I. Na interpretação de uma decisão da Comissão da União Europeia, sancionadora de uma conduta violadora do art. 101.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), deve atender-se ao dispositivo e aos fundamentos, incluindo nestes os Considerandos da decisão necessários à compreensão do dispositivo.
II. Não logrando a Autora provar a quantia exacta do dano e concluindo o Tribunal, perante circunstâncias objectivas do caso, que tal determinação era practicamente impossível ou excessivamente difícil, poderá proceder ao cálculo do valor do dano com base em estimativa judicial, nos termos do artigo 9.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2018, que transpôs o artigo 17.º, n.º 1 da Directiva 2014/104/EU, sendo tal poder do Tribunal expressão do princípio da efectividade.
III. A aplicação do prazo de prescrição de 5 anos previsto no artigo 10.º da Directiva e artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018, depende de três condições: a interposição de uma acção de indemnização que tenha subjacente uma infracção que cessou antes da entrada em vigor da Directiva; que a acção tenha sido intentada após a entrada em vigor da respectiva Lei de Transposição; que o prazo de prescrição ao abrigo das regras nacionais aplicáveis ainda não se mostre esgotado na data do termo do prazo de transposição da Directiva (TJUE, C-267/20).
IV. Em casos de private enforcement por conduta violadora do artigo 101.º do TFUE, os juros de mora contam-se a partir da ocorrência do dano, não sendo aplicável a prescrição prevista no artigo 310.º, al. d) do Código Civil.
32. A Ré, que integra o “Grupo DAF”, produz e comercializa camiões ligeiros, de média tonelagem e pesados com a marca DAF e tem a sua sede social em Eindhoven, Holanda.
33. No exercício da sua atividade, a Ré fabricou e vendeu, no dia 23/03/2008, à “EVICAR”, seu importador único em Portugal à data, o seguinte veículo, nos seguintes termos e condições:
• Camião 92-FT-31/ XLRTE47MS0E814440 (“Camião Rígido”);
• Data e número da fatura – 26/03/2008 / PT003023;
• Modelo – FT XF105 Space Cab;
• Preço de Lista (preço bruto) – € 153.568,00 (IVA não incluído);
• Preço de venda (preço líquido) após descontos sobre preço bruto – €76.128,41 (IVA não incluído).
34. Para esse veículo foram adicionadas as seguintes especificações comerciais:
• Visor solar externo azul translúcido;
• Luzes combi no para-choques;
• Buzina de ar comprimido, conjunto único;
• Spoiler do tejadilho ajustável, painéis laterais 2.55m;
• Spoiler do tejadilho: branco brilhante;
• Painéis laterais: branco brilhante;
• Assentos: condutor Comfort Air; co-condutor Comfort Air;
• Beliche inferior com gaveta 65 litros;
• Frigorífico;
• Aquecedor auxiliar de cabine (água);
• Rádio / leitor de CD, 2 colunas;
• Eixo frontal 1: 385/65R22.5;
• Sem pneu sobressalente;
• F1, 385/65R22.5 GO LHS 160/000 110km/h Direção;
• SP, não aplicável;
• Motor 340 kW (460hp), MX340, 45 graus;
• Caixa de velocidades automática, 12AS2330, relação de transmissão 15.86-1.00;
• ZF Intrader e travão de escape;
• Tanques de combustível de alumínio 955+500 1;
• Nenhum suporte de roda sobressalente;
• Lâmpada de trabalho amarela;
• Motor de emissão standard EURO V;
• Configuração AS Tronic para aplicações normais.
35. Por seu turno, a Autora tem por objeto comercial o transporte rodoviário de mercadorias.
36. No âmbito e para o exercício dessa sua atividade comercial, no ano de 2018, a Autora adquiriu à sociedade EVICAR CENTRO o veículo referido em 33., da marca DAF, modelo 4x2 EXF05, com 40 toneladas e com a matrícula 92-FT-31, no estado novo, contra o pagamento da quantia de € 86.859,11 (s/iva).
37. Para o efeito, a Autora celebrou um contrato de locação financeira mobiliária celebrado com o BPN Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A., no qual consta como fornecedor do equipamento: EVICAR CENTRO COMÉRCIO DE CAMIÕES, S.A. e como valor do contrato: € 86.859,11 (s/iva).
38. O certificado de matrícula do referido veículo mostra-se inscrito a favor da Autora.
39. A Ré, em conluio com outros fabricantes de camiões, aumentou, de forma ilícita, intencional, coordenada e continuada, com os seus concorrentes, os preços brutos dos camiões de peso superior a 6 toneladas, que fabricou e comercializou, diretamente ou através da sua rede de distribuição, no período de 17/01/1997 a 18/01/2011.
40. Tal aumento nos preços brutos foi projetado, na mesma proporção, nos preços líquidos de venda dos veículos, tendo a Ré fixado um preço superior àquele que seria devido, caso não tivesse ocorrido a referida conduta ilícita.
41. O aumento do preço fixou-se num mark-up[1] de preço de, pelo menos, 15,4% por veículo.
42. A Autora, ao pagar o referido preço para aquisição do veículo, suportou o referido sobrecusto no valor de €12.904,02, correspondente a 15,4% do preço de compra do camião, atualizado a valores de 2018.
E foram considerados não provados os seguintes factos
a. Que a Autora teve conhecimento da identidade dos alegados infratores pelo menos no dia 19/07/2016, aquando da emissão do comunicado de imprensa referido no facto 5. e das notícias referidas no facto 6.;
b. Que EVICAR e EVICAR CENTRO absorveram (no todo ou em parte) o sobrecusto referido no facto 42.;
c. Que a Autora transferiu para os seus próprios clientes o sobrecusto referido no facto 42.
*
III.2. Do mérito do recurso
2.1. Nulidade da sentença
A Recorrente invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, alegando que o Tribunal, partindo do pré-juízo de que se devem presumir os danos e o nexo de causalidade, desconsiderou matéria de facto relevante para a boa decisão da causa, devendo esta Relação proceder à modificação da decisão sobre a matéria de facto e acrescentar à matéria de facto provada o rol de factos que a Recorrente refere nas suas alegações.
É tendo em consideração o disposto no artigo 608º, nº 2 do CPC, que terá de aferir-se da nulidade prevista na alínea d), do n.º 1, do art. 615º, do CPC.
De acordo com o art. 608º, nº2, do CPC o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão de questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso. Sendo nula a sentença, nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
As questões submetidas à apreciação do Tribunal, a que o legislador se refere, identificam-se com os pedidos formulados e com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, que não com motivos, razões ou argumentos alegados.
Nessa medida, embora a não apreciação de algum fundamento fáctico ou argumento jurídico invocado pela parte possa, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, daí apenas pode decorrer um eventual erro de julgamento que não um vício de omissão de pronúncia.
Ou seja, o tipo de omissão invocado pela Recorrente não consubstancia uma omissão de pronúncia que determine a nulidade da sentença, podendo, eventualmente, conduzir a um erro de julgamento que deve ser apreciado na sede própria que, no caso, é a da decisão da impugnação da matéria de facto.
Acresce que, no caso, a sentença pronunciou-se, efectivamente, sobre a matéria de facto alegada pela Recorrente e a que esta alude no seu recurso (Cfr. p. 18): De referir que não se deu resposta à matéria articulada pela Ré, contida nos temas da prova referente às características técnicas dos camiões; do processo de negociação e fixação de preços dos camiões; da cadeia de comercialização dos camiões em Portugal durante o período da infração; das caraterísticas do mercado dos camiões e a efetiva concorrência entre fabricantes durante o período da infração e do contexto da diferença entre preços de lista e preços de venda – pontos «a.» a «e.» do tema de prova elencado sob a alínea A), na medida que a mesma ficou prejudicada pela prova evidenciada, e, por conseguinte, veio a revelar-se irrelevante para a boa decisão da causa, sem prejuízo de a mesma ter sido objeto de discussão na audiência de discussão e de julgamento, porquanto contida no referido tema de prova, e de o Tribunal ter feito alusão à mesma na subsunção dos factos ao Direito aplicável, aí explicando a razão pela qual a considerou assim.
Pelo que improcede a nulidade imputada pela Recorrente à sentença recorrida.
*
2.2. Impugnação da matéria de facto
2.2.1. considerações prévias
A Recorrente alega que a sentença padece de erros de julgamento com relevância na decisão sobre a matéria de facto, impondo-se começar por fazer algumas considerações prévias antes de prosseguir com a apreciação da concreta impugnação dessa matéria.
Em síntese, a Recorrente sustenta, quanto ao ónus da prova, que de acordo com o art. 342.º, n.º1 do Código Civil cumpria à Ré fazer a prova dos factos constitutivos do direito que veio invocar, ou seja, os que preenchem os pressupostos da responsabilidade por facto ilícito previstos no art. 483.º do Código Civil, o que, em especial quanto à existência de dano e ao nexo de causalidade não foi feito, não havendo qualquer fundamento legal para a aplicação de um nível de exigência mais reduzido nesta fase.
Alega que as disposições substantivas da Directiva 2014/104 EU e da Lei n.º 23/2018 de 5 de Junho não são aplicáveis ao caso dos autos, tendo em conta que os factos ocorreram vários anos antes da publicação da Directiva dos Danos e da Lei de Transposição, designadamente a presunção de dano em casos de cartéis vertidas nos seus artigos 17.º, n.º 2 e 9.º, n.º1, respectivamente, o que decorre quer dos artigos 22.º da Directiva e 24.º da Lei de Transposição, quer do artigo 12.º do Código Civil.
Entende que os princípios da equivalência e da efectividade não podem justificar uma interpretação que, em termos práticos, conduza à aplicação retroactiva de uma presunção legal de dano que afronta o próprio texto da Directiva, que a instituiu para valer apenas para o futuro e que, carecendo de efeito directo horizontal, não pode servir para, através de uma interpretação conforme ao direito nacional, conduzir à aplicação de forma indirecta ao litígio dos autos da presunção de danos nela prevista.
Suscita a inconstitucionalidade, por violação dos princípios da confiança, da certeza jurídica e não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, estabelecidos nos artigos 1.º, 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do art. 483.º do Código Civil que entende estar subjacente na sentença.
Por último, sustenta que a única decisão relevante para efeitos deste processo é a Decisão AT 39824, de 19 de Julho de 2016, que não pode nem deve ser confundida com a Decisão Scania, nem muito menos com o Acórdão Scania, cingindo-se o seu efeito vinculativo à sua parte dispositiva, ou seja, no que toca à “existência, natureza e âmbito material, subjetivo, temporal e territorial” da infracção, como resulta do artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018. Pelo que o Tribunal recorrido só estava vinculado à existência de uma violação, pela Recorrente, do artigo 101.º do TFUE e do artigo 53.º do Acordo do EEE, i.e. à existência ilicitude, cabendo à Autora provar os restantes pressupostos da responsabilidade civil. Alega ainda que a Decisão AT 39824 apenas estabelece (parágrafos 81 e 82) uma infracção por objecto, nos termos dos artigos 101.º do TFUE e 53.º do Acordo EEE, não tendo a Comissão procurado sequer apurar se esse condicionamento existiu na realidade, nem se se teria traduzido num qualquer prejuízo para os consumidores finais, tendo a sentença incorrido em erro de julgamento com impacto decisivo na resposta à matéria de facto e, por consequência, no desfecho desta acção.
Vejamos.
Começaremos por reproduzir o decidido em sede de “considerações prévias” no acórdão proferida nesta Secção em 6.11.2023, proc. n.º 54/19.6YQSTR.L1[2], que subscrevemos, sem prejuízo de prosseguirmos na apreciação dos alegados erros de julgamento em sede de apreciação do mérito do recurso:
“Como se sabe, no plano do Direito da UE, em matéria de concorrência regem, além do mais, os artigos 101.º e 102.º do TFUE.
Como infração base da presente ação (…), temos a decisão da Comissão Europeia de 19.07.2016, proferida no âmbito do processo AT.39824 – Cartel de Camiões, por violação imputável à Recorrente e a outras entidades, dos artigos 101.º, n.º 1 do TFUE e 53.º, n.º 1 do Acordo EEE, durante o período decorrido entre 17.01.1997 e 18.01.2011 (doravante, Decisão ou Decisão da Comissão).
Nesta esteira e da descrição do objeto do litígio supra exposto no Relatório, é de se concluir que no presente caso estamos perante uma ação de private enforcement, ou seja, uma ação de indemnização intentada por um particular visando o ressarcimento de danos causados por uma infração ao direito da concorrência por uma empresa ou associação de empresas, infração esta, neste caso, cuja existência já foi verificada pela aludida Decisão.
Neste âmbito, resulta desde logo do artigo 16.º, n.º 2, do Regulamento n.º 1/2003, o seguinte: “Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos [101.º] ou [102.º] do Tratado que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, as autoridades dos Estados-Membros responsáveis em matéria de concorrência não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão”.
Esta previsão implica (…) “uma presunção inilidível sobre a existência, natureza e âmbito material, subjetivo, temporal e territorial da infração” (…).
Como é sabido o private enforcement veio a ser expressamente regulamentado pela Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de novembro de 2014, publicada no JOCE em 5/12/2014 - Diretiva do Private Enforcement (doravante, Diretiva).
O prazo de transposição desta Diretiva terminou no dia 27 de dezembro de 2016. Contudo, em sede da nossa ordem jurídica nacional, a Diretiva foi tardiamente transposta pela Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, com data de entrada em vigor em 5 de agosto de 2018 (Cf. artigo 25.º da lei de transposição em referência).
Como resulta do considerando 6 da Diretiva 2014/104, no que respeita às ações de indemnização intentadas em aplicação das medidas nacionais destinadas a transpor esta diretiva, o legislador da União baseou‑se na constatação de que o combate dos comportamentos anticoncorrenciais por iniciativa da esfera pública, ou seja, da Comissão e das autoridades nacionais da concorrência, não era suficiente para assegurar a plena observância dos artigos 101.º e 102.º TFUE e que havia que facilitar a possibilidade de a esfera privada contribuir para o alcance desse objetivo (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2022, PACCAR e o., C‑163/21, EU:C:2022:863, parágrafo 55).
Nesta esteira, como é reconhecido pelo TJUE, o private enforcement, não visa apenas a tutela de direitos subjetivos dos particulares, mas insere-se também na tutela do próprio mercado único e interesses públicos a ele subjacentes. Como refere o TJUE “[e]sta participação privada na sanção pecuniária, e, por conseguinte, também na prevenção de comportamentos anticoncorrenciais, é tanto mais desejável quanto é suscetível não só de reparar o dano direto que a pessoa em questão alega ter sofrido mas também de reparar os danos indiretos causados à estrutura e ao funcionamento do mercado, que não pôde atingir a sua plena eficácia económica, nomeadamente em proveito dos consumidores em causa” (TJUE C-163/21, PACCAR, parágrafo 56).
Não surpreende, por isso, que a Diretiva contenha importantes disposições, nomeadamente, em matéria de prazos de prescrição (artigo 10.º, em especial, o seu n.º 3), a que acrescem, entre outros, disposições sobre os poderes de que devem estar dotados os tribunais nacionais em matéria de quantificação de danos e regras sobre repartição do ónus de prova (artigo 17.º, n.º 1 e 2, da Diretiva).
Em sede da aplicação no tempo, a própria Diretiva prevê um regime específico no respetivo artigo 22.º, segundo o qual:
1. Os Estados-Membros asseguram que as disposições nacionais adotadas por força do artigo 21.º a fim de dar cumprimento às disposições substantivas da presente diretiva não se aplicam retroativamente.
2. Os Estados-Membros asseguram que quaisquer disposições nacionais adotadas por força do artigo 21.º, que não as referidas no n.º 1, não se aplicam às ações de indemnização intentadas nos tribunais nacionais antes de 26 de dezembro de 2014.
Tendo em conta esta previsão legal, que distingue disposições substantivas de outras, em concreto, processuais, proibindo a retroatividade das primeiras, o TJUE foi chamado a decidir, em sede de reenvio prejudicial, sobre a aplicabilidade dos já aludidos artigos 10.º (prescrição) e 17.º, n.º 1 e 2 (poderes de que devem estar dotados os tribunais nacionais em matéria de quantificação de danos, a que acrescem regras sobre a repartição do ónus de prova).
Em tal âmbito, o TJUE, por decisão de 22 de junho de 2022, proferida no caso C-267/20, Volvo e DAF Trucks (ECLI:EU:C:2022:494), declarou no dispositivo:
“O artigo 10.º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados Membros e da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição substantiva, na aceção do artigo 22.º, n.º 1, desta diretiva, e que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva, foi intentada após a entrada em vigor das disposições que a transpõem para o direito nacional, na medida em que o prazo de prescrição aplicável a essa ação ao abrigo das anteriores regras não decorreu antes da data do termo do prazo de transposição da mesma diretiva.
O artigo 17.º, n.º 1, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição processual, na aceção do artigo 22.º, n.º 2, desta diretiva, e que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva, foi proposta após 26 de dezembro de 2014 e após a entrada em vigor das disposições nacionais que a transpõem para o direito nacional.
O artigo 17.º, n.º 2, da Diretiva 2014/104 deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição substantiva, na aceção do artigo 22.º, n.º1, desta diretiva, e que não está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora intentada após a entrada em vigor das disposições que transpõem tardiamente a referida diretiva para o direito nacional, tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da data do termo do prazo de transposição da mesma.”.
Recorde-se que a presente ação foi intentada em [09-07-2019][3].
Recorde-se, por seu turno, (…) que as decisões do TJUE, em sede de reenvios prejudiciais, são vinculativas não só para o respetivo tribunal requerente, mas para todos os tribunais dos Estados Membros, sob pena de inviabilizar-se o primado do direito da EU e o corolário da respetiva uniformidade (sobre estes pontos, veja-se, Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, 2015, 3.º ed., p. 608-611).
É certo que pode considerar-se que as decisões do TJUE em sede de reenvio prejudicial não são, em certo sentido, definitivas, mas tal não afasta o referido efeito vinculativo para os tribunais nacionais. Com efeito, a não definitividade das decisões do TJUE apenas quer dizer que, com o passar do tempo o TJUE pode, no âmbito de um outro processo de reenvio prejudicial suscitado por um tribunal nacional, alterar uma posição anteriormente tomada, situação que, como é bom de ver, no que ao citado acórdão diz respeito, manifestamente não ocorreu.
