagar à A. quantia não inferior a 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
Alegou, em síntese, que por escritura pública de 17/05/2021, os réus CAS e FFS declararam serem donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano destinado a habitação, localizado na Rua…, concelho de Ponta Delgada, com a área total de 52m2, dos quais 32m são de superfície coberta e 20 de logradouro, inscrito na respetiva matriz predial urbana em nome do Estado Português sob o art.º 1… com o valor patrimonial de 5.572,35 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 1… da freguesia de …; nela declararam que o prédio atrás referido adveio à sua posse, já no estado de casados, por compra não titulada a JRA e mulher MJA, no ano de 1995, à data residentes no Canadá e, entretanto, falecidos, motivo porque não lhes é possível formalizar a sua aquisição por escritura pública; que desde a sua compra em 1995 e sem interrupção, mantém a sua posse sobre o prédio, usufruindo das utilidades por ele proporcionados, tendo feito do mesmo a habitação própria e permanente, utilizando-a atualmente como sua habitação secundária, conservando-a e suportando os seus custos, agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade plena, com ânimo de quem exercita direito próprio; posse exercida de boa fé, de forma pacífica e pública, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem qualquer oposição de quem quer que seja, ignorando lesar direito alheio, motivo porque pretendem adquirir o prédio por usucapião. Os 1ª réus registaram a aquisição do prédio, a seu favor, pela Ap. 1…, de 30/08/2021. As declarações dos réus naquela escritura não correspondem à verdade, porque nunca adquiriram por compra, os alegados vendedores terem falecido anteriormente a 1995, nunca terem tido a posse do prédio, nunca o utilizaram, nunca suportaram quaisquer encargos com o prédio, nunca agiram como donos. De resto, em 1990, e pelo preço de 25.000$00, em vista do casamento que celebrou em 1991 com o então seu marido RAP, adquiriu o prédio dos autos a CAF, a quem a casa fora adjudicada, por partilha verbal efetuada entre os demais herdeiros, já no estado de viúva do filho e herdeiro Manuel RA. À data da aquisição a casa era uma ruína da qual apenas estavam as paredes laterais e, foi a A. quem de posse desta dividiu e reconstruiu a casa fazendo 2 quartos de cama, 1 sala, 1 cozinha, 1 casa de banho; obras que ficaram concluídas em 1991, ano em que a A. casou e passou a habitar a casa, aí tendo tido os 3 filhos do casal, entre os quais a Ré MFP e, aí habitou com o marido até se divorciar deste em 26 de Maio de 2008 e na qual o ex-marido, RAP, viveu até falecer em 10 de Novembro de 2019.
Após o falecimento do RAP, a Ré MFP pediu à A. se podia ir morar para a casa e passou a pagar uma renda mensal de 150,00 €, o que fez até Abril de 2021, acabando por lhe dizer que ia pôr a casa no nome dela vindo a A. a descobrir no início do mês de Maio de 2023 a realização da escritura de justificação referida, na qual outorgam como justificantes os 1.ºs RR., por sinal pais do companheiro da Ré MFP, AT, e de quem esta tem dois filhos e que, por acordo entre aqueles e esta, por escritura de doação outorgada no dia 3 de Outubro de 2022, os 1.ºs RR. doaram à 2.ª Ré o imóvel referido sendo, aliás, esta a finalidade da justificação pelos 1.ºs Réus uma vez que a Ré MFP, tinha à data desta escritura, em Maio de 2021, 23 anos, não podendo justificar a aquisição por usucapião. Ao saber da escritura de justificação a autora sofreu grande choque ficou nervosa e não conseguia dormir, devendo ser indemnizada em 5.000€ por danos não patrimoniais.
2- Citados, os réus CAS e esposa, FFS, contestaram e deduziram reconvenção.
Invocam a inutilidade superveniente da lide, porque os 1ºs réus doaram o prédio à 2ª ré ainda antes da escritura de justificação e, por isso já não se encontram na posse da casa.
Invocam a ineptidão da petição inicial, por alegada contradição entre o pedido e a causa de pedir por não ter sido peticionada a impugnação da escritura de justificação notarial e, por terem sido cumulados pedidos substancialmente incompatíveis, por não poder peticionar a condenação dos réus a entregarem o prédio e, não podem cumular pedido de indemnização.
Por impugnação, reiteram o que declararam na escritura de justificação; que a aquisição do prédio foi registada pela Ap. 5 de 26/09/1983 a favor de todos os herdeiros, incluindo o Manuel RA; impugna os factos alegados pela autora.
Em reconvenção, peticionam que se declare que os réus adquiriram o prédio por usucapião.
Pedem a condenação da autora como litigante de má fé, por deduzir pretensão sabendo que para ela não tem fundamento, em multa e indemnização não inferior a 5.000€.
3- Citada, a ré MFP, contestou e deduziu reconvenção.
Invoca a ineptidão da petição inicial, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis a falta de legitimidade activa e de personalidade judiciária, usando, no essencial, os mesmos argumentos invocados pelos 1ºs réus.
Por impugnação, mantem os factos invocados na escritura de justificação.
Deduz pedido reconvencional, pedindo se reconheça que os 1ªs réus adquiriram o prédio por usucapião e se declare que a escrita de justificação sob impugnação é válida.
Pede a condenação da autora como litigante de má fé em multa e em indemnização de 5.000€.
4- A autora replicou.
Reitera que os factos alegados pelos 1ºs réus não correspondem à verdade.
Quanto à contestação da 2ª ré, sua filha, é completamente falsa porque ela sabe que nasceu na casa em questão e nela viveu com os pais até ao divórcio destes e, depois do divórcio continuou a viver na casa com o pai, sabendo que os 1ºs réus nunca habitaram na casa.
Pugna pela improcedência das excepções.
Defende a improcedência da pretensão da sua condenação como litigante de má fé. Deduz ampliação do pedido, requerendo:
-Seja declarada dona e legítima proprietária do prédio dos autos, sendo a usucapião fundamento da sua aquisição originária.
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5- Em despacho saneador, foi decidido:
a)- Admitir o segundo pedido reconvencional, deduzidos pelos réus CAS e FFS (Seja declarado que, entre 1995 e 02/10/2022 foram os donos, proprietários e legítimos possuidores do prédio em questão).
b)- Indeferir a ampliação do pedido da autora, com o seguinte fundamento:
“Em sede de réplica, a Autora requer a ampliação do pedido no sentido de ser reconhecida e declarada dono e legítima proprietária do prédio dos autos, por usucapião. A este respeito, o artigo 260º do Código de Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância deve manter-se inalterada quanto às partes, ao pedido e à causa de pedir, ressalvadas as situações excecionais em que é consentida a modificação subjetiva e objetiva da instância. De entre as possibilidades legalmente excecionadas conta-se a alteração do pedido e da causa de pedir, com ou sem o acordo das partes (artigos 264º e 265º do Código de Processo Civil, respetivamente). Nos termos do artigo 265º, nº 2 do Código de Processo Civil, o autor pode ampliar o pedido até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. A ampliação do pedido traduz-se numa modificação objetiva da instância, constituindo uma exceção ao princípio da estabilidade da mesma e consubstancia, como do teor literal da palavra se depreende, um acrescento, um aumento, do pedido primitivo. Tal acrescento possui, contudo, uma limitação de qualidade e de nexo, na medida em que a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, ou seja, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial (Alberto dos Reis, Comentário ao Código do Processo Civil, vol. 3°, pág. 93). Tendo em mente o que acaba de explanar-se e subsumindo o direito ao caso concreto, haverá que considerar que nos encontramos perante uma das situações em que a ampliação do pedido se não mostra admissível. Na verdade, o pedido de declaração de reconhecimento da propriedade, por usucapião, já poderia constar da petição inicial, não podendo o artigo 265º nº2 do Código de Processo Civil servir para colmatar esquecimentos ou omissões. Assim sendo, e considerando que este pedido podia e devia ter constando do pedido de indemnização civil, indefere-se a ampliação do pedido”.
c)- Indeferir a pretendida inutilidade superveniente da lide.
d)- Quanto à ineptidão da petição inicial, foi julgada improcedente,
e)- Absolveu os réus da instância quanto à pretensão de condenação dos réus na restituição do imóvel livre e desembaraçado;
f)- Indeferiu as excepções de ilegitimidade e de falta de personalidade judiciária.
