TÍTULO DE CONDUÇÃO
CASSAÇÃO
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
Sumário

A cassação da carta de condução não é uma pena acessória ou medida de segurança, antes consubstanciando uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de proibição / inibição de conduzir. A cassação incorpora um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o terminus da concessão da autorização administrativa para conduzir.
É entendimento dominante que a cassação do título de condução é consequência da perda da integralidade dos pontos, como resulta do art.º 148.º, n.º 4 do CE e não é sequer admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto (sendo cada um dos processos que esteve na origem da aplicação das sanções acessórias a única instância própria para sopesar todas as circunstâncias relevantes para a decisão). Este efeito automático não viola o artigo 30.º, n.º 4 da CRP, na medida em que se trata de um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução e não de uma pena acessória automática pela prática do crime.
A cassação da licença de condução ocorre como efeito automático da perda total de pontos, não traduzindo uma nova condenação pela prática dos mesmos factos (e crimes atinentes) que determinaram a condenação na pena acessória da proibição de conduzir veículos.
Do exposto flui que a cassação não decorre de qualquer dupla valoração dos factos já considerados nas condenações anteriores, baseando-se em diferentes pressupostos, pelo que inexiste qualquer violação do princípio ne bis in idem.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Pelo Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), no âmbito do processo de cassação n.º …/2023, foi ordenada a cassação do título de condução de que AA é titular.

Impugnada judicialmente esta decisão para o Juízo de Competência Genérica do … do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi tal impugnação apreciada por sentença, com o seguinte dispositivo (na parte que interessa à presente decisão):

“Em face de todo o exposto, julgo o recurso de impugnação judicial improcedente e, em consequência, decido:

a) manter a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária em 11.12.2023, na qual foi determinada a cassação do título de condução n.º …, pertencente a AA, nos termos do disposto no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c) e 10 do Código da Estrada;

(…).”

Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

“A) Vem o presente recurso da decisão que julgou o recurso improcedente, e, em consequência, decidiu manter a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária em 11.12.2023, na qual foi determinada a cassação do título de condução n.º …, pertencente a AA, nos termos do disposto no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c) e 10 do Código da Estrada;

B) As infrações rodoviárias na origem do processo de cassação do título de condução do Recorrente ocorreram em 3.4.2016 e 31.3.2017, ocorrendo o trânsito em julgado da última infração em 6.2.2019, pelo que o presente procedimento de cassação de título de condução por contraordenação rodoviária encontra-se prescrito à presente data;

C) Nos termos do artigo 189º do Código da Estrada, as coimas e as sanções acessórias prescrevem no prazo de dois anos contados a partir do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença.

D) Nunca poderá deixar de se considerar que também a cassação da carta de condução por perda de pontos, dada a sua natureza sancionatória, terá de estar sujeita a um prazo prescricional;

E) Tal princípio consagrado na constituição no que tange ao processo penal não pode deixar de se aplicar às contraordenações, até por efeito do disposto no art. artigo 32º do RGCO que escolheu as normas do Código Penal como direito subsidiário à fixação do regime substantivo das contraordenações.

F) Também porque os princípios consagrados no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, são de aplicação analógica a outros ramos de direito sancionatório, nos quais se integra direito contraordenacional;

G) O procedimento da cassação terá de estar também sujeito ao prazo prescricional de dois anos, imposto pelo art. 188º do Código da Estrada e às causas de suspensão e interrupção ali também previstas, sob pena de violação do número 1 do artigo 30º da CRP, nos mesmos moldes que a cassação em si sujeita ao 189º do Código da Estrada;

H) Não faria qualquer sentido que as penas e as medidas de segurança aplicadas pela prática de crimes estejam sujeitas a prazos de prescrição e sanções aplicadas administrativamente, não o estivessem, introduzindo um fator de indefesa e arbitrariedade, atentado ao princípio da proporcionalidade na vertente de proibição do excesso;

I) Admitir que não existe prescrição nos termos do 188º e 189º Código da Estrada no que tange à cassação da carta revela-se como uma manifesta violação do nº 1 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa.

J) Por outro lado, em 02 de agosto de 2023 foi publicada em Diário da República a Lei 38-A/2023.

K) Ora, prescreve o artigo 5º da referida lei que são perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 (euro).

L) Por maioria de razão a referida lei aplica-se à cassação da carta. Exige- se no âmbito de aplicação da norma, “a ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Ac. TC n.º 42/95, rel. Messias Bento), devendo também por essa via ser extinto o procedimento.

M) Por outro lado, os pressupostos da cassação da carta de condução previstos na alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada não pode nunca ser automática, como se decidiu no Ac. TC n.º 362/92, pelo que entendemos violam as normas citadas o n.º4 do art.º 30º da CRP, ao estipularem a aplicação obrigatória da medida da cassação da carta de condução por via da condenação transitada em julgado das decisões que servem de fundamento à sentença.

N) É inconstitucional a norma da alínea c) do número 4 do artigo 148ºCE ao consagrar o carácter automático da cassação do título de condução «definitivo», isto é, a condutores que já tenham ultrapassado o regime probatório.

O) A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos o que igualmente contradiz um dos basilares princípios do direito assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator.

P) Assim, este automatismo da alínea c) do número 4 do artigo 148º do CE enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.

Q) Do princípio do ne bis in idem (patente no nº 5 do artigo 29º da CRP) resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.

R) O instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade prática de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.

S) Viola-se nessa medida o princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso.

T) Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria, outrossim, uma violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.

U) Salvo mais douta opinião, a cumulação da pena de cassação do título de condução com a proibição de obtenção de novo título antes que decorridos dois anos da cassação, é inconstitucional, por violar o princípio "ne bis in idem", consubstanciado uma dupla penalização do arguido pelo mesmo facto.

V) Não tendo decidido dessa forma violou a douta sentença recorrida a al. c), do art. 27ºnº 3, o art. 28ºe o art. 17º, todos do DL 433/82, de 27.10., os artigos 148º e 188º nº 2 do CE, o art. 119º nº 1 do CP e os artigos 18.º, §2.º e 30.º da CRP.”

