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RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
VIOLÊNCIA EXERCIDA SOBRE A COISA
Sumário
I – Em caso de esbulho violento o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. II – Preenche a violência, ou seja, integrará actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda”); ou seja, preenche igualmente o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa. III – O rebentamento por parte das Requeridas da fechadura da porta do imóvel da Requerente, que a tinha fechado à chave, invadindo-o e mudando a fechadura, tendo tratado de solicitar o fornecimento de água e electricidade para o mesmo, junto dos respectivos serviços com recurso a expedientes menos legítimos, constitui um acto de esbulho violento por parte das Requeridas.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – RELATÓRIO
Nos presentes autos de procedimento cautelar de restituição provisória de posse[1] nos termos do disposto nos arts. 377º e 378º do CPC, requeridos no decurso da acção, figura como requerente EMP01.... Ldª e requeridos AA e BB, pedindo aquela a restituição provisória de um imóvel.
Após despacho liminar em que mandou juntar alguns documentos[2], a Srª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/05/2020 (proferido no Processo n.º 1988/17.8T8PTM-A.E2.S1, relatado por Henrique Araújo), admitindo-se que a violência tanto pode ser exercida sobre pessoas como sobre coisas, acrescenta-se que “a violência contra as coisas não implic[a] necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Mas também não basta que ela se traduza numa actuação constritiva, equivalente à privação não consentida da posse. É preciso mais: é preciso que, pela forma como essa constrição é efectuada, o possuidor se mostre coagido a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento.”
«Na economia do acórdão, tal comportamento do esbulhador, realizado na ausência do possuidor, não configura coação (nem física nem moral), pelo que não pode qualificar-se como esbulho violento. Acrescenta-se a que “coacção, seja física ou moral, tem de ser sempre exercida sobre uma pessoa, porque só as pessoas podem ser alvo de coacção”, ainda que a violência que a integra possa ser exercida sobre coisas. Porém, no último caso, a violência só será “relevante se com ela se pretender intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma, não devendo qualificar-se como tal os meros actos de destruição ou danificação desprovidos de qualquer intuito de influenciar psicologicamente o possuidor”. Só haverá violência se, mesmo que, indirectamente, o comportamento do esbulhador “visar coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois apenas assim estará em causa a liberdade de determinação humana”.
Assim, não basta a privação não consentida da posse para que o esbulho seja violento, sendo necessário que “pela forma como essa constrição é efectuada, o possuidor se mostre coagido a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento.”
O aresto em análise parece identificar o conceito de violência com o de coação (física ou moral), embora não consagre de forma clara o conceito mais restrito de esbulho violento, já que se admite, ainda que em obiter dictum, não ser indispensável a presença do possuidor esbulhado no momento do esbulho, bastando que a violência exercida sobre coisas ponha em causa ou limite a liberdade de determinação humana.
O esbulho violento, na aceção do artigo 1279.º do Código Civil, pressupõe a posse violenta, tal como configurada no artigo 1261.º, n.º 2 do Código Civil. Isto significa que a violência implica a coação física ou moral do possuidor esbulhado. Esta coação tanto pode resultar de ameaça dirigida ao possuidor esbulhado, ainda que a ameaça possa consistir num mal respeitante ao próprio possuidor, ao seu património ou a pessoa ou património de um terceiro (coação moral), como na colocação do possuidor numa situação de absoluta impossibilidade de resistir ao esbulho, no momento em que este ocorre (coação física).
Nos casos de violência sobre coisas, não acompanhada de ameaça expressa, haverá que distinguir se o esbulho ocorre na presença ou na ausência do possuidor esbulhado.
Estando o possuidor presente no momento do esbulho, o uso da força, mesmo que tenha como finalidade primária remover um obstáculo material, configurará, em regra, coação, pelo que o esbulho deverá ser considerado violento. Com efeito, a violência contra coisas na presença do possuidor será idónea para limitar a sua liberdade de determinação e, por isso, constituirá coação. O uso da força física sobre coisas, na presença do possuidor esbulhado será em regra idóneo para inibir este de se opor ao esbulho (nomeadamente recorrendo à ação direta).