Tendo em conta a importância do referido artigo 17.º da Diretiva, em sede de matéria que iremos analisar em sede de questões de facto a resolver, convém desde já ter presente o seu conteúdo:
“Quantificação dos danos
1. Os Estados-Membros asseguram que nem o ónus da prova nem o grau de convicção do julgador exigidos para a quantificação dos danos tornem o exercício do direito à indemnização praticamente impossível ou excessivamente difícil. Os Estados-Membros asseguram que os tribunais nacionais sejam competentes, de acordo com os processos nacionais, para calcular o montante dos danos, se for estabelecido que o demandante sofreu danos mas seja praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar com precisão os danos sofridos, com base nos elementos de prova disponíveis.
2. Presume-se que as infrações de cartel causam danos. O infrator tem o direito de ilidir essa presunção.
3. Os Estados-Membros asseguram que, nas ações de indemnização, a autoridade nacional da concorrência possa, a pedido do tribunal nacional, prestar-lhe assistência na quantificação dos danos, caso a autoridade nacional da concorrência considerar adequada a prestação dessa assistência.”
Porventura o n.º1 do citado preceito carece de esclarecimentos quanto ao conceito de “competentes” utilizado na segunda parte da norma. Com efeito, tal competência deve ser entendida como uma faculdade ou poder[4] reconhecido aos tribunais dos Estados-Membros para calcular o montante do dano, através de uma estimativa judicial.
Como constata o Ac. TJUE caso C-267/20, parágrafo 83 “esta disposição [artigo 17.º, n.º 2 da Diretiva] e, mais especificamente, o segundo período da mesma, visa, em contrapartida, de acordo com os «processos nacionais» a que se refere, conferir aos órgãos jurisdicionais nacionais uma faculdade especial no âmbito dos litígios relativos a ações de indemnização por infrações ao direito da concorrência”.
Tal poder encontra-se expressamente consagrado no artigo 9.º, nº 2, da Lei n.º 23/2018 (Lei de transposição), nos seguintes termos:
“2 - Se for praticamente impossível ou excessivamente difícil calcular com exatidão os danos totais sofridos pelo lesado ou o valor da repercussão a que se refere o artigo anterior, tendo em conta os meios de prova disponíveis, o tribunal procede a esse cálculo por recurso a uma estimativa aproximada, podendo, para o efeito, ter em conta a Comunicação da Comissão (2013/C 167/07), de 13 de junho de 2013, sobre a quantificação dos danos nas ações de indemnização que tenham por fundamento as infrações aos artigos 101.º e 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.”.
Ora, tomando em conta o decidido no Ac. do TJUE C-267/20, porque a infração base da presente ação cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva (terminou em 2011), sendo que a presente ação foi proposta após 26 de dezembro de 2014 e após a entrada em vigor das disposições nacionais que a transpõem para o direito nacional, podemos ter por certo que a previsão legal em causa (artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva, artigo 9.º, n.º 2 da Lei de transposição), é aqui aplicável.
Tendo em conta o ora exposto, em especial, o facto da presente ação ter sido interposta em momento posterior à entrada em vigor da Lei 23/2018, a este entendimento não se opõe o artigo 24.º, n.º 2, desta mesma Lei.
Por seu turno, resulta igualmente claro da aplicação da jurisprudência estabelecida pelo citado acórdão do TJUE C-267/20, que as presunções legais previstas no artigo 17.º, n.º 2, da Diretiva, em concreto, a presunção legal (ilidível) do dano resultante da infração e do respetivo nexo causal, não são aqui aplicáveis.
O artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva é uma expressão do princípio da efetividade, segundo o qual as normas nacionais não devem tornar impossível, na prática, ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica da União.
Sobre o princípio da efetividade (e equivalência) e o seu sentido no âmbito do Direito da Concorrência da União, a Recorrente levantou várias objeções nas considerações prévias que elaborou em sede das suas conclusões, conforme supra descrito, sobre a respetiva interpretação dada pelo tribunal a quo. Mais juntou (…) pareceres de jurisconsultos que opinam sobre esta matéria (entre outras).[5] Convirá, pois, esclarecer o sentido deste princípio no que é aqui particularmente pertinente.
Quanto ao princípio da efetividade e o princípio da equivalência, estes já tinham sido reconhecidos pelo TJUE como emanações dos artigos 101.º e 102.º TFUE, logicamente anteriores à Diretiva (Acs. TJUE 20-09-2001, C-453/99, Courage e Crehan, EU:C:2001:465 e de 13.07.2006, Manfredi e o., C-295/04 a C-298/04, EU:C:2006:461).
Segundo o Acórdão proferido nos casos conexos C-295/04 a C-298/04 (Manfredi), parágrafo 95, “resulta do princípio da efectividade e do direito de qualquer pessoa a pedir a reparação do dano causado por um contrato ou um comportamento susceptível de restringir ou falsear o jogo da concorrência que as pessoas que tenham sofrido um dano possam pedir reparação não só do dano real (damnum emergens) mas também dos lucros cessantes (lucrum cessans), bem como o pagamento de juros”. Ou seja, este acórdão esclareceu, desde logo, que tipo de danos poderiam ser reclamados em consequência de uma violação das regras da concorrência, entendimento agora positivado no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 da Diretiva.
Por seu turno, de acordo com o Acórdão do caso C-453/99 (Courage), parágrafo 29, “na ausência de regulamentação comunitária na matéria, compete à ordem jurídica interna de cada Estado-Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos que para os cidadãos resultam do efeito directo do direito comunitário, desde que essas modalidades não sejam menos favoráveis do que as das acções análogas de natureza interna (princípio da equivalência) e não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efectividade)”.
Ou seja, este acórdão esclareceu obrigações genéricas dos Estados-Membros no sentido de regular a matéria das indemnizações por infrações aos atuais artigos 101.º e 102.º do TFUE, de modo a garantir a salvaguarda dos direitos dos cidadãos prejudicados, em condições que não sejam menos favoráveis do que as das ações análogas de natureza interna e não tornem praticamente impossível ou excessivamente difícil o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária. Estes princípios gerais foram objeto de positivação no artigo 4.º da Diretiva.
Neste contexto, o disposto no artigo 17.º da Diretiva, constitui um novo passo na concretização do princípio da efetividade.
Ora, apesar de poder haver aqui alguma tentação em interpretar o artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva e o princípio da efetividade como uma facilitação em sede probatória dos pressupostos da responsabilidade civil e da respetiva indemnização, em especial quanto à extensão do dano,[6] cremos que tal interpretação somente é válida num certo sentido.
Com efeito, em casos onde está em causa uma infração ao direito da concorrência, por exemplo, pela existência de acordos colusórios entre empresas concorrentes no sentido de aumentar os preços de determinados produtos, muitas vezes torna-se praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar os danos, desde logo, porque normalmente as práticas restritivas da concorrência ocorrem de forma secreta, existindo invariavelmente uma assimetria de informações entre o infrator e o demandante.
Como se constata no Ac. TJUE de 16 de fevereiro de 2023, C-312/21, Tráficos Manuel Ferrer SL e Ignacio (ECLI:EU:C:2023:99), parágrafo 55, “por definição, o autor da infração sabe o que fez e o que lhe foi eventualmente imputado e conhece as provas que, nesse caso, puderam servir à Comissão ou à autoridade de concorrência nacional em causa para demonstrar a sua participação num comportamento anti concorrencial contrário aos artigos 101.º e 102.º TFUE, ao passo que a vítima do dano provocado por esse comportamento não dispõe dessas provas”.
É neste contexto, aliás, que o artigo 5.º, n.º 1 da Diretiva prevê que “os tribunais nacionais possam ordenar ao demandado ou a um terceiro a divulgação dos elementos de prova relevantes que estejam sob o seu controlo”.
É certo que pode ler-se no parágrafo 82 do Ac. TJUE C-267/20 já citado que “a mesma disposição [artigo 17.º, n.º 1, da Diretiva] tem por objetivo aligeirar o nível de prova exigido para efeitos de determinação do montante dos danos sofridos e sanar a assimetria de informação existente em detrimento da parte demandante em causa, bem como às dificuldades resultantes do facto de a quantificação dos danos sofridos exigir que se avalie de que forma teria evoluído o mercado em causas e não tivesse existido a infração”.
Tal “aligeiramento” pode e deve ser compreendido como a validade do uso de métodos de cálculo da extensão do dano por aproximação ao valor “real” do dano, por exemplo, através de métodos econométricos descritos no Guia Prático.[7]
Já no que toca aos poderes atribuídos ao tribunal no segundo período da norma, cremos tratar-se de coisa diversa. Conforme resulta do parágrafo 83 do Ac. TJUE caso C-267/20, o que aqui se prevê é uma faculdade especial.
De notar que o recurso ao poder judicial previsto no artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva, não pode ser efeito da mera incerteza, por si só, sobre o quantum do dano subsistente após a prova produzida pelas partes.
Como esclarece o acórdão do caso C-312/21 (Tráficos Ferrer) parágrafo 52 “a mera existência dessas incertezas, inerentes ao contencioso da responsabilidade e que resultam, na realidade, do confronto de argumentos e de peritagens no âmbito do debate contraditório, não corresponde ao grau de complexidade na avaliação do dano exigido para permitir a aplicação da estimativa judicial prevista no artigo 17.º, n.º 1, desta diretiva”
Ou seja, o que pode despoletar o uso do poder judicial previsto no artigo 17.º, n.º 1, não é uma mera incerteza sobre a quantidade de dano resultante da atividade probatória das partes, mas determinadas circunstâncias concretas do caso, em particular, uma especial complexidade na avaliação do dano, donde se infere que, apesar de todos os esforços probatórios encetadas pelas partes, maxime, o demandante ou autor, é praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar o dano.
Com efeito, esclarece o parágrafo 53 do acórdão do caso C-312/21, “o próprio teor desta disposição limita o âmbito de aplicação da estimativa judicial do dano às situações em que é praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificá‑lo, uma vez demonstrada a sua existência relativamente à parte demandante, o que pode corresponder, por exemplo, a dificuldades particularmente importantes de interpretação dos documentos apresentados quanto à proporção da repercussão do custo adicional resultante do acordo sobre os preços dos produtos adquiridos pela parte demandante a um dos autores do cartel”.
Nesta esteira é de notar que o poder especial previsto no artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva, ou seja, a estimativa judicial, lido em harmonia com acórdão ora em referência (C-312/21), é algo distinto da prova produzida pelas partes. O próprio corpo do artigo realça que será praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar com precisão os danos sofridos, com base nos elementos de prova disponíveis. A estimativa judicial deve, pois, entender-se como um poder atribuído ao tribunal para a quantificação do dano, quando as partes, maxime, o demandante ou autor, não o logram fazer, não porque foram menos diligentes, mas porque tal quantificação era, em termos objetivos, praticamente impossível ou excessivamente difícil. O problema da quantificação do dano passa, assim, de um plano primordialmente factual, para, pelo menos em importante medida, para o plano jurídico, como ocorre, entre nós, com o recurso à equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil).[8]
Daqui resulta que o poder previsto no artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva também não constitui um poder instrutório do tribunal, no sentido de implicar, por exemplo, o poder oficioso de determinar uma perícia. Tal não faria sentido, pois o pressuposto desta faculdade especial é precisamente a prova do quantum do dano ser praticamente impossível ou excessivamente difícil. Ora, pressupondo-se que determinado demandante é diligente e encetou os esforços probatórios para quantificar o dano que lhe eram exigíveis, que sentido faria atribuir uma faculdade especial ao tribunal para apenas e tão só tentar o que já se concluiu ser praticamente impossível ou excessivamente difícil?
Este poder visa, assim, ultrapassar as dificuldades probatórias do caso concreto, atribuindo-se ao tribunal a faculdade especial de fazer uma estimativa do quantum do dano, precisamente quando os meios probatórios disponíveis são insuficientes para o efeito.
É por isso que este poder deve ser uma última ratio ao dispor do tribunal e não pode visar colmatar falhas processuais das partes. Como se lê no parágrafo 57 do acórdão do caso C-312/21 “na hipótese de a impossibilidade prática de avaliar o dano resultar da inação do demandante, não cabe ao juiz nacional substituir‑se a este último nem colmatar as suas falhas”.
É certo que o sistema processual civil nacional, diferentemente de outros sistemas de Estados Membros da UE, prevê amplos poderes ao juiz para ordenar meios de prova (cf. artigos 411.º e 663.º, n.º 1 e 2, do CPC).
Ora, interpretando o direito nacional em conformidade com o já exposto, em especial, com o Ac. TJUE C-312/21, parágrafo 57, parece-nos que tais poderes deverão ser utilizados com acrescida ponderação. De recordar, por exemplo, que a realização de perícias nestas matérias importará, muitas vezes, despesas elevadas (que podem, inclusive, ultrapassar o valor do pedido), entrando estas em custas do processo da responsabilidade da parte que decai.
Por outro lado, o sucesso de perícias em matérias de elevada complexidade, será uma incógnita. O tribunal não pode, pois, ser alheio a estes aspetos quando pondera ordenar, oficiosamente, uma perícia. Parece-nos que, no mínimo, um debate contraditório sério e leal com as partes impõe-se antes de se ordenar a diligência.
Através dos mecanismos previstos nos artigos 5.º e 17.º, n.º 1, da Diretiva, interpretados da forma descrita, visa-se o reequilíbrio da relação de forças entre demandantes e demandados.
Não se pode, pois, interpretar aqui o princípio da efetividade como um “aligeiramento” das regras probatórias, senão com os sentidos aqui expostos.
Por seu turno, seguindo a jurisprudência do TJUE aqui em análise (em especial, o caso C-312/21), a estimativa judicial pressupõe que a existência do dano se mostre suficientemente provada pela parte respetiva, reduzindo-se assim o campo de aplicação dos poderes judiciais especiais apenas e tão só ao quantum do dano (estimativa judicial).
Neste contexto, conforme já resulta do supra exposto, afastada a aplicabilidade das presunções previstas no artigo 17.º, n.º 2 da diretiva (presunções legais do dano e nexo causal), caberá ao autor a prova da existência do dano.
Como é sabido, na falta de norma de direito da União, as ações de indemnização são regidas pelas regras e pelos processos nacionais dos Estados-Membros (considerando 11 da Diretiva). No nosso caso em termos de causa de pedir da ação, rege, portanto, o artigo 483.º, do CC, no que aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual diz respeito (interpretado em conformidade com o Direito da UE, nomeadamente, nos pontos ora analisados).
Por seu turno, obviamente que não deixa de aqui ser aplicável, quando admissível à luz do direito nacional, o regime das presunções judiciais (artigos 349.º e 351.º, 392.º, do CC; artigo 607.º, n.º 4 e 5, do CPC).
Com efeito, de acordo com o princípio da equivalência, as regras nacionais que regem o exercício do direito à reparação por danos causados por infração aos artigos 101.º ou 102.º do TFUE, não deverão ser aplicadas de forma menos favorável do que as regras aplicáveis às ações nacionais análogas.
Nesta esteira, também o standard da prova deve ser pelo menos equivalente à exigida em processos nacionais. Ora em sede de standard da prova, dir-se-á que a quem cabe provar determinado facto de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, nomeadamente, os factos atinentes ao dano, terá que demonstrar que a hipótese fáctica visada encontra confirmação positiva nos meios de prova que apresentou e é mais provável do que não (teoria da probabilidade prevalecente).
Como constatou o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, em matéria relativa a danos hipotéticos no âmbito da chamada “perda de chance”, “para estarmos perante uma chance com probabilidade de sucesso suficiente terá, em princípio e no mínimo, o sucesso da chance (o sucesso da provável ação comprometida) que ser considerado como superior ao seu insucesso, uma vez que só a partir de tal limiar mínimo se poderá dizer que a não ocorrência do dano, sem o ato lesivo, seria mais provável que a sua ocorrência”.
Por último, porque no caso concreto se colocam também questões difíceis de nexo causal, haverá que recordar aqui, novamente com aquele AUJ: “a teoria da causalidade adequada cujo objetivo é excluir a imputação de danos que tenham ocorrido devido a um encadeamento de circunstâncias completamente invulgar e que, dum ponto de vista hipotético, não eram de esperar, a ponto de, como é sabido, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos e culposos (como é o caso), ser considerada “preferível” a sua formulação negativa, o que significa que para a imputação objetiva dum dano à conduta do lesante será suficiente, em princípio, que a respetiva concretização não se encontre fora de toda a probabilidade”.
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Decisão e acórdão Scania
A sentença não recorreu, na fixação da matéria de facto, à decisão da Comissão Europeia (Decisão C (2017) 6467 final da Comissão, de 27 de Setembro de 2017, relativa a um processo nos termos do artigo 101.º [TFUE] e do artigo 53.º do Acordo EEE (processo AT.39824) – Camiões).
Refere na fundamentação (v. p. 54 a 58) a decisão Scania da Comissão, de 19.07.2016, na sua versão não confidencial, a propósito das características da conduta infractora; e o acórdão Scania do Tribunal Geral, de 2.02.2022 (processo C-251/22 P), extraindo dele o que considerou relevante para a compreensão dos contornos do cartel: “(i) Os acordos e a concertação por vezes também afetaram os preços líquidos e as modificações de descontos para clientes (§ 304, 353, 356, 357); (ii) determinados acordos colusórios "pelo objeto" como os de fixação horizontal de preços, são “tão suscetíveis de ter efeitos negativos, em particular sobre o preço, quantidade ou qualidade dos bens e serviços, que pode ser considerado redundante (...) demonstrar que têm efeitos reais no mercado. A experiência demonstra que tal comportamento leva a quedas da produção e a aumentos de preços, o que pode levar a uma má alocação de recursos em detrimento, em particular, dos consumidores. (§311)”.
Não há qualquer referência na sentença a uma “vinculação” do Tribunal à decisão Scania, tendo sido, assim como o acórdão do TG que a interpretou, usada para melhor compreensão dos contornos e das características do cartel em que a Scania, mas também a Recorrente, participaram. Com efeito, ainda que a Recorrente não tenha sido destinatária da decisão (não transacionada) e do acórdão Scania, o cartel é o mesmo em que participou e que foi objecto da Decisão (transacionada) de que foi uma das destinatárias. De resto, quer a decisão Scania quer o acórdão do TGUE, este a propósito daquela decisão, aludem em várias passagens do seu texto à “Scania e às partes na transacção”.
Pelo que, conclui-se, o Tribunal não estava impedido de se lhe referir na fundamentação da sentença nos moldes em que o fez.
