CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
SEGURADO
DADOS PESSOAIS
CONSENTIMENTO
Sumário

I – A questão da possibilidade ou não de valoração como meio de prova de documento contendo dados de saúde de determinada pessoa é de conhecimento oficioso.
II – A obtenção desse documento por parte da Seguradora, a análise que esta fez para, com base nela, recusar o pagamento do capital segurado, declinando “o sinistro”, e a junção do mesmo aos autos constitui “tratamento de dados”, para efeitos da aplicação do regime geral de protecção de dados.
III – Tendo sido prestado consentimento pela titular dos dados de forma autónoma das cláusulas contratuais, estando a declaração destacada do resto do contrato, existindo, aliás, em dois locais diferentes, no final da proposta contratual e no documento contendo o questionário de saúde, tendo sido prestada a informação necessária à percepção do que estava em causa, com as finalidades do tratamento dos dados assinalada, e mostrando-se a declaração de consentimento prestada de forma inequívoca, explícita, livre e específica, a junção do documento contendo dados de saúde é lícita, podendo este ser atendido pelo tribunal no julgamento da matéria de facto.
IV – Uma simples nota de alta do serviço de cuidados paliativos, onde consta uma informação vaga e genérica sobre “antecedentes pessoais”, sem documentação clínica anexa, não é suficiente para dar como provado que a segurada padecia de determinadas patologias e que não comunicou essas informações à seguradora.
V – No cumprimento do dever de cuidado quanto aos deveres de informação a cargo do tomador do seguro, este deve comportar-se com a honestidade própria do cidadão comum, que não tem de acentuar quanto lhe seja desfavorável.
VI - Existindo questionário de saúde e consentimento para acesso e tratamento de dados de saúde, maior será a temperança com que deve ser analisado este dever do tomador do seguro, sendo de ter em conta que o mesmo considere que os seus eventuais “esquecimentos” podem ser colmatados pelo acesso que confere aos seus dados de saúde, o que tem, obviamente, implicações na análise da sua eventual negligência ou intencionalidade na omissão de informação.

Texto Integral

Processo nº 1560/22.0T8OVR.P1
(Comarca de Aveiro – Juízo Local Cível de Ovar)


Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Ana Vieira
2º Adjunto: João Maria Venade