Foi enunciado o objecto do litígio e os temas de prova.
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6- Com data de 06/02/2024, a autora interpôs recurso contra a decisão que absolveu os réus da instância quanto ao pedido de condenação dos réus a entregarem o prédio livre de pessoas e bens e que indeferiu a ampliação do pedido, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1- Não tendo a A peticionado na petição inicial o reconhecimento da sua qualidade de dona e legítima proprietária do prédio dos autos, mas peticionando a sua entrega livre de quaisquer pessoas e bens, não está impedida de ampliar o pedido até ao encerramento da discussão da causa em 1ª instância nos termos do nº 2 do art.º 265º do CPC.
2- O nº 2 do art.º 265 do CPC a única limitação temporal que estabelece é que seja até ao encerramento da discussão em 1ª instância, o que manifestamente a A fez, pelo que,
3- Não só deve admitir-se a ampliação do pedido como manter-se o peticionado na alínea c) de entrega do imóvel à A livre de pessoas e bens, estabilizando a instância por forma a resolver de forma definitiva a questão sub iudice, em homenagem ao princípio da estabilidade da instância.
4-Assim não o tendo entendido o douto despacho recorrido violou, entre outros, o disposto no nº 2 do art.º 265º do CPC.
Termos em que deve o despacho saneador, na parte de que se recorre ser substituído por outro que admita a ampliação do pedido e mantenha a al. c) do peticionado de entrega do imóvel à A livre e desembaraçada d pessoas e bens por ser o seu desenvolvimento e consequência.
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7- Teve lugar a audiência final em 15/03/2024.
8- Com data de 18/03/2024 foi proferida sentença, com o seguinte teor decisório:
“VI. Decisão Pelo exposto, julgo a presente ação procedente e, em consequência: a) declarado impugnado o facto justificado na escritura de justificação lavrada a 17 de maio de 2021, feita no Cartório Notarial de Ponta Delgada a cargo do Notário JR, por os Réus não terem adquirido o prédio nela identificado, por usucapião; b) declaro ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, bem como a escritura de doação outorgada a 3 de outubro de 2022 no mesmo Cartório, com o consequentemente cancelamento de quaisquer registos operados com base nas ditas escrituras; c) Condeno os Réus como litigantes de má-fé e, por via disso, a pagar uma multa em 15 (quinze) UC; d) Ordeno o conhecimento da presente sentença à Ordem dos Advogados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 545º do Código de Processo Civil; e) Mais absolvo a Autora dos pedidos de condenação como litigante de má-fé. * Custas pelos Réus. * Após trânsito, comunique-se ao respetivo Cartório Notarial (artigo 101º do Código do Notariado) e à Conservatória do Registo Predial (artigo 53º-A do Código do Registo Predial).
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9- Inconformada, a ré MFP, interpôs recurso da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
I- O Presente Recurso tem na sua base o entendimento que a decisão recorrida não traduz corretamente a solução adequada para a questão que se apresentou para julgamento.
II- Por se entender, como se entende, que a solução encontrada na douta decisão em crise, viola, no caso sub judice, o sentimento ético-jurídico de Justiça, que ao caso cabe, e ainda que tal solução, na aplicação do direito ao caso concreto pode e deve, eventualmente, ser outra pelo que se suscita e se requer a reapreciação da presente decisão através do presente recurso.
III- Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou a ação procedente, e em consequência, declarou impugnado o facto justificado na escritura de justificação lavrada a 17 de maio de 2021, feita no Cartório Notarial de Ponta Delgada a cargo do Notário JR, por os Réus não terem adquirido o prédio nela identificado, por usucapião; declarou ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, bem como a escritura de doação outorgada a 3 de outubro de 2022 no mesmo Cartório, com o consequente, o cancelamento de quaisquer registos operados com base nas ditas escrituras; condeno os Réus como litigantes de má-fé e, por via disso, a pagar uma multa em 15 (quinze) UC; e absolveu a Autora dos pedidos de condenação como litigante de má-fé.
IV- Concluiu o Tribunal “a quo”, na sua fundamentação, ter formado a sua convicção na livre apreciação da confissão da Ré MFP, secundada pelos co-Réus, em julgamento, conjugando-a com a prova documental junta aos autos (artigo 607º, nº5 do Código de Processo Civil).
V- Porém, salvo o devido e merecido respeito por melhor opinião, entende a Recorrente que na Decisão Judicial condenatória o Tribunal nunca poderia ter dado como provado o facto do ponto 5. no qual concluiu que “os 1ºs Réus são pais de AT, companheiro de 2.ª Ré, MFP”, pelo facto de não ter sido junta qualquer prova documental para provar o alegado, nem tão pouco por corresponder à verdade.
VI- Desta forma, o Tribunal refere que formou a sua convicção com base na confissão da Ré MFP, contudo, esta, em nenhuma parte do seu depoimento refere que o filho dos 1.ºs Réus se chama AT.
VII- Não há, por isso, salvo melhor opinião, uma razão para dar como provado esse facto quanto a uma factualidade que carece de outra prova concreta ou indireta.
VIII- Inexiste qualquer elemento no processo que indique que o companheiro da Ré MFP se chamava AT e que esse seria filho dos 1ºs Réus.
IX- O julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório.
X- A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.
XI- Este critério sufragado pelo Tribunal a quo, para além de ser um critério subjetivo, é desprovido de qualquer base factual, e é, com o devido e merecido respeito, um falso pressuposto conforme acima se demonstra.
XII- A verdade é que a fundamentação que o Tribunal recorrido apresenta em nada se coaduna com a documentação junta aos autos, nem a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, eximindo-se de apreciar a prova realizada nos autos para fundamentar a sua convicção, pois se assim o fizesse, como a lei o impõe, a decisão teria que ser obrigatoriamente diversa daquela a que o Tribunal recorrido concluiu.
XIII- Com o devido e merecido respeito, o Tribunal recorrido ao ter efetuado a conclusão relativamente ao facto 5., não analisou devidamente a prova junta aos autos, pelo que a sentença enferma ainda de nulidade por violação dos princípios da livre apreciação da prova, da imediação e da oralidade, nos termos do nº 5 do artigo 607º, 608º nº 2 e da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
XIV- Estando por todas estas conclusões, a sentença recorrida inquinada por um erro de julgamento que nos termos do entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Julho de 2015 em que é relator ANA LUÍSA GERALDES “[o] erro de julgamento tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afecta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexacta qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro.”
XV- Decidindo da forma como foi, há claramente uma ofensa às disposições legais (arts. 413.º, 423.º e segs, 466.º, n.º 3 e segs, 495.º, 607.º, n.º 5, 608º nº 2, todos do CPC, e ainda aos arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e art.º 396.º todos do Código Civil) que foram preteridas pelo Tribunal recorrido e que se exigia esta prova para comprovar que o facto 5. dado como provado, estaria apoiado em meio probatório.