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2.2.2. impugnação da matéria de facto
Factos incorretamente considerados provados (20. a 25., 28 e 39 a 42)
Sustenta a Recorrente que, tendo em conta que o efeito vinculativo da Decisão da Comissão se limita à sua parte dispositiva, esta não pode servir de meio de prova para demonstrar mais do que isso, ou seja, que a DAF N.V. foi sancionada juntamente com diversos outros fabricantes de camiões por práticas “colusórias sobre preços e aumentos de preços brutos no EEE para camiões médios e pesados; e no momento e repercussão de custos com a introdução de tecnologia e emissões para camiões médios e pesados requerida pelos standards EURO 3 e EURO 6”, traduzidas numa “infração aos artigos 101.º do TFUE e artigo 53.º do Tratado do EEE durante os períodos indicados”, na circunstância de “17 de Janeiro de 1997 até 18 de Janeiro de 2011”, matéria de facto esta que se encontra já reflectida nos pontos 26., 27. e 31. da matéria de facto provada e importa a necessária eliminação dos pontos 20. a 25. e 28. da matéria de facto.
Alega ainda que, face ao artigo 607.º, n.º 4 do CPC, a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, o que não é o caso dos pontos 20. a 25. e 28. dos factos provados, os quais devem também, por essa via, ser eliminados.
Sem razão, no entanto.
O que consta dos pontos 20. a 25. da matéria de facto provada é a expressa transcrição de excertos do texto da Decisão da Comissão, o que em si mesmo constitui um facto concreto e não um meio de prova, e, no caso do ponto 28., um resumo do seu capítulo “7. MEDIDAS CORRETIVAS” relativo à fixação das coimas.
Excertos do texto da Decisão da Comissão que o Tribunal entendeu relevantes para a decisão da causa, optando por não dar o mesmo por reproduzido na íntegra, sendo que os § (46), (47), (49) a (60), (68) e (69), (71) a (78), (81) e (82) e (84) e (85) fazem parte da Decisão da Comissão, de que a Recorrente é uma das destinatárias, não sendo portanto alegações genéricas, conclusões, juízos valorativos, hipotéticos, genéricos e não concretizados que o Tribunal a quo tenha considerado provados, sendo necessários para a compreensão da Decisão.
Como se pode ler na motivação da decisão sobre a matéria de facto da sentença, “a factualidade provada descrita nos pontos 12. a 31. resultou do teor da Decisão da Comissão Europeia datada de 19/07/2016 – Proc. AT.39824 - Camiões (cujo único texto autêntico é o inglês)”.
A Decisão da Comissão aqui em causa já foi objecto de interpretação pelo TJUE no caso C-588/20, por decisão de 1.08.2022 (ECLI:EU:C:2022:607). Segundo o TJUE, para proceder à interpretação do alcance da Decisão há que tomar em conta, em primeiro lugar, o dispositivo e os fundamentos desta decisão (parágrafo 39). Ora, por fundamentos devem naturalmente entender-se quaisquer considerandos da Decisão necessários à compreensão do dispositivo ou que constituem um suporte essencial do mesmo. Tal corresponde ao sentido geralmente aceite de “fundamento”, ou seja, de algo que suporta uma decisão ou que o torna compreensível[9].
Quanto ao facto provado 28, único que não constitui transcrição da Decisão mas que remete para o seu ponto 7., a Recorrente entende que deve ser eliminado por dele constar que, na fixação das coimas, a Comissão teve nomeadamente em conta o facto de os mecanismos de coordenação de preços, de entre as restrições à concorrência, assumirem os efeitos mais prejudicais, o que a Recorrente entende configurar “um mero juízo valorativo abstrato, já que no caso concreto, reconhecidamente não foram apurados quaisquer efeitos, por tal se revelar desnecessário para a aplicação da coima, conforme clarificação da Senhora …”.
Sem razão também aqui, face ao que expressamente consta do capítulo da Decisão da Comissão, em especial do (115):
Ou seja, na apreciação da gravidade objectiva da conduta, foi efectivamente tido em conta que os mecanismos de coordenação de preços como os descritos na Decisão se encontram entre as restrições à concorrência com efeitos mais prejudiciais. Afirmação que revela que a conduta tem mais probabilidades de gerar efeitos anti-concorrenciais. Isto sem prejuízo de, por se ter apurado uma infracção “por objecto”, nos termos do art. 101.º do TFUE, não se terem determinado os concretos efeitos no mercado causados pela conduta ilítica.
A afectação da estrutura concorrencial do mercado, com efeitos consideráveis no comércio, consta dos (84) e (85) da Decisão da Comissão, reproduzidos no ponto 25. da matéria de facto provada da sentença recorrida, o que, no contexto, se afigura que tais efeitos dizem respeito ao fluxo comercial entre os Estados-Membros.
Como veio a ser referido na fundamentação da sentença (p. 52 – remetendo para o decidido pelo TJUE no acórdão de 2.04.2020, C-228/18), é perfeitamente possível que a conduta sancionada "pelo objecto", nos termos do artigo 101.º do TFUE, também tenha "efeito" na distorção ou restrição da concorrência no mercado; “a sanção do cartel pelo objeto dispensa a demonstração de que tem efeitos específicos no mercado para efeitos de aplicação do artigo 101.º, n.º 1 do TFUE, uma vez comprovado um especial grau de nocividade pela própria natureza da conduta para a concorrência e a sua capacidade para gerar efeitos negativos em especial nos preços, na quantidade ou qualidade dos produtos ou serviços a avaliar, pois a experiência demonstra que estes comportamentos dão origem a reduções da produção e aumentos de preços que conduzem a uma alocação deficiente dos recursos em detrimento especialmente dos consumidores. Apenas se a análise de um tipo de coordenação entre empresas não revelar um grau suficiente de nocividade para a concorrência, seria necessário, em alternativa, examinar os seus efeitos e, para aplicar a proibição, exigir que se verifiquem fatores que comprovem que o livre jogo da concorrência tenha sido, de facto, impedido, restringido ou significativamente falseado.”
Improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto. »
Entende ainda a Recorrente que, porque foram considerados provados com base numa presunção errada e ilegalmente construída por via interpretativa, com aplicação retroactiva das disposições substantivas da Directiva dos Danos e da Lei de Transposição, e horizontal proibida da Directiva dos Danos, em violação do efeito vinculativo limitado da Decisão, os factos provados 39. a 42. devem ser eliminados.
Aplicação retroactiva da Directiva e da lei de Transposição
Não se vê, neste ponto, a razão da Recorrente, porquanto a sentença recorrida, seguindo a jurisprudência do TJUE iniciada no Caso C-267/20 Volvo v. DAF Trucks, considerou que o artigo 17.º, n.º2 da Directiva e a respectiva norma de transposição (artigo 9.º, n.º1 da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho) não são aplicáveis ao caso dos autos (cfr. p. 34 e 47 a 48), sendo aplicável, nesse caso, o art. 483.º do Código Civil, com respeito pelos princípios da equivalência e da eficácia. A “presunção” da existência de dano a que alude a sentença é uma ilação retirada da análise a que procedeu da infracção, tal como consta da decisão da Comissão, concluindo que “não se alcança outra conclusão se não a de que desta prática resultaram danos passados ao longo da cadeia vertical até aos adquirentes dos camiões, no caso, até à Autora”, ainda que não extensível à quantificação desses danos.
Efeito vinculativo limitado da Decisão da Comissão
A Recorrente entende que o efeito vinculativo da Decisão da Comissão Europeia é limitado, na medida que, como apenas a parte dispositiva da Decisão pode ser objecto de recurso e não a sua fundamentação, apenas a parte dispositiva da Decisão tem efeito jurídico vinculativo e já não as outras partes, daí retirando que os tribunais nacionais, em acções de indemnização subsequentes, apenas não podem determinar que a DAF não violou o artigo 101.º TFUE e que os Autores se podem basear na Decisão para comprovar que a Comissão estabeleceu esta infracção, mas não que a Decisão tenha um “efeito vinculativo” sobre (i) a existência de um acto voluntário cometido pela DAF contra a Autora, (ii) sobre a sua ilicitude ou culpa e (iii) muito menos sobre a existência de danos.
O artigo 7.º, n.º1 da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho (direito a indemnização por infracção ao direito da concorrência) dispõe, sobre a força probatória das decisões das autoridades de concorrência e dos tribunais de recurso, que a declaração pela Autoridade da Concorrência através de decisão definitiva, ou por um tribunal de recurso através de decisão transitada em julgado, da existência de uma infracção ao direito da concorrência constitui presunção inilidível da existência, natureza e âmbito material, subjectivo, temporal e territorial dessa infracção, para efeitos da acção de indemnização pelos danos dela resultantes.
Dispõe por seu turno o art. 16.º do Regulamento 1/200,3 de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos artigos 81.° e 82.° do Tratado:
1. Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.º ou 82.º do Tratado que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, os tribunais nacionais não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão. Devem evitar tomar decisões que entrem em conflito com uma decisão prevista pela Comissão em processos que esta tenha iniciado. Para o efeito, o tribunal nacional pode avaliar se é ou não necessário suster a instância. Esta obrigação não prejudica os direitos e obrigações decorrentes do artigo 234.º do Tratado.
2. Quando se pronunciarem sobre acordos, decisões ou práticas ao abrigo dos artigos 81.º ou 82.º do Tratado que já tenham sido objeto de decisão da Comissão, as autoridades dos Estados-Membros responsáveis em matéria de concorrência não podem tomar decisões que sejam contrárias à decisão aprovada pela Comissão.
Ou seja, não havendo alteração dos factos e não sendo efectuado – o que nesse caso se imporia - um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, os Tribunais nacionais não dispõem de margem para discordar ou para se afastar da decisão da Comissão no que respeita à existência da infracção.
Contudo e como apreciamos já, a decisão da Comissão pode ser interpretada e nessa apreciação é necessário considerar quer o dispositivo quer os fundamentos, quer de facto quer de Direito, da decisão.
Sendo que, em todo o caso, a Decisão está sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos gerais do art. 366.º do CC. E nenhuma razão há para duvidar do seu teor, tanto mais que, como consta do ponto 43 da decisão da Comissão, a “proposta de transação de cada Destinatário [incluindo a ora Recorrente DAF] continha: – um reconhecimento, em termos claros e inequívocos, da responsabilidade do Destinatário pela infração descrita resumidamente quanto ao objeto, aos principais factos e à qualificação jurídica, incluindo a sua função e a duração da sua participação na infração de acordo com os resultados das negociações conducentes à transação”.
Não só formal mas também materialmente, como esclareceu o TGUE no caso British Airways v. Comissão Europeia, referindo que o efeito vinculativo inclui a qualificação jurídica da conduta e os âmbitos temporais, geográfico e subjectivo. Com efeito, a existência de uma infracção abrangida pelo efeito vinculativo reporta-se a uma infracção concreta e o que a torna concreta é a sua natureza ou qualificação jurídica e os seus âmbitos temporal, geográfico, subjectivo e também o âmbito material[10], ou seja, os concretos actos em que a conduta se consubstanciou.
Passemos então à análise dos factos impugnados.
Consta o seguinte dos factos provados 39. a 42.:
39. A Ré, em conluio com outros fabricantes de camiões, aumentou, de forma ilícita, intencional, coordenada e continuada, com os seus concorrentes, os preços brutos dos camiões de peso superior a 6 toneladas, que fabricou e comercializou, diretamente ou através da sua rede de distribuição, no período de 17/01/1997 a 18/01/2011.
40. Tal aumento nos preços brutos foi projetado, na mesma proporção, nos preços líquidos de venda dos veículos, tendo a Ré fixado um preço superior àquele que seria devido, caso não tivesse ocorrido a referida conduta ilícita.
41. O aumento do preço fixou-se num mark-up[11] de preço de, pelo menos, 15,4% por veículo.
42. A Autora, ao pagar o referido preço para aquisição do veículo, suportou o referido sobrecusto no valor de €12.904,02, correspondente a 15,4% do preço de compra do camião, atualizado a valores de 2018.
De acordo com a motivação da decisão da matéria de facto, os factos 39 a 42 foram considerados provados com base “na análise que o Tribunal fez da Decisão da Comissão Europeia e dos factos dela resultantes, descritos nos pontos 12 a 31 da matéria de facto, de acordo com o Direito e a Jurisprudência a atender na subsunção dos factos ao Direito aplicável, em conjugação com os pareceres técnico-económicos juntos pelas partes e com os esclarecimentos sobre eles prestados pelos seus subscritores e demais testemunhas inquiridas”.
Vejamos.
Estão em causa quer factos atinentes à existência do dano da Recorrida e nexo causal entre este e o facto ilícito praticado pela Recorrente (contendo, também, matéria atinente à intencionalidade imputável a esta, ou seja, à culpa), quer factualidade essencial para quantificar, em concreto, esse mesmo dano. Se bem que interligados, faremos uma análise separada dos factos 39 e 40, essencialmente atinentes à verificação do dano e ao nexo causal entre este e o facto ilícito, e dos factos 41 e 42, essencialmente atinentes ao quantum do dano.
Também aqui subscrevemos o decidido no acórdão de 6.11.2023 desta Secção, proferido no proc. n.º 54/19.6YQSTR.L1:
“a. Dos factos relativos à existência do dano e nexo causal
(…) a Decisão foi junta como Doc. 1 da petição inicial (…), constando dos autos uma versão em língua inglesa e uma tradução para português. A Decisão foi transcrita em muitos dos seus pontos considerados mais importantes (factos provados 20 a 25).
O documento junto aos autos é uma versão não confidencial da Decisão e, por isso, com alguma informação retirada, não existindo razões para crer que a informação constante da versão da Decisão junto aos autos não seja fidedigna. (…)
Neste contexto, uma vez que não foi invocada a falsidade do documento, conduzir-nos-emos, assim, pela versão da Decisão constante dos autos.
Conforme descrito nos factos provados (…) a Decisão da Comissão foi proferida no âmbito de um “Procedimento de transação em processos de cartéis”, nos termos do disposto no artigo 10.º-A, n.º 2 do Regulamento (CE) n.º 773/2004 da Comissão.
O tribunal a quo inicia o seu raciocínio com a constatação, que se nos afigura correta, de que “a Decisão da Comissão implica uma presunção inilidível sobre a existência, natureza e âmbito material, subjectivo, temporal e territorial da infracção – vide n.º 1 do artigo 16.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 do Conselho, de 16 de Dezembro de 2002, relativo à execução das regras de concorrência estabelecidas nos ex-artigos 81.º e 82.º do Tratado” (…).
Mais constata a sentença recorrida (…) que “a infracção não se limita essencialmente à troca de informações entre concorrentes” (…). Diz-nos a sentença recorrida “A infracção vai mais além do que a mera troca de informação” (…), para depois realçar “acordos colusórios” que “implicam que as empresas envolvidas prescindam da sua autonomia no mercado, com vista à redução ou eliminação dos riscos da concorrência (…). Estes acordos “visavam, designadamente, a negociação dos preços dos camiões e o seu aumento” (…).
Ou seja, concluiu a sentença recorrida que a infração subjacente à Decisão consistiu quer na troca de informações sensíveis entre empresas infratoras, quer em acordos e comportamentos “colusórios” com vista à fixação e aumento de preços dos camiões.
Há que determinar, portanto, se a conclusão do tribunal a quo, sobre o sentido e âmbito da Decisão é acertada ou se foi longe demais na sua interpretação da Decisão.
Para tanto, antes do mais, há que esclarecer o sentido do termo “cartel” (…).
A Diretiva (e Lei de transposição) define um cartel como “o acordo ou prática concertada entre duas ou mais empresas concorrentes que vise coordenar o seu comportamento concorrencial no mercado ou influenciar os parâmetros relevantes da concorrência, através de condutas como, nomeadamente, fixar ou coordenar os preços de aquisição ou de venda ou outras condições de transação, incluindo relativamente a direitos de propriedade intelectual, atribuir quotas de produção ou de venda, repartir mercados e clientes, incluindo a concertação em leilões e concursos públicos, restringir importações ou exportações ou conduzir ações anticoncorrenciais contra outros concorrentes, tal como proibido pelo artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, e, se aplicável, pelo artigo 101.º do TFUE” (artigo 2.º, n.º 14).
Por sua vez, antes da Diretiva, o já aludido Guia Prático, [12]a p. 13, ponto 21 (a), no âmbito de infrações ao Direito da Concorrência, realça que “[a]s infrações podem resultar num aumento dos preços pagos pelos clientes das empresas infratoras. Entre as infrações que produzem um efeito deste tipo, encontram-se as práticas de cartel proibidas pelo artigo 101.º do TFUE, tais como a fixação de preços, a repartição dos mercados ou os cartéis que limitam a produção”.
Ora a Decisão da Comissão é resultado de um “procedimento de cartel”. Para entendermos porquê, há que interpretar a Decisão.
Nesta sede há que recordar que a Decisão da Comissão constitui um ato de uma instituição da União e, como tal, pode ser, inclusive, objeto de interpretação em sede de reenvio prejudicial pelo TJUE (artigo 267.º, §1, alínea b), TFUE).
Aliás, a Decisão da Comissão aqui em causa, já foi objeto de interpretação pelo TJUE no caso C-588/20, por decisão de 01 de agosto de 2022 (ECLI:EU:C:2022:607). Neste processo o TJUE, em sede de reenvio prejudicial, interpretou a Decisão para determinar que tipo de produtos (camiões) estavam abrangidos pelo ilícito. Segundo o TJUE, para proceder à interpretação do alcance da Decisão há que tomar em conta, em primeiro lugar, o dispositivo e os fundamentos desta decisão (parágrafo 39). Naturalmente que devem entender-se por “fundamentos” quaisquer considerandos da Decisão necessários à compreensão do dispositivo ou que constituem um suporte essencial do mesmo. Tal corresponde ao sentido geralmente aceite de “fundamento”, ou seja, de algo que suporta uma decisão ou que o torna compreensível.
Recorde-se, assim, o teor do dispositivo da Decisão, constante de p. 30 e ss., da versão constante dos autos. O artigo 1 do dipositivo é do seguinte teor em inglês (única versão autêntica da Decisão, tal como realçado pela Recorrente – artigo 13 da motivação), no que concerne a Recorrente:
“By colluding on pricing and gross price increases in the EEA for medium and heavy trucks; and the timing and the passing on of costs for the introduction of emission technologies for medium and heavy trucks required by EURO 3 to 6 standards, the following undertakings infringed Article 101 TFEU and Article 53 of the EEA Agreement during the periods indicated:
(…)
AB Volvo (publ), from 17 January 1997 until 18 January 2011; Volvo Lastvagnar AB, from 17 January 1997 until 18 January 2011; Volvo Group Trucks Central Europe GmbH, from 20 January 2004 until 18 January 2011; Renault Trucks SAS, from 17 January 1997 until 18 January 2011
(…)”.
Resulta claro do dispositivo citado que a infração envolveu, desde logo, atos colusórios ou de conluio (“by colluding on”), entenda-se, entre as empresas infratoras referidas no mesmo dispositivo, atos estes relativos a preços e aumentos de preços brutos no Espaço Económico Europeu (EEE) de camiões médios e pesados, e sobre os timings e respetiva repercussão de custos da introdução de standards de tecnologias de emissões.