Peticionando, a final:

“Nestes termos, e nos demais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso deverá a douta decisão a quo ser revogada entendendo-se por prescrito o procedimento da cassação e a própria cassação ao abrigo do artigo 188ºe 189º do Código da Estrada, sob pena de violação do artigo 30º da CRP;

Assim não se entendendo deverá ser aplicado o artigo 5º da Lei 38-A/2023, vendo-se perdoada a cassação em cumprimento do princípio da igualdade.

Por outro lado, deverá ter-se por inconstitucional a interpretação que a alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada é de aplicação automática não se valorando as circunstâncias concretas por violação do nº 4do artigo 30º da CRP. Assim não se entendendo, deverá ser decidido que a alínea c) do número 4 do artigo 148º do código viola o princípio do ne bis in idem.”

O recurso foi admitido.

O MP respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. O regime de carta "por pontos", com a possibilidade de cassação da mesma em caso de subtração de pontos (por efeito de condenações, concretas e sucessivas, em processos próprios, por crimes rodoviários) não é mais do que uma condição imposta pelo legislador para a atribuição manutenção do título de condução, que é razoável e visa a proteção de um bem jurídico digno de tutela penal e constitucional: a "Segurança Rodoviária";

2. Tal regime implica que nunca a licença de condução pode considerar-se definitivamente adquirida, pois ela está continuamente sujeita a uma condição negativa relativa ao "bom comportamento rodoviário";

3. O dito sistema, constituindo embora uma reação automática ocorre como efeito da(s) infração(ões) cometidas, sem que, por si mesmo, assuma natureza sancionatória, não isenta a administração de verificar se o titular do título de condução reúne ou não as condições legais para poder continuar a beneficiar do mesmo;

4. Neste sentido, o regime de cassação do título de condução estatuído no artigo 148.º do Código da Estrada não decorre qualquer automaticidade contrária aos princípios da adequação e proporcionalidade ínsito no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;

5. A cassação do título de condução prevista no artigo 148.°, n.ºs 4, alínea c), 10, 11 e 12, do Código da Estrada, aplicada ao arguido trata-se de um processo que não se confunde com um procedimento por contraordenação rodoviária punível com coima e/ou sanção acessória de proibição de conduzir, pelo que não se aplica ao processo de cassação o disposto no artigo 188.º, n.º 1, do Código da Estrada.

6. A cassação da carta nos termos do artigo 148.º, n.ºs 2 e 4, al. c) do Código da Estrada não se trata de um procedimento por contraordenação rodoviária, nem mesmo de uma sanção acessória, pelo que não se mostra aplicável o prazo de prescrição de dois anos previsto no artigo 188.º, nº 1, do mesmo Código.

Resulta, assim, que não foi violado o princípio constitucional ne bis in idem com a cassação de titulo de condução do Recorrente (conforme suprarreferido e entendimento unânime na jurisprudência recentemente publicada: Ac. TRP de 09-05-2018, recurso n.º 644/16.9PTPRT-A.P1, no Ac. do TRP de 30-04-2019, no âmbito do recurso nº 316/18.0T8CPV.P1, pelo AC. do TRC de 08-05-2019, processo 797/18.1T8VIS.C1, AC. do TRC de 23-10-2019, processo 83/19.0T8OHP.C1; Ac. do TRE de 3-12-2019, processo 1525/19.0T9STB.E1 e Ac. do TRL de 20-02-2024, processo 1143/23.8T8LRS.L2-5, todos disponíveis em www.dgsi.pt);

7. Não se entendendo que a cassação da carta de condução do Recorrente resulta de qualquer sanção acessória aplicada no âmbito de um processo de contraordenação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.º da Lei 38A/2023, de 2 de agosto, falece, portanto, o argumento alegado pelo Recorrente, não se verificando, igualmente, qualquer incumprimento do princípio da igualdade.”

Pugnando, a final, pelo seguinte:

“Por tudo o exposto, bem andou o Tribunal a quo, pelo que deve negar-se provimento ao recurso a que ora se responde, mantendo-se a douta decisão recorrida e devendo ser julgado totalmente improcedente o recurso ora interposto pelo Recorrente AA.”

(…)

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II – DOS FACTOS

Factos provados:

Com relevo para a decisão da causa, resultou provada a seguinte factualidade:

1 – AA é titular da carta de condução n.º …;

2 – AA foi condenado:

- por decisão proferida a 12.06.2017, transitada em julgado em 29.06.2017, no processo n.º 78/16.5… pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez tendo sido condenado, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 6 meses - pena já cumprida;

- por decisão proferida a 02.05.2017, transitada em julgado em 06.02.2019, no processo n.º 88/17.5… pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo sido condenado, além do mais, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por 5 meses;

3 – Na sequência daquelas condenações foram retirados 12 pontos, tendo AA ficado apenas com 3 pontos.

4 – A 11.04.2022 AA foi notificados de que tinha 3 pontos e da obrigatoriedade de realização de prova teórica, a concluir no prazo de 90 dias da notificação.

5 – AA foi submetido a prova teórica no dia 28.11.2022, tendo reprovado (com 4 respostas erradas).

6 – Entretanto, AA foi novamente condenado, no processo n.º 260/20.0…, por decisão proferida a 05.07.2022 e transitada em julgado a 20.09.2022, pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tendo-lhe sido aplicada uma pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses,

7 – (…) em consequência, foram descontados os restantes pontos, ficando com 0 pontos.

8 – A 20.06.2023, o recorrente foi notificado para se pronunciar quanto ao projeto de decisão de cassação do título de condução.

9 – A 11.12.2023, foi determinada a cassação do título de cassação de condução n.º ….

Mais se provou:

10 – O Recorrente trabalha na agricultura, apresentando dificuldades de interpretação de texto e leitura.

*

(…)

III – DO DIREITO

Atento o objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir se deve ou não ser mantida a decisão da ANSR que determinou, nos termos do disposto no artigo 148.º, n.º 4, al. c), e 10 do Código da Estrada, a cassação do título de condução n.º ….

Apreciando e decidindo.

*

Nos termos do disposto no artigo 121.º do Código da Estrada, a condução de veículo a motor na via pública só é permitida a quem for titular de carta de condução, a qual é emitida por entidade pública e mediante prova do preenchimento dos requisitos legais.

A obtenção e manutenção da faculdade de condução de veículos a motor na via pública está sujeita a um regime que se encontra previsto no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir e no Código da Estrada, o qual inclui um sistema de pontos.

