1 - O loteamento é uma operação de transformação fundiária sempre para efeitos de edificação urbana. O loteamento pressupõe uma reconfiguração predial que dá origem à formação de unidades prediais autónomas (lotes) as quais se destinam imediata ou subsequentemente a edificação urbana, isto é, edifícios destinados a usos urbanos (habitacionais, comerciais ou industriais). E o seu estatuto urbanístico (edificabilidade) decorre de uma licença de loteamento, que lhe permite fraccionar a sua propriedade e da qual resulta uma capacidade edificativa concretamente definida.
2 - Resulta da conjugação do disposto no artigo 4.º, n.os 1 e 2, alínea a), do RJUE que a realização de operações urbanísticas quando estas se traduzam em operações de loteamento estão sujeitas a controlo prévio na modalidade de licença administrativa. E de acordo com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, do RJUE as operações urbanísticas objeto de licenciamento são tituladas por alvará, cuja emissão é condição de eficácia da licença.
3 - Decorre do disposto no artigo 49.º do RJUE que em caso de constituição de lotes, a inexistência de alvará traduz um incumprimento de disposições de natureza imperativa, o que gera, nos termos do disposto no artigo 294.º do Código Civil, a nulidade substantiva do negócio.
(Sumário da Relatora)
Os factos provados, para além da aludida realidade registral, reportam-se à outorga de escritura (ponto 7), indicando-se os atos de vontade e declarações dos outorgantes da escritura: no ponto 8, o que «declararam»; no ponto 9, o que «adjudicaram»; no ponto 10 o que «declararam doar»; no ponto 11, a declaração de aceitação da doação; no ponto 12, o que «fizeram constar».
Em síntese, à data da escritura pública o prédio acima referido compreendia, de acordo com o cadastro predial, seis parcelas apenas uma urbana e as outras cinco rústicas tendo como fim cultura e foi apenas na data da outorga da escritura pública que, por declaração de vontade dos réus, se intentou o fraccionamento do prédio único em três:
1) Um descrito pelos outorgantes como relativo à parcela urbana de 480 m2 que constava do cadastro predial e, ainda, por toda a parte rústica compreendendo terra de cultura arvense, vinha, oliveiras e figueiras, com exceção de 300 m2 a seguir referidos no ponto 2 (i.e., um prédio com a área de 5620 m2, resultantes da subtração de 300 m2 à área de 5920 m2);
2) Um que se reportava a parcela que anteriormente constava no registo, de acordo com o cadastro realizado em 1988, no âmbito das parcelas rústicas do prédio único rústico e que passam a designar como novel, no plano jurídico, prédio urbano com área de 300 m2;
3) Uma parcela com a área de 1.400 m2, a destacar do lado nascente da parte rústica constante do ponto 1.
O momento relevante em que operou o ato de fraccionamento /divisão do prédio é o da outorga da escritura pública sendo pois em face das leis em vigor à data de 24.08.2016 que cumpre aferir se o fraccionamento em causa derrogou normas legais imperativas.
Naquela data estava em vigor o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo D/L n.º 555/99, de 16.02 (RJUE). Sublinhe-se, ainda, que a outra data relevante é o ano de 1988 que fixou a realidade registral (e aceite pelos proprietários) sobre o prédio único, numa altura em que estava em vigor o Decreto-Lei 400/1984, de 31 de dezembro, que regulava o licenciamento de lotes, incluindo, por via de destaque de prédios existentes.
O artigo 1376.º, n.º 1, do Código Civil proíbe o fraccionamento de prédios rústicos «em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima». Superfície mínima que no caso do prédio em análise é, nos termos das disposições conjugadas do artigo 3.º da Portaria 219/2016, de 9 de agosto e da tabela constante do anexo II desse ato normativo, de 8 hectares (terreno de sequeiro inserido na zona Centro / Médio Tejo).
No caso concreto, a realidade jurídica existente à data da escritura que operou o fraccionamento revela que este último reportou-se à divisão do prédio em 3 parcelas, em que as duas destacadas (de 300 m2 e de 1.400 m2, respetivamente) do prédio originário não podiam ser fraccionadas sob pena de violação do n.º 1 do artigo 1376.º, já que não são subsumíveis a nenhuma das alíneas do artigo 1377.º, n.º 1, do Código Civil[1].