XVI- Desta forma, analisada a prova produzida e a fundamentação explanada na sentença, em nenhum momento é referida a circunstância que se dá por provada no facto do ponto
XVII- Por existir uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto quanto ao número 5 dos factos provados, deve ser dado como não provado que “os 1ºs Réus são pais de AT, companheiro de 2.ª Ré, MFP”, competindo, assim, a este Tribunal “ad quem” usar dos seus poderes/deveres (funcionais) de censura (cfr. artigo 662.º, n.º 1 do CPC.).
XVIII- Com o presente recurso visa, a Recorrente impugnar a interpretação e o sentido que foi dado aos critérios fixadores para julgar como provado o facto n.º 5 pelos motivos supra expostos, existindo uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, não se socorrendo esta de nenhuma prova documental ou testemunhal que ateste a veracidade daquele facto.
XIX- O Tribunal condenou os RR. como litigantes de má-fé, fixando uma respetiva multa em 15 UC’s.
XX- Para tanto, motivando esta condenação no facto de “No caso em apreço, resultou provado que os Réus tinham perfeito conhecimento da situação jurídica do prédio aqui em causa, bem sabendo que nunca foram proprietários do mesmo e que todos os factos declarados na escritura de justificação eram falsos (bem como todos os factos alegados na contestação!), Justifica-se, pois, em relação aos três réus o juízo de reprovação em que a condenação como litigante de má-fé se traduz, já que deduziram oposição cuja falta de fundamento não deviam ignorar (ambas as contestações são baseadas em mentira, alteraram a verdade dos factos (e mesmo assim ainda pedir a condenação da Autora como litigante de má-fé) e fizeram do processo um uso manifestamente reprovável, entorpecendo a ação da justiça (mesmo confessado todas as falsidades cometidas, e que não têm qualquer direito ao prédio, negaram um acordo com a Autora).
XXI- Estabelece o artigo 542º do CPC, que pode ser condenado como litigante de má-fé, a parte que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, aquele que tiver alterado a verdade dos factos e aquele que tiver omitido o seu dever de cooperação.
XXII- De facto, considera-se que a litigância de má-fé consubstancia algo mais do que uma litigância imprudente, só existindo quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, ou seja, quando se excedam os limites da normal dinâmica processual.
XXIII- Nos termos do n.º 2 do art.º 542º do CPC, “diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
XXIV- É corrente a doutrina distinguir entre a denominada má fé material ou substancial, que se relaciona com o mérito da causa, em que a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual, e sustentar-se que sobre essa modalidade de má fé regem as als. a) e b) do n.º 2 do art.º 485º, da má fé instrumental ou processual, em que se abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa e se qualifica o comportamento processualmente assumido pela parte em si mesmo, modalidade essa a que se reportam as alíneas c) e d) daquele n.º 2 do art.º 542º.
XXV- Como decorrência dessa distinção, apenas a parte vencida poderá incorrer em má-fé substancial, embora ambas as partes possam atuar com má-fé instrumental e, por isso, o vencedor poderá ser condenado como litigante de má-fé, por ter adotado um dos comportamentos previstos nas als. c) e d) do n.º 2 do art.º 542º do CPC.
XXVI- Cingindo-nos ao dever de cooperação, cuja omissão grave é sancionado como litigância de má-fé instrumental pela al. c) do n.º 2 do art.º 542º, esse dever encontra-se concretizado no n.º 1 do art.º 7º do CPC, onde se estabelece que “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio".
XXVII- O dever de cooperação, no dizer de Teixeira de Sousa, destina-se a transformar o processo civil numa comunidade de trabalho e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados.
XXVIII- Quanto às partes, o dever de cooperação obriga-as a um dever de litigância de boa-fé. A infração do dever do honeste procedere pode resultar de uma má fé subjetiva, se ele é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objetiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
XXIX- Como é sabido, antes da revisão ao CPC operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/11, apenas se sancionava como litigância de má-fé a lide dolosa, isto é, aquela em que o litigante assumia intencional e conscientemente um dos comportamentos tipificados pela lei como consubstanciadores de litigância de má fé com os fitos nelas enunciados, mas já não a lide temerária ou a litigância imprudência, ou seja, então o que importava à condenação como litigante de má fé era que existisse uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
XXX- Deste modo, a condenação como litigante de má-fé exige que a parte assuma um dos comportamentos previstos no n.º 2 do art.º 542º e que estes lhe sejam imputáveis subjetivamente, a título de dolo ou de negligência grave, isto é, com falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida.
XXXI- Apesar do aligeiramento dos requisitos legais para a condenação da litigância de má-fé é pacífico o entendimento que a condenação de uma parte como litigante de má fé exige cautelas acrescidas por parte do julgador a fim de evitar condenações injustas, lesivas da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art.º 1º da Constituição da República Portuguesa como base e fundamento da ordem jurídica e da comunidade nacional e de se poder colocar em crise o direito fundamental dos cidadãos de acesso aos tribunais, ao colocar-se entraves irrazoáveis à introdução em juízo de ações ou de meios de defesa.
XXXII- Acresce precisar que em sede de interpretação da lei tem-se entendido que a sustentação de posições porventura desconformes com a correta interpretação da lei não implica, por si só, em regra, a qualificação de litigância de má fé, na espécie de lide dolosa ou temerária, porque não há um claro limite entre o que é razoável e o que é absolutamente inverosímil ou desrazoável, no que concerne à interpretação da lei e à sua aplicação dos factos, não convindo, aliás, olvidar que teses jurídicas que eram tidas inicialmente como especiosas, acabaram por ser adotadas pela jurisprudência.
XXXIII- Posto isto, diremos que a Recorrente, antes do início de qualquer produção de prova em sede de audiência de julgamento, em abono do dever de cooperação com o tribunal, decidiu contar a verdade dos factos, confessando todos os comportamentos que tinham sido veiculados por si e pelos 1ºs Réus.
XXXIV- Contudo, e apanhando de surpresa todos os intervenientes processuais, inclusive, o mandatário aqui subscritor, o mandatário da Autora e, como é obvio, o próprio tribunal, a 2.ª Ré/Recorrente explicou ao Tribunal que apenas adotou esta postura processual dado que a Autora (sua mãe) lhe estaria a cobrar rendas há mais de 2 (dois) anos por esta habitar no prédio sito na Rua …, Ponta Delgada, alegando a Autora que essa seria propriedade sua, contudo, nenhum título constitutivo de propriedade existia a favor desta.
XXXV- Com efeito, se é certo que antes de agir, isto é, antes de apresentar a sua contestação na presente ação impendia sobre a Recorrente um dever de cooperar e demonstrar ao tribunal a realidade dos factos, devendo abster-se de comportamentos que alterassem a verdade dos factos ou entorpecesse a ação da justiça, a Recorrente, antes do inicio da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento, decidiu contar toda a verdade ao tribunal sobre a realidade dos factos, referindo que sempre habitou no prédio em causa nos autos, mas que não conseguia usucapir por ser menor à data dos factos, referindo, também, que a sua mãe lhe estaria a coagir ao pagamento de rendas, não existindo qualquer tipo de contrato de arrendamento, nem direito de propriedade sobre o bem imóvel.
XXXVI- Ao contrário do que o Tribunal “a quo” refere, a Recorrente, teria conhecimento que não seria proprietária do imóvel, mas que poderia vir a ser titular de direito de propriedade. Contudo, o que não tinha a menor dúvida, era que a Autora, sua mãe, não era proprietária daquele imóvel, nem poderia vir a ser (agora ou no futuro), pelo que foi com essa premissa que negou um acordo com esta, atendendo ao facto da Autora pretender que o imóvel lhe fosse entregue livre de pessoas e bens, mesmo sabendo não ser titular do mesmo.