O sistema de pontos associado à carta de condução e cassação deste título foi introduzido no Código da Estrada pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, estando tal matéria regulada no artigo 148.º daquele diploma legal.

Ora, de acordo com o artigo 121.º-A, n.º 1 do Código da Estrada a cada condutor são atribuídos 12 pontos, podendo a estes acrescer mais 3 pontos, até ao limite de 15 pontos, nos casos previstos no artigo 148.º, n.º 5, do Código da Estrada, e ainda mais 1 ponto, até ao limite máximo de 16 pontos, nos casos previstos no n.º 7, do mesmo artigo.

Prescreve p artigo 148.º que “1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:

a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;

b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.

4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;

b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;

c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.

(…)

7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.

8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.

(…)

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.

12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.

13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.”.

Decorre, pois, de tal normativo que a cassação da carta de condução por perda de pontos é uma consequência ope legis ou automática da perda total de pontos associados a uma concreta licença de condução, uma vez que se presume que depois de ter perdido todos os pontos – o que só acontece, em virtude da prática de crimes e/ou de infrações estradais consideradas graves ou muito graves – o condutor visado não tem idoneidade, perícia ou um mínimo de capacidades de diligência, cuidado, zelo e atenção consideradas essenciais para o exercício de uma atividade naturalmente perigosa, como é a condução de veículos de circulação terrestre.

(…)

Assim, embora o Recorrente centre a sua alegação no procedimento adotado no momento em que tinha 3 pontos na carta de condução, isto é, a notificação para efetuar teste teórico e o prazo em que deve ser concluído tal teste, certo é que, tal questão nos parece até despiciente, porquanto, o Recorrente perdeu todos os pontos associados à sua carta de condução e, em consequência, se imporia a cassação automática do seu título de condução, nos termos do artigo 148.º, n.ºs 4, al. c) e 10 do Código da Estrada.

Ora, embora perante as duas primeiras condenações em pena acessória de conduzir veículos motorizados, ou seja, após a subtração de 12 pontos (6 por cada pena acessória), o Recorrente tenha ficado com 3 pontos e nessa sequência tenha sido notificado para proceder à realização de teste teórico, entretanto o recorrente foi novamente condenado em pena acessória que conduziu a que ficasse com 0 pontos.

Nessa medida, a cassação do título torna-se uma medida automática, que não está sujeita a qualquer apreciação, nem a qualquer submissão a um teste, nem poderia ser influenciada pelo procedimento anterior que se iniciou quando o condenado tinha ainda 3 pontos da carta de condução.

É, pois, manifestamente irrelevante os termos em que decorreu aquele procedimento, que assentava na circunstância do Recorrente e titular de carta de condução ter ainda 3 pontos.

No momento em que o Recorrente ficou sem quaisquer pontos, automaticamente o seu título de condução é cassado.

(…)

Nem se diga que não é este o âmbito da decisão administrativa, embora o Recorrente pareça querer ignorar tal fundamento da decisão administrativa.

Com efeito, a decisão é clara na indicação das normas em causa, dizendo-se expressamente: “verificados que estão os pressupostos da cassação nos termos da alínea b) do n.º 4 e 8 do artigo 148.º do Código da Estrada e do n.º 11 do artigo 8.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016 de 30 de maio, bem como da alínea c) do n.º 4 e do n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, determino a cassação do título de condução n.º … pertencente a AA”, indicando ainda no texto de tal decisão que o Recorrente ficou com 0 pontos.

Não dispondo a recorrente AA de qualquer ponto [pois que se verificou a perda total de pontos, fundada na sucessiva subtração dos mesmos aos 15 pontos que lhe foram atribuídos], em conformidade com o disposto no artigo 148.º, n.º 4, al. c), do Código da Estrada, tal tem como efeito a cassação automática do seu título de condução – como foi decidido pela ANSR.

Também não se diga que a do recorrente ter realizado o teste teórico em tempo poderia alterar tal desfecho.

Na verdade, tal teste é realizado quando o condutor ainda tenha pontos (3 ou menos) e a sua aprovação poderá impedir que o título seja cassado, uma vez que nesse caso tal não é automático, mas não atribui quaisquer pontos extra àquele.

Assim, mesmo que o Recorrente tivesse realizado o teste teórico previsto e regulado pelo artigo 8.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016 de 30 de maio, conseguido aprovação do mesmo, sempre seria a sua carta cassada na sequência da subtração dos restantes pontos pela terceira condenação em pena acessória (o que implicaria a perda de 6 pontos - cf. artigo 148.º, n.º 2 do Código da Estrada)1.

Conforme se referiu supra, o processo de cassação é um processo autónomo, com vista à verificação de determinados pressupostos legais que se sustentam na aplicação automática do previsto no artigo 148.º do Código da Estrada, não se mostrando ser legalmente admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto.

Por outro lado, a perda de pontos é um efeito automático da condenação em sanção ou pena acessória e não constitui uma sanção em si, pelo que não há lugar a qualquer graduação da mesma em função do grau de ilicitude ou da culpa verificados no caso concreto, pois tais circunstâncias já decorrem da prática de factos ilícitos típicos e censuráveis no âmbito dos processos criminais em que o recorrente foi condenado. Ou seja, a cassação da carta de condução não é graduável em função da situação pessoal, económica e financeira do recorrente ou da sua realização pessoal, sendo que a eventual restrição do direito ao trabalho que resulta para o recorrente da sua aplicação encontra-se constitucionalmente justificada como meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente consagrados.

(…)

Nesta medida, as alegações das dificuldades do Recorrente, quer na sua vida profissional, quer quanto às suas capacidades de interpretação de texto e literárias com vista à obtenção de novo título de condução ou de novo emprego, não consubstancia qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, nem obsta à verificação dos pressupostos legais aplicáveis ao caso concreto, especialmente porquanto a deslocação do condutor não fica vedada, pode é ficar dificultada pelo facto de não poder conduzir, mas naturalmente tal constitui o incómodo inerente às sanções legalmente aplicáveis pela prática de condutas ilícitas. Naturalmente essa faculdade terá que ceder perante bens jurídicos de maior dignidade, pois as regras atinentes à disciplina rodoviária visam precisamente a tutela desses bens jurídicos, a proteção das demais pessoas e bens que transitam na via pública.