O artigo 2 do dispositivo é, por sua vez, do seguinte teor (no que à Recorrente diz respeito):
“For the infringement referred to in Article 1, the following fines are imposed:
(…)
Ou seja, foi aplicada às descritas entidades uma coima (…) de €(…), pela infração referida no artigo 1 do dispositivo.
O artigo 3 do dispositivo diz-nos:
“The undertakings listed in Article 1 shall immediately bring to an end the infringements referred to in that Article insofar as they have not already done so.
They shall refrain from repeating any act or conduct described in Article 1, and from any act or conduct having the same or similar object or effect.”
O citado artigo 3 constitui, como resulta claro do texto citado, uma ordem de cessação imediata das infrações aludidas no artigo 1, caso ainda não tenham cessado, devendo as entidades visadas abster-se da repetição de qualquer ato ou conduta descrita no artigo 1 e de qualquer ato ou conduta com objeto ou efeito semelhante.
Ora, para compreendermos o alcance desta ordem de imediata cessação e interdição de atos semelhantes em objeto ou efeito, torna-se necessário, como nos parece óbvio, saber em mais detalhe, a que atos colusórios ou de conluio, incidentes sobre preços e aumentos de preços brutos no EEE de camiões médios e pesados, e sobre os timings e respetiva repercussão de custos da introdução de standards de tecnologias de emissões, o dispositivo se refere.
Para compreendermos, assim, o citado dispositivo devemos recorrer, desde logo, à descrição da conduta ilícita constante do capítulo 3 da Decisão. Do referido capítulo 3, podemos destacar, no âmbito de atos de colusão ou conluio aludidos no artigo 1 do dispositivo, os considerandos 49 a 51 (sublinhados nossos):
"(49) The collusive contacts engaged in by the Addressees in the period 1997 to 2010 took place in the form of regular meetings at venues of industry associations, at trade fairs, product demonstrations by manufacturers or competitor meetings organised for the purpose of the infringement. They also included regular exchanges via e-mails and phone calls. The Addressees' headquarters (hereinafter: Headquarter-Level) were directly involved in the discussion of prices, price increases and the introduction of new emission standards until 2004. From at least August 2002 onwards, discussions took place via German Subsidiaries (hereinafter: German-Level), which, to varying degrees, reported to their Headquarters.
(50) These collusive arrangements included agreements and/or concerted practices on pricing and gross price increases in order to align gross prices in the EEA and the timing and the passing on of costs for the introduction of emission technologies required by EURO 3 to 6 standards.
"(51) From 1997 until the end of 2004, the Addressees participated in meetings involving senior managers of all Headquarters (see for example (52)). In these meetings, which took place several times per year, the participants discussed and in some cases also agreed their respective gross price increases. Before the introduction of price lists applicable at a pan-European (EEA) level (see above at (28)), the participants discussed gross price increases, specifying the application within the entire EEA, divided by major markets. During additional bilateral meetings in 1997 and 1998 apart from the regular detailed discussions on future gross price increases, the relevant Addressees exchanged information on harmonising gross price lists for the EEA. Occasionally, the participants, including representatives of the Headquarters of all of the Addressees, also discussed net prices for some countries. They also agreed on the timing of the introduction of, and on the additional charge to be applied to, the emissions technology complying with EURO emissions standards. In addition to agreements on the levels of price increases, the participants regularly informed each other of their planned gross price increases [...]".
Resulta claro destes considerandos que o conluio (ou colusão) referido no dispositivo, consistiu, portanto, em acordos colusórios (collusive arrangements) que incluíram acordos e/ou práticas concertadas (agreements and/or concerted practices) sobre a fixação de preços (pricing) e aumentos de preços brutos (gross price increases) de forma a alinhar os preços brutos no EEE e a oportunidade (timing) e repercussão de custos pela introdução de tecnologias de emissões.
Resulta, pois, que a infração envolveu, não só a troca de informações sensíveis, tal como descrito, por exemplo, no considerando 46, mas também acordos colusórios sobre a fixação de preços e aumentos de preços brutos, visando o alinhamento de tais preços no EEE.
Não pode haver dúvidas de que são condutas como estas que se subsumem aos artigos 1 e 3 do citado dispositivo.
Para melhor compreendermos o dispositivo serão ainda de destacar os seguintes considerandos:
"(71) [...] The single anti-competitive economic aim of the collusion between the Addressees was to coordinate each other's gross pricing behaviour and the introduction of certain emission standards in order to remove uncertainty regarding the behaviour of the respective Addressees and ultimately the reaction of customers on the market. The collusive practices followed a single economic aim, namely the distortion of independent price setting and the normal movement of prices for Trucks in the EEA".
"(81) The anti-competitive behaviour described in paragraphs (49) to (60) above has the object of restricting competition in the EEA-wide market. The conduct is characterised by the coordination between Addressees, which were competitors, of gross prices, directly and through the exchange of planned gross price increases, the limitation and the timing of the introduction of technology complying with new emission standards and sharing other commercially sensitive information such as their order intake and delivery times. Price being one of the main instruments of competition, the various arrangements and mechanisms adopted by the Addressees were ultimately aimed at restricting price competition within the meaning of Article 101(1) of the TFEU and Article 53(1) of the EEA Agreement".
O considerando 71 inclui-se no capítulo da fundamentação das considerações legais, mais precisamente no subcapítulo dedicado à aferição se a infração envolveu uma única conduta continuada. Este considerando é fundamental à compreensão do dispositivo, pois sem este (e demais considerações do subcapítulo em causa) não se compreenderia porquê que apenas foi sancionada uma única conduta a cada uma das infratoras, quando as condutas, em termos naturalísticos foram muitos e necessariamente espaçados entre si durante um longo período de tempo.
Quanto ao considerando 81, também se insere no capítulo das considerações legais desta feita no subcapítulo dedicado à restrição da concorrência. Aqui os considerandos obviamente eram essenciais até para a conclusão de que o objeto da infração era a violação dos artigos 101.º TFUE, presente no dispositivo.
Podemos, assim, ter por certo, desde logo com os considerandos citados, que a infração envolveu acordos colusórios que incluíram acordos e/ou práticas concertadas que visaram alinhar os preços brutos e respetivas subidas em todo o território do EEE, incidindo os acordos em alguns casos sobre preços líquidos (considerando 51). O objetivo de tais acordos e práticas era a distorção do estabelecimento independente dos preços no mercado respetivo e a coordenação dos timings e respetiva repercussão de custos da introdução de standards de tecnologias de emissões.
Não surpreende, por isso, que no parágrafo 40 da decisão do TJUE no já aludido caso C-588/20, se refira “há que salientar que, segundo o artigo 1.º da decisão em causa, o cartel em questão no processo principal tinha como objeto, por um lado, a fixação de preços e o aumento dos preços brutos no EEE dos camiões médios e dos camiões pesados, e, por outro, o calendário e a repercussão dos custos relativos à introdução de tecnologias de emissões exigidas pelas normas EURO 3 a 6”.
Resultou, pois, evidente ao TJUE que a Decisão incidiu sobre um cartel destinado, desde logo, à fixação e aumento de preços brutos de camiões médios e pesados.
Podemos, assim, ter por certo que a infração subjacente à Decisão, tinha como objeto, para além da troca de informações sensíveis, acordos e práticas de fixação de preços e o aumento dos preços brutos no EEE dos camiões médios e dos camiões pesados. Neste ponto, portanto, temos de concordar com o tribunal a quo.
Visto este primeiro ponto, vejamos se a Decisão suporta a inferência realizada pelo tribunal a quo, sobre a existência de danos, em suma, se foram efetivamente praticados no mercado, aqui no que concerne à Recorrente, preços líquidos superiores aos que seriam praticados caso não existisse o dito cartel.
Neste âmbito é de salientar, tal como fez a sentença recorrida, em harmonia com a Decisão, a muito longa duração do cartel, em concreto cerca de 14 anos (de janeiro de 1997 a janeiro de 2011).
Também de salientar a imensa extensão do cartel ou, como refere a sentença recorrida (...), a sua “área igualmente ampla”.
De notar que o Espaço Económico Europeu, até 30 de abril de 2004, incluía a Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, os Países Baixos, Portugal, Espanha, o Reino Unido, Áustria, Suécia, Finlândia, Islândia, Liechtenstein e Noruega. A partir de 1 de maio de 2004 passou a incluir a República Checa, a Estónia, Chipre, Lituânia, Hungria, Malta, Polónia, Eslovénia, Eslováquia. A partir de 1 de janeiro 2007 a Roménia e a Bulgária passaram a integrar o EEE.
Estas circunstâncias foram usadas na Decisão para justificar a gravidade da infração e respetivas coimas aplicadas no dispositivo (considerandos 114 e 118).
Por seu turno retira-se da Decisão, ademais, que a elevada quota de mercado também contribuiu para a elevada gravidade das condutas infratoras e, consequentemente, para as elevadíssimas coimas aplicadas no dispositivo da Decisão (…) Aliás, do Comunicado de Imprensa da Comissão datada de 19.07.2016, (…) e dos documentos juntos pela Recorrente consubstanciados em enxertos de comunicação social (…), retira-se que os infratores beneficiavam de uma quota de mercado muito elevada, próxima dos 90%, pois como aí se refere, aproximadamente 9 em cada 10 camiões eram por aqueles produzidos na Europa. Este facto foi tomado em conta na Decisão da Comissão, apesar da específica quota de mercado ter sido omitida na versão da Decisão junta aos autos (v. considerandos 24 e 116-117).
Ainda neste âmbito e perante o contexto em causa, não se pode deixar de concluir, (…), que os infratores, inclusive, a ora Recorrente, ao acordar com os demais elementos do cartel a subida de preços brutos durante o longo período de tempo em causa, agiram necessariamente de forma intencional, coordenada e continuada. Esta intencionalidade e coordenação continuadas foram sublinhadas na Decisão, nomeadamente, no considerando 104 (intencionalidade), e considerandos 52, 71, 81 e 115 (coordenação continuada). Esta factualidade evidentemente suporta o dispositivo quando constata o conluio entre as empresas, sobre preços e aumentos de preços brutos, conluio este que perdurou no tempo.
De salientar que todas estas características são específicas do concreto cartel ora em causa. Não tratam, portanto, de características genéricas atribuíveis a um qualquer cartel em abstrato, (…).
Não menos certo é que a Recorrente (…) defende-se aqui com o facto de a sanção da Decisão incidir sobre uma infração por objeto e não por efeitos.
Conforme resulta do considerando 82 da Decisão da Comissão, tendo em conta o objeto da infração, consistente na prevenção, restrição ou distorção da concorrência no EEE, a Comissão concluiu que era desnecessário aferir dos efetivos efeitos da infração no mercado.
Neste âmbito a Decisão inclusivamente cita o Ac. TJUE de 11 de setembro de 2014, C-67/13, Groupement des Cartes Bancaires v Commission (EU:C:2014:2204), parágrafo 49, que nos diz que “resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que determinadas formas de coordenação entre empresas revelam um grau suficiente de nocividade para a concorrência para que se possa considerar que não há que examinar os seus efeitos” .
Neste contexto, donde se depreende que a Decisão julgou desnecessário analisar os efetivos efeitos da infração no mercado, afigura-se-nos porventura excessivo recorrer-se ao considerando 85 da Decisão para se retirarem tais efeitos da infração.
Contudo, mesmo não recorrendo a tal considerando 85 chega-se à conclusão que a infração sancionada pela Comissão, com elevada probabilidade, implicou uma efetiva subida dos preços praticados no mercado, quer brutos, quer líquidos, influenciando, assim, os preços de venda dos camiões adquiridos pela Recorrida.
Efetivamente, já aludimos a algumas das principais características da infração que podem e devem ser aqui tomadas em consideração, em especial, que não envolveu a mera troca de informações sensíveis, mas também acordos colusórios sobre o aumento de preços brutos. O cartel tinha uma elevada quota de mercado e uma enorme extensão territorial, tendo-se coordenado, obviamente de forma intencional, durante um longo período de tempo, em concreto, de 1997 a 2011.
(…)
Ou seja, a Recorrida adquiriu (…) os camiões com preços de venda fixados durante o período da infração.
Ora, no Guia Prático, bastante referenciado nestes autos, citando o estudo Oxera 2009, por sua vez sustentado numa série de estudos empíricos já existentes sobre os efeitos dos cartéis, concluiu-se que em 93% dos casos verificaram-se subidas de preços, ou seja, sobrecustos ou preços adicionais (parágrafo 142 do Guia Prático).
Apenas 7% dos cartéis estudados não implicaram um sobrecusto.
Nesta sede, o mesmo Guia Prático não deixa de referir que “os tribunais nacionais, com base nesses conhecimentos empíricos, têm sustentado que os cartéis conduzem normalmente a um preço adicional e que, quanto maior tiver sido a duração e a sustentabilidade de um cartel, tanto mais difícil será para um requerido argumentar a ausência de qualquer incidência negativa nos preços num caso específico. Tais ilações são, todavia, uma questão da competência das legislações aplicáveis” (parágrafo 145).
Como recordamos supra em sede de Considerações prévias, em sede de standard da prova, dir-se-á que a quem cabe provar determinado facto de acordo com as regras de repartição do ónus da prova, nomeadamente os factos atinentes ao dano, terá que demonstrar que a hipótese fáctica visada encontra confirmação positiva nos meios de prova que apresentou e é mais provável do que não (teoria da probabilidade prevalecente).
Mais acrescentamos, seguindo o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2022, “a teoria da causalidade adequada cujo objetivo é excluir a imputação de danos que tenham ocorrido devido a um encadeamento de circunstâncias completamente invulgar e que, dum ponto de vista hipotético, não eram de esperar, a ponto de, como é sabido, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos e culposos (como é o caso), ser considerada “preferível” a sua formulação negativa, o que significa que para a imputação objetiva dum dano à conduta do lesante será suficiente, em princípio, que a respetiva concretização não se encontre fora de toda a probabilidade”.
Ora, seguindo estes ensinamentos e o já exposto, óbvio se torna que a hipótese defendida pela Recorrida, no sentido de que adquiriu camiões a um preço mais elevado (dano), preços estes aumentados devido à infração em causa, ou seja, devido aos descritos acordos colusórios (nexo causal), não só é mais provável do que a hipótese contrária, como é bastante mais provável (como se diria em inglês, numa fórmula conhecida, much-more-likely-than-not).
Com efeito, a Recorrida adquiriu veículos pesados novos, ou através de contratos de locação financeira ou diretamente à (…) por preços fixados no período em que perdurava o dito cartel, que envolvia a coordenação dos preços brutos, no sentido do seu aumento.”
Regressando ao caso concreto destes autos, a Recorrente sustenta que, nomeadamente, os factos 39 (a Ré, em conluio com outros fabricantes de camiões, aumentou, de forma ilícita, intencional, coordenada e continuada, com os seus concorrentes, os preços brutos dos camiões de peso superior a 6 toneladas, que fabricou e comercializou, directamente ou através da sua rede de distribuição, no período de 17/01/1997 a 18/01/2011) e 40 (Tal aumento nos preços brutos foi projectado, na mesma proporção, nos preços líquidos de venda dos veículos, tendo a Ré fixado um preço superior àquele que seria devido, caso não tivesse ocorrido a referida conduta ilícita) devem ser dados como não provados, com base na análise crítica e conjugada dos elementos de prova que identifica (relatórios Compass Lexecon I e II e Complemento, relatório BDO Prático da Comissão, requerimento da Ré Refª 35766770 de 12.06.2020 e resposta da Autora Refª 36005793 de 7.07.2020, declarações de (…) na sessão de julgamento de 30.05.2022 e de (…) na sessão de julgamento de 27.11.2020).
Os relatórios Compass Lexecon juntos pela Ré/Recorrente foram sustentados em julgamento pelo seu autor (…), director executivo da Compass Lexecon, e contestados pelos autores dos relatórios juntos pela Recorrida, nos termos que constam da motivação da decisão de facto (p. 23 a 25) – sendo que o próprio relatório Compass Lexecon (Análise económica dos potenciais efeitos da infração em Portugal e análise crítica do Relatório Pericial de João Carlos Cerejeira da Silva) contém a apreciação crítica do “relatório Cerejeira” junto pela Autora/Recorrida.
Na primeira parte do extenso relatório Compass Lexecon (235 pag.), partindo da análise da Decisão da Comissão como “tendo estabelecido a existência de práticas colusivas que consistem essencialmente no intercâmbio de informação entre a DAF Trucks N.V. e quatro outros fabricantes de camiões no Espaço Económico Europeu no que se refere: i) aos preços de lista (que a Decisão designa por preços brutos) dos camiões médios e pesados; e ii) ao calendário e o impacto dos custos da introdução de tecnologias de controlo de emissões”, conclui-se que é “altamente improvável que as informações trocadas no contexto da conduta sancionada (que não inclui informação sistemática sobre os preços de transação), pudessem ter conduzido a uma coordenação efetiva dos preços de transação” e que “a análise pormenorizada dos dados revela que a informação sobre os preços de lista e/ou o anúncio de alterações futuras dos preços de lista, no contexto das práticas sancionadas, não é suscetível de ter facilitado a coordenação dos preços de transação, sendo por conseguinte improvável que se tenha produzido um dano, através de um aumento dos preços cobrados aos clientes diretos da DAF (normalmente distribuidores independentes) e, consequentemente, aos seus clientes indiretos (empresas de financiamento e clientes finais)”.
Neste ponto, o estudo parte do pressuposto do que a infracção consistiu essencialmente na troca de informações – pressuposto comum ao parecer Oxera de 2019 - o que, da análise que fizemos da Decisão da Comissão, não é correcto. Está em causa um cartel, onde, para além de trocas de informações sensíveis, se verificou que as empresas efectivamente se conluiaram e coordenaram o aumento de preços brutos entre si, com o objectivo de distorcer o estabelecimento independente dos preços no mercado e coordenar os timings e respectiva repercussão de custos da introdução de standards de tecnologias de emissões.
Como se pode ler nos considerandos 51e ss. da Decisão da Comissão e consta do facto provado 21, entre 1997 e até ao final de 2004 os destinatários participaram em reuniões realizadas entre membros da direcção superior de todas as sedes, reuniões que ocorreram várais vezes por ano e em que os participantes discutiram e, nalguns casos, chegaram a acordo em relação aos aumentos dos respectivos preços brutos e harmonização das tabelas de preços brutos para todo o EEE; tendo ainda, em determinadas ocasiões, os representantes das sedes de todos os destinatários discutido também os preços líquidos para alguns países; a que acresceram contactos regulares entre as empresas para se informarem mutuamente dos aumentos e transmitirem outras informações sensíveis por via remota (telefone e email); reuniões de que a Decisão dá exemplos concretos de reuniões onde foram discutidos, entre outros, a redução de descontos, tendo-se acordado no aumento de preços, por exemplo, em França (considerando 53). Os fluxos de informação entre as empresas eram tão frequentes que foram, inclusivamente, elaborados templates, ou seja, modelos standard (padronizados) para as respectivas comunicações (considerando 57).