XXXVII- Por este facto, a aqui Recorrente requer ao tribunal ad quem que faça uma análise do comportamento e postura processual da Autora, assim como dos factos alegados na petição inicial, que se revela como reprovável, o que leva a concluir que esta também atuou com má-fé instrumental por ter adotado comportamentos previstos nas als. c) e d) do n.º 2 do art.º 542º do CPC.
XXXVIII- E mesmo após a confissão da Recorrente, e das várias tentativas para alcançarem um acordo para a justa composição do litígio, esse não foi conseguido pela intransigência da Autora e não da aqui Recorrente, ao contrário do que faz parecer a douta sentença, como pode ser verificado através da audição dos registos de gravação da audiência de discussão e julgamento.
XXXIX- De resto, ao que se acaba de concluir não obsta a que a Recorrente, devesse, ab initio, ter adotado um comportamento processual adequado, em abono da verdade, de boa-fé, e não apenas no início da audiência de discussão e julgamento, seja pelas mais variadas razões [nomeadamente, o facto de estar a ser coagida a pagar renda à Autora].
XL- Contudo, o que não merece passar ao lado das objetivas do tribunal a quo é o comportamento adotado pela Autora, que se arrogou como proprietária de um bem, não tendo juntado qualquer prova documental, não tendo sido feita prova que esse bem seria seu, nem tendo aceite qualquer tipo de acordo que lhe foi proposta para a resolução do litígio em causa, não tendo sido decidida pelo douto tribunal a litigância de má-fé requerida pelos RR. quanto à Autora.
XLI- Aqui chegados, decorre do que se vem dizendo que, na nossa perspetiva, a condenação dos RR. como litigantes de má-fé parece-nos exagerada, tendo em conta que, antes da produção de prova, a 2.ª R. decidiu, por livre e espontânea vontade, contar a verdade ao douto tribunal.
XLII- Todavia, veja-se que tudo aduzido em juízo, apesar de ter contado uma versão diferente em sede de contestação, a Recorrente em abono do dever de cooperação e colaboração na descoberta da verdade material, decidiu contar a verdade relativamente ao imóvel, pelo que não se pode olvidar que a 2.ª Ré sempre habitou o imóvel, de forma ininterrupta desde 1995, não sendo este propriedade da aqui Autora que também deveria ter sido alvo de uma condenação por litigância de má-fé face ao que alegou em sede de petição inicial, o que não veio a suceder.
XLIII- Desta forma, face aos dados dos autos, apenas poderá imputar-se à aqui Recorrente uma atuação negligente, ou tanto uma grosseira falta de cuidado.
XLIV- Mais, deve ser-se cauteloso, prudente e razoável na condenação por litigância de má-fé. (Acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2023, processo nº 456/13.1TTFUN-B.L2-4).
XLV- Salvaguardando o respeito devido à douta sentença, no qual condenou os RR. Em multa que a graduou em 15 UC o seu montante, sendo no entendimento da Recorrente, quanto ao valor exagerado e injusto desta graduação que aqui se discorda.
XLVI- Salvo o devido respeito por melhor opinião, não resultaram dos autos elementos onde se possa fundamentar a douta decisão de que ora se recorre, mas sim que levariam a decisões bem diferentes.
XLVII- Ora, sempre com o devido respeito, não se poderia estar mais em discordância com esta graduação da multa em 15 UC, isto porque, desde já, importa esclarecer que a aqui Recorrente tentou cooperar e obter uma solução através de uma acordo em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo esse acordo sido rejeitado, várias vezes, pela Autora.
XLVIII- Pelo que, apesar de não ter contado a versão que deveria ao douto tribunal, a Recorrente. decidiu confessar todos os factos antes do início da produção de prova, de forma a colaborar com o tribunal para a descoberta da verdade, sendo ela própria a maior interessada na descoberta da mesma, dado que a Autora não poderia ser dada como proprietária do imóvel.
XLIX- Posto isto, mas consciente que poderia e devia ter sido mais diligente, pelo que, até poderá aceitar a sua penalização com multa, o que não aceita é a sua graduação com 15 UCs, pois é manifestamente exagerada e injusta, dado o seu comportamento na audiência de discussão e julgamento, pelo que não deve ser qualificado este comportamento como muito grave, como parece transparecer na douta decisão do tribunal “a quo”.
L- Mais, na aplicação e graduação da referida multa, mal andou ao decidir como decidiu, pois, além do já referido, não se socorreu, não teve em consideração as condições sócio-económicas dos Réus.
LI- Termos em que a sentença ora recorrida deve ser revogada e, em consequência, substituída por outra que recalcule o valor da multa (justa e proporcional), se achar aplicável, aos RR.
LII- Com a presente sentença foram violadas as seguintes normas jurídicas: arts. 413.º, 423.º e segs, 466.º, n.º 3 e segs, 495.º, 542º, 607.º, n.º 5, 608º nº 2, al. d) do n.º 1 do art.º 615.º todos do CPC, e ainda aos arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e art.º 396.º todos do Código Civil.
- DO PEDIDO –
Nestes termos e nos demais de Direito que V/ Exªs., doutamente se dignarão suprir, requer-se muito respeitosamente a V/ Exªs. que analisem doutamente o objecto, a causa, e o litígio e, em face de todo o alegado, declarem a nulidade da sentença por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão; e mais seja revogada a decisão de condenação da Recorrente como litigante de má-fé, ou caso assim não se entenda, por outra que recalcule o valor da multa (justa e proporcional), se achar aplicável, aos RR.
***
10- A autora contra-alegou e interpôs recurso subordinado, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1 – A Ré MFP confessou em audiência ser casada com o filho dos 1.ºs Réus e ter acordado com estes serem estes a usucapir à casa dos autos por não ter idade para o fazer e neles confiar.
2 – A confissão é irretratável (n.º 1 do art.º 465.º do CPC).
3 – A ser diferente o nome do filho dos 1.ºs Réus dado como provado tal não passa de um mero erro de escrita que em nada obsta à douta decisão proferida.
4 – Ademais, tendo a A. requerido que a Ré MFP juntasse aos autos as certidões do seu casamento e de nascimento dos filhos não o fez pelo que nos termos da conjugação dos arts. 430.º e n.º 2 do art.º 417.º do CPC e 344.º n.º 2 do Código Civil tal prova competia-lhe por inversão do ónus da prova.
5 – Resultou provado por confissão da Ré que os 1.ºs Réus e ela nunca foram proprietários do prédio dos autos e que todos os factos que fizeram constar da escritura de justificação e da contestação são falsos visando a aquisição do imóvel que bem sabem ser da A..
6 – Apesar de o saber e o ter confessado não se coíbe a Ré de persistir na alegação, sem qualquer pudor, que sempre habitou o imóvel de forma ininterrupta desde 1995, quando e como até resulta do assento do seu próprio nascimento junto como doc. 5 à p.i. só nasceu no dia 08/10/1997…
7 – A A. ao saber que a filha, ora Ré, gizara as escrituras de justificação e doação dos autos ficou em estado de choque, sem conseguir dormir, em pânico, vivendo, como vive, debaixo de grande nervosismo e ansiedade, sentindo-se para mais traída pela própria filha ao tentar tirar-lhe o único património que possui e onde pensava e pensa acabar os seus dias, o que tudo conjugado com a intensidade do dolo assume sem dúvida suficiente gravidade para ser indemnizada ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 496.º do C. Civil em quantia nunca inferior a 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais.