Concluímos, pois, que o alegado pelo recorrente, não tem a virtualidade de levar à não cassação do seu título de condução, sendo manifestamente irrelevante analisar da anulabilidade invocada, uma vez que o Recorrente não reúne qualquer ponto da carta que lhe permita ser submetido ao teste teórico previsto no artigo 8.º do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2016, de 30 de maio, dado que se mostram preenchidos os pressupostos legais, previstos no artigo 148.º, n.ºs 4, al. c) e 10 do Código da Estrada.

(…)

*

Em suma, é de concluir que os argumentos do recorrente não são passíveis de afetar a decisão da ANSR, devendo a mesma ser mantida na íntegra. O que se decidirá.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412.º do CPP), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

I – Da alegada prescrição do procedimento da cassação.

II – O “automatismo” da alínea a) do n.º 4 do art.º 148.º do CE e a alegada violação do art.º 30.º, n.º 4 da CRP.

III - Da alegada violação do princípio ne bis in idem.

IV - O perdão da Lei 38-A/2023.

B. Decidindo.

I – Da alegada prescrição do procedimento da cassação.

O recorrente, alegando que o procedimento de cassação do título de condução se encontra prescrito, invoca que as infrações rodoviárias na origem daquele procedimento ocorreram em 03.04.2016 e 31.03.2017, ocorrendo o trânsito em julgado da última infração em 06.12.2019, justificando que, nos termos do artigo 189.º do Código da Estrada (CE), as coimas e as sanções acessórias prescrevem no prazo de dois anos contados a partir do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença.

Entendemos não lhe assistir razão.

Vejamos a lei (art.º 189.º do CE):

Artigo 189.º

Prescrição da coima e das sanções acessórias

As coimas e as sanções acessórias prescrevem no prazo de dois anos contados a partir do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença.

A cassação, porém, tem natureza administrativa e tem a sua etiologia na perda de pontos resultante da prática das contraordenações / crimes a que dizem respeito.

Assim, segundo o art.º 121.º-A do CE (aditado pela Lei n.º 116/2005, de 28.08), epigrafado como “atribuição de pontos”:

1 - A cada condutor são atribuídos doze pontos.

2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º

3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º :

Sendo que a subtração de pontos ocorre nos termos recortados no art.º 148.º do CE (epigrafado “sistema de pontos e cassação do título de condução”:

1 - A prática de contraordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtração de pontos ao condutor na data do caráter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:

a) A prática de contraordenação grave implica a subtração de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, utilização ou manuseamento continuado de equipamento ou aparelho nos termos do n.º 1 do artigo 84.º, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efetuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contraordenações graves;

b) A prática de contraordenação muito grave implica a subtração de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contraordenações muito graves.

2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtração de seis pontos ao condutor.

3 - Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contraordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtração a efetuar não pode ultrapassar os seis pontos, exceto quando esteja em causa condenação por contraordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtração de pontos se verifica em qualquer circunstância.

4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:

a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;

b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;

c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.

5 - No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infrações, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.

6 - Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contraordenações graves ou muito graves no registo de infrações é de dois anos para as contraordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.

7 - A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de ação de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.

8 - A falta não justificada à ação de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.

9 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infrator.

10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.

11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.

12 - A efetivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.

13 - A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações.

Não estamos, assim, perante um procedimento por (qualquer) contraordenação rodoviária, nem mesmo uma sanção / pena acessória e, consequentemente, não se mostra aplicável o invocado prazo de prescrição.

Como consta do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 13.05 (1), a cassação da carta de condução não é uma pena acessória ou medida de segurança, antes consubstanciando uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de proibição / inibição de conduzir. A cassação incorpora um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o terminus da concessão da autorização administrativa para conduzir.

Por último, de acordo com o n.º 10 do art.º 148.º mencionado, “[a] cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”, ocorrendo o trânsito em julgado da última infração, como, aliás, o recorrente sabe (e consta expressamente da decisão administrativa) não em 06.12.2019, mas em 20.09.2022 (2), e, como tal, tendo a decisão administrativa sido proferida em 11.11.2023 e notificada ao arguido em 19.12.2023, não se verifica qualquer prescrição da cassação em apreço.

II – O “automatismo” da alínea a) do n.º 4 do art.º 148.º do CE e a alegada violação do art.º 30.º, n.º 4 da CRP.

O esquema legal da chamada “carta por pontos” chegou ao nosso ordenamento jurídico (já havia sido adoptado por outros países) através das alterações ao Código da Estrada que foram introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28.08, concretizando um dos instrumentos principais da designada Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária e visando “aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão”, com um “impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública”.

Em traços gerais, aquele esquema consiste na atribuição a cada condutor titular de um determinado título de condução um certo número de pontos (inicialmente 12), que poderão alterar-se caso o condutor cometa (subtraindo-se) ou se abstenha (adicionando-se) de cometer, em determinado período, ilícitos de mera ordenação social ou de natureza criminal de natureza rodoviária.

Quando o infractor perde todos os pontos, tal implica, nos termos da alínea c) do n.º 4 do acima reproduzido art.º 148.º, a cassação do título de condução. A cassação do título que seja consequência dessa perda total dos pontos é decretada num processo administrativo autónomo, sendo a decisão judicialmente impugnável. (números 10 e 13 do mesmo normativo)

In casu, o recorrente perdeu todos os pontos de que beneficiava em virtude de ter sido condenado, por sentenças transitadas em julgado, pela prática de três crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. p. art.º 292.º, n.º 1 do Código Penal, em penas (para além das principais) acessórias de proibição de conduzir veículos motorizados. (art.º 69.º)

É entendimento dominante que a cassação do título de condução é consequência da perda da integralidade dos pontos, como resulta do art.º 148.º, n.º 4 do CE e não é sequer admissível qualquer margem de discricionariedade administrativa na ponderação das circunstâncias do caso concreto (sendo cada um dos processos que esteve na origem da aplicação das sanções acessórias a única instância própria para sopesar todas as circunstâncias relevantes para a decisão). Este efeito automático não viola o artigo 30.º, n.º 4 da CRP, na medida em que se trata de “um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução e não de uma pena acessória automática pela prática do crime”. (Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 30.04.2019 proferido no processo n.º 316/18.0T8CPV.P1 e de 10.02.2021 proferido no processo n.º 118/20.3T9AGD.P1 (3)).