Neste domínio existe um regime imperativo cujo desrespeito é sancionado pelo artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil com nulidade, sendo importante referir que o fim distinto da cultura não pode ficar na disposição dos interessados no fraccionamento, ou nas suas declarações de ciência insuscetíveis de controlo no quadro do ato notarial.
Pelo que o ato (de fraccionamento) é nulo por violação das normas conjugadas do n.º 1 do artigo 1376.º e do n.º 1 do artigo 1379.º do Código Civil, o que, por si só, impunha a procedência do recurso e a revogação da sentença recorrida.
Acresce que o fraccionamento intentado também compreendeu a violação de normas do acima referido RJUE.
A divisibilidade de bens consiste na possibilidade de fraccionamento da coisa sem que as partes daí advenientes percam a essência da coisa dividida, diminuam o seu valor ou vejam alterada a sua função económico-social (artigo 209.º do Código Civil). Mas a divisibilidade de bens, no caso de bens imóveis, é aferida não apenas em virtude do critério contido no artigo 209.º do Código Civil mas também de normas imperativas, previstas quer em normas de direito civil quer em normas de natureza administrativa. Como vimos, o recorrente alega que o fraccionamento ocorrido constitui uma “autêntica operação de loteamento” a qual não foi previamente aprovada pela Câmara Municipal competente. Aduz que «a operação de loteamento, incluindo a sua forma mais simples de destaque, exigia e exige a verificação por parte da Câmara Municipal, com emissão de parecer prévio favorável, cuja falta determina a nulidade da operação realizada, neste caso, a permita e subsequentes registos, nos termos dos artigos 280.º e 294.º do Código Civil conjugados com as citadas normas do RJUE».
As operações de loteamento enquadram-se no campo mais vasto do ordenamento do território, donde as disposições legais que àquelas dizem respeito revestem carácter imperativo, vinculando o Estado e demais entidades públicas bem como os particulares na medida em que lhes subjaz a proteção de interesses de ordem pública consagrados na Constituição [artigos 9.º, alínea e), 65.º, n.º 4, 66.º/2, alíneas b) e f)][2]. Diz-nos Fernanda Costa e Silva[3] que «não é tanto a divisão fundiária que justifica o regime legal que sempre foi deferido às operações de loteamento, mas sobretudo a finalidade dessa mesma divisão, isto é, os seus efeitos diretos ou colaterais: de darem origem a uma nova “frente de edificações”». Com o regime legal do loteamento urbano pretende-se evitar que os novos núcleos urbanos contrariem um racional desenvolvimento urbano e que se efetuem operações de loteamento sem que previamente estejam asseguradas as imprescindíveis estruturas urbanísticas.
Na definição que consta do RJUE o loteamento consiste numa ação que tem por objeto, ou por efeito, a constituição de um ou mais lotes destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulta da divisão de um ou vários prédios ou do ser reparcelamento [artigo 2.º, alínea i)].
O loteamento é, portanto, uma operação de transformação fundiária sempre para efeitos de edificação urbana. Dito de outro modo, o loteamento pressupõe uma reconfiguração predial que dá origem à formação de unidades prediais autónomas (lotes) as quais se destinam imediata ou subsequentemente a edificação urbana, isto é, edifícios destinados a usos urbanos (habitacionais, comerciais ou industriais). E o seu estatuto urbanístico (edificabilidade) decorre de uma licença de loteamento, que lhe permite fraccionar a sua propriedade e da qual resulta uma capacidade edificativa concretamente definida.