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



I AA intentou, no Juízo Local Cível de Ovar do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, acção declarativa, com processo comum, contra “A... Seguros Gerais, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 14.000,00 (€ 10.000,00 de capital do seguro de vida e € 4.000,00 de indemnização por danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou para tal que é o único herdeiro de BB, sua tia, que faleceu em Agosto de 2021, a qual celebrou, em 2019, um contrato de seguro do ramo vida com a R., cujo capital segurado era de € 10.000,00, sendo que a R., contactada pelo A. para o efeito, se recusa a pagar-lhe este valor, e que o litígio com a R. lhe vem causando incómodos.
A R. contestou, invocando a excepção da sua ilegitimidade para a acção, por não ter sido com ela que foi contratado o seguro, devendo tê-lo sido com a “A... Seguros de Vida, S.A.”, e impugnando por desconhecimento os factos alegados pelo A..
Perante o alegado pela R., e invocando dúvida fundamentada sobre qual das empresas celebrou o contrato de seguro, o A. requereu a intervenção principal provocada da seguradora “A... Seguros de Vida, S.A.”, o que foi deferido, sem oposição.
Citada a Interveniente, a mesma contestou, confirmando ter celebrado o contrato de seguro em causa nos autos e invocando a anulabilidade do mesmo, pelo facto de a tomadora do seguro ter omitido no questionário sobre a sua situação de saúde determinadas patologias que já sofria anteriormente à celebração do contrato, e de que tinha conhecimento, sendo que, se tal lhe tivesse sido comunicado, nunca teria celebrado o contrato ou, pelo menos, sujeitá-lo-ia a um agravamento do prémio.
O A. respondeu, alegando que a segurada não ocultou qualquer informação e que nenhuma das patologias referidas pela interveniente está relacionada com a doença de que aquela acabou por falecer.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, no qual se decidiu absolver a R. do pedido, por manifestamente improcedente quanto a ela, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento.
Após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar improcedente a acção e, em consequência, absolver a Interveniente do pedido.
De tal sentença veio o A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I- A Ré alicerça a sua prova no histórico médico da Segurada emitido pelo CH ..., EPE;
II- Sucede que o “histórico médico” junto pela seguradora, em conformidade com o que resulta dos autos, referente à segurada, deve ser enquadrado no âmbito de aplicação do Regulamento (UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril - REGULAMENTO GERAL SOBRE A PROTEÇÃO DE DADOS (RGPD) DA UNIÃO EUROPEIA (UE); e da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS, exigindo-se, além do mais, autorização da CNDP.
III- O âmbito de aplicação da Lei da Protecção de Dados Pessoais, Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (artºs 1º e 2º) e a sua utilização pela Ré, enquanto tratamento de dados pessoais, só aí encontra respaldo se for demonstrado, que obteve autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, com a natureza, atribuições e competências definidas nos artºs 51º a 59º Regulamento(UE) n.º 679/2016, de 27 de Abril REGULAMENTO GERAL SOBRE A PROTEÇÃO DE DADOS (RGPD) DA UNIÃO EUROPEIA (UE);, designadamente tanto para a sua recolha como para essa utilização (cfr artºs 5º, 6º e 9 LPD).
IV- Com efeito, enquanto autoridade nacional, compete à CNPD, entre o mais, autorizar ou registar, consoante os casos, os tratamentos de dados pessoais e, excepcionalmente, a utilização de dados pessoais para finalidades não determinantes da recolha, com respeito pelos requisitos definidos no artigo 5º da LPD (artº 23º, nº 1, alªs b) e c) da LPD), sendo que ainda carece do seu controle prévio o tratamento dos dados pessoais a que se refere o nº 2 do artº 7º da LPD (artº 28º, nº 1, alª a) da LPD).
V- Quer isto dizer, então, que a autorização sempre será uma exigência legal e, de outro modo, o objecto desses tratamentos e a sua utilização em processo judicial não consiste num meio de prova licito (cfr Deliberações 51/2001 e 72/2006 dessa Comissão quanto ao acesso a dados pessoais de saúde de titulares falecidos, seja por companhias de seguros do ramo vida, seja por familiares para os apresentarem naquelas companhias e receberem as compensações por morte dos segurados)
VI- Certo é também que o consentimento dos titulares para o tratamento dos seus dados pessoais é qualificado porque deve ser livre, específico e informado, conforme dispõe o artº 3º, alª h) da LPD.
VII- Por tudo isto, e porque a Recorrida não demonstrou tal autorização para tratamentos de dados de saúde da segurada, sob pena da prova decorrente da junção do documento denominado “histórico medico” não pode ser considerada licita.
VIII- Nesta medida o documento não poderá ser tido em conta, para a prova dos factos que se discutem nos presentes autos.
Mais,
IX- No âmbito do contrato de adesão que é o contrato de Seguro de Vida, a Ré juntou um conjunto de cláusulas contratuais gerais, de entre as quais a “Autorização para acesso a dados de saúde”;
X- Ora, como se pode ver, essas cláusulas não foram explicadas e ou comunicadas à segurada, razão pela qual não se encontram tampouco assinadas ou rubricadas pela contratante,
XI- Assim, e sem mais, essas cláusulas deve considerar-se por inexistentes, considerando-se que em momento algum a contratante, aqui Segurada, deu autorização para aceder aos seus dados de saúde;
XII- Razão pela qual a Ré/ Recorrida não tinha autorização para aceder aos dados pessoais da Segurada, acedendo aos seus relatórios/histórico medico, e razão pela qual é forçoso concluir que todos esses documentos que obteve sem autorização não poderão ser tidos em conta pelo tribunal para criar o seu convencimento.
XIII- Sob pena de violação do direito de reserva da vida privada, constitucionalmente protegido, art. 26º CRP, o que desde já se alega.
Destarte e derradeiramente,
XIV- AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma única de processo comum, contra A... SEGUROS GERAIS, S.A. pedindo a condenação da ré no pagamento das quantias de €10.000,00, pelo valor do capital do seguro de vida e de €4.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos, desde a citação, até efectivo e integral pagamento. Alegou, para tanto, e em síntese, que é único e universal herdeiro da falecida/tomadora do seguro (de vida) BB, sendo o capital segurado no montante de €10.000,00, tendo a ré declinado a sua responsabilidade.
XV- A Ré A... defendeu-se pela nulidade do contrato de seguro, alegando essencialmente omissão do dever de declarações iniciais na proposta do seguro.
XVI- No que para o presente caso importa, a Segurada, aquando da contratação de um contrato de seguro, preencheu um questionário onde, entre outras informações de carácter pessoal, indicou que “não é fumadora”, “não consome bebidas alcoólicas diariamente”, “não toma medicação regularmente”, “não tem valores alterados de tensão arterial” – tendo-os indicado: “7,1-13,5; 5,1-8,5”;
XVII- Deu a Meritíssima juiz a quo como provado que a Segurada mentiu na declaração pois “Em 2017, BB foi-lhe diagnosticada hipertensão arterial controlada com medicação.”
XVIII- Ora, não podemos concordar, nem existe prova nestes autos que o sustentem
XIX- O único meio de prova que pode auxiliar nesta análise é o relatório médico da Segurada.
XX- Questionamos, onde, decorrente do relatório médico junto aos autos se faz menção que a segurada tomava medicação respeitante a hipertensão?
XXI- Ou seja, Segurada, avaliada como uma mulher média, sem qualquer conhecimento de medicina, e que tão só, queria contratar um seguro, à data de 21 de Maio de 2019 declarou num formulário pro-forma que não tinha naquele momento valores de tensão elevados, indicando nomeadamente os valores que tinha, cabendo à seguradora interpretar esses valores e aplicar um prémio adequado ao risco que corria. O que esta fez e aceitou.
XXII- Tal questionário foi sujeito à apreciação dos serviços clínicos da Ré para aferir da viabilidade do seguro, o que foi aceite.
XXIII- Note-se que em momento algum foram pedidos exames complementares
XXIV- A segurada indiciou os valores de tensão arterial à data da celebração do seguro, tais dados foram analisados pela Ré, na pessoa do médico ao serviço desta e mais uma vez se diga, o seguro não foi recusado,
XXV- Por outro lado, não existem nos presentes autos, prova bastante que nos permita comprovar que a Segurada àquela data tinha valores de tensão arterial distintos dos que esta efetivamente declarou, nem a Ré fez prova disso.
XXVI- A Segurada não mentiu quanto a tomar medicação àquela data, pois efetivamente àquela data não tomava medicação, nem resulta do seu histórico médico tal informação.
XXVII- Razão pela qual não se compreende de onde a meritíssima juiz a quo retira essa conclusão.
XXVIII- Retiramos duas conclusões do depoimento da profissional de seguros: a primeira é que o seguro nunca seria negado à segurada mesmo que ela tivesse indicado que teria HTA;
XXIX- E a segunda é que se a segurada tivesse dito que era hipertensa (que não era) o seguro tinha sido efetuado na mesma e o prémio tinha que ser pago, porque mesmo que tivesse uma cláusula de exclusão em relação a HTA (no pior dos casos) a segurada não faleceu de nenhuma causa relacionada com HTA.
XXX- O formulário questiona:
“Padece ou padeceu de alguma destas doenças?” Fazendo uma descrição pormenorizada de várias doenças, as quais a Autora nunca padeceu. Razão pela qual respondeu afirmativamente que “Não”, a todas.
XXXI- Pergunta ainda o questionário no ponto 8. “foi ou prevê vir a ser hospitalizado/internado para a realização de alguma intervenção cirúrgica em consequência de doença ou acidente? (…)”
Note-se a questão é se “foi ou prevê ser hospitalizado para a realização de alguma intervenção em consequência de doença.
XXXII- A Autora fez uma cirurgia? Sim, fez.
Em consequência de doença ou acidente? A resposta é um rotundo não.
XXXIII- Note-se não existir nenhum indício ou referência no relatório médico de qualquer apetência para o desenvolvimento de quaisquer doença relacionada com o sistema reprodutor e ou urinário nem tão pouco a sua família ter conhecimento disso.
XXXIV- E ainda, e portanto, razão pela qual respondeu negativamente a questão n.º 8 do formulário, não podendo, atenta a questão formulada, responder de outra forma.
XXXV- Assim, a Segurada cumpriu com todos os requisitos impostos pelo contrato de seguro, em momento nenhum tendo mentido no questionário que lhe foi apresentado, tendo respondido com verdade a todas as questões, com a limitação que serem questões de sim e não, sem possibilidade de desenvolvimentos.
XXXVI- Razão pela qual deverá ser revogada a anterior sentença, e substituída por outra que condene a Ré a pagar ao Autor todo o seu petitório, porque provado o incumprimento contratual daquela.
XXXVII- O que se requer a V. Exas.

Assim decidindo, farão V. Exa. justiça..».