Como sublinhado no acima citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, o “regime tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente percetível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infrações cometidas pelos condutores bem como os respetivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma. Com efeito, a atribuição de título de condução pela República Portuguesa não tem um caráter absoluto e temporalmente indeterminado. Existe, assim, como que uma avaliação permanente, através da adição ou subtração de pontos, da aptidão do condutor para conduzir veículos a motor na via pública. Ou seja, em rigor, num tal sistema, o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular. O direito de conduzir um veículo automobilizado não é incondicionado.”

Para além das razões acima invocadas, que se subscrevem na generalidade, o mesmo TC (4) pronunciou-se muito recentemente sobre esta questão, nos termos que a seguir se expõem:

“Como se referiu, a primeira questão tem por base a da norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c) e n.ºs 10 e 11, do Código da Estrada, e consiste em saber se a circunstância de na norma controvertida se determinar que a perda de todos os pontos detidos por determinado condutor constitui condição suficiente para a cassação do respetivo título de condução implica a violação do artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, designadamente por tal efeito ser «manifestamente sancionatório, não revestir qualquer natureza pedagógica, de satisfação de necessidades de prevenção ou ressocialização, nem qualquer limitação ao necessário, adequado e proporcional para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos».

Note-se que não está aqui em causa nenhuma vertente procedimental da decisão de cassação do título de condução. Como decorre do regime legal traçado no artigo 148.º do Código da Estrada e no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, o procedimento conducente a tal decisão é inteiramente contraditório, dispondo o visado de adequadas oportunidades processuais de participação no processo de decisão, designadamente direito de se pronunciar sobre as questões de facto e de direito relevantes, de produzir prova e de recorrer judicialmente da decisão administrativa, com a possibilidade de beneficiar de duplo grau de jurisdição.

Está antes em causa o critério substantivo da decisão de cassação. Verificados os factos geradores da perda de todos os pontos de que o condutor seja beneficiário num certo momento, a cassação do título de condução é decretada sem necessidade de ponderação de outros fatores hipoteticamente relevantes. De acordo com a norma impugnada, a cassação do título de condução constitui consequência necessária − e, por isso, automática − da perda de todos os pontos detidos por dado condutor; dito de outra forma, a perda de todos os pontos constitui condição suficiente para a cassação do título de condução. Trata-se, pois, de saber se a suficiência dessa condição, integralmente satisfeita pela perda total dos pontos, sem que relevem outros fatores de ponderação − como sejam a sua adequação às necessidades de prevenção especial que se façam sentir em concreto, o grau de culpa subjacente aos ilícitos que ditaram a perda dos pontos e a extensão das consequências que a cassação tenha nas condições de vida pessoal e profissional do visado −, é desadequada, desnecessária e desproporcional para a salvaguarda dos direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que informam a medida.

Embora não esteja aqui em causa a conformidade constitucional do instituto da cassação do título de condução como um todo – do qual a perda de pontos é apenas uma das causas possíveis –, mas apenas da possibilidade de vir a ser decretada através da operação do «sistema de pontos», importa salientar que, independentemente da natureza desse instituto, não se pode duvidar que consubstancia medida restritiva para efeitos do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.

O recorrente não identifica nenhum direito fundamental atingido pela norma sindicada, sendo certo que da Constituição não consta expressamente nenhum direito fundamental a conduzir veículos motorizados na via pública. Mas atendendo à importância que tal atividade tem no quotidiano no cidadão comum, a sua recondução ao exercício de um direito com assento constitucional pode ser fundamentada sem dificuldades de grande monta. Com efeito, nos quadros de uma concepção principialista dos direitos fundamentais, nos termos da qual estes têm prima facie um âmbito alargado, podendo ser restringidos de plúrimas formas e com intensidades variáveis, a atividade de circulação rodoviária constitui seguramente um exercício da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade − esse grande direito residual consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição −, sem prejuízo da sua relevantíssima função acessória no exercício de outros direitos fundamentais em relação ao qual se revele útil ou mesmo indispensável.

Por isso, a sujeição da atividade a uma licença administrativa que pode caducar ou ser revogada, com fundamento na prática de um conjunto de atos tidos por reveladores de inaptidão para a condução de veículos ou de desrespeito por normas de diligência e de proteção de terceiros inerentes no exercício de tal atividade, deve tomar-se como uma medida restritiva. Daí não decorre, como é bom de ver, que a mesma seja inconstitucional, por violação do direito fundamental em causa; antes implica que a sua conformidade constitucional dependa da observância dos limites vários que, em matéria de restrições a direitos, liberdades e garantias ou a direitos de «natureza análoga», decorrem do regime geral consagrado no artigo 18.º da Constituição, entre os quais se destacam as exigências de que as finalidades prosseguidas se traduzam na tutela de outros direitos ou interesses de nível constitucional e que os meios escolhidos para esse efeito respeitem a proibição do excesso, ou seja, não se mostrem inadequados, desnecessários ou desproporcionais.

Está claro que, como se lê no Acórdão n.º 260/2021 (5), não há nenhum «direito fundamental absoluto a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública, independentemente da verificação da aptidão da pessoa para a condução. Trata-se de uma atividade dependente da atribuição de licença ou carta de condução e está depende da verificação de requisitos positivos e negativos estabelecidos pelo legislador». Só que a intervenção do legislador neste domínio, ainda que situada num intervalo amplo de liberdade de conformação, desde logo porque a efetiva liberdade de circulação rodoviária depende de numerosas regras legais cuja função é coordenar os comportamentos dos condutores e garantir condições de segurança, deve respeitar − aí onde iniba, condicione, onere ou dificulte o exercício da atividade − os limites próprios das restrições de direitos fundamentais numa democracia constitucional, precisamente os definidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição. Por outras palavras, não há nenhum direto fundamental absoluto, mas há um direito prima facie, naturalmente sujeito a restrições, «a conduzir veículos a motor, designadamente na via pública».