Os elementos que compõem a noção de loteamento são os seguintes[4]:
a) Deve tratar-se de uma conduta voluntária que consista ou na divisão de prédios ou no seu emparcelamento (unificação de vários prédios num só lote) ou reparcelamento (transformação fundiária de vários prédios em vários lotes, quer o número de lotes seja superior ao número de prédios pré-existentes, quer seja inferior, excluindo a situação de emparcelamento). A divisão pode ser material ou jurídica, ou seja, resultante de venda, doação, partilha de herança, etc. e pode consistir num ato oneroso ou gratuito. A divisão é sempre quantitativa e não meramente qualitativa.
b) Da divisão deve resultar lote(s) de qualquer área porquanto o licenciamento é exigível independentemente da área do(s) lote(s).
c) É necessário que o lote (no caso de emparcelamento) ou pelo menos um dos lotes constituídos (nos casos de emparcelamento, divisão ou reparcelamento) se destinem imediata (loteamento ação) ou sucessivamente (loteamento resultado) a construção urbana.
d) O loteamento só pode realizar-se nas áreas situadas dentro do perímetro urbano e em terrenos já urbanizados ou cuja urbanização se encontre programada em plano municipal de ordenamento do território (artigo 41.º do RJUE).
À data de 24 de agosto de 2016 (data da outorga da escritura pública, através da qual os réus formalizaram o fraccionamento do prédio) dispunha o artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do RJUE o seguinte:
«1 - A realização de operações urbanísticas depende de licença, comunicação prévia com prazo, adiante designada abreviadamente por comunicação prévia ou comunicação, ou autorização de utilização, nos termos e com as exceções constantes da presente secção. 2 - Estão sujeitas a licença administrativa: a) As operações de loteamento».
Por sua vez o artigo 5.º, n.º 1, do mesmo diploma normativo dispunha que a concessão da licença prevista no n.º 2 do artigo anterior é da competência da câmara municipal, com faculdade de delegação no presidente e de subdelegação deste nos vereadores.
Resulta da conjugação do disposto no artigo 4.º, n.os 1 e 2, alínea a), do RJUE que a realização de operações urbanísticas quando estas se traduzam em operações de loteamento estão sujeitas a controlo prévio na modalidade de licença administrativa. E de acordo com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, do RJUE as operações urbanísticas objeto de licenciamento são tituladas por alvará, cuja emissão é condição de eficácia da licença.
O artigo 49.º do RJUE dispunha, sob a epígrafe Negócios jurídicos, o seguinte:
«1 - Nos títulos de arrematação ou outros documentos judiciais, bem como nos instrumentos relativos a atos ou negócios jurídicos de que resulte, direta ou indiretamente, a constituição de lotes nos termos da alínea i) do artigo 2.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 6.º e 7.º, ou a transmissão de lotes legalmente constituídos, devem constar o número do alvará ou da comunicação prévia, a data de emissão do título, a data de caducidade e a certidão do registo predial.
2 - Não podem ser realizados atos de primeira transmissão de imóveis construídos nos lotes ou de fracções a entidade que celebre a escritura pública ou autentique o documento particular, certidão emitida pela câmara municipal, comprovativa da receção provisória das obras de urbanização ou certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa de que a caução a que se refere o artigo 54.º é suficiente para garantir a boa execução das obras de urbanização.
3 - Caso as obras de urbanização sejam realizadas nos termos dos artigos 84.º e 85.º, os atos referidos no número anterior podem ser efetuados mediante a exibição de certidão, emitida pela câmara municipal, comprovativa da conclusão de tais obras, devidamente executadas em conformidade com os projetos aprovados.
4 - A exibição das certidões referidas nos n.ºs 2 e 3 é dispensada sempre que o alvará de loteamento tenha sido emitido ao abrigo dos Decretos-Lei n.ºs 289/73, de 6 de junho, e 400/84, de 31 de dezembro».
Decorre do disposto no artigo 49.º do RJUE que em caso de constituição de lotes, a inexistência de alvará traduz um incumprimento de disposições de natureza imperativa, o que gera, nos termos do disposto no artigo 294.º do Código Civil, a nulidade substantiva do negócio.
No caso em análise, o prédio pré-existente – prédio rústico inscrito na matriz cadastral sob o artigo (…) – foi fracionado em três parcelas distintas, sendo que quanto às parcelas que foram autonomizadas do prédio pré-existente, uma delas segundo o estrito ato de vontade dos outorgantes, sem qualquer licenciamento prévio, reportava-se a parcela rústica de prédio rústico que passaria destinar-se a fins habitacionais e a outra parcela destacada destinar-se-ia ao aumento do logradouro desse novo prédio criado pelo negócio jurídico dos interessados que o destacaram do prédio pré-existente.