Não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II – O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação por parte do tribunal ad quem de eventuais questões que se coloquem de conhecimento oficioso.
Os recursos ordinários “destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas”, estando em causa questões que já foram “objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, anulação, alteração ou revogação”.
“Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis”.
Portanto, porque o recurso é um “meio de impugnação de uma anterior decisão judicial”, o mesmo “apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas”.
Estas “não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição”.
Excepcionam-se, como já se referiu, as questões que sejam de conhecimento oficioso, “desde que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado” (cfr. Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 30 e 139 a 142).
No caso, o A. levanta no seu recurso duas questões que não foram apreciadas na primeira instância, não tendo sido sequer aí levantadas por qualquer das partes, designadamente o próprio A., recorrente, na sua resposta à contestação: a ilegalidade da junção do documento junto pela Interveniente com a contestação contendo dados de saúde da segurada, não podendo o mesmo ser tido em conta para prova dos factos em causa nos presentes autos, e a inexistência de explicação e/ou comunicação das cláusulas contratuais gerais constantes do contrato de seguro, que é um contrato de adesão, à segurada, devendo considerar-se as mesmas como inexistentes, concretamente a cláusula respeitante à autorização para aceder a dados de saúde daquela.
Desde logo quanto à falta de comunicação ou de explicação de cláusulas contratuais do contrato, trata-se de questão que não é de conhecimento oficioso (e sempre, implicando apreciação de matéria de facto, não se encontram nos autos os elementos que seriam necessários à apreciação da questão).
E sendo assim, não pode ser conhecida por este tribunal de recurso.
Pois, tratando-se de questão nova, que não é de conhecimento oficioso, vedado está o seu conhecimento em sede de recurso.
Pelo que, nesta parte, não se conhece do objecto do recurso.
Já quanto à questão da junção do documento pela Interveniente contendo dados de saúde da segurada, que contende com a possibilidade ou não de o mesmo ser valorado como meio de prova, decorrendo da alegação do recorrente que está a invocar que se trata de uma prova ilícita por violação de bens jurídicos com tutela constitucional, a mesma é de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. Ac. da R.P. de 04/03/2024, com o nº de proc. 8233/21.0T8VNG-A.P1: “a questão em si (de ser meio de obtenção de prova proibido) é de conhecimento oficioso”, e Ac. da R.L. de 17/10/2013, com o nº de proc. 1974/11.1TVLSB-A.L1-2, este proferido no âmbito da anterior legislação sobre protecção de dados: “sendo de conhecimento oficioso nesta medida a ilicitude da prova que acarrete a ofensa de determinados bens jurídicos com tutela constitucional”, ambos publicados em www.dgsi.pt) e, por isso, pode ser conhecida por este tribunal de recurso, não obstante não ter sido anteriormente levantada no processo, posto que se nos afigura que os autos contêm os elementos necessários à apreciação de tal questão.
Será, pois, apreciada esta questão.
Portanto, em face do exposto, considerando o objecto do recurso interposto que está delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) possibilidade, ou não, de valoração do documento junto pela Interveniente como documento nº 2 da sua contestação;
b) impugnação da matéria de facto;
c) procedência da pretensão formulada pelo A..
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Apreciemos a primeira questão.
Invoca o recorrente que a Interveniente obteve o documento nº 2 junto com a contestação, e procedeu à sua junção aos autos, em violação do direito à reserva da vida privada da segurada, porque não cumpriu os requisitos previstos na Lei da Protecção de Dados Pessoais.
Antes de mais, assinale-se que o recorrente labora em erro nas suas alegações, nas referências que faz à Lei em causa.
Com efeito, a primeira Lei da Protecção de Dados Pessoais foi a Lei nº 67/98, de 26/10, a qual transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva nº 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24/10/1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados.
Tal Lei veio a ser revogada pela Lei nº 58/2019, de 08/08, a qual assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (RGPD), sendo esta a Lei da Protecção de Dados actualmente em vigor.
Ora, o recorrente cita o art. 9º, nº 1, do RGPD como se fosse o art. 9º da Lei 58/2019, indica o nº 2 e o nº 3, al. d) do art. 7º da revogada Lei nº 67/98 como se fossem disposições deste art. 9º, e alude aos arts. 10º e 3º, al. h), da Lei revogada como se fossem os arts. 10º e 3º, al. h), da Lei actual (quando não existe qualquer correspondência) – para além de fazer alusão a Deliberações da CNPD e Acórdãos da R.L. elaborados na vigência da anterior Lei da Protecção de Dados Pessoais (LPDP).
Tal situação é relevante e altera os dados da questão, tal como foi colocada pelo recorrente, posto que houve alteração significativa dos termos em que o legislador possibilita a obtenção e o tratamento de dados pessoais, nomeadamente daqueles denominados de dados especialmente sensíveis (Considerando 51 do RGPD).
Senão vejamos.
De acordo com o art. 4º, nºs 1 e 15, do RGPD, entende-se por:
- “dados pessoais”, a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»)”, considerando-se “identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, directa ou indirectamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via electrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”;
- “dados relativos à saúde”, os “dados pessoais relacionados com a saúde física ou mental de uma pessoa singular, incluindo a prestação de serviços de saúde, que revelem informações sobre o seu estado de saúde”.
Relativamente a categorias especiais de dados pessoais (os chamados “dados sensíveis”), onde se incluem os “dados relativos à saúde” é aplicável o disposto no art. 9º do RGPD, que determina, nos seus nºs 1 e 2, que:
1. É proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, ou a filiação sindical, bem como o tratamento de dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual de uma pessoa.
2. O disposto no n.º 1 não se aplica se se verificar um dos seguintes casos:
a)Se o titular dos dados tiver dado o seu consentimento explícito para o tratamento desses dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas, excepto se o direito da União ou de um Estado-Membro previr que a proibição a que se refere o n.º 1 não pode ser anulada pelo titular dos dados;
b)Se o tratamento for necessário para efeitos do cumprimento de obrigações e do exercício de direitos específicos do responsável pelo tratamento ou do titular dos dados em matéria de legislação laboral, de segurança social e de protecção social, na medida em que esse tratamento seja permitido pelo direito da União ou dos Estados-Membros ou ainda por uma convenção colectiva nos termos do direito dos Estados-Membros que preveja garantias adequadas dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados;
c)Se o tratamento for necessário para proteger os interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular, no caso de o titular dos dados estar física ou legalmente incapacitado de dar o seu consentimento;
d)Se o tratamento for efectuado, no âmbito das suas atividades legítimas e mediante garantias adequadas, por uma fundação, associação ou qualquer outro organismo sem fins lucrativos e que prossiga fins políticos, filosóficos, religiosos ou sindicais, e desde que esse tratamento se refira exclusivamente aos membros ou antigos membros desse organismo ou a pessoas que com ele tenham mantido contactos regulares relacionados com os seus objectivos, e que os dados pessoais não sejam divulgados a terceiros sem o consentimento dos seus titulares;
e)Se o tratamento se referir a dados pessoais que tenham sido manifestamente tornados públicos pelo seu titular;
f)Se o tratamento for necessário à declaração, ao exercício ou à defesa de um direito num processo judicial ou sempre que os tribunais actuem no exercício da sua função jurisdicional;
g)Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público importante, com base no direito da União ou de um Estado-Membro, que deve ser proporcional ao objectivo visado, respeitar a essência do direito à protecção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos fundamentais e os interesses do titular dos dados;
h)Se o tratamento for necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de acção social ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de acção social com base no direito da União ou dos Estados-Membros ou por força de um contrato com um profissional de saúde, sob reserva das condições e garantias previstas no n.º 3;
i)Se o tratamento for necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, tais como a protecção contra ameaças transfronteiriças graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos dados, em particular o sigilo profissional;
j)Se o tratamento for necessário para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, em conformidade com o artigo 89.º, n.º 1, com base no direito da União ou de um Estado-Membro, que deve ser proporcional ao objectivo visado, respeitar a essência do direito à protecção dos dados pessoais e prever medidas adequadas e específicas para a defesa dos direitos fundamentais e dos interesses do titular dos dados.
Tratando-se de dados de pessoas falecidas complementa ainda o art. 17º da LPDP (58/2019) que “os dados pessoais de pessoas falecidas são protegidos nos termos do RGPD e da presente lei quando se integrem nas categorias especiais de dados pessoais a que se refere o n.º 1 do artigo 9.º do RGPD, ou quando se reportem à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações, ressalvados os casos previstos no n.º 2 do mesmo artigo”.
Como é fácil de ver, no regime actual não está prevista qualquer intervenção da CNPD na autorização para o tratamento de dados, mesmo quando se trate das categorias especiais de dados, deixando de vigorar o regime que anteriormente estava previsto no art. 7º da Lei nº 67/98, designadamente o seu nº 2 (na actual Lei, as funções da CNPD são de controlo e fiscalização, como decorre dos arts. 4º e 6º da Lei nº 58/2019).
Portanto, o que há que apreciar por parte deste tribunal de recurso (visto que a questão é de conhecimento oficioso, como se disse supra) é se à luz da actual legislação (o documento em causa data de 9 de Setembro de 2021, pelo que a sua obtenção e o tratamento dos dados nele contidos por parte da Interveniente é necessariamente posterior a esta data, estando sujeito ao actual regime de protecção de dados pessoais) o tratamento dos dados de saúde da segurada/tomadora do seguro constantes do documento obtido por parte da seguradora foi lícito, podendo este ser valorado como meio de prova nos autos.
De acordo com o disposto no art. 4º, nº 2, do RGPD, constitui tratamento de dados pessoais “uma operação ou um conjunto de operações efectuadas sobre dados pessoais ou sobre conjuntos de dados pessoais, por meios automatizados ou não automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição”.
Assim, não há dúvidas que a obtenção do documento por parte da Seguradora, a análise que esta fez para, com base nela, recusar o pagamento do capital segurado, declinando “o sinistro” (cfr. carta cuja cópia foi junta com a petição inicial) e a junção do mesmo aos presentes autos constitui “tratamento de dados”, para efeitos da aplicação do regime de protecção de dados em apreço.
Donde, em princípio tal tratamento de dados seria proibido, a não ser que se verificasse alguma das situações previstas no nº 2 do art. 9º do RGPD, anteriormente citado, desde logo a existência de consentimento explícito do titular dos dados (a pessoa singular identificada ou identificável a quem respeita a informação) para o tratamento, para uma ou mais finalidades específicas.
Em conformidade com o que consta do art. 4º, nº 11, do RGPD, o consentimento do titular dos dados consiste numa manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou acto positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objecto de tratamento.
Pelo que deve ser autónomo das cláusulas contratuais gerais que constem do contrato de seguro, pré-elaboradas pela seguradora (cfr. Ac. da R.G. de 08/02/2024, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 596/22.6T8VNF.G2, fazendo apelo actual à Deliberação nº 72/2006, de 30/05/2006, da CNPD), e a declaração de consentimento deve estar destacada do resto do contrato, com o conteúdo e finalidades explicitados, não bastando uma referência com carácter genérico (cfr. Ac. da R.L. de 30/11/2011, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 1401/09.4YXLSB.L1-2, que nesta parte se mantém actual, face ao regime em vigor).
Tratando-se de dados de saúde, há ainda que ter em conta que, de acordo com o disposto no art. 29º, nº 1, da LPDP, o acesso a dados pessoais rege-se pelo princípio da necessidade de conhecer a informação.
No caso, a necessidade do conhecimento da informação resulta do facto de a seguradora pretender verificar a existência de patologias da segurada, que esta não terá declarado, e com isto anular o contrato de seguro, não tendo de cumprir a sua obrigação de pagamento do capital do seguro ao herdeiro daquela.
E existe consentimento da segurada, expresso da seguinte forma:
- nas páginas 5 e 6 da proposta de seguro (Documento nº 3 da contestação), sob a epígrafe destacada “Declarações”, consta, entre outras declarações e autorizações, escrito a negrito, o seguinte: “AUTORIZAÇÃO PARA ACESSO A DADOS DE SAUDE: A pessoa segura autoriza expressamente a A... Seguros de Vida SA. a inquirir junto de qualquer entidade que a tenha tratado e/ou examinado, a pedir todos os elementos clínicos e/ou médicos e/ou hospitalares necessários sobre o seu estado de saúde, relacionados com intervenções cirúrgicas, internamentos hospitalares, consultas médicas e exames complementares de diagnóstico, para efeitos de aceitação ou recusa da celebração do contrato de seguro, para efeito de apuramento da existência de falsas declarações sobre o seu estado de saúde, suscetíveis de influenciarem a decisão de aceitação do contrato de segure e de gerarem a anulabilidade deste e para determinação das causas e consequências de qualquer sinistro participado pela própria pessoa segura ou pelos seus beneficiários ou herdeiros.
(…)
O proponente/tomador do seguro declara ter tomado conhecimento do teor das declarações e autorizações constantes destas condições, subscrevendo-as mediante a sua assinatura, inclusive para efeitos de débito conta onde autoriza a Entidade Credora a enviar instruções ao seu banco para debitar a conta, isto se aderiu a este meio de pagamento.