8 – A Ré ao vir no presente recurso reforçar que é dona do prédio dos autos sem o ser, persistindo na mentira e alegação de factos que sabe serem totalmente falsos, não só deve manter-se a sua condenação na multa que lhe foi fixada pelo tribunal como litigante de má fé, como ser condenada no pagamento dos honorários ao mandatário da A., a liquidar em execução de sentença, mas nuca inferior a 5.000,00 €, nos termos do art.º 543.º n.º 1 alínea a) do CPC, o que agora se pede.
9 – A douta sentença recorrida não violou qualquer dos preceitos invocados pela Ré no recurso.
10 – A douta sentença recorrida ao não condenar os RR. no pagamento da indemnização a título de danos patrimoniais à A. violou o disposto no art.º 496.º n.º 1 do Código Civil.
Termos em que deve o recurso interposto pela Ré MFP ser julgado totalmente improcedente por não provado e outrossim julgado totalmente procedente por provado o recurso subordinando interposto pela A. com condenação da Ré como litigante de má fé consistente no pagamento dos honorários ao mandatário da A., nunca inferior a 5.000,00 € e a liquidar em execução de sentença.
***
II-FUNDAMENTAÇÃO:
1-Objecto do Recurso.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face dos recursos e respectivas conclusões apresentadas pela autora (recurso de 06/02/2024), pela recorrente ré e, pelo recurso subordinado da autora, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir: I-Recurso da autora, de 06/02/2024:
a)- A Ampliação do pedido com reconhecimento de ser proprietária do prédio por o ter adquirido por usucapião;
b)- Condenação dos réus a restituírem o prédio livre e devoluto.
II- Recurso da 2ª ré:
a)- As nulidades da sentença;
b)- Alteração da Matéria de Facto;
c)- A redução da multa da sua condenação como litigante de má fé;
III- O Recurso Subordinado:
a)- A condenação dos réus, em indemnização de 5.000€ por danos não patrimoniais e, a condenação da 2ª ré como litigante de má fé na indemnização de 5.000€ de honorários com advogado.
*** 2- Matéria de Facto.
É a seguinte a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto: A. Factos Provados
1. Por escritura pública outorgada no dia 17 de maio de 2021, os Réus CAS e mulher FFS declararam serem donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano destinado a habitação, localizado na Rua …, freguesia dos…, concelho de Ponta Delgada, com a área total de 52m2, dos quais 32m são de superfície coberta e 20 de logradouro, inscrito na respetiva matriz predial urbana em nome do Estado Português sob o artigo 1.. com o valor patrimonial de 5.572,35 €, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o número 1… da freguesia de ...
2. Para tanto fizeram constar que o prédio atrás referido adveio à sua posse, já no estado de casados, por compra não titulada a JRA e mulher MJA, no ano de 1995, à data residentes no Canadá e, entretanto, falecidos, motivo porque não lhes é possível formalizar a sua aquisição por escritura pública.
3. Acrescentando que, desde a sua compra em 1995 e sem interrupção, mantém a sua posse sobre o prédio, usufruindo das utilidades por ele proporcionados, tendo feito do mesmo a habitação própria e permanente, utilizando-a atualmente como sua habitação secundária, conservando-a e suportando os seus custos, agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade plena, com ânimo de quem exercita direito próprio.
4. Os 1.ºs Réus registaram a aquisição a seu favor através da Apresentação 1… de 30/08/2021.
5. Os 1ºs Réus são pais de AT, companheiro da 2ª Ré, MFP.
6. Por escritura de doação outorgada no dia 3 de outubro de 2022, no Cartório Notarial Privado de Ponta Delgada, os 1.ºs RR. doaram à 2.ª Ré o imóvel referido em 1.
* B. Factos Não Provados
a) Os Réus foram donos e legítimos proprietários do prédio urbano destinado habitação com a área total de 52 m², sito na Rua …, inscrito na matriz predial urbana a favor dos RR. sob o número 1… e descrito na conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o 1…daquela freguesia de…, com um V.P.T de 5.573,35€ desde data que não conseguem por agora precisar, mas sempre no ano de 1995 e até ao dia, data em que decidiram doar o referido imóvel à senhora, aqui Segunda Ré.
b) Os Réus vinham possuindo, usando e fruindo do sobredito imóvel, há mais de 10, 15, 20 e mais anos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, de toda a vizinhança de forma ininterrupta, pacífica e de boa fé, sem oposição de ninguém, na inteira convicção de que se trata de um bem próprio deles, cuidando do prédio, nele habitando e cultivando, e utilizando-o atualmente como habitação secundária, procedendo à respetiva limpeza e realização de benfeitorias, pagando os respetivos impostos.
c) O supra referido prédio adveio à posse e propriedade dos RR. Através de compra verbal efetuada ao senhor JRA e mulher MJA, para que estes se pudessem estabelecer e aí criar família, uma vez que este imóvel havia sido adquirido pelos falecidos, mas estava desabitado, e abandonado uma vez que estes não residiam lá.
d) Os RR., vinham habitando o prédio identificado, nele celebrando os mais diversos momentos importantes da sua vida.
e) Neste prédio celebraram festas e receberam convidados, e visitas como se de sua casa se tratasse.
f) Todas as despesas relativas ao imóvel, designadamente com a aquisição de equipamentos (de rega, de agricultura e outros), custeio de obras de conservação, pagamentos da faturação relativas aos serviços essenciais são, e sempre foram emitidos em nome dos Réus e por aqueles integralmente suportados.
g) Apenas os Réus, até à transferência da propriedade, detinham as chaves que davam acesso ao prédio.
***
3- As Questões Enunciadas.
3.1- Do Recurso da autora de 06/02/2024.
3.1.1- A ampliação do pedido.
No recurso que interpôs, a 06/02/2024, a autora pretende seja revogada a decisão, tomada no saneador, que não admitiu a ampliação do pedido. Alega, em síntese, que não tendo peticionado, na petição inicial, o reconhecimento da sua qualidade de dona e legítima proprietária do prédio dos autos, mas peticionando a sua entrega livre de quaisquer pessoas e bens, não está impedida de ampliar o pedido, pedindo seja declarada dona e legítima proprietária do prédio dos autos, sendo a usucapião o fundamento da sua aquisição originária.
Como vimos, a 1ª instância indeferiu esta pretensão de ampliação do pedido fundamentando, em síntese, que o pedido de declaração de ser a proprietária do prédio em questão não constitui um desenvolvimento ou consequência do pedido inicial.
Vejamos.
Antes de mais, importa fazer a seguinte chamada de atenção: o código de 2013 “deixou cair” a possibilidade de livre ampliação do pedido (e da causa de pedir) na réplica, como figurava nos códigos de 39, 62 e 95. Actualmente, em face da redacção que ficou a constar no art.º 265º nº 2 do CPC/13, o autor pode ampliar o pedido, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo. Anteriormente, a alteração do pedido era, praticamente livre, na réplica porque, no fundo, este articulado servia para corrigir a petição inicial. Esta alteração legislativa teve em vista o princípio da protecção do demandado, dado que esta parte não pode ver-se obrigada, sem mais, a defender-se de um novo objecto (Teixeira de Sousa, CPC online, Livro II, pág. 139, blog do IPPC, consultado a 14/11/2024, lição que passaremos a seguir de perto).
A ampliação do objecto do processo pode verificar-se em duas situações distintas: a ampliação sequencial e a ampliação cumulativa. A ampliação sequencial verifica-se dentro do mesmo objecto: o autor pediu 100 e passa a pedir 150. A ampliação cumulativa verifica-se quando se cumula a um objecto inicial um novo objecto.