Donde aquele fraccionamento do prédio pré-existente em três parcelas traduz uma operação de loteamento, a qual exigia uma licença administrativa, titulada por alvará, que, no caso, não existe (facto provado n.º 15), a qual depende de atos administrativos e não de estritos atos de vontade dos interessados, tendo as autoridades com competências urbanísticas de avaliar no exercício dos poderes públicos da respetiva legalidade [existindo vários motivos legais que podem impedir em absoluto o licenciamento (v.g. artigo 41.º do RJUE]. Assim sendo, o apelante tem razão ao sustentar que o fraccionamento de que foi objeto o prédio inscrito na matriz predial rústica sob o n.º (…) da Secção Cadastral … da extinta freguesia de (…), concelho de Tomar, constituindo uma operação de loteamento que não foi previamente licenciada pela Câmara Municipal competente é ilegal porque violou normas imperativas, gerando a nulidade dos negócios jurídicos de partilha e de doação formalizados na escritura pública outorgada pelos réus em 24.08.2016, em conformidade com o disposto no artigo 294.º do Código Civil.
A partilha compreende uma conexão dos acordos dos interessados sobre todas as verbas, constituindo as verbas derivadas do fraccionamento elemento conformador do acordo sobre as restantes verbas que dependeu daquele, ficando consequentemente atingido a validade da partilha na sua totalidade.
A nulidade dos dois negócios jurídicos (partilha e doação) dependentes do fraccionamento nulo implica também o cancelamento dos atos registrais relativos aos mesmos, atento o disposto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil.
Sumário: (…)
III. DECISÃO
Em face do exposto, julga-se a ação procedente, por provada, revogando-se a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância e consequentemente:
1 - Declara-se nulo o negócio jurídico de partilha formalizado através da escritura pública outorgada em 24 de agosto de 2016, no Cartório Notarial sito na Rua (…), n.ºs 1, 1ª e 1B, em Tomar.
2 - Declara-se nulo o negócio jurídico de doação formalizado através da escritura pública outorgada em 24 de agosto de 2016, no Cartório Notarial sito na Rua (…), n.ºs 1, 1ª e 1B, em Tomar, através do qual os primeiros e segundos outorgantes declararam doar à quarta outorgante uma parcela com a área de 1400 m2 a confrontar do norte com (…), do sul com (…) e (…), do nascente com (…) e do poente com serventia a destacar do lado nascente da parte rústica do prédio misto através identificado sob a verba n.º 1 e ora adquirido para aumento do logradouro do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), acima descrito sob a verba n.º 3, e pela quarta ré foi dito aceitar a doação nos termos exarados.
3 – Ordena-se o cancelamento das inscrições registrais relativas aos negócios jurídicos nulos nos pontos anteriores.
As custas na presente instância são da responsabilidade dos apelados, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, sendo que nenhum pagamento é devido a esse título porque os apelados procederam ao pagamento da taxa de justiça e não há lugar ao pagamento de custas de parte.
Notifique.
Évora, 7 de novembro de 2024
Cristina Dá Mesquita
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Branco Coelho
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[1] Nomeadamente, a alínea a) do n.º 1 do artigo 1377.º do Código Civil onde se prescreve que «a proibição do fraccionamento não é aplicável [a] terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura».
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.10.2019, processo n.º 317/15.0T8TVD.L1.S2, consultável em www.dgsi.pt.
[3] «Loteamentos urbanos e a dinâmica de normas de planeamento; revisitando o tema a propósito do Parecer da Procuradoria Geral da República n.º 33/2016», in e-Book publicado pelo Centros de Estudos Judiciários Direito do Urbanismo, (Disponível na internet: https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=S0nuXH-nyY8%3d&portalid=30), 1.ª ed., setembro de 2020, p. 72.
[4] Luís Filipe de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Almedina, 2017, págs. 41-42.