Não estando o possuidor esbulhado presente no momento do esbulho, este só poderá qualificar-se como violento se os meios utilizados pelo esbulhador tiverem como finalidade, ainda que indireta ou lateral, condicionar a liberdade de determinação do possuidor esbulhado, pelo receio de um mal (distinto da simples privação do gozo da coisa) e se aqueles meios forem idóneos para provocar tal receio.
Não preencherão tais circunstâncias os comportamentos do esbulhador que tenham como finalidade exclusiva remover obstáculos materiais à aquisição da posse, mesmo que tais atos impliquem o uso da força (vg., a quebra do vidro de um automóvel para a apropriação de um telemóvel que se encontra no seu interior), ou não sejam idóneos para condicionar a liberdade de determinação do possuidor.
Por definição, o esbulho implica a privação material da posse do possuidor esbulhado. Tal privação, por si só, não constitui coação, nem moral nem física, para efeitos de qualificação do esbulho como violento.
Por outro lado, para a qualificação do esbulho como violento só relevarão os comportamentos do esbulhador que sejam anteriores ou contemporâneos ao início da sua posse, pois só esses atos poderão considerar-se adequados a constranger o possuidor a não se opor ao ato de desapossamento» (Carlos Gabriel da Silva Loureiro, em comentário publicado em 10 de novembro de 2020 ao citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, inhttps://www.direitoemdia.pt/magazine/show/90).
Ora, no caso em apreço, a Requerente alegou a posse e o esbulho, mas não alegou factos que integrem a violência do esbulho, não sendo suficiente o que alega nos arts. 16º e seguintes do requerimento inicial, considerando o entendimento expresso acima.
Assim, não alegou todos os factos necessários à verificação dos requisitos do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, determinando-se a convolação do presente procedimento no procedimento cautelar comum, nos termos do disposto no art. 379º do CPC, entendendo-se que estão alegados os requisitos do procedimento cautelar comum (séria probabilidade de existência de posse e o receio de lesão grave e dificilmente reparável).
Notifique.
Autue como procedimento cautelar comum.
Cite as Requeridas – arts. 366º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Notificada de tal despacho e inconformada com a decisão de convolação do procedimento cautelar de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum com fundamento na falta de requisitos, designadamente da violência do esbulho, apresentou a Requerente recurso de apelação, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:
a) Vem a presente apelação interposta do douto despacho de fls., que convolou o procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum e ordenou a citação das requeridas;
b) Esta decisão padece de nulidade, porquanto constitui uma decisão surpresa com inobservância do princípio do contraditório, mais sendo errada ante a factualidade alegada para efeito do preenchimento dos requisitos do procedimento cautelar requerido;
c) Pois, a decisão proferida de convolação do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum, acontece de forma surpreendente, após a junção dos documentos de prova solicitados pelo Tribunal em cumprimento do despacho antecedente ao recorrido de fls., e sem que a Requerente sequer fosse ouvida a propósito da intenção da decisão agora proferida, ou seja, quanto à convolação do processo com natureza distinta;
d) O Tribunal “a quo” não observou ou não deu cumprimento ao princípio do contraditório relativamente à decisão proferida;
e) Pelo que, a decisão que aprecia a situação e convola o procedimento especificado de restituição de posse em procedimento cautelar comum constitui, assim, uma verdadeira decisão surpresa, tanto mais que, o despacho anterior havia ordenado a junção de documentos, para efeito da prova da posse por parte da Requerente e que esta cumpriu juntando os documentos de fls., e como tal, nada indiciava a decisão sob recurso, mas antes a produção da prova requerida pela requerente e a consequente decisão em observância do disposto no artigo 1378.º do CPC.;
f) Ao assim proceder, o Tribunal “a quo” incorreu na nulidade secundária prevista no art.º 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, porquanto aquela omissão poder influir no exame e decisão do presente procedimento, tanto mais que retira o efeito útil ao procedimento cautelar requerido;
g) Devendo, por isso, ser declarada a nulidade da decisão.