Numa outra perspectiva, a ampliação do pedido ocorre quando o pedido passa a ter uma maior dimensão qualitativa ou quantitativa. A ampliação qualitativa quando o efeito jurídico peticionado inicialmente passa a ter outra qualidade: por exemplo, é pedido o reconhecimento do usufruto e amplia-se para reconhecimento de propriedade.
Na ampliação quantitativa o montante ou o objecto material peticionado passa a ser maior: por exemplo, o pedido de pagamento de capital passa a englobar pagamento de juros; o pedido de indemnização de 50 passa a indemnização por 80.
Como se referiu, o regime actual deixou cair a possibilidade de alteração do pedido na réplica, mesmo que a o processo em causa a comporte. Agora, o pedido apenas pode ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1ª instância e, apenas como desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo.
Igualmente, como dissemos, a ampliação do pedido pode ser qualitativa ou quantitativa e, neste último caso, essa ampliação é, na generalidade das situações, cumulativa. A ampliação cumulativa é válida quando o pedido é um desenvolvimento do pedido inicial. A ampliação cumulativa também é válida quando é uma consequência do pedido inicial.
Alberto dos Reis (Comentário ao CPC, vol. 3º, pág. 93) ensinava que o “Limite de qualidade e de nexo a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quere dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial”; e não estar, apenas, com ele relacionada.
Ora, no caso dos autos, estamos perante uma acção de impugnação de escritura de justificação notarial. Como é sabido, trata-se de uma acção de simples apreciação negativa: a autora pediu se declare a inexistência dos factos constitutivos do direito de aquisição do prédio, pelos 1ºs réus, por usucapião e, se cancelem os respectivos registos prediais e, por consequência, seja declarada nula a doação dos 1ªs réus, justificantes, à 2ª ré. Trata-se, como se disse de uma acção de simples apreciação negativa: que se declare que o direito de propriedade dos réus sobre o prédio não existe.
Ora, nesse objecto inicial não pode considerar-se que esteja virtualmente contido o pedido de declaração de a autora ter adquirido o mesmo prédio por usucapião. De um objecto/pedido de simples apreciação negativa, não pode considerar-se, como sua consequência, um pedido de declaração positiva contrário; ou de uma pretensão de declaração de que os réus não adquiriram por usucapião não constitui seu desenvolvimento que a autora adquiriu esse prédio por usucapião. Até pode, em tese, admitir-se que a autora podia ter cumulado, inicialmente, o pedido de simples apreciação negativa de os réus não terem adquirido o prédio por usucapião, com o pedido de declaração de ter sido a autora quem adquiriu o mesmo prédio por usucapião e de condenação dos réus a reconhecê-lo.
Porém, como notam Geraldes/Pimenta/Sousa (CPC anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 317 e seg.), “A restrição da réplica em conjugação com as fortes limitações impostas à modificação do objecto da instância torna mais exigente ao autor a tarefa de elaboração da petição inicial, inviabiliza estratégias erráticas e obriga a uma definição séria dos contornos do litígio(…) Os condicionalismos impostos pela lei actual obrigam ou aconselham o autor a ponderar a possibilidade ou necessidade de formular pedidos subsidiários.” Recorde-se que a razão de ser da alteração operada no art.º 265º, teve em vista a protecção do demandado que não pode ver-se obrigado, sem mais a defender-se de um novo objecto.
A esta luz, somos a entender que não há fundamento para admitir a ampliação do pedido feito pela autora.
3.1.2- Condenação dos réus a restituírem o prédio livre e devoluto.
No recurso que interpôs a 06/02/2024, a autora pediu se revogasse o despacho saneador na parte em que absolveu os réus do pedido de condenação a devolverem o prédio livre de pessoas e bens, dizendo que esse pedido é suportado pela ampliação do peido que fez de ser declarado que ela, autora, adquiriu o prédio por usucapião.
A 1ª instância, não admitiu esse pedido, argumentando que “Já o terceiro pedido (condenação na entrega do imóvel livre e desembaraçado de quaisquer pessoais e bens) não poderá ser atendido, uma vez que a Autora não peticiona que seja reconhecido qualquer direito de propriedade sobre o imóvel, motivo pelo qual nada mais resta que não seja considerar, nesta parte, inepta a petição inicial, declarando nulo o processado quanto a este pedido e, consequentemente, absolver desta parte da instância os Réus.”
Pois bem, como acabou de se ver, não é admissível a ampliação do pedido feito pela autora e, por conseguinte, não se lhe reconhece que tenha adquirido a propriedade do prédio por usucapião. Assim sendo, a pretensão real da autora de ver condenados os réus a devolverem o prédio livre e devoluto não tem fundamento.
Sem necessidade de outros considerandos, conclui-se pela improcedência do recurso também nesta parte.
***
3.2- O Recurso da 2ª ré.
3.2.1- As nulidades da sentença.
Segundo se entende, a 2ª ré pretende se declare nula a sentença nos termos do art.º 615º nº 1, al. d), por, segundo alega, não ter sido analisada devidamente quando a 1ª instância considerou provado o ponto 5º, dado que não foi produzida qualquer prova sobre os 1ºs Réus serem pais de AT, companheiro da 2ª Ré.
Pois bem, sem necessidade de grandes considerações, entendemos que a sentença não enferma dessa nulidade.
Na verdade, como bem se esclarece no acórdão do STJ, de 23/03/2017 (Proc. 7095/10, Tomé Gomes):
“O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.”
Quer dizer, a alegada circunstância de não ter sido produzida prova sobre um facto e, não obstante, ele ter sido considerado provado, não constitui uma nulidade da sentença mas, quando muito, um erro de julgamento.
Sem outros considerandos, indefere-se a invocada nulidade da sentença.
Mais pretende a 2ª ré que a sentença padece de nulidade, por contradição insanável entre a fundamentação de facto e a decisão, por se não podia ter dado como provado o ponto 5º, não podia considerar procedente a acção.
Será assim?
Pois bem, para efeitos da al, c) do nº 1 do art.º 615º do CPC a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão, ocorre quando se verifica uma contradição real entre os fundamentos utilizados e a decisão alcançada: a decisão é viciosa por os fundamentos referidos pelo juiz conduzirem, necessariamente, a uma decisão de sentido oposto ou diferente (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo civil, 8ª edição, pág. 54).
Quer dizer, quando a norma, no art.º 615º nº 1, al. c), refere contradição entre os fundamentos e a decisão, está a referir-se aos elementos e passos do raciocínio que o juiz foi explanando na fundamentação da sentença. Isto é, o erro de contradição relevante reporta-se raciocínio que o juiz foi expondo na sentença: o julgador segue determinada linha de raciocínio que, em termos lógicos, aponta para uma determinada conclusão, mas, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente. (Cf. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, pág. 298).
Aliás, a título de exemplo, podemos referir dois acórdãos do STJ, publicados em www.dgsi.pt, que confirmam esse entendimento: - IV – A nulidade prevista na al. c), do nº 1, do artigo 615º, do CPC sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença, só se verificando quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído (acórdão do STJ, de 20/05/2021, Maria do Rosário Morgado, Proc. 1765/16)
- I. — A oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a um vício lógico do acórdão — se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. (acórdão do STJ, de 20/05/2021, Nuno Pinto Oliveira, Proc. 281/17 e Proc. 69/11)
Portanto, o vício de contradição ocorre em sede de raciocínio e argumentação lógicasilogística que leva à decisão: há uma incompatibilidade entre a argumentação e a decisão.