Estes factos descrevem uma coordenação entre empresas, nomeadamente quanto ao aumento de preços, bastante regular e intensa.
Em suma, perante uma coordenação de actividades do cartel regular e intensa, realizada inclusivamente pelas próprias cúpulas em pessoa e várias vezes por ano, com os riscos e custos associados, temos de discordar da conclusão de que não pode inferir-se que os preços efectivamente praticados sofreram aumentos devido a tais actividades ilícitas.
Perante o concreto cartel ora em causa, com as características que temos vindo a sublinhar e conduzindo-nos pela razoabilidade e as máximas da experiência comum, cremos ser altamente provável o contrário, e que, partindo-se de um preço bruto superior, o preço líquido final seria também mais elevado.
Com efeito, resulta das regras da lógica que, se se parte de um preço bruto X, a haver um desconto, por exemplo, um desconto de 20%, o preço líquido final Y reflectirá o preço bruto donde se partiu. Assim sendo, acordando as empresas em causa no aumento dos preços brutos é altamente provável que os preços líquidos de venda dos camiões tenham sofrido um aumento proporcional àqueles.
A esta conclusão chegou a sentença começando por afirmar que “é inegável que o preço líquido parte necessariamente do preço bruto e que este último sofreu um aumento constante em consequência do cartel. (…) independentemente dos descontos e das variáveis não cartelizadas, que poderiam influenciar a fixação final do preço líquido, torna-se lógico que quanto maior for a variável inicial mais elevado será o preço líquido final”.
Como também se concluiu no acórdão de 6.11.2023 desta Secção, que temos vindo a citar, “cremos que a conclusão precedente é a que efectivamente resulta como sendo bastante provável perante as descrições constantes da Decisão, em especial, a longa duração dos acordos colusórios visando o aumento de preços, a extensão territorial do cartel, a elevada quota de mercado das infractoras, a que acresce a intensa coordenação verificada entre as mesmas. Tal conclusão é, pois, a que resulta das máximas da experiência comum e das regras da Lógica”.
Tal como concluiu a sentença recorrida nos factos provados 39 e 40, cuja concreta impugnação improcede.
b. Da factualidade atinente ao quantum do dano
No que toca à prova desta matéria, essencialmente descrita em 41 e 42 dos factos provados (em suma, a aquisição do camião pela Recorrida por um preço com um sobrecusto de 15,4% causado pela infracção) a sentença recorrida baseou-se essencialmente na análise dos pareceres técnico-económicos juntos pelas partes e os esclarecimentos sobre os mesmos prestados na audiência pelos seus subscritores e demais testemunhas inquiridas.
Foram juntos aos autos os seguintes pareceres técnicos, elencados na sentença:
- Professor João Carlos Cerejeira da Silva, datado de 13/09/2019;
- Addvalora Global Los Adjusters, datado de 01/10/2019;
- BDO II Advisory, S.A.: Análise da Decisão da Comissão no processo CASE AT.39824 – Trucks e do estudo do Senhor Professor João Cerejeira intitulado “Cartel dos Camiões: Estimação do mark-up praticado durante o período que vigorou o cartel”; Análise aos métodos recomendados pela Comissão Europeia de forma a apurar os cálculos necessários e estimar o preço dos camiões num cenário económico sem infração;
- Professor João Cerejeira: Análise de metodologia; combinação do método das Duplas Diferenças com um modelo de regressão linear com preços hedónicos, com o resultado de mark-up de 15,4%, para efeitos de quantificação dos danos invocados na ação; análise ao modelo de regressão linear com preços hedónicos para análise da questão relativa ao carácter heterogéneo do mercado dos camiões;
- BDO II Advisory, S.A., intitulado de “Contributos para Resposta ao Estudo da Compass Lexecon: Análise Económica do Relatório Pericial BDO – Secção 2”, datado de 21/09/2020;
- Professor João Cerejeira, intitulado de “Resposta às conclusões do Estudo: Complemento aos relatórios financeiros de 12 de junho de 2020 e 31 de agosto de 2020 – Relatório para DAF Trucks N.V.”, datado de 17/09/2021;
- Oxera, datado de 06/05/2019;
- Compass Lexecon, intitulado “Análise económica dos potenciais efeitos da infração em Portugal e análise crítica do Relatório Pericial de João Carlos Cerejeira da Silva, e datado de 13/07/2020;
- Compass Lexecon, intitulado “Análise económica do Relatório Pericial da BDO II Advisory, S.A.”, datado de 05/09/2020;
- Compass Lexecon, intitulado “Complemento aos relatórios financeiros de 12 de junho de 2020 e 31 de agosto de 2020”, datado de 18/06/2021.
e ainda,
- relatório pericial elaborado no âmbito da perícia oficiosamente ordenada.
O relatório da autoria do Professor João Cerejeira foi apresentado com a petição inicial e é sobre ele, por contraposição aos relatórios Compass Lexecon I e II apresentados pela Recorrente, que esta sobretudo se pronuncia nas suas alegações de recurso alegando, em suma, que enferma de diversos erros metodológicos e insuficiências que afectam a sua credibilidade e fidedignidade dos seus resultados.
A sentença (p. 69/71) por seu turno, considerou que o relatório pericial apresentado pela Autora/Recorrida (Relatório Cerejeira, reforçado pelo parecer Addvalora Global Los Adjusters) recorreu a métodos reconhecidos no Guia Prático, baseou-se em dados retirados da Base de Dados da Eurotax, e foi mantido pelo parecer técnico posterior do Professor Cerejeira, respondendo e contradizendo “de modo sustentável” as conclusões extraídas do Relatório apresentado pela Ré/Recorrente, concluindo que os mesmos oferecem a robustez necessária, constituindo uma hipótese razoável, legal e tecnicamente fundamentada, em dados extensos, verificáveis e não erróneos (…) que se mostra plausível. E, por outro lado, que o Relatório técnico apresentado pela Ré/Recorrente não teve a virtualidade de demonstrar que o apresentado pela Autora não cumpria os mínimos exigíveis ou que apresentava delibilidades insupríveis que impeçam a apreciação judicial do dano reclamado.
Vejamos.
O Guia Práctico (relativo à quantificação dos danos nas ações de indemnização com base nas infracções aos artigos 101.º e 102.º do TFUE) sublinha a dificuldades próprias da quantificação de danos em matéria de concorrência nos seus parágrafos 17 e 123 (“a quantificação dos danos nos processos de concorrência está sujeita, pela sua própria natureza, a limitações significativas quanto ao grau de certeza e de exatidão que será de esperar”; “Importa sublinhar que é apenas possível estimar, e não avaliar com rigor e precisão, as condições que prevaleceriam provavelmente num hipotético cenário sem infração.”)
No Relatório/parecer Cerejeira concluiu-se pela existência do sobrecusto de 15,4%, representando este valor a dupla diferença entre o período em que vigorou o cartel (1997-2010) e o período pós-cartel (2011-2017).
Foi feita a comparação, durante os mesmos períodos de tempo, com os preços de camiões não englobados pelo cartel (camiões médios e pesados, essencialmente de origem asiática, como reconhecido no depoimento prestado na audiência pelo seu autor) conjuntamente com produtos alegadamente semelhantes (veículos comerciais ligeiros), grupo este que serve, portanto, de controlo. A metodologia empregue no relatório é denominada de Duplas Diferenças ou, numa tradução literal do inglês de Diferença nas Diferenças (Difference-in-Differences approach).
O relatório é parco na exposição do tratamento de dados. Para além das explicações metodológicas e enunciação das variáveis escolhidas, conhecemos pouco mais do que o ponto de partida (os dados: 59.653 observações, das quais mais de 65% dizem respeito a veículos comerciais ligeiros; preços de modelos novos convertidos para preços constantes a 2011, cuja média ascende a €44.207; e os métodos utilizados: combinação do método das duplas diferenças com um modelo de preços hedónicos), e o ponto de chegada do tratamento dos dados:
Não analisando, designadamente, eventuais especificidades do mercado português de camiões pesados (antes do início e durante o período em que existiu o cartel), cujos clientes são maioritariamente empresas de transporte de mercadorias que prestam serviços a terceiros, ao passo que os veículos comerciais ligeiros tenderão a ser maioritariamente usados pelos próprios adquirentes. Quanto ao mercado dos veículos comerciais ligeiros, não se afigura suficientemente semelhante para servir de referência ou de comparação válida. Sendo diferentes as características dos veículos, não são tidos em conta factores como a evolução e factores da procura, bem como o poder de compra no mercado português e as características deste mercado.
Nada se referindo, por exemplo, sobre as variações no tempo dos preços de um grupo e do outro, ou quaisquer eventuais flutuações extraordinárias verificadas em cada período. Na análise comparativa efectuada, onde o factor tempo é essencial, desconhece-se por completo o comportamento dos preços em cada ano durante o período observado. Ora, de acordo com o artigo P. Maier-Rigaud & Slobodan Sudaric[13], citado pelo Professor Cerejeira no seu parecer de resposta datado de 17.09.2021 (Refª 53452), o método das duplas diferenças depende de um pressuposto fundamental, o da assunção de que na ausência do facto ilícito (i.e., cartel), quer o preço comparador quer o preço do grupo infractor teriam evoluído de acordo com uma tendência comum (obra cit., p. 4).
Tendo em conta a longa duração do cartel (14 anos) e a elevada quota de mercado detida pelas empresas infractoras, próxima de 90%, é de admitir que se apresentava como muito difícil, senão impossível, encontrar um mercado que pudesse servir efectivamente de comparação.
Por seu turno, o mercado concreto em causa é, em si mesmo, muito complexo, desde logo pela diversidade nas possíveis características dos veículos. Como se constata na própria Decisão da Comissão (considerando 26) “All of the Addressees offer a range of trucks and hundreds of different options and variants”. Ou seja, existiam gamas de camiões com variantes e opções na casa das centenas. Note-se que, variando apenas uma das centenas de características, naturalmente que variaria o preço final do camião, sendo certo que as possíveis configurações dos veículos seriam, assim, em número muitíssimo elevado. Por outro lado ainda, é público que, pelo menos a partir de inícios de 2008, ocorreu uma crise financeira que muito provavelmente terá tido implicações no mercado ora em causa e respectivos preços, durante um período relevante da infracção.
Relativamente aos relatórios Compass Lexecon, eles próprios não inteiramente convincentes – partindo desde logo de um pressuposto incorrecto quanto à análise da infracção punida na Decisão da Comissão, referindo-se a um período temporal menos abrangente e limitado ao “universo DAF”, e atingindo uma conclusão que contraria a análise que fizemos da Decisão - afigura-se, ao contrário da apreciação geral feita na sentença, que tiveram pelo menos a virtualidade de por em causa premissas e conclusões do relatório Cerejeira.
Conclui-se, portanto, que a prova subjacente aos factos relativos à quantificação do sobrecusto em 15,4%, não é suficienteme convincente, sendo certo que tal prova se apresentava como excessivamente difícil, senão praticamente impossível.
O relatório da perícia ordenada pelo Tribunal a quo, datado de 18.02.2022 (Refª 58378) também não foi conclusivo, referindo-se as questões colocadas essencialmente à variação de preços e repercussão do custo pela Recorrida.
Assim, a impugnação dos factos 41 e, consequentemente, do ponto 42 da matéria de facto provada procede, no que respeita ao valor do mark-up, apesar de termos já concluído pela existência de um preço de aquisição inflacionado devido à infracção.
Quanto à concreta impugnação feita pela Recorrente em termos subsidiários, dos factos provados 40 a 42 (propondo a Recorrente a alteração do facto 40 e a eliminação dos restantes), da análise que vimos fazendo tem que improceder, por ausência de prova convincente de que “o aumento dos preços de lista não foi projectado de forma previsível e sistemática nos preços líquidos de venda da DAF”, como de que “não houve repercussão ao nível dos preços de venda”.
Assim, alteram-se os pontos 41 e 42 da matéria de facto provada da seguinte forma:
41. O aumento do preço fixou-se num mark-up[14] de preço por veículo, de valor não concretamente apurado;
42. Ao pagar o referido preço para aquisição do veículo, a Autora suportou o referido sobrecusto, de valor não concretamente apurado.
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Factos que deviam ter sido considerados provados
A Recorrente prossegue na sua impugnação da matéria de facto arguindo a nulidade da sentença recorrida, nos termos do art. 615.º, n.º1, al. d) do CPC, por omissão de pronúncia sobre factos que a Recorrente alegou na contestação e entende terem resultado provados, com base nos meios de prova que indica, e que integravam o tema de prova A) - Factos relativos à conduta ilícita e nexo de causalidade, designadamente os respeitantes a: a. Processo de negociação e fixação de preços dos camiões; b. A cadeia de comercialização dos camiões, em Portugal, durante o período da infração; c. As características do mercado dos camiões e a efetiva concorrência entre fabricantes durante o período da infração; d. O contexto e diferença entre preços de lista e preços de venda - pedindo que sejam acrescentados à matéria de facto provada por este Tribunal de recurso.
Apreciamos já a invocada nulidade, que julgamos improcedente.
Quanto ao alegado “efeito vinculativo do despacho saneador” e à violação do art. 607.º, n.º4 do CPC, o Tribunal a quo não deixou de, na fundamentação da sentença, declarar quais os factos relevantes para a decisão da causa que julgou provados e não provados, analisando criticamente as provas, como imposto pelo referido art. 607.º, n.º4, declarando ainda expressamente que a matéria articulada pela Recorrente contida no tema de prova A, pontos «a.» a «e.», ficou prejudicada pela prova evidenciada e veio a revelar-se irrelevante para a decisão da causa - cfr. p.18, remetendo para a subsunção dos factos ao Direito aplicável a explicação da razão pela qual a considerou assim. O que veio a fazer, em especial a p. 52 a 60.
Em face do raciocínio claro expendido na sentença, a que voltaremos em sede de apreciação dos erros de Direito alegados, concluímos que nada há a aditar à matéria de facto nela fixada, designadamente os 32 factos propostos pela Recorrente.
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Facto não provado a)
Entende a Recorrente que, face à prova documental por si oferecida (indicada no subcapítulo 4.3.8 das alegações, designadamente os docs. 1 a 10 juntos com a contestação) aliada às contradições e falta de credibilidade das declarações do legal representante da Autora em sede de depoimento de parte e declarações de parte, analisadas de modo integrado e de acordo com regras de experiência, o facto não provado a) deve ser eliminado.
Em síntese, a Recorrente alega ter junto prova documental de que resulta que o início do prazo de prescrição pode e deve estabelecer-se em 19.07.2016, não tendo havido confissão no depoimento de parte da Autora e tendo o seu legal representante entrado mesmo em contradições nas declarações de parte que prestou.
Do facto não provado da al. a) consta “Que a Autora teve conhecimento da identidade dos alegados infratores pelo menos no dia 19/07/2016, aquando da emissão do comunicado de imprensa referido no facto 5. e das notícias referidas no facto 6.”. E da motivação da decisão sobre esse facto que, “a factualidade não provada, elencadas sob os pontos a. a c., resultou da sua falta de prova, cujo ónus incidia sobre a Ré. Destarte, o legal representante da Autora afirmou que apenas teve conhecimento da Decisão em crise através dos advogados da Autora no ano de 2019 e não em momento prévio (…)”.
Os documentos 1 a 10 referidos pela Recorrente respeitam ao comunicado de imprensa da Comissão e a publicações feitas, no mesmo dia, por órgãos de comunicação social.
A pretensão da Recorrente é que seja eliminada a al. a) dos factos não provados e, afinal, que seja presumido o conhecimento da identidade dos alegados infractores pelo menos no dia 19/07/2016, aquando da emissão do comunicado de imprensa referido no facto 5. e das notícias referidas no facto 6. Ora, nem o comunicado de imprensa da Comissão nem as notícias publicadas nesse dia nas edições online do Público e do Observador e pela SIC Notícias, de que cinco fabricantes de camiões, incluindo a DAF, foram multados por formarem parte de um cartel, permitem retirar a ilação de que a Autora teve efectivo conhecimento da Decisão e muito menos de todos os seus pormenores. A notícia da Decisão não é suficiente para se poder concluir pelo facto psicológico do efectivo conhecimento pela Autora dos aspectos essenciais da condenação, incluindo a identificação das infractoras, não podendo esse conhecimento ser presumido.
Da prova produzida em audiência não vemos que deva ser alterada a al. a) dos factos não provados.
O depoimento de parte, naquilo que não apresente valor confessório, constitui um meio de prova sujeito à livre apreciação do Tribunal (art. 361.º do CC) – neste sentido o ac. do STJ de 4.06.2015, proc. n.º 3852/09, cit. in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, Almedina, 2019 reimp, p.520.
Da apontada divergência nas declarações prestadas pelo legal representante da Recorrida na audiência de julgamento (ps. 182/183 da motivação do recurso), a propósito do momento em que teve conhecimento da Decisão da Comissão, não pode com segurança concluir-se, como faz a Recorrente, pela falta de credibilidade das suas declarações. Desconhecendo-se a altura em que depoente terá lido a “notícia que saiu no site da Antram” (e o teor desta) não deixam de ser credíveis as declarações prestadas (dois anos depois) de que efectivamente só tomou conhecimento da Decisão e dos seus aspectos essenciais numa reunião com os seus advogados e com a intervenção do seu cunhado.
Improcedendo, assim, a impugnação nesta parte.
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2.3. Erros de Direito
2.3.1. Prescrição
Na sentença decidiu-se que o prazo de prescrição a atender, no caso, é o prazo de cinco anos previsto no art. 10.º da Directiva 2014/104, tal como veio a ser transposto para o nosso ordenamento jurídico nacional e em conformidade com o decidido pelo acórdão do TJUE de 22.07.2022 proferido no âmbito do processo C-267/20, Volvo and DAF Trucks. Prazo esse que teve início em 6.04.2017 (data da publicação do resumo da Decisão no JOUE) e terminou em 5.04.2022, já depois da interposição da acção (em 22.08.2019, tendo a Ré sido citada em 13.09.2019), concluindo-se que o direito da Autora foi tempestivamente exercido.