h) Sem prescindir, a decisão quanto à falta de requisitos para o procedimento cautelar de restituição da posse é errada, porquanto, a factualidade alegada é consentânea, adequada e bastante quanto os requisitos da restituição da posse, pois é indubitável que houve violência sobre a coisa reclamada, verificou-se violência no esbulho de que foi vitima a requerente, tendo em atenção que, o esbulho é um acto através do qual um terceiro priva um possuidor da fruição do objeto possuído, que a privação corresponda a uma perda complecta da possibilidade de utilização do bem, impedindo a sua disponibilidade física pelo possuidor;
i) Na acção cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;
j) No caso, dos autos perante o factualismo alegado nos artigos 16° a 21°, 23º, 26º, a 29º e 31º, do requerimento inicial, que aqui se dá por reproduzido, nunca poderia considerar-se que não foram alegados factos suficientes para os requisitos do procedimento cautelar de restituição da posse. Pois a requerente foi esbulhada com violência pelas requeridas, existindo um impedimento no acesso ao imóvel, sendo inegável que, houve violência no esbulho mediante a acção física exercida sobre a coisa coagindo o esbulhado/requerente a suportar uma situação contra a sua vontade;
k) Na verdade, como acima ficou dito, basta que a acção física exercida sobre a coisa traduza um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade para tal configurar um esbulho violento. Sendo certo que, o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso ao imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento, logo, está justificado o acesso à tutela cautelar nominada;
l) Assim, a decisão ora recorrida fez uma errada e incorrecta interpretação e aplicação dos arts. 1279.º do CC, 1376.º, 1377.º e 1378.º do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por douto acórdão que ordene o prosseguimento dos autos como procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, produzindo-se a prova requerida, sem a audição das requeridas;
m) O despacho apelado além do mais violou o disposto nos artºs 3.º, nº 3, 1376º, 1377.º e 1378.º do CPC e ainda 1279.º do Código Civil;
n) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto no arts., 195.º, 644º, do CPC.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogado o douto despacho apelado, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão Vª.s Exªs, Venerandos Desembargadores, a habitual
JUSTIÇA.
Tendo-se seguido o seguinte despacho:
Veio a Requerente dos presentes autos de restituição provisória de posse, insurgir-se contra a o despacho judicial proferido a 08.08.2024, convolando o presente procedimento em procedimento cautelar comum, nos termos do disposto no art.º 379º do CPC e considerando que estão alegados os requisitos deste último.
Alegou para efeito que tendo sido proferido sem prévia notificação à Requerente para se pronunciar sobre essa possibilidade, constituiu decisão surpresa passível de influir no exame e decisão da causa pelo que e é nulo.
Dispõe o n.º 3, do art.º 3º, do C. P. Civil: O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar.
Consagra-se a proibição da decisão surpresa, baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes (neste sentido, entre outros, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, in C.P. Civil Anotado, vol. 1º, pág. 9, ed. 1999, Coimbra Editora).
No caso vertente, não foi concedida à Requerente a possibilidade de se pronunciar sobre a convolação dos presentes autos, propostos como procedimento cautelar de restituição provisória de posse, em autos de procedimento cautelar comum.
O incumprimento do prévio exercício do contraditório privou a Requerente de esgrimir a sua argumentação sobre a questão que, convenhamos, não é inócua para os seus interesses processuais, na medida em que sendo outros os pressupostos do decretamento do procedimento cautelar comum, pode a Requerente ter interesse em aditar factos passíveis de melhor os preencherem, ou em alterar a prova que havia indicado com especial enfoque na demonstração dos pressupostos da restituição provisória de posse, tudo sem prejuízo de se manifestar quanto à justificação ou pertinência da convolação.
Em face do exposto:
- declaro nulo, por incumprimento do princípio do contraditório (cfr. artigos 3º, n.º 3 e 195º, n.º 1, ambos do CPC), o despacho proferido a 08.08.2024 e os termos subsequentes do processo, do mesmo dependentes;
- determino a notificação da Requerente para, em cinco das, se pronunciar sobre a eventual convolação em procedimento cautelar comum, dos presentes autos de procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
Sem custas.
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Referência ...64: declaro prejudicada pelo teor do despacho precedente, a admissão do recurso interposto pela Requerente.
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Notifique.