Ora, em face da perigosidade da condução de veículos automóveis para uma pluralidade de direitos e interesses sob tutela constitucional − designadamente a vida, a integridade física e o património de terceiros −, é manifesta a existência de um fundamento geral para a adoção de medidas restritivas, consubstanciadas tanto na necessidade de atribuição inicial de uma licença administrativa – o título de condução –, dependente da aferição de um conjunto de requisitos de aptidão física e psíquica para a operação técnica dos veículos e para o conhecimento e observância das normas jurídicas que regulam a circulação automóvel, como ainda na verificação periódica da subsistência dessas condições ao longo do período de atividade do sujeito, traduzida na existência de causas de caducidade e na possibilidade de revogação do título. Daí que se diga que o «o título de condução nunca é definitivamente adquirido, antes está permanentemente sujeito a uma condição negativa referente ao comportamento rodoviário do seu titular» (Acórdão n.º 260/2021 (6)).

A questão que se coloca é a de saber se a específica norma sindicada nos presentes autos viola o princípio da proibição do excesso.

Constitui jurisprudência constitucional reiterada e pacífica que o princípio da proibição do excesso se analisa em três subprincípios: idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade (v., por todos, o Acórdãos n.ºs 187/2001). Na síntese do Acórdão n.º 123/2018:

«O subprincípio da idoneidade (ou da adequação) determina que o meio restritivo escolhido pelo legislador não pode ser inadequado ou inepto para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício frívolo de valor constitucional. O subprincípio da exigibilidade (ou da necessidade) determina que o meio escolhido pelo legislador não pode ser mais restritivo do que o indispensável para atingir a finalidade a que se destina; caso contrário, admitir-se-ia um sacrifício desnecessário de valor constitucional. Finalmente, o subprincípio da proporcionalidade (ou da justa medida) determina que os fins alcançados pela medida devem, tudo visto e ponderado, justificar o emprego do meio restritivo; o contrário seria admitir soluções legislativas que importem um sacrifício líquido de valor constitucional».

Decorre do regime consagrado no artigo 148.º do Código da Estrada que a medida de cassação do título de condução, prevista na alínea c) do seu n.º 4, resulta da verificação da perda de aptidão de determinado condutor para conduzir veículos motorizados na via pública. A inaptidão não diz respeito à destreza física para a operação dos veículos, mas à capacidade efetiva do condutor, aferida com base no histórico de condução, para observar diligentemente as regras que estabelecem os requisitos de segurança e os padrões de cuidado na circulação rodoviária, visando a proteção de direitos e interesses com manifesta e intensa relevância constitucional. Veja-se que, nos temos do artigo 148.º, n.º 1, alíneas a) e b), só as contraordenações graves e muito graves determinam a perda de pontos e, dentro estas, com maior ênfase as contraordenações que se traduzam em manobras e comportamentos particularmente perigosos para a segurança da circulação rodoviária. No mesmo sentido, só os crimes puníveis com pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, nos termos do artigo 69.º do Código Penal – isto é, aqueles crimes que são reveladores de violação grosseira das regras de cuidado na condução automóvel –, implicam a perda de pontos. Em todos os casos – e este aspeto é de suma importância – estamos perante infrações cuja punição depende da imputação subjetiva ao agente de comportamentos típicos, umas vezes a título de dolo e outras de negligência, sempre mediante prova dos factos determinantes para o efeito.

Afigura-se que um regime nos termos do qual a perda da totalidade dos pontos seja condição suficiente para a cassação do título de condução satisfaz o teste da idoneidade ou adequação. Com efeito, a perda dos pontos é decorrência de uma comprovada infração culposa de regras de cuidado no exercício da condução automóvel, a qual, pela sua gravidade e reiteração, permite antecipar um perigo acrescido para os bens jurídicos carecidos de tutela, o mesmo é dizer, inferir um estado de inaptidão do agente para a prática de condução diligente. É manifesto que a valoração desses comportamentos por via da subtração sucessiva de pontos de que cada condutor beneficia constitui uma forma perfeitamente adequada de determinar a inaptidão do seu agente para a condução de veículos motorizados. Ao mesmo tempo, a cassação do título de condução surge, pela sua própria natureza, como um instrumento legal adequado a obstar que um condutor cuja inaptidão foi determinada possa continuar a exercer a atividade, salvaguardando-se dessa forma os direitos e interesses em benefício dos quais o regime foi instituído.

O facto de a cassação do título depender somente da perda integral dos pontos, sem necessidade da ponderação de outros fatores que, pela sua natureza casuística e reserva de apreciação subjetiva, reduziriam a previsibilidade do efeito cassatório, constitui um poderoso fator de adequação da medida às finalidades de prevenção de comportamentos deletérios para a segurança rodoviária, na medida em que tal automaticidade de efeitos é uma garantia de certeza e objetividade. Ao poder calcular com precisão as consequências da sua conduta, ao saber que estas não dependem de valorações casuísticas e subjetivas, é razoável supor que aumenta significativamente a probabilidade de o agente corresponder aos incentivos que o regime se destina a produzir.

Também se afigura que a norma em apreciação satisfaz o teste da exigibilidade ou necessidade, dado que a cassação do título de condução por via apenas da perda dos pontos surge como uma medida de ultima ratio, num quadro em que o agente venha mostrando reiteradamente uma indisponibilidade para observar regras de condução diligente. Com efeito, deve notar-se que a cassação do título de condução apenas é decretada quando o condutor perca a totalidade dos pontos de que dispõe, o que exige a comprovação de vários comportamentos ilícitos e culposos num determinado lapso temporal; note-se ainda que nenhuma infração, nem mesmo de natureza criminal, implica, por si, a perda de todos os pontos. Por outro lado, decorre das alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada que, atingidos diversos patamares de subtração de pontos, o condutor terá de se sujeitar a medidas de formação e de avaliação das suas competências, por forma a obstar à consolidação de um quadro de inaptidão. Assim, a cassação do título de condução só surge em última linha, quando a gravidade e reiteração dos comportamentos lesivos da segurança rodoviária ultrapassa um certo limiar.

Acresce não se poder exigir ao legislador que consagrasse a possibilidade de, para além da ponderação da natureza e gravidade das infrações que originaram a perda de pontos e da sua idoneidade para relevar a inaptidão do seu agente para a prática da condução, tal como refletida na quantificação de pontos que cada uma subtrai ao acervo de cada condutor, introduzir um segundo nível de ponderação de fatores casuísticos, tal como indicados pelo recorrente – fatores esses que, de certo modo, permitissem fazer a contraprova da indiciação de inaptidão contida nas condenações geradoras da perda de pontos.