A Recorrente sustenta que o comunicado de imprensa de 19.07.2016 da Comissão permite concluir que, a partir desse momento, qualquer entidade que tivesse adquirido um camião de fabrico DAF entre Janeiro de 1997 e Janeiro de 2011 ficaria ciente de que poderia reclamar uma indemnização pelos danos sofridos, ainda que porventura sem conhecimento da extensão desses danos, e que o prazo de prescrição aplicável é o de três anos previsto no art. 498.º, n.º1 do Código Civil, o qual já havia decorrido quando a Autora intentou a acção.
Invoca o decidido nos autos pelo acórdão desta Relação de 18.05.2021 e o caso julgado formal que entende que se formou sobre o decidido, alegando, quanto à interpretação subjacente à sentença recorrida, de aplicação ao caso dos autos do prazo de prescrição de 5 anos da Directiva, que a aplicação do disposto na Directiva a um litígio entre particulares consubstancia uma violação da regra de inexistência de efeitos horizontal directo, bem como do estatuído no artigo 24.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, configurando uma interpretação contra legem.
Sem razão, adianta-se.
Pelo acórdão de 18.05.2021 desta Relação, que conheceu do recurso interposto pela Recorrente do despacho saneador que julgou improcedente a excepção de prescrição, não se formou qualquer caso julgado formal sobre o prazo de prescrição aplicável in casu, não tendo tal questão sido apreciada (tendo sido delimitada como questão a decidir saber qual o momento a partir do qual começa a correr o prazo de prescrição para o exercício do direito indemnizatório reclamado na presente acção; em concreto, se esse prazo teve início com: a) o comunicado à imprensa da Comissão Europeia datado de 20.11.2014; b) com a publicação pela CE de 19.07.2016 com o teor que consta do relatório supra; c) ou se este prazo apenas teve início com a publicação da decisão da CE em 6.04.2017; d) se o prazo de prescrição se interrompe em férias). Assim, o acórdão limitou-se a, revogando o despacho saneador, determinar que o tema ou os factos referentes ao momento em que a Autora tomou conhecimento, pelos meios de comunicação social, do teor integral da comunicação da Decisão condenatória da Comissão Europeia datada de 19.07.2016 fossem aditados à base instrutória e sujeitos a julgamento.
A sentença apreciou a questão da prescrição do direito da Autora/Recorrida nas pgs. 37 a 44, concluindo que “na medida em que o prazo de prescrição (de três anos ao abrigo do disposto no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, a atender à data) começou a correr, pelo menos, no dia 06 de abril de 2017, isto é, após o termo do prazo de transposição da Diretiva 2014/104 - 27 de dezembro de 2016 - e continuou a correr mesmo após a data de entrada em vigor da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, adotada para a transposição dessa diretiva - 05 de agosto de 2018 - terminando, neste pressuposto, apenas no dia 05 de abril de 2020 (sem prejuízo da suspensão de prazos proveniente das normas excecionais relacionadas com a situação epidemiológica da Covid-19), esse prazo decorreu necessariamente após essas duas datas.
Verifica-se, portanto, que a situação em causa continuou a produzir efeitos após o termo do prazo de transposição da Diretiva 2014/104 e mesmo após a data de entrada em vigor da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, que a transpôs.
Pelo que, tal como concluído no acórdão do TJ aludido, o artigo 10.° da Diretiva 2014/104 é aplicável ratione temporis ao caso em apreço e, por conseguinte, o prazo de prescrição a atender é o prazo de cinco anos nela previsto, tal como veio a ser transposto para o nosso ordenamento jurídico nacional.
E, contabilizando o referido prazo de cinco anos com início no dia 06/04/2017 – data da publicação do resumo da Decisão no JOUE –, o seu termo apenas ocorreria no dia 05/04/2022.
Pelo que, tendo a Autora dado entrada em Juízo da presente ação no dia 22/08/2019 e a Ré sido citada no dia 13/09/2019, sem prejuízo da interrupção do prazo de prescrição ocorrida cinco dias após a entrada da ação por força do disposto no art. 323.º, n.º 2 do Código Civil, somos a concluir que o direito da Autora foi tempestivamente exercido.”
Subscrevemos, também nesta matéria, o já decidido no acórdão de 6.11.2023 desta Secção, proferido no proc. n.º 54/19.6YQSTR.L1:
“As decisões do TJUE, em sede de reenvios prejudiciais, são vinculativas não só para o tribunal requerente, mas para todos os tribunais dos Estados Membros, sob pena de inviabilizar-se o primado do direito da EU e o corolário da respetiva uniformidade (sobre estes aspetos, veja-se, Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, 2015, 3.º ed., p. 608-611).
Sobre o ponto em questão, decidiu o Ac. TJUE caso C-267/20 que “O artigo 10.º da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia, deve ser interpretado no sentido de que constitui uma disposição substantiva, na aceção do artigo 22.º, n.º 1, desta diretiva, e que está abrangida pelo seu âmbito de aplicação temporal uma ação de indemnização que, embora tenha por objeto uma infração ao direito da concorrência que cessou antes da entrada em vigor da referida diretiva, foi intentada após a entrada em vigor das disposições que a transpõem para o direito nacional, na medida em que o prazo de prescrição aplicável a essa ação ao abrigo das anteriores regras não decorreu antes da data do termo do prazo de transposição da mesma diretiva”.
Ou seja, de acordo com a jurisprudência ora descrita, apesar do prazo de prescrição previsto no artigo 10.º da Diretiva 2014/104/EU (cf. artigo 6.º, n.º 1, da Lei de Transposição – Lei n.º 23/2018, de 5 de junho) constituir uma disposição substantiva, será aplicável caso se verifiquem as seguintes condições:
a) Interposição de uma ação de indemnização que tenha subjacente uma infração que cessou antes da entrada em vigor da Diretiva;
b) A ação tenha sido intentada após a entrada em vigor da respetiva Lei de Transposição;
c) O prazo de prescrição ao abrigo das regras nacionais aplicáveis ainda não se mostre esgotado na data do termo do prazo de transposição da Diretiva.
No caso concreto, temos verificada a primeira condição, em concreto a interposição de uma ação de indemnização, cuja causa de pedir é constituída, além do mais, por uma infração que terminou no dia 18 de janeiro de 2011, sendo certo que o fim do prazo de transposição da Diretiva ocorreu no dia 27 de dezembro de 2016 (artigo 21.º, n.º 1, da Diretiva).
Porque a presente ação foi proposta no dia [22.08.2019][15] e a Lei de Transposição (Lei n.º 23/2018) entrou em vigor no dia 5 de agosto de 2018 (Cf. artigo 25.º da Lei em referência), mostra-se verificada a segunda condição.
Passando à terceira condição que é a mais complexa.
Antes da entrada em vigor da Diretiva era aqui aplicável o disposto no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, nos termos do qual, a prescrição ocorre no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.
Conforme resulta da fundamentação do Ac. TJUE caso C-267/20, parágrafo 64:
“Embora não esteja excluída a possibilidade de o lesado ter conhecimento dos elementos indispensáveis para a propositura da ação de indemnização muito antes da publicação no Jornal Oficial da União Europeia do resumo de uma decisão da Comissão, ou mesmo antes da publicação do comunicado de imprensa relativo a essa decisão, mesmo num processo de cartel, não resulta dos autos de que dispõe o Tribunal de Justiça que seja esse o caso presente.”.
Tendo em conta a improcedência da impugnação do facto não provado [a.], nos nossos autos também não resultou provado que a aqui Recorrida tenha tido conhecimento dos elementos essenciais da Decisão da Comissão, antes da publicação no Jornal Oficial da União Europeia do resumo da Decisão da Comissão.
Nestes casos, conforme a citada jurisprudência, o marco a partir do qual se pode razoavelmente considerar que um interessado obtém esse conhecimento, é a data da publicação do resumo da Decisão C(2016) final no Jornal Oficial da União Europeia , ou seja, em 6 de abril de 2017, data a partir do qual se deve contar o prazo de prescrição (cf. parágrafos 71 e 72).
Esta posição resulta igualmente do Ac. STJ de 07-07-2022, proc. 2/19.3YQSTR-G.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), onde se pode ler “Na perspetiva da contagem do prazo nos termos do art. 498 nº 1 do CCivil, repetimos aqui que as autoras, como lesadas, apenas a partir da data da publicação da condenação da ré pela prática de colusão tiveram conhecimento do seu direito, só nesse momento souberam ter direito à indemnização e ficaram conhecedoras da verificação dos pressupostos que condicionavam a responsabilidade”.
Contando-se o prazo de 3 anos, previsto no artigo 498.º, n.º 1, a partir do dia 06 de abril de 2017 conclui-se que o prazo de prescrição terminaria a 06 de abril de 2020.
Assim sendo, facilmente se conclui que o prazo de prescrição ao abrigo das regras nacionais aplicáveis, não se mostrava esgotado na data do termo do prazo de transposição, ou seja, a 27 de dezembro de 2016.
Nesta sequência, devemos concluir pela aplicabilidade do prazo de cinco anos previsto no artigo 10.º, da Diretiva 2014/104/EU e artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018.
(…)
Contra este raciocínio não se pode argumentar, como faz a Recorrente (…), que assim se viola o artigo 24.º, n.º 1, da Lei de Transposição, que proíbe a retroatividade das normas de natureza substantiva.
Tal proibição, aliás, também se encontra prevista no artigo 22.º, n.º 1, da Diretiva.
É a proibição da retroatividade de normas de direito substantivo que explica que o TJUE impusesse aqui, como condição de aplicabilidade do prazo previsto no artigo 10.º, a terceira condição supra descrita, ou seja, que o prazo de prescrição ao abrigo das regras nacionais aplicáveis ainda não se mostre esgotado na data do termo do prazo de transposição da Diretiva.
Assim se compreende o afirmado no parágrafo 74 do Ac. TJUE C-267/20 “Verifica‑se, portanto, que a situação em causa no processo principal continuava a produzir efeitos após o termo do prazo de transposição da Diretiva 2014/104 e mesmo após a data de entrada em vigor do Real Decreto‑Lei n.º 9/2017 que a transpõe”.
Transpondo este raciocínio para o nosso caso, a situação em causa no processo (a infração), continuava a produzir efeitos jurídicos após o termo do prazo de transposição da Diretiva 2014/104, porquanto o prazo de prescrição, ao abrigo do disposto na lei nacional, no nosso caso, do artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, ainda não se tinha esgotado em 27 de dezembro de 2016, fim do prazo de transposição da Diretiva. Nestes termos, não se pode concluir, em casos como o presente, que a aplicação do prazo de cinco anos previsto no artigo 10.º da Diretiva e na nossa Lei de Transposição, seja retroativa.
Não ocorre, portanto, a violação do princípio da não retroatividade de normas de direito substantivo (artigo 12.º, do Código Civil).”
Pelo que, conclui-se, o recurso improcede nesta parte.
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2.3.2. Dano e nexo causal
A Recorrente entende que a verificação dos pressupostos do dano e do nexo causal deve ser feita sem recurso a presunções de qualquer natureza, com base numa análise e interpretação da Decisão que tenha em conta os seus limitados efeitos vinculativos e a circunstância de nela não ter sido estabelecido qualquer efeito e atendendo às circunstâncias do caso concreto que foi apresentado pelas partes, à luz da prova por elas oferecida. Concluindo que, porque os Relatórios Cerejeira I e II enfermam de erros de abordagem e metodológicos que afectam os resultados obtidos, e porque a Recorrente ofereceu, através dos Relatórios Compass Lexecon I e II uma análise alternativa melhor fundada, que aponta para um resultado ou efeito zero, ou quando muito entre 0,2 % e 1,1% não estatisticamente relevante, ficou por provar o pressuposto do dano e a acção deve improceder.
Pronunciamo-nos já sobre a alegada análise e interpretação da Decisão da Comissão e os seus efeitos. O que a sentença (que fundamenta a verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar nas pgs. 44 a 64) também fez, enunciando as razões invocadas pela Recorrente na contestação para sustentar a sua tese - em suma, de inexistência de qualquer dano - e concluindo que a ilação da existência do dano advém da própria infracção cometida, fundada no princípio da efectividade que o art. 101.º do TFUE convoca e que é reforçado, por ex. nos considerandos 41) e 47) da Directiva (reproduzidos na sentença a p. 64).
Resulta da matéria de facto provada (cuja impugnação analisámos já) que a Recorrente, com as demais infractoras, participou em acordos colusórios que implicaram o aumento de preços de camiões pesados, incluindo o preço pelo qual a Recorrida adquiriu o camião em causa nestes autos.
As circunstâncias e características do cartel descritas na Decisão constituem base suficiente para permitir deduzir, por aplicação das regras do raciocínio humano, a existência do dano e que o mesmo não terá sido insignificante ou irrelevante, como concluem os estudos apresentados pela Recorrente (doutro modo, afigura-se que não seria mantido um cartel como o descrito na Decisão durante 14 anos).
Por mais factores que intervenham na fixação do preço final de aquisição do veículo, se se parte de um preço bruto superior ao que seria se não tivesse havido o cartel e a distorção da concorrência, o preço final será sempre, com elevadíssima probabilidade, também mais elevado. É o que na sentença do Tribunal do distrito de Amesterdão, de 12 de Maio de 2021 se designou de “efeito maré”.
A Recorrida adquiriu, portanto, um camião a um preço mais elevado (dano), preço esse aumentado devido à infracção em causa, ou seja, devido aos referidos acordos colusórios (nexo causal).
Sendo certo que após a alteração dos factos por este tribunal se desconhece o exacto montante do sobrecusto, o quantum do dano, tal não impede que se possa constatar que o preço pelo qual a Recorrida adquiriu o camião foi superior ao que teria pago caso não existissem os referidos acordos colusórios entre empresas descritos na Decisão.
Pelo que resultam demonstrados quer o dano quer o respectivo nexo causal.
Inconstitucionalidade da interpretação do art. 483.º do Código Civil subjacente à decisão recorrida
Apreciamos já a questão da aplicação das normas substantivas da Directiva e da Lei n.º 23/2018, em conformidade com o decidido pelo TJUE, assim como a presunção do dano advindo da infracção, tal como exaustivamente apreciado na sentença recorrida, que conclui (p. 63), remetendo para o decidido pelo TJUE no ac. Kone, C-577/12, de 5.06.2014, ser “fundada no princípio da efetividade, sob pena de se tornar impossível ou excessivamente difícil a prova pela Autora e, nesse caso, ser violado o princípio da efectividade que o artigo 101.º do TFUE convoca, princípio esse reforçado, a título de exemplo, nos considerandos 41) e 47) da Directiva. (…)”
Argui a Recorrente a inconstitucionalidade, por violação dos princípios da confiança, da certeza jurídica e não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, estabelecidos nos arts. 1.º, 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, da interpretação do regime da responsabilidade por facto ilícito vertida no art. 483.º do CC ao caso dos autos, ao abrigo dos princípios da equivalência e da eficácia e à luz dos Considerandos (46) e (47) e do art. 4.º da Directiva, no que respeita a presumir danos e à aplicação retroactiva das normas substantivas da Directiva e da Lei n.º23/2018, em particular dos seus arts. 17.º, n.º2 e 9.º, n.º1, respectivamente.
Fá-lo contudo conclusivamente, sendo que não se vislumbra que a sentença tenha aplicado o regime previsto no art. 483.º do Código Civil numa interpretação desconforme à Constituição.
Quanto à aplicação retroactiva das normas substantivas da Directiva e da Lei n.º23/2018, em particular dos seus arts. 17.º, n.º2 e 9.º, n.º1, respectivamente, remete-se para o já expendido a propósito neste acórdão, sublinhando-se que a sentença expressamente reconhece a inaplicabilidade ao caso do art. 17.º, n,º2 da Directiva.
No que respeita ao dano e nexo causal foram consideradas as concretas características da infracção em causa tal como decidido pela Comissão, a prova produzida nos autos e, perante a quase impossibilidade ou excessiva dificuldade de quantificação precisa do dano, recorreu-se à estimativa judicial prevista no art. 17.º, n.º1 da Directiva e art. 9.º, n.º2 da Lei n.º 23/2018, de forma a que o quantum correspondesse a um montante razoável e prudente (fixado, aliás, em montante muito inferior ao pedido pela Autora).
Sem negar à Recorrente o seu direito a ilidir a presunção de existência do dano mas constatando, no caso concreto, a falta de prova suficientemente convincente que contrariasse a ilação, extraída das máximas da experiência comum, de que o cartel em causa, pelas suas características tal como descritas na decisão da Comissão (objecto, participantes, duração, quota de mercado, extensão geográfica), teve necessariamente, ou, no mínimo, com elevadíssima probabilidade, que causar um dano à Autora ao adquirir o camião à Recorrente por um preço superior ao que teria pago se não fosse a infracção praticada, que gerou um sobrecusto, um aumento artificial dos preços decorrente do cartel.
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2.3.3. Taxa de sobrecusto e compensação
A Recorrente pretende que seja revista em baixa a taxa de sobrecusto decidida na sentença, em linha com as conclusões do Relatório Compass Lexecon I e os factos que entende deverem ser considerados provados, tudo sem esquecer a repercussão pelo menos parcial.
Sustenta ainda que o valor do sobrecusto deve ser determinado por mera aplicação da taxa de mark-up estimada sobre o preço de venda praticado pela Recorrente, sem qualquer actualização, com juros de mora à taxa civil supletiva a contar da decisão condenatória ou, no limite, da citação e, em qualquer caso, com aplicação da prescrição daqueles vencidos há mais de cinco anos, por aplicação do artigo 310.º, alínea d) do CC.
Vejamos, por partes:
Repercussão do sobrecusto
Sustenta a Recorrente que num caso como o dos autos, em que os fabricantes de camiões sancionados tinham a esmagadora maioria da quota de mercado, os adquirentes dos camiões (directos e indirectos), tendo sido afectados pelo suposto sobrecusto, terão com elevadíssima probabilidade repercutido o sobrecusto que tenham suportado. Concluindo que deve ser absolvida, total ou parcialmente, do pedido, por via da repercussão, pela Recorrida, do referido sobrecusto.
Resultando da matéria de facto como não provado que a Recorrida tenha transferido o sobrecusto para os seus próprios clientes (e que já antes a Evicar tenha absorvido esse sobrecusto), a tese da Recorrente, a quem cabia o ónus de o provar, não pode proceder.
Em todo o caso, a questão da repercussão do sobrecusto tem subjacente uma distorção do que seja o referido sobrecusto: a diferença entre o que o comprador pagou quando adquiriu o camião e o que teria pago, na mesma data, se não fosse a infracção. Um aumento dos descontos face aos que eram praticados antes, não significa necessariamente que o sobrecusto tenha sido absorvido (pode não estar relacionado com o aumento do preço bruto nem ter sido aplicado para o anular). Só um desvio nos descontos e condições de negociação intencionalmente aplicado, no sentido de anular o aumento dos preços brutos, é que seria susceptível de afastar ou eliminar o sobrecusto.