ATENÇÃO:

Confirme se respondeu a todas as questões. Se tiver sido outra pessoa a responder, não assine sem confirmar que todas as respostas são exatas.”, seguindo-se duas assinaturas do proponente/tomador e da pessoa segura (no caso ambas as assinaturas da mesma pessoa, visto que a tomadora do seguro era simultaneamente a pessoa segura);
- em documento separado, anexo à proposta, intitulado de “QUESTIONÁRIO DE SAÚDE”, depois das respostas às perguntas constantes do questionário, no ponto imediatamente seguinte a estas, sob a epígrafe “DECLARAÇÕES E AUTORIZAÇÕES”, consta: “TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS

A pessoa segura fica informada e consente expressamente através da assinatura do presente documento, o tratamento dos dados fornecidos voluntariamente no mesmo, (…), com finalidade de desenvolvimento do contrato ou de consulta, solicitação ou contratação de qualquer serviço ou produto, mesmo após a cessação da relação pré-contratual ou contratual (…)

Autorização para Acesso a Dados de Saúde: A pessoa segura autoriza expressamente a A... Seguros de Vida S.A. a inquirir junto de qualquer entidade que a tenha tratado e/ou examinado, a pedir todos os elementos clínicos e/ou médicos e/ou hospitalares necessários sobre o seu estado de saúde, relacionados com intervenções cirúrgicas, internamentos hospitalares, consultas médicas e exames complementares de diagnóstico, para efeitos de aceitação ou recusa da celebração do contrato de seguro, para efeito de apuramento da existência de falsas declarações sobre o seu estado de saúde, suscetíveis de influenciarem a decisão de aceitação do contrato de seguro e de gerarem a anulabilidade deste e para determinação das causas e consequências de qualquer sinistro participado pela própria pessoa segura ou pelos seus beneficiários ou herdeiros.
(…)
Informação básica sobre proteção de dados:
Responsável: A... Seguros de Vida, S.A
Finalidades: Gestão do contrato de seguro, elaboração de perfis para a execução adequada do contrato de seguro, manutenção e gestão integral e centralizada da sua relação com o Grupo A... e envio de informações e publicidade sobre ofertas de produtos e serviços do Grupo A....
(…)
Direitos: Poderá exercer os seus direitos de acesso, retificação, supressão, limitação, oposição e portabilidade, constantes na Informação Adicional sobre Proteção de Dados.
Informação Adicional: Poderá consulta a Informação Adicional sobre Proteção de Dados nas Informações Pré-contratuais ou em https://www.A....pt/seguros-pt/protecao-dados/

DECLARAÇÕES

O presente questionário de saúde foi preenchido pela pessoa segura ou, na sua presença e com a sua autorização, pelo mediador/funcionário.
(…)
A pessoa segura declara ter lido o conteúdo do presente questionário antes de o assinar, que este corresponde fielmente às respostas que declarou (…)

A pessoa segura declara ter tomado conhecimento do teor das declarações e autorizações constantes deste questionário, subscrevendo-as mediante a sua assinatura.