Como em praticamente todas as decisões que implicam a averiguação de factos e ponderação de variáveis, diversos graus de intensidade do escrutínio são possíveis. Os fatores relevantes para determinada decisão podem ser aferidos com graus crescentes de minúcia e de rigor; ora, se uma avaliação fina propicia, em princípio, uma decisão calibrada em função das características do caso concreto, também arrasta consigo inconvenientes de peso, como o aumento da morosidade, a complexidade dos procedimentos, a incerteza quanto aos efeitos do sistema, a perda de previsibilidade e uniformidade e a probabilidade mais ou menos significativa de erro de decisão. Ao adotar o sistema da «carta por pontos», tomando como variáveis decisivas a natureza e gravidade das infrações cometidas num certo período de tempo e a realização de ações geradoras de uma maior consciencialização para a necessidade de observância das regras de segurança rodoviária, o legislador atribuiu importância compreensível a considerações de simplicidade, objetividade e efetividade, que não seriam manifestamente servidas por um sistema de avaliação casuística. A medida não se mostra, pois, desnecessária ou inexigível.

(…)

O que gera a automaticidade que o recorrente contesta não é tanto a norma do artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada – que apenas determina o limiar a partir do qual opera a medida de cassação –, mas sim a graduação de pontos em função da categoria da infração. De facto, ao alegar que o regime não permite valorar em concreto elementos associados às necessidades de prevenção especial e ao grau de culpa do agente – fatores que apenas relevam como critérios de fixação de sanções e não como instrumentos de aferição da aptidão para conduzir veículos –, o recorrente opõe-se menos ao artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, do que aos n.ºs 1 a 3 – não integrados no objeto do recurso −, pois são estes que estabelecem a relação entre pontos a subtrair e categorias de infrações.

Finalmente, resta averiguar se a norma em apreciação viola o subprincípio da justa medida ou da proporcionalidade em sentido estrito.

A resposta é decididamente negativa.

Como se viu, a automaticidade da cassação do título de condução como consequência da totalidade da perda dos pontos atribuídos ao condutor justifica-se, por um lado, pela necessidade de acautelar que a condução de veículos na via pública é exercida por quem revele a idoneidade para o fazer e, por outro, pela simplicidade, objetividade e efetividade do sistema da «carta por pontos», que permite um grau elevado de realização das finalidades a que se destina. Acresce que a restrição sob escrutínio não é a medida de cassação do título de condução em si mesma considerada, mas somente na exclusão de outros fatores de ponderação que relevem de cada caso concreto. Ora, está longe de ser evidente que a carga ablativa do sistema da carta por pontos – que se traduz, no essencial, na probabilidade de ocorrência de «falsos positivos» − seja significativamente superior ao de um sistema de avaliação casuística e que, ainda que o fosse, tal não encontre justificação na sua eficácia ostensivamente acrescida.

Importa sublinhar que a cassação do título de condução, nas condições previstas na alínea c) do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada, incorpora as principais variáveis de aferição da aptidão ou inaptidão do condutor para o exercício da atividade, como a gravidade e a frequência dos ilícitos praticados, o lapso do tempo em que se dê a respetiva ocorrência e o registo de ações de natureza corretiva. Trata-se, como é bom de ver, de um sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa. Atendendo às suas múltiplas vantagens, o sistema parece encerrar um equilíbrio razoável entre o sacrifício imposto ao condutor e os direitos e interesses que se destina a salvaguardar, nomeadamente na dimensão específica da sua operação que temos vindo a apreciar, razão pela qual a norma sindicada consubstancia uma medida justificada de restrição da liberdade geral de ação compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, não violando as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 26.º e do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.”

Do exposto flui com absoluta clareza que não estamos perante uma pena que envolva como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos (art.º 30.º, n.º 4 da CRP (7)), uma vez que a cassação se integra num sistema gradual e matizado, que confere ao visado uma garantia de correspondência tendencial entre os factos valorados por via dos pontos a subtrair ou a adicionar e as consequências a eles associados, sendo certo que aqueles factos são adquiridos em procedimentos nos quais o arguido dispõe de meios adequados de defesa, considerando-se que a condenação em pena acessória de proibição de conduzir determina, por si só, a subtracção de seis pontos ao condutor, sendo que a cassação do título de condução constitui consequência necessária (automática) da perda de todos os pontos detidos por dado condutor, constituindo esta perda condição suficiente para aquela cassação (e para a proibição de obter novo título de condução por 2 anos) e não sendo o efeito de qualquer das penas (principais ou acessórias) aplicadas nos procedimentos parcelares, sendo certo que, nos termos do n.º 13 da mesma disposição legal, a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações, ou seja, assegurando todos os direitos de audiência e defesa aludidos na mencionada norma constitucional. Também inexiste qualquer violação, pelos motivos explicitados minuciosamente no Acórdão reproduzido supra, dos princípios da necessidade / proibição do excesso, tendo o legislador procurado uma ponderação equilibrada entre os direitos em confronto, com o sacrifício considerado adequado do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Improcede, pois, também esta questão.

III - Da alegada violação do principio ne bis in idem.

Invoca o arguido que foi violado o princípio constitucional de proibição de julgamento do mesmo crime (facto) mais do que uma vez, atento o comando constitucional constante do art.º 29.º, n.º 5 da CRP.

Desde logo, importa voltar a salientar que a decisão de cassação da licença de condução ocorreu como efeito automático da perda total de pontos, não traduzindo uma nova condenação pela prática dos mesmos factos (e crimes atinentes) que determinaram a condenação na pena acessória da proibição de conduzir veículos.

A este propósito, importa aqui lembrar o teor do acima citado Acórdão n.º 154/2022 do TC, em termos que reportamos esclarecedores e inequívocos, que reproduzimos:

“Apreciemos agora a segunda questão de constitucionalidade colocada pelo recorrente, que consiste em saber se a determinação da cassação do título de condução constitui uma segunda condenação do respetivo titular, violando a proibição do non bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.