Afigura-se que se trata de uma questão de facto, que não de um erro de Direito.
Taxa de sobrecusto
Conforme vimos em sede de impugnação dos factos essenciais 39 e 40, relativos ao dano e nexo causal, concluímos pela verificação de um dano no património da Recorrida, consubstanciado na aquisição do camião por um preço inflacionado por causa da infracção punida pela Comissão e na qual a Recorrente participou.
Em sede de impugnação dos factos relativos à quantificação do dano (factos provados 41 e 42), não vingou a posição defendida pela Autora, no sentido da existência de um sobrecusto de 15,4% sobre os preços de aquisição do camião, posição esta sustentada, de forma essencial e determinante, nos relatórios Cerejeira e no depoimento do seu autor. Por outro lado, também se concluiu pela insuficiência da prova da hipótese alternativa adiantada pela Recorrente, ou seja, da completa inexistência de um sobrecusto, sustentada principalmente pelos relatórios Compass Lexecon e no depoimento de um dos seus autores. Terminando a análise da impugnação da matéria de facto com a alteração dos factos 41 e 42.
Recurso a estimativa judicial
Apesar de todo o intenso debate contraditório encetado pelas partes sobre a quantificação do dano, quer em primeira instância quer na presente instância (recorde-se que foram juntos aos autos 10 pareceres técnico-económicos, incluindo alguns de “complemento” e de “resposta”), concluiu-se que estávamos perante a quase impossibilidade ou uma excessiva dificuldade na quantificação exacta do dano.
Pelo que, não se tendo apurado o montante exacto do sobrecusto apesar do esforço das partes, há que recorrer à estimativa judicial para a determinação do quantum do dano (que, neste caso, coincide com o sobrecusto). Ou seja, devemos recorrer ao poder conferido aos tribunais pelo artigo 17.º, n.º 1, da Directiva e artigo 9.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2018.
A possibilidade de recurso à estimativa judicial não é afastada pelo facto de a Autora, aqui Recorrida, não ter recorrido ao mecanismo de apresentação de provas previsto no artigo 5.º da Directiva e artigo 9.º da Lei de Transposição, de forma a ultrapassar dificuldades inerentes a uma assimetria de informações entre si e a Ré, aqui Recorrente. Mesmo que a Autora tivesse recorrido à previsão do artigo 5.º da Directiva (artigo 12.º da Lei n.º 23/2018) e solicitasse o acesso aos dados titulados pela Ré, ao que tudo indica não teria obtido dados suficientes para apurar, de forma exacta, o valor do sobrecusto em causa. Resulta do Ac. TJUE C-312/21 (Tráficos Ferrer) que, embora a assimetria de informação esteja na origem da adopção do artigo 17.º, n.º 1 da Directiva, não intervêm na aplicação deste (parágrafo 54), sendo antes pressuposto da sua aplicação que seja praticamente impossível ou excessivamente difícil quantificar o dano de forma exacta. Ou seja, se bem que o tribunal não deva colmatar falhas das partes, maxime do Autor, não é requisito essencial da aplicação da estimativa judicial ter-se recorrido anteriormente àquele mecanismo.
Nesta conformidade e tendo sido pedida a revogação da sentença pela Recorrente, haverá efectivamente que revogar a sentença recorrida nesta parte e exercer os poderes de substituição inerentes a este Tribunal da Relação, recorrendo-se à estimativa judicial para a quantificação do dano.
Á mesma conclusão se chegou no acórdão desta Secção de 6.11.2023, proc. 54/19.6YQSTR.L1, que vimos citando e que nesta parte reproduziremos, subscrevendo o nele decidido:
“De notar, que a igual impasse quanto ao quantum do dano, chegaram outros tribunais europeus no âmbito do mesmo cartel dos camiões. Neste âmbito destacamos uma decisão proferida no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (doravante, Reino Unido) e decisões proferidas no Reino de Espanha, por exemplo o Acórdão do Tribunal Supremo de 14-06-2023, STS 2479/2023 - ECLI:ES:TS:2023:248030 (doravante, Ac. STS 2479/2023).
A este respeito, pode ler-se no Ac. STS 2479/2023:
“Así, la extensa duración del cártel, que se inició en el año 1997 y se prolongó durante al menos 14 años, dificulta seriamente realizar un análisis diacrónico. El ámbito geográfico del cártel, que afectó a todo el EEE, y la singularidad de los productos afectados, hacen en la práctica muy difícil realizar un análisis sincrónico de comparación con otros mercados geográficos (pues las circunstancias concurrentes en otros ámbitos geográficos son muy diferentes) o con otros productos, que no son aptos para realizar la comparación. Y esas mismas características del cártel también dificultan mucho aplicar con éxito otros métodos de cuantificación de daños, como los basados en costes y análisis financieros.
En este contexto, las propias características de este cártel contribuyen a considerar que, en este caso, la falta de idoneidad del informe presentado por el demandante para cuantificar el sobreprecio no supone una inactividad que impida la estimación judicial. Se trata de un cártel de 14 años de duración, que abarcaba todo el EEE y en el que los participantes en el cártel eran los mayores fabricantes europeos con una cuota de mercado de aproximadamente el 90%; con documentos redactados en varios idiomas distintos del propio del demandante; con una solicitud de clemencia y una transacciónque obstaculizan aún más la obtención de los documentos relevantes (art. 283.bis.i. 6 LEC)” (p. 17).
Resulta, portanto, no seguimento destas passagens, que perante as características concretas da infração, que é a mesma destes autos, na vizinha Espanha, em aplicação de Direito da União que nos é comum, concluiu-se que, apesar dos esforços das partes, era praticamente impossível ou excessivamente difícil calcular o dano de forma exata, devendo-se recorrer à estimativa judicial.
De notar que na vizinha Espanha, ao que tudo indica, pendem milhares de processos de private enforcement ligados com o mesmo cartel e já foram decididos inúmeros casos, inclusive, pelo respetivo Tribunal Supremo.[16]
As decisões do Tribunal Supremo em Espanha, que já envolviam 15 casos no passado mês de junho, confirmaram indemnizações fixadas, com recurso a estimativas judiciais, em 5% do preço de venda de camiões efetivamente pago pelos demandantes (a título de sobrecusto), em casos onde inexiste prova suficiente a sustentar um sobrecusto menor ou maior àquele valor. [17]
O estudo Oxera 2019 junto a estes autos com a contestação, já revelava conhecimento sobre diversos processos na Europa, quando mencionou que “em alguns processos que correm termos nos tribunais nacionais, os demandantes basearam os custos adicionais alegados nos níveis típicos ou médios dos custos adicionais identificados nos estudos empíricos sobre cartéis anteriores. O estudo da Oxera de 2009 continha uma visão global desses estudos anteriores e sabemos que alguns demandantes se referiram a esse nosso estudo de 2009” (ponto 1.7 do estudo).
Obviamente que tais meta-estudos (estudos incidentes sobre outros estudos) sobre os efeitos de cartéis, nos quais se inclui o estudo Oxera 2009, jamais poderiam servir para fixar uma quantia precisa do dano verificado num caso concreto, leia-se, em sede de facto (neste sentido, Oxera 2019, ponto 1.8). Contudo, em sede de estimativa judicial, ou seja, em sede de direito, tais estudos foram considerados como elementos úteis e válidos pelos respetivos tribunais espanhóis, inclusive pelo Tribunal Supremo, para determinarem o quantum do dano.
A este respeito, a decisão de segunda instância proferida em 20-12-2019, pela Audiencia Provincial de Valencia (SAP V 5941/2019 - ECLI:ES:APV:2019:5941),33 subjacente ao citado Ac. STS 2479/2023, refere “La sentencia apelada, ante la falta de pruebapericial apta para cuantificar el daño, estima en el 5% del precio de adquisición de los camiones, el daño sufrido por la demandante y asume los argumentos que resultan de la Sentencia del Juzgado Mercantil 3 de Valencia de 27 de febrero de 2019, que se sustenta en el informe Oxera, y en la que, con elección de la estimación más conservadora del muestreo estadístico, estima razonable un porcentaje de sobreprecio del 5% como media de compromiso entre los umbrales mínimos y máximos que intervienen como común denominador del 93% de los cárteles que aplican sobreprecios” (p. 19-20, com sublinhados nossos).
Tal acórdão de segunda instância acabaria também ele por fixar a indemnização em 5% do preço de venda de cada camião efetivamente pago pela respetiva demandante, tendo sido este acórdão confirmado pelo Ac. TS 14-06-2023. No entanto, o acórdão de segunda instância, ou seja, da Audiencia Provincial de Valencia, não deixa de sublinhar a necessidade de acorrer, para além de dados estatísticos, a outras circunstâncias como os elementos presentes na Decisão da Comissão, tal como a natureza do cartel, a critérios jurisprudenciais e à prova produzida nos autos.
Por sua vez, pode ler-se no Ac. STS 2479/2023 “… 5% del precio del camión, que es el porcentaje que el tribunal de segunda instancia considera como importe mínimo del daño, atendidas las referidas circunstancias del cártel y los datos estadísticos sobre los porcentajes de sobreprecio que suelen causar los cárteles, en aplicación de las facultades estimativas que el ordenamiento jurídico le atribuía antes incluso de la trasposición de la Directiva, como consecuencia directa del principio de indemnidad derivado de los arts. 1902 CC y 101 TFUE.” (p. 19).
Dada a importância que tem assumido aqui o estudo da Oxera 2009, será de recordar as principais conclusões do Oxera 2009 aqui relevantes (inclusive citadas no Guia Prático e no Oxera 2019) e que são representadas na seguinte representação visual (p. 91 do estudo Oxera 2009, p. 51 do Guia Prático):
Mais se acrescenta no Guia Prático “[d]e acordo com o referido estudo, verifica-se portanto um diferencial significativo a nível dos preços adicionais registados (mais de 50% no caso de alguns cartéis). Cerca de 70% dos cartéis examinados neste estudo resultaram num preço adicional compreendido entre 10% e 40%, situando-se a média em torno dos 20%” (Guia Prático, loc. cit.).
De acordo com o citado gráfico temos, portanto, enormes oscilações entre os sobrecustos verificados nos cartéis estudados (amostra de 114 casos). Os tribunais na vizinha Espanha, através de médias entre os limites mínimos e máximos dos sobrecustos, chegam a um limite mínimo de 5%. Tal montante equivale ao ponto médio entre 0% e 10%, dos efeitos dos cartéis com sobrecustos mais conservadores.
Por sua vez, curiosamente o Ac. STS 2479/2023 não deixou de fazer, a respeito do valor mínimo de 5%, a seguinte observação “No deja de ser significativo que incluso en el caso Royal Mail/British Telecom, enjuiciado por el Competition Appeal Tribunal británico [CAT, Case nº : 1290/5/7/18 (T)], en el que sí hubo un amplio acceso a los documentos de la demandada y a la información reservada del expediente de la Comisión y se aportaron detallados informes periciales elaborados por prestigiosos peritos, no ha sido posible la cuantificación exacta del daño con base en esas pruebas documentales y periciales y el tribunal ha debido recurrir a la estimación del daño, que ha fijado en un 5% del precio de los camiones” (p. 19).
Efetivamente, o Acórdão proferido pelo Tribunal de Concorrência Britânico (doravante, CAT),[18] chegou ao mesmo valor de 5%, mas por uma via diferente do que na vizinha Espanha.[19]
Cremos que é de algum interesse analisar o acórdão emitido nas terras de Sua Majestade.
Efetivamente, apesar das diferenças entre o sistema de Common Law e os sistemas, como o nosso, de Civil Law, o certo é que em matérias de Concorrência existem ainda muitas semelhanças entre o nosso sistema e o britânico.
É de reparar, neste âmbito, que mesmo após o conhecido Brexit, as decisões sancionatórias da Comissão anteriores a 20 de dezembro de 2020 (o chamado “IP completion day”) vinculam as autoridades do Reino Unido,[20] sendo certo que os direitos subjacentes a ações de follow-up, no âmbito do private enforcement, foram mantidos.[21]
Obviamente que nem os acórdãos proferidos por Tribunais do Reino de Espanha nem o citado acórdão proferido por tribunal do Reino Unido, possuem força jurídica para além-fronteiras. Assumem aqui, portanto, um valor sempre relativo. Servirão, além do mais, para revelar que perante o mesmo cartel dos camiões, no quadro do mesmo Direito da União, têm sido avançadas, no seio dos sistemas nacionais em referência, argumentações diversas, mas com resultados coincidentes.
Com estas reservas, vejamos, pois, mais de perto o acórdão britânico em referência.
No extenso acórdão com 301 páginas (processo acessível ao público por via do link supra), é desde logo notório o esforço probatório feito pelas partes, nomeadamente com vista à quantificação do sobrecusto ou “overcharge”.
Efetivamente, foram apresentados 48 relatórios periciais com milhares de páginas, visando, entre outros, a quantificação exata do sobrecusto derivado do cartel dos camiões. Os relatórios principais eram naturalmente do domínio da economia (p. 100). Grande parte do acórdão é dedicado a analisar os relatórios principais, de forma muito detalhada, quer no que concerne à existência do dano, quer, no que nos interessa aqui, no seu quantum (capítulo denominado “Overcharge” ou Sobrecusto).
Denota-se que foram essencialmente utilizados, pelos respetivos demandantes (Royal Mail Group Limited e British Telecommunications PLC), vários modelos de regressão para avaliar o sobrecusto, chegando a diferentes resultados, em concreto, um sobrecusto entre11,3% e 11,6% usando o modelo B-D (antes e durante o período cartel) e modelo D-A (durante e pós-cartel), onde se estimou um sobrecusto entre 6,7% e 14,7% (p. 147-148).
Da parte das demandadas (entre outros a DAF/ PACCAR Inc.), foram usados modelos durante e pós-cartel (D-A) e também antes-durante-pós(cartel), nas iniciais inglesas B-D-A (before, during, after). De acordo com estes estudos as conclusões apontavam, à semelhança dos estudos aqui apresentados pelo Professor Gonçalves, para a inexistência de sobrecusto, ou seja, 0% (p. 150).
Para além de problemas relativos aos dados usados, foram apontados pelo tribunal Britânico 3 problemas adicionais para a quantificação em causa, uma delas específica do Reino Unido (taxas de câmbio entre Libra e Euro), uma de ordem geral, a crise económica mundial de 2008-2010 (denominado de GFC), e uma terceira relativa às especificidades do cartel em causa, os aumentos de preços (emissions premia) ligados a novas tecnologias relativas a emissões (p. 147 a 152).
Após uma análise minuciosa destes aspetos (e outros conexos), e “apesar da enorme quantidade de trabalho investido no processo pericial deste caso”,[22] o tribunal do Reino Unido concluiu que não era possível traduzir o sobrecusto numa quantidade exata, adiantando, aliás, a sua convicção que nenhum modelo de análise de regressão seria adequado para tal efeito.[23]
Mais concluiu, aplicando o princípio do direito britânico denominado de “Broad Axe Approach”[24] que, no nosso sistema pode ser comparado à figura da equidade prevista no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil ou à estimativa judicial agora prevista no artigo 17.º, n.º 1 da Diretiva, fixando a indemnização nos já referidos 5% do preço de aquisição efetivamente pago para cada camião (p. 187-189). Tal valor corresponde a aproximadamente metade do que era pedido por cada demandante.
Curiosamente, o juízo final baseou-se, pelo menos em parte, nos relatórios periciais apresentados pelas partes em oposição, pois, apesar das perícias não convencerem na quantificação exata do sobrecusto, revelaram-se úteis e ajudaram na compreensão das razões por detrás dos diferentes resultados (veja-se, p. 186, parágrafo 476 e p. 187, parágrafo 479).
Conforme se infere do exposto, são diversas as abordagens do tribunal britânico e dos tribunais espanhóis.
Em Espanha a estimativa judicial baseia-se, em importante medida, em estatísticas retiradas de meta-estudos sobre cartéis, conjugadas com circunstâncias factuais retiradas da Decisão da Comissão, critérios jurisprudenciais e provas produzidas em cada caso. As decisões do Reino de Espanha não deixam também de realçar e expressar prudência quando o tribunal se substitui às partes no exercício da estimativa judicial.
No Reino Unido a solução apresenta-se como de cariz casuística, como é apanágio dos sistemas de Common Law. Não se recorreu a dados estatísticos alheios ao processo. A solução encontrada, mais do que conservadora, apresenta-se como equitativa perante o trabalho e esforços de ambas partes, em particular dos respetivos peritos, para o esclarecimento das dificuldades do processo.
Outras soluções legais existem para casos como o presente, onde o apuramento exato do dano se apresenta como praticamente impossível ou excessivamente difícil.
Por exemplo, como nos dá conta o estudo Oxera 2009, na Hungria estabelecia-se uma presunção ilidível de um sobrecusto de 10% em casos que envolviam violações ao artigo 101.º TFUE (Oxera 2009, p. 94).
O valor de 10% aplicável por defeito na Hungria, é porventura compreensível se olharmos aos dados científicos presentes no aludido estudo Oxera 2009, citado no Guia Prático. Efetivamente, conduzindo-nos pelo gráfico supra ilustrado, se excluirmos os 7% de cartéis estudados que não implicaram um sobrecusto, e os cerca de 16% que implicaram um sobrecusto até 10%, restam aproximadamente 77% que implicaram um sobrecusto de pelo menos 10%. De acordo com tal estudo, portanto, em termos de probabilidades, um cartel tem uma elevada probabilidade de implicar um sobrecusto de pelo menos 10%.
Tendo em conta tal elevada probabilidade poderíamos ser aqui tentados a seguir tal via, estabelecendo no nosso caso, por via de estimativa judicial, o valor do dano em 10%. Se olharmos, aliás, às características do cartel em causa e respetiva gravidade, do qual se salienta a sua longa duração, enorme extensão territorial, elevada quota de mercado e intensas trocas de informações sensíveis e coordenação para aumentos de preços, tal valor não se afigura, pelo menos prima facie, exagerado.
Dentro do nosso sistema, contudo, cremos que a solução final também deverá fixar o montante do sobrecusto em 5% do preço de aquisição de cada camião, efetivamente pago pela Recorrida.
(…)
Neste contexto, onde cada parte se defrontou com dificuldades próprias, o referido valor de 5% apresenta-se como prudente e razoável.
É certo que a quantia assim fixada poderá não responder ao objetivo da reparação integral do dano. Contudo, não nos parece que seja irrelevante prevenir uma indemnização excessiva e o enriquecimento sem causa inerente. Aliás, o artigo 3.º, n.º 2 e 3 da Diretiva, que reflete jurisprudência anteriormente emitida pelo TJUE, salienta os dois interesses. De qualquer forma, na realidade desconhece-se qual o efetivo quantum do dano.