ATENÇÃO
Confirme se respondeu a todas as questões, Se tiver sido outra pessoa a responder, não assine sem confirmar que todas as respostas são exatas.

Antes de assinar este documento, deverá ler a informação básica sobre proteção de dados que é apresentada na informação denominada "TRATAMENTO DE DADOS PESSOAIS". Ao assinar este documento estará a consentir o tratamento dos seus dados pessoais nos termos e condições constantes na referida informação.”, imediatamente se seguindo a assinatura da pessoa segura.
Assim, analisados os documentos em questão, afigura-se que o consentimento foi prestado de forma autónoma das cláusulas contratuais, estando a declaração destacada do resto do contrato, existindo, aliás, em dois locais diferentes, no final da proposta contratual e no documento contendo o questionário de saúde, que foi prestada a informação necessária à percepção do que estava em causa, com as finalidades do tratamento dos dados assinalada, e que a declaração de consentimento se mostra prestada de forma inequívoca, explícita, livre e específica.
Não ocorrem, pois, os vícios assinalados pelo recorrente, existindo consentimento para o tratamento dos dados prestado pela titular dos mesmos, e já ao abrigo do RGPD.
Daí que a junção do documento nº 2 junto com a contestação foi efectuada de acordo com o previsto na legislação de protecção de dados, não havendo qualquer ilicitude na mesma, podendo aquele ser atendido pelo tribunal no julgamento da matéria de facto (cfr. art. 413º do C.P.C.) – questão diferente, e que será apreciada em sede de impugnação da matéria de facto, é a de saber se o documento em causa permite concluir pela prova dos factos assinalados na fundamentação do tribunal recorrido.
Não merece, portanto, provimento o recurso nesta parte.
*
Vejamos a segunda questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso, no que concerne aos concretos factos que põe em causa e à alteração que pretende quanto a tal factualidade, verifica-se que o recorrente não indicou especificamente e explicitamente aqueles, nem de forma expressa aduziu qual a resposta alternativa que propõe para os mesmos.
Todavia, quer da argumentação quanto às razões da sua discordância relativamente à decisão da matéria de facto por parte do tribunal recorrido e à valoração do documento nº 2 junto com a contestação, quer da indicação dos concretos meios de prova que justificam a sua pretensão, incluindo, quanto à prova testemunhal, as respectivas passagens dos depoimentos que, em seu entender, determinam a alteração, consegue-se perceber que o recorrente põe em causa os pontos 9, 10, 11, 14 e 15 da matéria de facto e que entende que os mesmos devem ser considerados não provados, o que se retira também das conclusões XVII a XXXV (sendo certo que a factualidade impugnada tem de constar das conclusões do recurso).
Sendo assim, afigura-se que está cumprido, ainda que de forma imperfeita, o ónus em questão por parte do recorrente.
Anote-se que há que ter em conta o princípio da proporcionalidade, não exacerbando os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207).
Apreciemos então da impugnação em causa.
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1. BB faleceu no dia ../../2021.
2. O autor é o único e universal herdeiro de BB, sua tia.
3. A ré é uma seguradora com escopo principal a realização de contratos de seguro, de múltiplos tipos.
4. Com data de 21 de maio de 2019, foi subscrito “SEGURO DE VIDA TEMPORÁRIO ANUAL RENOVÁVEL” junto dos serviços da ré, com recurso a um mediador de seguros, tendo como tomador do seguro BB, com a apólice n.º ...22.
5. BB faleceu com neoplasia maligna do pâncreas.
6. A referida doença foi-lhe diagnosticada em fevereiro de 2021.
7. Após a morte de BB, o autor interpelou a ré com vista ao pagamento da indemnização no âmbito do seguro mencionado no ponto 4.
8. Por carta datada de 06.06.2022, a ré informou o autor que declinava a sua responsabilidade, com base na ausência de informação por parte de BB respeitante aos seus antecedentes clínicos.
Da contestação:
9. Em 2000, BB realizou uma histerectomia com ooforectomia total (remoção do útero e dos ovários), complicada por tromboembolismo pulmonar.
10. Em 2016, BB foi-lhe diagnosticada dis[p]lipidémia controlada com medicação.
11. Em 2017, BB foi-lhe diagnosticada hipertensão arterial controlada com medicação.
12. BB respondeu, no âmbito do contrato a que se alude no facto provado n.º4, a um questionário clínico pré-formatado, com limitações de espaço e com questões concretas, em que se responde “sim” e “não”.
13. As informações que constam no dito questionário são escolhidas pela ré e são as relevantes, para a contratação em causa.
14. As informações clínicas mencionadas nos pontos 9 a 11 não foram comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4.
15. Se as referidas informações clínicas tivessem sido comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4., a ré não tinha celebrado o referido contrato.
16. O questionário sobre a situação pessoal de saúde de BB revelou-se determinante na formação do contrato com vista a avaliação do risco que a seguradora iria assumir.».
Tendo sido dado como não provado que (transcrição): «o autor é um jovem estudante que se viu obrigado a recorrer a advogados, fazer inúmeras reuniões com a seguradora e advogado e para isso teve de faltar às aulas e com isto sente-se necessariamente triste e deprimido.».
Como se assinalou, o recorrente põe em causa:
1) Os pontos 9, 10 e 11 da matéria de facto provada [9. Em 2000, BB realizou uma histerectomia com ooforectomia total (remoção do útero e dos ovários), complicada por tromboembolismo pulmonar. 10. Em 2016, BB foi-lhe diagnosticada dislipidemia controlada com medicação. 11. Em 2017, BB foi-lhe diagnosticada hipertensão arterial controlada com medicação.], e, em consequência, o ponto 14 da matéria de facto provada [As informações clínicas mencionadas nos pontos 9 a 11 não foram comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4.], defendendo que a segurada não mentiu, nem prestou declarações incorrectas nas respostas que deu ao questionário referido no ponto 12.
Na sentença recorrida, foi feita em bloco a motivação dos pontos 9 a 16 da matéria de facto, nos seguintes termos:
A convicção em que se alicerçou a decisão sobre a matéria de facto controvertida resultou do conjunto da prova produzida em sede de audiência final, bem como dos documentos juntos aos autos, tudo apreciado livremente e de forma conjugada com as regras de experiência comum, em conformidade com o disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil.
(…)
Respeitante aos factos provados n.ºs 9 a 16, o Tribunal valorou, desde logo, documentos a fls. 33 a 43 (cópia do contrato de seguro ajuizado e nota de alta com as informações clínicas da tomadora de seguro), mormente a declaração (questionário de saúde de fls. 42 verso).
Aqui chegados, importa dizer, em jeito de síntese útil, por apego às regras da experiência comum e do que é a normalidade social prevalente, a atitude da falecida segurada e da tomadora para com as perguntas, de carácter simples e imediato, sobre o seu estado de saúde e que não exigiam, para um cidadão médio, explicações ou esclarecimentos de maior, no que toca à situação de cirurgia (histerectomia com ooforectomia total), isto é, retirada do útero e dos ovários, complicada por tromboembolismo pulmonar, dis[p]lipidémia e hipertensão arterial é de omissão deliberada tais factos, que eram do seu conhecimento pessoal.