A argumentação do recorrente supõe que a determinação da cassação do título de condução corresponde a uma «dupla condenação», dado que o visado já teria sido condenado anteriormente em penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor pelos mesmos factos que deram origem à perda de pontos. No seu entender, o princípio do non bis in idem tem por finalidade assegurar a paz jurídica do visado e limitar o poder punitivo do Estado, impedindo que o mesmo facto − ou o mesmo «pedaço de vida» − seja valorado duas vezes, em processos distintos, com vista a uma dupla sanção.

A proibição de duplo julgamento ou valoração de factos com relevância penal não se confunde com a proibição de valorar multiplamente factos em sentido naturalístico, deles retirando uma pluralidade de consequências jurídicas. Basta, para o demonstrar, considerar a responsabilidade civil conexa com a criminal ou, mesmo no plano puramente penal, a admissibilidade do concurso ideal de crimes. O que o n.º 5 do artigo 25.º proíbe, como se salientou no recente Acórdão n.º 298/2021, é tanto a aplicação ao mesmo agente de uma dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes, como a respetiva sujeição a um segundo julgamento por factos penalmente relevantes relativamente aos quais haja sido já definitivamente julgado.

Não é esse o alcance da norma sob apreciação.

Em primeiro lugar, importa salientar que, ainda que no caso vertente os factos que conduziram à perda dos pontos do aqui recorrente e, por isso, à cassação da sua carta de condução, tenham sido condenações pela prática de crimes, essa é uma circunstância puramente acidental e que não se projecta na norma em apreciação.

Em segundo lugar, os factos relevantes para a decisão de cassação, segundo o critério previsto no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, e que são objeto de apreciação no procedimento previsto no seu n.º 10, são apenas os factos geradores da perda dos pontos, isto é, a definitividade de condenações por determinadas categorias de ilícitos contraordenacionais ou criminais, com abstração dos factos que estiveram na base dessas condenações. Tais factos – os factos que se traduzem no ilícito criminal ou contraordenacional gerador da perda dos pontos – não são reapreciados nem julgados no processo de cassação, que se limita a extrair consequências de âmbito não penal dos diversos atos de condenação.

Em terceiro lugar, a cassação do título de condução não se traduz numa dupla sanção pelos mesmos factos penalmente relevantes. Com efeito, ao contrário do que sucede, por exemplo, com a medida de segurança de cassação do título e de interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, prevista no artigo 101.º do Código Penal e aplicável a delinquentes imputáveis, cujo decretamento constitui uma consequência jurídica de um crime, determinada no âmbito do processo penal, a cassação do título de condução por efeito da perda dos pontos, prevista no artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, constitui uma medida administrativa de revogação de uma licença necessária à prática de uma atividade e que constitui o efeito, não da prática de uma infração criminal e do exercício estatal do ius puniendi, mas da verificação de que o seu beneficiário deixou de reunir as condições de aptidão que estiveram na base da sua concessão.

É certo que a condenação pela prática de crimes punidos com a pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal constitui um facto gerador de perda de pontos. Contudo, essa conexão é meramente reflexa, não só porque nenhuma condenação criminal, por si só, desencadeia a cassação prevista no artigo 148.º do Código da Estrada (…), como porque os critérios relevantes para essa cassação não se extraem dos factos que tipificam ilícitos criminais, mas sim da reiteração das condenações criminais ou contraordenacionais e da forma como elas revelam a incapacidade do condutor para observar as normas legais que garantem a segurança rodoviária.

Em suma, a norma sindicada não implica, nem que o condutor seja julgado novamente pelos mesmo factos, nem que por eles seja duplamente punido, pelo que não ocorre violação alguma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.”

Do exposto flui, com a máxima clareza, que a cassação não decorre de qualquer dupla valoração dos factos já considerados nas condenações anteriores, baseando-se em diferentes pressupostos, pelo que inexiste qualquer violação do dito princípio ou das normas constitucionais de onde se deduz. Este é um entendimento, senão uniforme pelo menos largamente maioritário na jurisprudência, como se alcança dos Acórdãos (8) do TRC de 02.02.2022 proferido no processo n.º 209/21.3T9MGR.C1 (Relatora Isabel Valongo), do TRP de 12.05.2021 proferido no processo n.º 3577/19.3T8VFR.P1 (Relatora Paula Guerreiro), do TRL de 16.03.2021 proferido no processo n.º 3523/19.4T9AMD.L1-5 (Relator Paulo Barreto) e de 20.02.2024, proferido no processo n.º 1143/23.8T8LRS.L2-5 (Relatora Alda Casimiro), bem como deste TRE de 23.03.2021 proferido no processo n.º 38/20.1T8ODM.E1 (Relator Carlos Berguete).

É, assim, insubsistente a pretensão do recorrente de que houve violação do princípio ne bis in idem, improcedendo a questão.

IV – O perdão da Lei 38-A/2023.

Segundo o recorrente “deverá ser aplicado o artigo 5.º da Lei 38-A/2023, vendo-se perdoada a cassação em cumprimento do princípio da igualdade”.

Vejamos.

Segundo a norma invocada (epigrafada “perdão de sanções acessórias relativas a contraordenações”) são perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 (euro).

Porém, como justamente sublinha o MP na resposta ao recurso e acima detidamente se expôs, a cassação do título de condução do recorrente não resulta de nenhuma sanção acessória aplicada no âmbito de um processo de contraordenação, nem sequer de nenhuma pena acessória de proibição de conduzir.

Como tal, trata-se de invocação claramente infundamentada que, obviamente, terá de improceder, o que se decide.

*

O recurso é, pois, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC. (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Relatora Maria de Fátima Mata-Mouros, disponível no seu sítio institucional.

2 Sentença proferida no processo criminal 260/20.0GBCTX do Juízo Local Criminal de Alenquer do Tribunal Judicial de Lisboa Norte.

3 Ambos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os ulteriores sem indicação diversa.

4 Acórdão n.º 154/2022 de 17.02.2022 (Relator Gonçalo Almeida Ribeiro), disponível no respetivo sítio institucional.

5 Seguramente se terá querido fazer referência ao Acórdão n.º 260/2020, pois o Acórdão 260/2021 nada tem a ver com a problemática em causa.

6 Idem.

7 Nem existe qualquer violação da CEDH.

8 Para citar só os mais recentes.