No caso dos autos salvo o devido respeito, quer se tenha dado como provado o ponto 5 dos factos provados, quer não se tenha dado esse facto como provado, é irrelevante para a sorte da acção e para a decisão alcançada. Não há, pois, qualquer contradição entre fundamentos e decisão.
3.2.2- A impugnação da Matéria de Facto.
Segundo se depreende da alegação da 2ª ré, impugna ela o ponto 5º dos factos provados, pretendendo que se considere não provado, por não ter sido produzida prova de que o mesmo possa decorrer.
A questão que se coloca é, desde logo, saber se há fundamento para conhecer da impugnação da matéria de facto.
Pois bem, segundo é jurisprudência constante do STJ, o Tribunal da Relação pode deixar de apreciar impugnação da matéria de facto quando, no caso concreto, a factualidade que se pretende ver alterada se mostre irrelevante para alterar a decisão do recurso.
Assim, entre outros:
-Ac. STJ, de 09/02/2021 (Proc. 26069/18, Maria João Vaz Tomé):
“A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que nada impede o Tribunal da Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil.”
- Ac. STJ, de 30/06/2020 (Proc. 4420/18, Graça Amaral):
“V - Não viola o dever de reapreciação da matéria de facto a decisão do tribunal da Relação que não conheceu a matéria fáctica que o apelante pretendia que fosse aditada ao factualismo provado (factos complementares e concretizadores de factos essenciais) tendo subjacente a sua irrelevância para o conhecimento do mérito da causa (por a mesma, por si só, na ausência de demonstração de factualidade essencial para o efeito, não poder alterar o sentido da decisão.”
- Ac. STJ, de 05/02/2020 (Proc. 4871/16, Nuno Pinto de Oliveira):
“I - O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. II - Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada.”
- Ac. STJ de 28/01/2020 (Proc. 287/11, Pinto de Almeida):
“IV - Decorre do princípio da limitação dos actos (art.º 130.º do CPC), que, no processo, apenas devem ser praticados os actos que se revelem úteis para a resolução do litígio. Este princípio, previsto para os actos processuais em geral, deve ser também observado no âmbito da apreciação da impugnação da decisão de facto, se se verificar que daí não advirá qualquer elemento com relevo para a decisão de mérito”.
- Ac. STJ, de 14/01/2020 (Proc. 134/17, Jorge Dias):
“III - É irrelevante julgar, como provados, factos tidos como inócuos, (não sendo lícito realizar no processo actos inúteis, como determina o art.º 130.º do CPC”.
-Ac. STJ, de 14/03/2019 (Proc. 8765/16, Maria do Rosário Morgado):
“I - Se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância (cfr. art.º 130.º do CPC).”
No caso dos autos, como se referiu acima, quer se tenha dado como provado o ponto 5 dos factos provados, quer não se tenha dado esse facto como provado, é irrelevante para a sorte da acção e para a decisão alcançada.
A esta vista, não se altera o ponto 5 dos factos provados.
3.2.3- A redução da multa da sua condenação como litigante de má fé.
A 2ª ré pretende a redução do quantitativo da multa por litigância de má fé.
Invoca, em síntese, que a condenação como litigante de má fé pressupõe que a parte tenha actuado com dolo ou com negligência grave (XXX); a incorrecta interpretação da lei não pode implicar a condenação como litigante de má fé (XXXII); a 2ª ré decidiu contar a verdade dos factos (XXXIII e XLI); apenas se pode imputar à ré uma actuação negligente ou tanto ou quanto grosseira falta de cuidado (XLIII); é exagerada a multa de 15 Ucs (XLV); não há elementos para fixar a multa daquele montante (XLVI).
Vejamos.
A 1ª instância mencionou, na fundamentação da condenação dos réus como litigantes de má fé que “No caso em apreço, resultou provado que os Réus tinham perfeito conhecimento da situação jurídica do prédio aqui em causa, bem sabendo que nunca foram proprietários do mesmo e que todos os factos declarados na escritura de justificação eram falsos (bem como todos os factos alegados na contestação!)”.
A recorrente, 2ª ré, reconhece que “resolveu contar a verdade”, ou seja, materialmente admitiu que a factualidade invocada na escritura de justificação notarial e depois mantida e repetida na contestação, não corresponde à verdade dos factos e que ela sabia dessa falta de verdade.
Pois bem, a previsão da alínea a) do art.º 542º nº 2 do CPC, diz que “…litiga de má-fé quem com dolo ou negligência grave tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.”
Decorre da norma que a parte actuará ilicitamente se souber ou devendo saber que a sua pretensão, atendendo aos aspectos de facto integradores da causa de pedir ou às pretensões que deduz ou à oposição que apresenta, não é compatível com aquilo que o sistema dita. Ou seja, impõe-se, através deste tipo de ilícito, o dever da parte, antes de propor a acção ou de deduzir contestação, indagar acerca da fundamentação da sua pretensão ou da sua defesa. Desde a Reforma de 95 que a evolução deste tipo de ilícito deixou de ser o conhecimento efectivo quanto à falta de fundamento e passou a ser a exigibilidade desse conhecimento. Ou seja, a parte litigará de má fé se não obstante não conhecer a falta de fundamento, de facto ou de direito da pretensão ou da defesa, lhe fosse exigível que a conhecesse. (Cf. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, pág. 392 e seg.). Quer dizer, o tipo de ilícito voltou a ser ético: deixou de se exigir que a parte conheça a falta de fundamento da sua pretensão ou da sua defesa para passar a exigir-se, somente, que a parte não possa ignorar a sua falta de razão. O tipo deixou de ser psicológico, passando a ser ético: não releva o que o agente sabe mas aquilo que ele devia saber. (Paula Costa e Silva, Litigância…cit., pág. 263).
Por outro lado, tipo de ilícito processual constante da alínea b), do nº 2 do art.º 542º do CPC é constituído por dois subtiposobjectivos: alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes. Trata-se de um ilícito que diz directamente respeito e se ancora na matéria de facto (Paula Costa e Silva, A Litigância…cit., pág. 398). E, subjectivamente, tanto é preenchido por comportamento doloso– alteração intencional da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes - como por actuação gravemente negligente – violação de deveres de cuidado que a parte deve colocar no apuramento dos factos relevantes para a acção/oposição.
Portanto, a má fé processual a que se reporta o subtipo da alínea b) do art.º 542º nº 2 do CPC, consubstancia-se na alteração intencional de factos ou, ainda, na alegação errada ou incompleta da realidade dos factos fundada numa grosseira indagação dessa mesma realidade.
No caso dos autos, com a contestação que foi apresentada, os réus praticaram ambos os tipos de ilícito, quer o da al. a), quer o da al. b): a factualidade invocada na escritura de justificação notarial e depois mantida e repetida na contestação, não corresponde à verdade dos factos e que ela sabia dessa falta de verdade (aliás, como igualmente o sabiam os 1ºs réus).
Sem sombra de dúvida os réus litigaram de má fé.
Coloca-se a questão da quantificação da multa: a 2ª ré entende que a multa de 15 Ucs é desadequada.
Será?
Em matéria de limites do valor das multas por litigância de má fé rege o art.º 27º nº 3 do RCP na redacção dada pela Lei 7/2012 de 13/02, que estabelece:
“3- Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.”
Anteriormente a esta redacção, os limites, mínimo e máximo, da multa por litigância de má-fé iam de 0,5 UC a 5 UC e, somente nos casos excepcionalmente graves, a multa poderia atingir um máximo de 10 UC.