Na verdade, padecendo a mesma de tais doenças, sendo as duas últimas diagnosticadas em 2016 e 2017 (dois anos antes da celebração do seguro), ao ser confrontada com perguntas directas, não podia ignorar que as doenças aí questionadas assumiam relevância para a seguradora e, como tal, seriam objecto de ponderação no risco a contratar.
Acresce que, diz-nos a experiência comum que a circunstância de alguém padecer de hipertensão, considerando que, no caso concreto, estamos perante um contrato de seguro cujo objecto é a cobertura de risco associado à saúde de uma pessoa, é imperioso concluir que a omissão daquela informação - através de resposta negativa, como foi o caso - influi ou pode influir na aceitação ou não da proposta de adesão.
Dir-se-ia que quanto à toma da medicação, no passado, inerente à hipertensão não existe qualquer pergunta directa no questionário (sendo que a pergunta encontra-se formulada no tempo verbal presente – cfr., ponto 3 da declaração) e que a seguradora/tomadora, por isso mesmo, não estava obrigada a declará-la nem o podia fazer. Só que assim não se poderá entender, porquanto embora o questionário constitua um guia, não limita as informações que podem e devem ser prestadas relativamente ao estado de saúde, donde impendia sobre a segurada/tomadora a obrigação de informar com verdade a ré seguradora de todos os factos relativos ao seu estado de saúde que pudessem influir na avaliação do risco ou na determinação, em caso de aceitação, na correta determinação do prémio de seguro, decorrência da princípio da boa-fé e do que é “normal acontecer” neste tipo de contratos. Ora, toma da medicação respeitante a hipertensão diagnosticada 2 anos antes da celebração do seguro, não pode deixar de ser uma informação relevante, quando se pretende contratar um seguro de vida.
Neste conspecto, valorou-se ainda o depoimento da testemunha CC, médico que presta serviços à ré, que afirmou perentoriamente que, caso a tomadora do seguro, tia do autor, tivesse declarado o seu passado clínico, não tinha dado parecer favorável ao contrato de seguro, como a ré celebrou. Salientou que a tomadora do seguro declarou ser saudável, sem nunca ter dito problemas de saúde, o que não correspondia à realidade considerando-se a cirurgia (histerectomia com ooforectomia total), isto é, retirada do útero e dos ovários, complicada por tromboembolismo pulmonar, dis[p]lipidémia e hipertensão arterial e ainda hábitos de tabagismo no passado.
A este propósito, as testemunhas DD e EE, pais do autor, referiram que nunca tiveram conhecimento que a BB tivesse tido problemas de saúde no passado, pelo que, sem mais, tais depoimentos não têm virtualidade para infirmar o supra exposto.”.
Da análise da motivação nesta parte, percebe-se que a maior enfâse foi dada à questão da existência de omissão de informação por parte da segurada, podendo concluir-se que, no que concerne aos pontos 9, 10 e 11, o tribunal recorrido se terá fundado no documento nº 2 da contestação (indicado como “nota de alta com as informações clínicas da tomadora de seguro”) e no depoimento da testemunha CC.
Ora, visto o documento em questão, verifica-se que o mesmo constitui apenas uma “Nota de Alta” do “Serviço de Unidade de Cuidados Paliativos”, respeitante a uma situação de internamento da segurada entre 6 e 20 de Julho de 2021 (data em que foi encaminhada para continuidade de cuidados na Ordem ..., no Porto), já por força da doença decorrente de adenocarcinoma da cabeça do pâncreas com metastização hepática difusa, onde, a propósito da “história clínica” da paciente, consta um item indicado como “antecedentes pessoais, do seguinte teor, sem mais:
“ANTECEDENTES PESSOAIS:
#FRCV
- HTA » acompanhada em consulta de Medicina interna - HTA desde 2017
- Dislipidemia, diagnóstico em 2016
- Ex-fumadora (sem hábitos tabágicos desde 2007, carga tabágica estimada em 21 UMAs)
#Histerectomia com ooforec[t]omia total em-2000
- procedimento complicado por TEP
#Tentativa de inseminação artificial durante 3 anos (previamente a 2000)
#Gravidez ectópica aos 20 anos”
Nenhuma outra informação consta sobre esta matéria, nenhum documento anexo que melhor explicasse, e comprovasse, o teor da informação, não se sabendo também qual foi a fonte desta informação: se foi recolhida junto da paciente, se foi retirada do sistema (não se sabendo quando aí foi inserida, nem em que circunstâncias) ou se foi baseada na consulta de alguns elementos clínicos.
A informação em causa é vaga e genérica, não faz qualquer referência a toma de medicação, não se sabe em que data foi escrita (se constava do sistema, passa para o documento da alta tal como consta, na data em que foi inserida, que não se sabe quando foi, até poderia ser em algum ano anterior) e não concretiza as situações de HTA (hipertensão arterial) – foi uma situação aguda, pontual, localizada no tempo, causada porquê?, hábitos de vida, por exemplo alimentares (como excesso de sal), pontuais ou enraizados, situações de tensão nervosa, outros problemas de saúde, interacções medicamentosas? …, ou foi uma situação crónica? –, de dislipidemia – de que tipo: aumento de colesterol, aumento dos triglicéridos, aumento de ambos, ou redução do colesterol HDL?, foi pontual ou crónica, causada por questões genéticas ou alimentares, neste caso por uma situação de excesso pontual ou por hábitos enraizados? – nem de histerectomia com ooforectomia – não se sabe qual a razão que determinou esta intervenção, não está explicado o que significa no caso o “procedimento complicado por TEP” (segundo a testemunha CC será “tromboembolismo pulmonar”), foi uma complicação da cirurgia, resultou de alguma condição da paciente?, esteve relacionada com a gravidez ectópica ou as tentativas de inseminação artificial? (note-se que a testemunha DD aludiu a que a sua cunhada (a segurada) “fez grandes tratamentos para tentar engravidar” e que “mais tarde soube que ela tinha removido os ovários”, o que teria sucedido “por se sentir mais confortável”, “por indicação médica”). Ademais, sendo a intervenção de 2000 nada se sabe sobre se em 2019 se mantinha alguma sequela da mesma, e sendo as referências a HTA e a dislipidemia de 2017 e 2016, respectivamente, nada se sabe sobre se essa condição existia em 2019. Para além de que as referências a estas duas situações foram enquadradas na questão dos “FRCV” (factores de risco cardio-vascular).
Por seu turno, a testemunha CC, médico ao serviço da Interveniente, apenas tinha conhecimento do que viu em elementos clínicos que chegaram à posse desta, não tendo nenhum conhecimento directo e concreto da paciente em causa, sendo que fez referência a elementos que terá recolhido noutra documentação que não a nota da alta e que não se encontra nos autos, não se sabendo qual possa ter sido, nem o exacto teor da mesma (quando refere, por exemplo, que a segurada estava medicada com três medicamentos, que era hipertensa, “dito pelo médico de família e pelos registos hospitalares”, “afirmado em todos os relatórios clínicos”, ou que tinha uma dislipidemia “tratada todos os dias com medicamentos” – nada nos autos comprova estas afirmações).