Pronunciando-se, a Requerente fê-lo nos seguintes termos:
1 – A requerente não aceita que o presente Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse seja convolado em Procedimento Comum Cautelar;
2 – Com efeito, a requerente alegou naquele procedimento factos que consubstanciam todos os requisitos do procedimento cautela de restituição provisória de posse;
3 – Assim, a requerente desde logo alegou factos conducentes ao requisito de violência de esbulho, como resulta da factualidade descrita sob os artigos 16º a 21º, 23º, 26º a 44º do requerimento inicial, cujo teor por brevidade se dá como reproduzido para os devidos efeitos;
4 – É indubitável que houve violência sobre o bem reclamado; e violência no esbulho de que foi lesada a requerente, ao ficar privada do imóvel por factos praticados pelas requeridas, que impedem aquela de usufruir e possuir aquele bem;
5 – Sendo certo que a violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas;
6 – Ocorrendo esbulho violento quando à actuação do esbulhador, in casu, das esbulhadoras, sobre o imóvel esbulhado é de molde a tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos de acesso à coisa, seja através de meios que impedem a sua utilização pelo possuidor;
7 – Aliás, como defende o Prof. Lebre Freitas, Ac.s do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03/09/2003 e Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/11/2006 – “a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas, sendo, quanto a estas, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência de meios usados pelo esbulhador”;
8 – Dispõe o artigo 1279º, do Código Civil, que “(…) o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”;
9 – Consubstanciando o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso ao imóvel, mesmo na ausência do possuidor, esbulho violento, logo justificando o acesso ao Procedimento Cautelar Nominado de Restituição Provisória de Posse;
10 – Daí, ante a narração e ocorrência dos factos, estarem totalmente preenchidos todos os requisitos exigidos pelo Procedimento Cautelar Nominado de Restituição Provisória de Posse;
11 - Que é mais célere, face à ausência de audição das esbulhadoras, e defende e protege o direito do esbulhado;
12 – Evitando que este sofra prejuízos gravíssimos de difícil ou impossível reparação;
13 - Sendo certo que os factos e o direito alegados não cabem nos fundamentos/requisitos da providência cautelar comum, e o recurso, através da convolação, a este por parte do Tribunal ainda mais agrava os prejuízos da requerente.
Termos em que deve admitir-se o Procedimento Cautelar de Restituição Provisória de Posse, com as legais consequências.
E. R. Justiça
Seguindo-se o seguinte despacho:
Da convolação do presente para procedimento cautelar comum:
Notificada para se pronunciar sobre a falta de alegação de todos os requisitos previstos para o tipo de procedimento que propôs e convolação para procedimento comum, veio a Requerente (Ré, na ação principal) posicionar-se no sentido de se opor a tal, com fundamento em ter alegado factos suficientes ao requisito do “esbulho violento” (req - ref.ª ...93).
A Requerente não descreveu ou acrescentou factualidade ao seu requerimento inicial.
Por conseguinte, por a causa de pedir não ter sofrido alterações na sequência do direito ao contraditório, por concordarmos com o expendido de facto e de direito no despacho prolatado a 08.08.2024, por não vermos necessidade de o acrescentar e por razões de economia processual, dá-mo-lo aqui por integralmente reproduzido e para todos os efeitos legais.
Pelo exposto, determina-se a convolação do presente em procedimento cautelar comum (art.º 379º do CPC).
Notifique e d.n. (autuação, inclusive).