Por último, justifica-se que seja adotada esta posição conservadora, porquanto, em última análise, o ónus de prova da prova da quantificação do dano pertencia à Autora, ora Recorrida.
Nesta conformidade, como afirmamos supra, haverá que revogar a sentença recorrida e exercer os poderes de substituição inerentes a este tribunal, fixando-se o dano em 5% do preço de venda de cada camião adquirido pela Recorrida.”
Refira-se que já em 2024, por acórdãos de 14 de Março, o Tribunal Supremo Espanhol[25] , fixou o sobrecusto em questão, também por estimativa judicial, em 5% de cada camião adquirido.
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Dupla compensação
A Recorrente alega que a sentença incorreu em erro, de que resultou uma “dupla compensação”, no que respeita ao cálculo dos danos:
- a base de cálculo do dano, traduzido num sobrecusto ou acréscimo de preço, deveria ser o preço de venda praticado pela DAF, ou seja, o preço de transacção do camião vendido pela DAF à EVICAR (no caso €76.128,41 indicados no caso provado 33.) e não o preço de venda praticado pela EVICAR, i.e. o preço cobrado pela EVICAR à Autora ou ao BPN Leasing (os €86.859,11 indicados no facto provado 37.), o qual pode incluir serviços e bens prestados pela própria EVICAR ou no limite uma margem por esta aplicada;
- recorreu-se a duas actualizações: primeiro, do preço de compra do camião para preços de 2011, aplicando-lhe em seguida uma taxa de 15,4%; e segundo, sobre o preço assim obtido para preços de 2018 (cfr. Relatório Cerejeira I, pág. 15), empolando-se desta forma o valor da compensação a receber, de €11.591,25 para €12.902,02, o que representa um incremento de cerca de 11,33%.
Não tem razão a Recorrente no que alega quanto à base de cálculo do dano, reportando-se este ao traduzido no sobrecusto do preço pelo qual a Recorrida adquiriu o camião. De resto, o preço líquido de venda pela Recorrente inclui os descontos comerciais que entendeu fazer à Evicar, à data sua importadora em Portugal. Quanto aos eventuais serviços e bens prestados pela própria Evicar e sua eventual inclusão no preço de venda, nenhum resultou demonstrado.
No que respeita à alegada dupla actualização, não obstante a referência a tal que decorre do Relatório Cerejeira, não é já o que resulta da matéria de facto, depois da alteração a que se procedeu neste acórdão. Desta resulta que, no ano de 2018, a Recorrida adquiriu o camião em questão, no estado de novo, contra o pagamento da quantia de €86.859,11 (s/IVA), recorrendo para o efeito a um contrato de locação financeira mobiliária, celebrado com o BNP Crédito, e tendo, ao fazê-lo, suportado o sobrecusto correspondente a uma percentagem não concretamente apurada do preço de compra do camião.
Contrariamente ao decidido na sentença com base no relatório Cerejeira, entendemos que não há que proceder às actualizações, primeiro a 2011 (data do fim do cartel) e, depois, a 2018 (data em que a Recorrida adquiriu o veículo à Evicar), sendo este o ano da produção do dano, consubstanciado no prejuízo sofrido pela Recorrida, ou, como a Comissão Europeia esclarece no Guia para a quantificação dos danos, na “redução no património da pessoa lesada”.
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Juros de mora
Prescrição dos juros vencidos em momento anterior aos cinco anos que antecederam a citação da Recorrente
A Recorrente defende que todos os juros vencidos em momento anterior aos cinco anos que antecederam a citação da Recorrente, ou seja, anteriores a 13.09.2014 devem considerar-se prescritos ao abrigo do disposto no artigo 310.º, alínea d) do Código Civil.
Citando o decidido pelo TJUE, o Considerando 12 da Directiva e o ponto 12 do Guia Prático sobre a quantificação de danos nas acções de indemnização com base nas infracções aos arts. 101.º e 102.º do TFUE, a sentença recorrida (p. 72) sublinhou que “ressalta daqui uma particular atenção do legislador e dos julgadores europeus em salvaguardar que todos os danos causados pelo decurso do tempo sejam ressarcidos, sem restrições ou prescrições”, concluindo que “deverá afastar-se qualquer obstáculo de direito nacional, que impeça ou restrinja o integral ressarcimento do lesado, designadamente o disposto no artigo 310.º, alínea d) do Código Civil, uma vez que este apresenta-se incompatível perante o direito da União Europeia, que regula o pagamento dos juros”.
Com efeito, como também já decidido nesta Secção no já referido acórdão de 6.11.2023, de que destacamos, subscrevendo, o seguinte:
“A infração aqui em causa, consistiu, conforme temos vindo a analisar, na constituição de uma complexa rede de relações entre empresas de grande envergadura, envolvendo regulares e intensas trocas de informações sensíveis e acordos colusórios relativos à subida de preços dos seus produtos, cartel esse que se estendeu pela maior parte da Europa e que perdurou na penumbra do segredo por uns longos 14 anos.
É, pois, patente que o principal motivo para o acumular do valor dos juros no tempo, não deriva de qualquer inércia negligente do credor, mas da própria natureza das infrações ao Direito da Concorrência da União, invariavelmente secretas, factos estes obviamente imputáveis aos devedores (infratores).
Assim sendo, apesar da previsão do artigo 310.º do Código Civil ter longa “tradição” entre nós (…) o que é certo é, perante o primado do Direito da União, a sua aplicabilidade deve mostrar-se prejudicada (…)”.
Não obstante, como se refere na sentença, a Recorrida limitou-se a peticionar os juros de mora vencidos desde 21.08.2014, isto é, cinco anos antes da propositura da acção, pelo que esta questão ficou prejudicada.
Momento a partir do qual são devidos juros de mora
O Tribunal a quo considerou serem devidos juros de mora vencidos desde a data peticionada pela Recorrida, 21.08.2014, sustentando a Recorrente que só serão devidos juros de mora, no limite, a partir da data da sua citação na acção (13.09.2019).
Como se escreveu na sentença, o Tribunal de Justiça da União Europeia vem declarando que a reparação integral dos danos sofridos por uma conduta antitrust deve incluir a reparação dos efeitos adversos causados pelo lapso de tempo decorrido desde que se produziu o prejuízo causado pela infracção.
Com efeito, os efeitos nefastos do tempo consistem, mais concretamente, numa desvalorização monetária (cf. Ac. TJUE de 3 de Fevereiro de 1994, C-308/87 Grifoni II, ECLI:EU:C:1994:38, parágrafo 40) e na oportunidade perdida para a parte lesada de dispor desse capital (Parecer do Advogado-Geral Saggio nos processos apensos C-104/89 e C-37/90, Mulder e outros/Conselho e Comissão, Colectânea 2000, p. I-203, parágrafo 105, citado no Guia Práctico, p. 13, nota 20).
Tal posição no sentido de que os juros deveriam, portanto, contar-se a partir da data da ocorrência do dano, foi ulteriormente reiterada, no âmbito do Direito da Concorrência, no Acórdão de 13 de Julho de 2006, nos casos conexos C‑295/04 a C‑298/04 (Manfredi e o., EU:C:2006:461, parágrafos 95 e 97). Neste último acórdão do TJUE, parágrafo 97, afirmou-se que “quanto ao pagamento de juros, o Tribunal de Justiça lembrou no n.º 31 do acórdão de 2 de Agosto de 1993, Marshall (C-271/91, Colect., p. I-4367), que a sua atribuição, nos termos das normas nacionais aplicáveis, deve ser considerada uma componente indispensável da indemnização.
A este respeito, há que recordar que uma legislação nacional que fixa as regras sobre os juros deve ser adaptada às especificidades do direito da concorrência e aos objectivos da execução das regras desse direito pelas pessoas envolvidas, a fim de não suprimir a plena efectividade dos artigos 101.º e 102.º TFUE (C‑637/17, Cogeco Communications, EU:C:2019:263, n.º 47).
Tal como é referido no Considerando 12 da Directiva: “O pagamento de juros é uma componente essencial da reparação para compensar os danos sofridos, tendo em conta o decorrer do tempo, e deverá ser devido desde o momento em que ocorreu o dano até ao momento do pagamento da reparação, sem prejuízo da sua qualificação como juros compensatórios ou juros de mora no âmbito do direito nacional e da questão de saber se o decorrer do tempo é tido em conta como uma categoria separada (juros) ou como uma parte constitutiva dos danos emergentes ou dos lucros cessantes”.
De facto, a Directiva veio a dispor, no art. 3.º, n.º2, que a reparação integral pressupõe o pagamento de juros. Norma que veio a ser transposta pelo art. 4.º da Lei 23/2018, que, no entanto, por se tratar de uma norma de natureza substantiva e por razões temporais, não é aplicável no caso destes autos.
Contudo, o pagamento dos juros enquanto parte integrante da indemnização, como forma de compensação do tempo e, nessa medida, desde a produção dos danos, já se encontra previsto no nosso ordenamento jurídico. Neste âmbito, emergindo a obrigação de indemnização da prática de facto ilícito, é possível fixar juros moratórios a contar da data da prática desse acto ou da materialização do dano, no caso de exclusiva produção de danos futuros (caso seja regularmente pedido pelo Autor, a indemnização deve ser fixada em valor já actualizado, conforme uniformização operada pela «Jurisprudência n.º 4/2002», de 27 de junho), nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do art. 805.º do Código Civil.
Os juros moratórios são os legais, face ao estabelecido no n.º 2 do art. 806.º do Código Civil.
Daqui decorre que a Recorrida tem direito a juros de mora desde a data da produção do dano, a qual não coincide com a data da infracção ou o termo do cartel, em 2011, sendo que o dano causado pelo facto ilícito (e no caso trata-se de uma infracção por objecto) pode ocorrer após a cessação da infracção, desde que se verifique o necessário nexo de causalidade.
Ainda que o veículo tenha sido vendido pela Recorrente à Evicar em 2008 (no período de vigência do cartel), o mesmo só foi adquirido pela Recorrida à Evicar em 2018, desconhecendo-se quer a data da liquidação das rendas pagas pela Recorrida à BPN Crédito, SA quer a data em que ocorreu o facto referido em 38. (registo da propriedade a favor da Recorrida). Sendo certo que o sobrecusto foi, necessariamente, reflectido no valor das rendas periódicas pagas no âmbito do contrato de locação financeira mobiliário, o que se traduz num dano para a Recorrida desde o pagamento da primeira renda (capital e juros), que se retira dos factos provados 36 e 37 que ocorreu no ano de 2018.
Cálculo da indemnização e respectivos juros
Resulta da matéria de facto que a Autora teve de pagar pelo camião que adquiriu um valor superior ao que lhe seria exigido caso não tivesse ocorrido a infracção, valor esse que, porque não resultou apurado o valor concreto do sobrecusto pago pela Autora, se estimou, ao abrigo do artigo 9.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2018, em 5% do preço de venda.
Há, assim, que reformular o cálculo da indemnização devida.
O sobrecusto suportado pela Autora/Recorrida (no valor estimado de 5% sobre €86.859,11) foi de €4.342,95, sendo este o valor da indemnização que a Ré/Recorrente deve ser condenada a pagar, acrescido de juros de mora desde a data da aquisição do camião e vincendos até integral pagamento.
Da matéria de factos resulta que o camião em causa foi adquirido no ano de 2018. Compulsados os documentos constantes do processo constata-se que deles não consta a data concreta, do ano de 2018, em que o camião foi adquirido à Evicar, nem tão pouco a data exacta da celebração do contrato de locação financeira imobiliária nem a data em que a propriedade foi registada em nome da Recorrida (do certificado junto aos autos resulta que foi efectivamente registado em nome desta, datando no entanto o título emitido de 2010).
Assim, para este efeito e porque o ónus da prova cabia ao Autor, terá que se considerar o dia 31 de Dezembro de 2018 como data a partir da qual são devidos juros de mora vencidos.
A citação da Recorrente ocorreu em 13.09.2019, data a partir da qual serão devidos juros de mora vincendos até integral pagamento da indemnização.
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar o recurso parcialmente procedente, revogando a sentença recorrida e decidindo em sua substituição o seguinte:
a) Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de €4.342,95 (quatro mil trezentos e quarenta e dois euros e noventa e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, desde 31.12.2018, e vincendos até integral pagamento.
b) Absolve-se a Ré do mais peticionado nestes autos pela Autora.
Custas por ambas as partes, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 70% da Autora e 30% da Ré (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Lisboa, 16.10.2024
Eleonora Viegas
Carlos M.G. de Melo Marinho
Armando Cordeiro
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[1] diferença entre o valor cobrado por um determinado produto num contexto de cartel e o valor que deveria ser cobrado caso esse produto fosse vendido num contexto competitivo.
[2] Disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ee66acd61e54998980258a63004daa8d?OpenDocument
[3] No caso dos autos em 22.08.2019
[4] Na versão inglesa da Diretiva refere-se “empowered”, na versão francesa da Diretiva refere-se “habilitées”, na versão espanhola usa-se a expressão “facultados” e na versão italiana utiliza-se o termo “potere” (Cf. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/en/TXT/?uri=CELEX%3A32014L0104).
[5] Os ditos pareceres foram elaborados para outros processos que não este, em concreto, processos TCRS n.ºs 12/19.0YQSTR e 71/19.6YQSTR, tomando em conta, inclusive, algumas especificidades daqueles, nomeadamente, a utilização da Decisão Scania, que não são relevantes para o caso em apreço. Também de notar que o denominado “Parecer do Professor Paulo Mota Pinto” contém uma adenda que, no essencial, responde a um outro parecer, elaborado pelo Professor Miguel Sousa Ferro, cujo conteúdo desconhecemos.
[6] Neste sentido, Nuno Alexandre Pires Salpico, Cálculo de Danos e Equidade, Almedina, 2023, p. 110. Diz-nos este autor que o artigo 17.º, n.º1 da Diretiva, tem dois efeitos principais: “1) permite a estimativa dos danos, privilegiando um juízo de aproximação ao valor “real” do dano, 2) autoriza o julgador a atenuar a exigência probatória relativamente à extensão do dano”. Se podemos aceitar o primeiro dos efeitos apontados, pelos motivos acima expostos no nosso texto, cremos ter uma interpretação diversa quanto aos poderes aqui conferidos ao julgador.
[7] Guia Prático de Quantificação dos Danos nas Ações de Indemnização com base nas infrações aos artigos 101.º e 102.º do TFUE, de 2013, pode ser descarregado em todas as línguas oficiais da EU através do seguinte link: “Pratical Guide on quantifying antitrust harm in damages actions”. Pode também ser acedido na seguinte página da Comissão: https://competition-policy.ec.europa.eu/antitrust/actions-damages_en.
[8] Na jurisprudência do STJ encontramos posições diferentes sobre a natureza do juízo de equidade. Por exemplo, a posição que fez vencimento no Ac. STJ 17-12-2019, proc. 669/16.4T8BGC.S1, considera que o juízo de equidade situa-se no plano do direito. Já no voto de vencido anexo àquele acórdão e noutros acórdãos do STJ, por exemplo, o Ac. 10-12-2019, proc. 1087/14.4T8CHV.G1.S1, considera-se que o juízo de equidade não integra “em bom rigor, a resolução de uma questão de direito”. Esta segunda posição, admite, contudo, em sede de recurso de revista, o controlo do montante indemnizatório fixado com recurso a equidade, com critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adotados, de modo a salvaguardar os valores de segurança jurídica e o princípio da igualdade, para além da proporcionalidade e razoabilidade.
[9] No mesmo sentido, o acórdão TRL de 6.11.2023, proc. 54/19.6YQSTR.L1
[10] Neste sentido, Maria José Costeira in, “A transposição da Diretiva Private Enforcement: perspectiva crítica”, UNIO EU Law Journal, Vol. 3, N.º 2, Julho 2017, pp 175-184 e publicado in file:///C:/Users/MJ02554/Downloads/admin,+PT+Maria+Jos%C3%A9+Costeira%20(2).pdf
[11] diferença entre o valor cobrado por um determinado produto num contexto de cartel e o valor que deveria ser cobrado caso esse produto fosse vendido num contexto competitivo.
[12] O Guia Prático de Quantificação dos Danos nas Acções de Indemnização com base nas infracções aos artigos 101.º e 102.º do TFUE, de 2013
[13] Disponível em https://www.nera.com/content/dam/nera/publications/2019/PUB_Difference_in_Differences.pdf
[14] Diferença entre o valor cobrado por um determinado produto num contexto de cartel e o valor que teria sido cobrado caso esse produto fosse vendido num contexto competitivo
[15] Data da propositura da acção nos presentes autos
[16] [31 no original] Informação reportada a julho deste ano, acessível em: https://competitionlawblog.kluwercompetitionlaw.com/2023/07/06/the-spanish-supreme-court-sentences-the-trucks-cartel/(acedido em 16-10-2023).
[17] [32 no original] Veja-se, https://www.poderjudicial.es/cgpj/es/Poder-Judicial/Tribunal-Supremo/Noticias-Judiciales/El-Tribunal-Supremo-dicta-sentencia-en-quince-recursos-de-casacion-sobre-acciones-de-reclamacion-de-danos-por-el--cartel-de-camiones-. Acedido em 16-10-2023
[18] [34 no original] De notar que o CAT é um tribunal especializado, que funciona em painéis de 3 membros que, coletivamente, apresenta experiência em direito da concorrência, política legislativa e economia (Richard Whish e David Bailey, Competition Law, 10.ª ed., Oxford, 2021, p. 332).
[19] [35 no original] Acórdão do Competition Appeal Tribunalde 07-02-2023, casos conexos n.ºs 1284/5/7/18 (T) e 1290/5/7/18 (T), acessível em: https://www.catribunal.org.uk/cases/12845718-t-royal-mail-group-limited). Acedido em 16-10-2023.
[20] [36 no original] Veja-se, Whish e Bailey, supra nota 33, p. 62 e 332-333.
[21] [37] Competition (Amendment etc.) (EU Exit) Regulations 2019 (SI 2019/93), para. 14(2) of Sch 4.
[22] [38] Tradução da nossa responsabilidade. No original lê-se, a p. 186, “Despite the enormous amount of work that went into the expert process on this case”.
[23] [39] Lê-se na p. 187, “Several of the imperfections in the experts’ regression models do not yield a definitive solution and we believe that no regression model could”.
[24] [40] Sobre este princípio veja-se p. 76-77 do acórdão.
[25] STS 1285/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1285; STS 1286/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1286; STS 1287/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1287; STS 1288/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1288; STS 1291/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1291; STS 1292/2024 - ECLI:ES:TS:2024:1292