Ora, sendo o depoimento referido a elementos documentais que não constam dos autos e que não se podem comprovar (até para ter a certeza de que se estava a falar deste caso e não do caso de qualquer outra pessoa segurada na Interveniente) e sendo o único documento junto uma “nota de alta” respeitante a uma situação completamente diferente, nos termos já descritos, afigura-se-nos que não existe prova suficiente para comprovar o que ficou a constar dos pontos 9, 10 e 11, sem sombra de dúvida (e desde logo a toma de medicação), até pela ligação destes factos ao facto do ponto 14, que se relaciona com o questionário a que a segurada respondeu (e que, conforme consta do ponto 13 da matéria de facto, não impugnado, tais questões são as relevantes para a contratação em causa), sendo de pressupor, segundo as regras da normalidade, que àquela apenas terá ocorrido responder ao que estava perguntado – o que aí se questionava quanto à tensão arterial e ao colesterol era se no momento da resposta a proponente tinha valores alterados (sendo que, como já se disse, nem se sabe qual o tipo de dislipidemia foi apresentado pela segurada em 2016, podia não ser por colesterol elevado); quanto a doenças (embora também colocando “útero” entre parênteses), questionava-se sobre “doenças do aparelho genito-urinário”, nada se aludindo ao “aparelho reprodutor”; e quanto a intervenção cirúrgica, questionava-se se tinha sido realizada alguma “em consequência de doença ou acidente”, podendo a proponente não associar esta questão à intervenção que realizara 19 anos antes (!) e que, no seu entendimento, poderia estar relacionada com problemas de fertilidade, não a associado especificamente a “doença”.
Daí que, para se poder com propriedade, responder aos referidos pontos da matéria de facto, indicando que a segurada padecia de determinadas patologias e que não comunicou essas informações à Interveniente, seria necessário ter informações clínicas precisas, específicas e completas sobre as referidas situações, nomeadamente, quanto à HTA e à dislipidemia, se se mantinham em 2019, para além de saber de que tipo de dislipidemia se tratava.
Até porque, nos termos do disposto no art. 414º do C.P.C., a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem aproveita – e, no caso, os factos aproveitam à Interveniente, que invocou a excepção de existência de declarações inexactas por parte da segurada, para se eximir ao cumprimento do contrato, recaindo sobre ela o ónus da respectiva prova (cfr. art. 342º, nº 2, do C.C.), o que significa que, não havendo prova cabal dos factos referidos, os mesmos têm de se considerar como não provados.
Assim, altera-se a decisão da matéria de facto nesta parte, passando os factos dos pontos 9, 10, 11 e 14 para os factos não provados.
2) O ponto 15 da matéria de facto provada [Se as referidas informações clínicas tivessem sido comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4., a ré não tinha celebrado o referido contrato.].
Sendo esta matéria por referência às informações clínicas que não teriam sido comunicadas pela segurada, a partir do momento em que os factos respectivos passaram para os factos não provados também este ponto tem necessariamente de passar para os factos não provados, pois que não há prova de informações clínicas que tivessem sido omitidas.
Ainda assim, sempre se acrescenta que, mesmo que se provasse alguma coisa quanto a situação clínica anterior da segurada, a resposta a este ponto da matéria de facto não poderia ser esta e teria que ser alterada, pois a testemunha CC o que referiu foi que “teria pedido mais documentação clínica” para poder apreciar se “era de celebrar ou não o seguro em questão”, e que “este seguro não seria feito sem eu pedir informações complementares” e a testemunha FF, funcionária da Interveniente, informou que esta iria solicitar mais informação para fazer o seguro de vida, “ou com agravamento ou com exclusão”, especificando quanto à HTA que seria enviado um questionário médico adicional e, de acordo com o mesmo, “poderia haver uma cláusula de exclusão ou um sobreprémio relativamente ao aumento do risco”.
Quer dizer, dos depoimentos referidos o que resulta é que, havendo as situações clínicas em causa, o seguro provavelmente seria feito, mas com cláusulas a excluir do seguro sinistros decorrentes daquelas situações (sendo que, no caso, a doença que vitimou a segurada foi uma neoplasia do pâncreas…) ou então com um agravamento do prémio para os incluir.
Portanto, altera-se também a decisão da matéria de facto nesta parte, passando o facto do ponto 15 para os factos não provados.
Merece, pois, provimento a impugnação da matéria de facto.
*
Passemos à terceira questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão do recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida, com as alterações acabadas de efectuar, conforme se passa a descrever:
1. BB faleceu no dia ../../2021.
2. O autor é o único e universal herdeiro de BB, sua tia.
3. A ré é uma seguradora com escopo principal a realização de contratos de seguro, de múltiplos tipos.
4. Com data de 21 de maio de 2019, foi subscrito “SEGURO DE VIDA TEMPORÁRIO ANUAL RENOVÁVEL” junto dos serviços da ré, com recurso a um mediador de seguros, tendo como tomador do seguro BB, com a apólice n.º ...22.
5. BB faleceu com neoplasia maligna do pâncreas.
6. A referida doença foi-lhe diagnosticada em fevereiro de 2021.
7. Após a morte de BB, o autor interpelou a ré com vista ao pagamento da indemnização no âmbito do seguro mencionado no ponto 4.
8. Por carta datada de 06.06.2022, a ré informou o autor que declinava a sua responsabilidade, com base na ausência de informação por parte de BB respeitante aos seus antecedentes clínicos.
12. BB respondeu, no âmbito do contrato a que se alude no facto provado n.º4, a um questionário clínico pré-formatado, com limitações de espaço e com questões concretas, em que se responde “sim” e “não”.
13. As informações que constam no dito questionário são escolhidas pela ré e são as relevantes, para a contratação em causa.
16. O questionário sobre a situação pessoal de saúde de BB revelou-se determinante na formação do contrato com vista a avaliação do risco que a seguradora iria assumir.
Há que ter em conta também todos os factos agora constantes dos factos não provados: - o autor é um jovem estudante que se viu obrigado a recorrer a advogados, fazer inúmeras reuniões com a seguradora e advogado e para isso teve de faltar às aulas e com isto sente-se necessariamente triste e deprimido;
9. Em 2000, BB realizou uma histerectomia com ooforectomia total (remoção do útero e dos ovários), complicada por tromboembolismo pulmonar.
10. Em 2016, BB foi-lhe diagnosticada dislipidemia controlada com medicação.
11. Em 2017, BB foi-lhe diagnosticada hipertensão arterial controlada com medicação.
14. As informações clínicas mencionadas nos pontos 9 a 11 não foram comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4.
15. Se as referidas informações clínicas tivessem sido comunicadas por BB à ré antes da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 4., a ré não tinha celebrado o referido contrato.
Apreciemos, então, a questão de direito tendo em conta a alteração factual ocorrida.
Nos autos está em causa um contrato de seguro celebrado entre a tia do A., de quem ele é o herdeiro, e a Interveniente.
O regime jurídico do contrato de seguro está actualmente regulado no anexo ao D.L. 72/2008, de 16/04, que entrou em vigor no dia 01/01/2009 (art. 7º) e revogou, entre outras, as normas dos arts. 425º a 462º do Cód. Comercial (art. 6º).
«Contrato de seguro é o contrato pelo qual o segurador, em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros (ou casos fortuitos), ou ainda a pagar (ao segurado ou a terceiro) uma soma em dinheiro conforme a duração ou os eventos da vida de uma ou várias pessoas» - Francisco Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, vol. I, pág. 271, apud Clara Lopes, Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, Lisboa, 1987, pág. 15.