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Notificada de tal despacho e inconformada com a decisão de convolação do procedimento cautelar de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum com fundamento na falta de requisitos, designadamente da violência do esbulho, apresentou a Requerente recurso de apelação, cujas alegações finalizou com a apresentação das seguintes conclusões: a) Vem a presente apelação interposta do douto despacho de fls., que convolou o procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum e ordenou a citação das requeridas; b) A decisão quanto à falta de requisitos para o procedimento cautelar de restituição da posse é errada, porquanto, a factualidade alegada é consentânea, adequada e bastante quanto aos requisitos da restituição da posse, pois é indubitável que houve violência sobre a coisa reclamada, verificou-se violência no esbulho de que foi vitima a requerente, tendo em atenção que, o esbulho é um acto através do qual um terceiro priva um possuidor da fruição do objeto possuído, que a privação corresponda a uma perda complecta da possibilidade de utilização do bem, impedindo a sua disponibilidade física pelo possuidor; c) Na acção cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento; d) No caso, dos autos perante o factualismo alegado nos artigos 16° a 21°, 23º, 26º, a 29º e 31º, do requerimento inicial, que aqui se dá por reproduzido, nunca poderia considerar-se que não foram alegados factos suficientes para os requisitos do procedimento cautelar de restituição da posse. Pois a requerente foi esbulhada com violência pelas requeridas, existindo um impedimento no acesso ao imóvel, sendo inegável que, houve violência no esbulho mediante a acção física exercida sobre a coisa coagindo o esbulhado/requerente a suportar uma situação contra a sua vontade; e) Na verdade, como acima ficou dito, basta que a acção física exercida sobre a coisa traduza um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade para tal configurar um esbulho violento. Sendo certo que, o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso ao imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento, logo, está justificado o acesso à tutela cautelar nominada; f) Assim, a decisão ora recorrida fez uma errada e incorrecta interpretação e aplicação dos arts. 1279.º do CC, 1376.º, 1377.º e 1378.º do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por douto acórdão que ordene o prosseguimento dos autos como procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, produzindo-se a prova requerida, sem a audição das requeridas; g) O despacho apelado além do mais violou o disposto nos artºs 1376º, 1377.º e 1378.º do CPC e ainda 1279.º do Código Civil; h) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto no artigo 644º, do CPC.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogado o douto despacho apelado, com as legais consequências.
Assim decidindo, farão Vª.s Exªs, Venerandos Desembargadores, a habitual
JUSTIÇA.
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A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, providenciando pela subida dos autos[3].
*
Facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR
Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Consideradas as conclusões formuladas pela apelante Requerente, esta pretende que seja reapreciada a decisão de convolação do procedimento cautelar de restituição provisória da posse em procedimento cautelar comum com fundamento na falta de requisitos, designadamente da violência do esbulho.
*
3 – OS FACTOS
Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede, passando a transcrever-se, para melhor compreensão, o teor dos mencionados arts. 16º e seguintes do requerimento inicial[4]:
(…)
16.º
Sucede que a 1ª e a 2ª Requeridas, filha e mãe respectivamente, em meados de Julho de 2024, sem consentimento e autorização da Requerente, rebentaram a fechadura da porta de entrada, mudaram a fechadura e invadiram aquele imóvel propriedade desta, que a tinha fechado à chave;
17.º
Após isso, trataram de solicitar o fornecimento de água e electricidade para o imóvel, junto dos respectivos serviços;
18.º
Porém, porque não dispunham nem dispõem de qualquer título válido que lhes permitisse a requisição daqueles serviços e a celebração dos respectivos contratos, arquitetaram um plano para esse fim, tendo a 1ª Requerida em 17 de Julho de 2024, procedido junto da Conservatória do Registo Civil, à alteração da morada indicando que agora era residente na Avª ..., em ..., ou seja, na identificada Fracção da Requerente;
19.º
E, seguidamente, as Requerentes no dia 19 de Julho de 2024, deslocaram-se à sede da Junta de Freguesia ..., em ..., área da localização da Fracção e requereram a emissão de um atestado de residência apresentando para efeito de prova o documento que lhes havia sido emitido pela Conservatória do Registo Civil com a alteração de morada, que falsamente a 1ª Requerida indicou/declarou;
20.º
Na posse do atestado de residência emitido pela Junta de Freguesia, nesse mesmo dia 19 de Julho de 2024, as Requeridas deslocaram-se às instalações da EMP02... de ..., e, fazendo uso daquele para o efeito, requisitaram o fornecimento de água para a Fracção;