Pois bem, desta alteração legislativa decorre que o legislador pretendeu sancionar a litigância de má fé com multa especialmente agravada, aumentando dez vezes mais o limite máximo que anteriormente se verificava. Visa-se, com aquele enorme aumento do limite máximo da multa, que ela assuma um carácter verdadeiramente penalizador, sancionatório e dissuasor de condutas processualmente ilícitas, não permitindo que o litigante de má fé possa retirar benefício da sua conduta. Afastou-se, assim, uma pena irrisória e meramente formal.
Note-se que a condenação em multa do litigante de má fé está ordenada à tutela de um interesse público, visto que a litigância de má fé atenta contra o bem jurídico Sistema de Justiça, pondo em risco o bem jurídico Justiça. Por esta razão, intervirá mesmo que não sejam provocados danos – processuais típicos ou outros – na esfera da contraparte. (Cf. Paula Costa e Silva, A Litigância…, cit., pág. 515 e seg.). A multa aplicada ao litigante de má fé visa penalizá-lo pelo dano que, com a sua conduta, causou ao Sistema de Administração da Justiça e, indirectamente a toda a colectividade, visto que a actuação de má fé no decurso da lide, ocupando o tribunal com questões consabidamente infundadas, ou retardando o julgamento da causa com medida dilatórias, lesa toda a colectividade enquanto potencial utilizador da máquina judiciária e interesse na célere resolução das controvérsias (Cf. Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, dissertação de Mestrado, Coimbra, 2014, pág. 67 e seg.).
Ora, na fixação do quantum da multa a aplicar a quem litiga de má fé, importa ter presente o que dispõe o art.º 27º nº 4 do RCP:
“4 - O montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.”
De acordo com o preceito, “…deverá o juiz tomar em consideração os efeitos da conduta de má fé no desenrolar do processo e na correta decisão da causa, bem como a situação económica do agente e a repercussão que a multa terá no seu património, em consonância com aquilo que era já afirmado por ALBERTO DOS REIS quando, ainda na vigência do CPC39, aludia à necessidade de atender ao grau de má fé e à situação económica do litigante. De facto, a multa por litigância de má fé, como qualquer outra pena, procurará desempenhar uma função repressiva (punindo aquele que não cumpre com os deveres de lealdade e correção) e, simultaneamente, preventiva (evitando que esse, ou qualquer outro litigante, volte a desrespeitar a lealdade processual). Mas estas funções apenas lograrão ser alcançadas se se tomar em consideração a situação económica do litigante, adaptando o montante da multa à sua condição financeira, assim garantindo que esta tenha verdadeiro efeito sancionatório e punitivo” (Cf.Marta Alexandra Frias Borges, Algumas Reflexões…cit., pág. 69).
Ora bem, no caso dos autos, a conduta dos réus merece especial censurabilidade por traduzir uma actuação dolosa: sabiam que a factualidade que fizeram constar na escritura e depois repetiram nas contestações não correspondia à verdade.
Por outro lado, as suas actuações deu origem à tramitação completa de uma acção declarativa: por causa das suas contestações (inverídicas) houve lugar a réplica; à realização de despacho saneador com conhecimento de diversas excepções, à realização de audiência final, prolação de sentença, recursos e respectiva apreciação.
Quanto à situação económica do agente, sabe-se que litiga com benefício de apoio judiciário pelo que deve ter uma situação económica baixa.
Ora, tudo ponderado, considerando a intensidade do dolo, que aponta para uma multa de valores elevados: se a multa vai de 2 a 100 Ucs, e se a pena cível deve ter em conta a gravidade da conduta apontaria para uma sanção pecuniária muito superior a 15 Ucs. Por outro lado, os efeitos que a actuação de litigância dolosa causou à administração da justiça, com uma acção declarativa completa, diversos recursos e respectivas apreciações, apontariam, igualmente, para penas de valores superiores a 15 Ucs. Porém, dada a situação económica, designadamente da 2ª ré, importa ponderar valores inferiores àqueles que seriam de aplicar se a ré tivesse outra situação económica.
Assim, acha-se adequado manter a multa por litigância de má fé em 15 Ucs. Em suma o recurso da 2ª ré improcede.
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3.3- O recurso subordinado da autora.
A condenação dos réus, em indemnização de 5.000€ por danos não patrimoniais;
e, a condenação da 2ª ré como litigante de má fé na indemnização de 5.000€ de honorários com advogado.
3.3.1- A condenação dos réus, em indemnização de 5.000€ por danos não patrimoniais.
A autora interpôs recurso subordinado, pretendendo a condenação dos réus no pagamento da quantia de 5.000€ por danos não patrimoniais; e, simultaneamente, pede a condenação dos réus no pagamento dos honorários do seu mandatário em quantia a liquidar posteriormente não inferior a 5.000€.
Pois bem, parece-nos, salvo o devido respeito, que a autora labora em dois equívocos.
Primeiro, no que toca ao pedido de condenação dos réus na quantia de 5.000€, por danos não patrimoniais, por ter sofrido grande choque, nervosismo e não conseguir dormir, embora tenha deduzido esse pedido, que a 1ª instância não concedeu – o que poderia ser fundamento para recurso autónomo ou para recurso subordinado – a verdade é que não foi provado qualquer facto relativamente a esses alegados danos não patrimoniais. E a autora também não impugnou a decisão de facto quanto a esta (ou outra) matéria.
Como é bom de ver, sem a necessária factualidade subjacente à pretensão indemnizatória, não pode este tribunal de recurso conceder essa indemnização.
3.3.2- A condenação da 2ª ré como litigante de má fé na indemnização de 5.000€ de honorários com advogado. Quanto à pretensão de condenação dos réus no pagamento dos honorários do seu Ilustre Mandatário.
Pois bem, trata-se de questão nova não abordada nem suscitada na 1ª instância.
Como é sabido, em Portugal, os recursos ordinários são recursos de revisão ou de reponderação da decisão recorrida (Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, pág. 81) e visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados (Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 395). Ou seja, os recursos interpostos para a Relação visam normalmente reapreciar o pedido e as questões formulados na 1ª instância. O recurso ordinário consubstancia-se, pois, num pedido de reapreciação de uma decisão, ainda não transitada em julgado, dirigido ao tribunal hierarquicamente superior e com fundamento na ilegalidade da decisão, visando revogá-la ou substituí-la por outra mais favorável ao recorrente. Desta forma, os recursos ordinários incidem sobre ou têm por objecto o juízo ou julgamento realizado pelo tribunal recorrido.
Portanto, nos recursos de reponderação, sistema que vigora em Portugal (Cf. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 8ª edição, pág. 147) não é concedida às partes a possibilidade de alegação de questões novas (ius novorum). Oobjecto do recurso é constituído por um pedido que tem por objecto a decisão recorrida e visa a sua revogação total ou parcial. Assim sendo, a natureza do recurso como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina uma importante limitação ao seu objecto decorrente do factor de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, pág. 97).
Sem necessidade de outras considerações, temos de concluir que improcede o recurso subordinado da autora.
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III-DECISÃO.
Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
- Julgar o recurso interposto pela autora a 06/02/2024, totalmente improcedente;
- Julgar o recurso interposto pela 2ª ré totalmente improcedente;
- Julgar o recurso subordinado da autora totalmente improcedente.
Em consequência mantém a sentença sob impugnação.
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Custas na instância de recurso:
- No 1º recurso da autora a cargo desta, por ter decaído totalmente;
- No recurso da 2ª ré, seriam a cargo desta, mas litiga com benefício de apoio judiciário, havendo aplicação da regra do art.º 26º nº 6 do RCP;
- No recurso subordinado da autora, a cargo desta.