O contrato de seguro compreende, portanto, duas prestações: a da seguradora, de conteúdo complexo, consistente na assunção do risco e na obrigação de pagar um determinado capital se esse sinistro se verificar; e a do segurado, consistente na obrigação de pagamento do prémio.
Trata-se de um contrato:
- comercial, pelo menos quanto à seguradora;
- formal, nos termos entendidos no art. 32º, nº 2. do referido diploma legal, sendo esta agora uma formalidade ad probationem (cfr. Lei do Contrato de Seguro anotada, Pedro Romano Martinez e outros, Almedina, 2009, pág. 170);
- bilateral ou sinalagmático, pois, como vimos, dele resultam obrigações para ambas as partes, verificando-se um nexo de reciprocidade ou interdependência entre elas;
- oneroso, visto cada parte prosseguir uma vantagem pessoal que é contrapartida daquela que confere à outra;
- aleatório: o segurador não sabe se terá ou não de efectuar a prestação, ou se há certeza da prestação, quando esta se efectuará, não havendo, porém, incerteza na prestação do segurado;
- de execução continuada;
- de adesão;
- de boa-fé (a qual é um princípio geral das obrigações - arts. 227º e 762º do C.C. -, existindo em matéria de seguros uma tutela reforçada deste princípio, que aí assume um significado muito próprio) – o segurador é obrigado a acreditar no segurado e, em contrapartida, este é obrigado a comportar-se com franqueza e lealdade, surgindo uma especial responsabilização do tomador do seguro perante as suas declarações, que devem ser exactas e não reticentes.
Entre as várias classificações possíveis de contratos de seguro, podemos qualificar o dos autos como um seguro de pessoas, o qual visa cobrir riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas, podendo garantir prestações de valor predeterminado não dependente do efectivo montante do dano e prestações de natureza indemnizatória (cfr. art. 175º da Lei do Contrato de Seguro), e dentro deste, como um seguro de vida, pelo qual o segurador cobre um risco relacionado com a morte ou a sobrevivência da pessoa segura (cfr. art. 183º da Lei do Contrato de Seguro).
Vigora aqui o princípio de liberdade contratual, que resulta, desde logo, do art. 405º do Cód. Civil, sendo reafirmado pelo art. 11º do Cód. Comercial, nos termos do qual o contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral.
O princípio em análise implica, quanto à seguradora, o poder de incluir na apólice cláusulas de exclusão da cobertura de determinados riscos, estipular um descoberto, isto é, assumir o risco de forma parcial, ficando o restante a cargo do segurado - estas cláusulas visam que o segurado se empenhe em evitar o dano -, ou estabelecer franquias, ou seja, estabelecer o montante mínimo a partir do qual a seguradora responderá.
É certo que, hoje em dia, esta liberdade contratual está substancialmente cerceada, nomeadamente pela legislação sobre cláusulas contratuais gerais.
Dissemos que o contrato de seguro é um contrato de boa-fé e que esta é um princípio geral das obrigações, com uma tutela reforçada em matéria de seguros.
O segurador é obrigado, então, como já se disse, a acreditar no segurado e este é obrigado a comportar-se com franqueza e lealdade. Daqui surge uma especial responsabilização do tomador do seguro ou do segurado (podem ser pessoas diferentes) perante as suas declarações, que, nos termos do art. 24º da Lei do Contrato de Seguro, devem ser exactas e não reticentes. Se assim não for, as consequências são as previstas nos arts. 25º (omissões ou inexactidões dolosas) e 26º (omissões ou inexactidões negligentes) da mesma Lei. Sendo que o segurador não se pode prevalecer das omissões negligentes na declaração inicial do risco no caso dos seguros de vida e decorridos que sejam dois anos sobre a celebração do contrato, nos termos do art. 188º, nº 1, da Lei do Contrato de Seguro.
Anote-se que quanto aos deveres de informação a cargo do tomador do seguro pressupõe a Lei um dever de cuidado quanto à comunicação e ao conhecimento. “A intensidade desse dever depende das circunstâncias, valendo a diligência do bonus pater familias. Mas não a acentuamos: o tomador não é um guardião do segurador, nem este espera que assim seja. Deve comportar-se com a honestidade própria do cidadão comum, que não tem de acentuar quanto lhe seja desfavorável. Quanto à bitola da “razoabilidade”, na seleção das circunstâncias que deva ter por “significativas”? Também aqui não é expectável que o tomador se arvore em serviçal do segurador. De novo apelamos para o bonus pater familias e para o senso comum. (…) o segurador, melhor do que ninguém, sabe o que é significativo para o cálculo do risco que (apenas) ele irá fazer. Por isso, coloca perguntas.” (cfr. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Almedina, 2013, págs. 577 e 578).
Aliás, existindo questionário de saúde e consentimento para acesso e tratamento de dados de saúde, maior será a temperança com que deve ser analisado este dever do tomador do seguro, posto que sempre será de ter em conta que o mesmo considere que os seus eventuais “esquecimentos” podem ser colmatados pelo acesso que confere aos seus dados de saúde, o que tem, obviamente, implicações na análise da sua eventual negligência ou intencionalidade na omissão de informação.
No caso, não resultou provado, atenta a alteração à matéria de facto, que tenha havido omissão de informações de saúde por parte da tomadora do seguro, como havia sido invocado pela Interveniente.
Tratando-se esta matéria de factualidade modificativa ou extintiva do direito invocado pelo A., a sua prova cabia à Interveniente, nos termos do disposto no art. 342º, nº 2, do Código Civil, o que não logrou fazer.
Ademais, ainda que se tivesse feito prova das condições de saúde da tomadora do seguro invocadas, como decorre do que se analisou no tratamento da segunda questão, afigura-se que sempre se estaria perante uma situação de negligência e não de dolo, pelo que, tendo já passado dois anos da celebração do contrato, a Interveniente não poderia prevalecer-se da omissão da sua comunicação.
Assim, estando o contrato em vigor, não havendo razões para a sua anulabilidade ou cessação, e tendo ocorrido o sinistro abrangido pela apólice (no caso a morte da segurada), tem a R. a obrigação contratual de cumprir com a prestação a que se obrigou, no caso o pagamento do capital de € 10.000,00 aos herdeiros legais da pessoa segura, sendo o A. o único herdeiro da mesma.
A tal quantia acrescem juros de mora, desde a citação até integral pagamento, à taxa legal de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor (arts. 804º, 805º, 806º e 559º, nº 1, do C. Civil, e Portaria nº 291/03, de 08/04), conforme pedido pelo A..
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela alteração da matéria de facto nos termos analisados na segunda questão e pela obtenção de provimento do recurso interposto pelo A., com a consequente alteração da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao recurso e, consequentemente:
a) alterar a decisão proferida quanto à matéria de facto, nos termos supra referidos, passando os factos dos pontos 9, 10, 11, 14 e 15 para os factos não provados;
b) condenar a Interveniente a pagar ao A. a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento, mantendo-se a parte não impugnada da sentença recorrida.
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Custas da apelação pela recorrida e da acção por recorrente e recorrida, na proporção do respectivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente

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Porto, 7/11/2024
Isabel Rebelo Ferreira
Ana Vieira
João Maria Venade