21.º
Entretanto, adotando o mesmo comportamento ou conduta, em data que não pode precisar, mas no período compreendido entre os dias 22 e 23 de Julho de 2024, com o uso do atestado de residência que contém ou consubstancia uma declaração falsa, junto de operador/comercializador de energia electrica, solicitaram a instalação de fornecimento de energia eléctrica;
22.º
Tendo o operador/comercializador agendado a sua instalação e fornecimento de energia para o dia 25 de Julho de 2024;
23.º
Ora, aquele documento – atestado de residência, que serviu de base à requisição do fornecimento de água e energia eléctrica resultou de declarações falsas prestadas pela 1ª Requerida perante a entidade pública da Conservatória do Registo Civil, visando com isso, fazer crer que aquela era a sua morada e consequentemente, obter água e luz na Fracção, que haviam invadido e ocupado ilegalmente, por arrombamento da porta de entrada e sem título;
24.º
Não sendo, aquele atestado de residência, emitido com base em documento falso, idóneo para a celebração do contrato de fornecimento de água e de electricidade;
25.º
Perante a situação e os actos praticados pelas Requeridas e supra descritos, o legal representante da Requerente apresentou reclamação nos serviços da EMP02... de ... e da EMP03..., pois a proprietária não havia prestado qualquer consentimento ao uso da Fracção por parte das Requeridas, ou seja, estas não dispunham nem dispõem de qualquer título válido para a celebração do contrato;
26.º
A Requerente já participou criminalmente contra as Requeridas da prática daqueles actos, designadamente o rebentamento da fechadura da porta de entrada, a introdução e ocupação ilegal do imóvel e a prestação de declarações falsas, que considera criminosos; - Cfr. teor do documento que se junta sob o n.º 4;
(…)
*
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Entende a recorrente que a decisão em causa no recurso é errada, porquanto, a factualidade alegada é consentânea, adequada e bastante quanto aos requisitos da restituição da posse.
Vejamos então a situação.
Nos termos do disposto no art. 362º/1 do CPC, sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado; excepto se for decretada a inversão do contencioso o procedimento cautelar é sempre dependência da acção que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa (art. 364º/1) e reveste sempre caracter urgente (art. 363º/1).
Quanto ao fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito, o periculum in mora, cumpre referir que, ao contrário do que sucede em alguns procedimentos cautelares nominados em que a lei dispensa a prova especifica do periculum in mora, no procedimento cautelar comum não se verifica tal dispensa e a manifestação dessa ideia geral de periculum in mora é a exigência do fundado receio de lesão grave dificilmente reparável do seu direito.
De facto, ao lado dos procedimentos cautelares genericamente previstos nos arts. 362º e ss. do CPC, o legislador consagrou ainda os procedimentos cautelares especificados ou nominados, entre os quais se enquadra a restituição provisória da posse, dispondo o art. 377º que no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
Cumpre ainda sublinhar que com as providências cautelares se visa alcançar apenas uma decisão provisória do litígio, sendo necessário que a mesma seja fundamental para assegurar a utilidade da decisão, isto é, seja necessária a prevenir as eventuais alterações da situação de facto que tornem ineficaz a sentença a proferir na acção principal, que essa sentença (sendo favorável) não se torne numa decisão meramente platónica[5].
Por outro lado, as providências cautelares, quanto à sua finalidade e efeitos, dividem-se em conservatórias e antecipatórias[6].
Nas conservatórias pretende-se, apenas, acautelar ou garantir o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio a resolver na acção ou aquando da verificação da situação de periculum in mora. As mesmas não produzem efeitos irreversíveis na esfera do requerido, nem proporcionam ao requerente uma tutela imediata do seu direito; será o caso das providências de arresto, arrolamento e, regra geral, de embargo de obra nova.
Já nas providências cautelares antecipatórias e devido à urgência da situação carecida de tutela, o tribunal antecipa, ainda que numa composição provisória, a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal[7]. Estas excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia, aproximando-se de medidas de índole executiva, pois que garantem, desde logo e independentemente do resultado que se obtiver na ação principal, um determinado efeito. É o caso da restituição provisória da posse.
A restituição provisória da posse é, pois, uma providência cautelar com funções antecipatórias.
A razão de ser desta providência, como se escreveu já no Ac. do STJ de 26-05-1998[8] “é, além da ideia de castigo ou repressão da violência, evitar a tentação, por parte do esbulhado, de fazer justiça por meio de ação direta, em princípio gerador de nova violência, compensando-o assim com um meio processual, simples e rápido, de repor a situação anterior”, o benefício concedido ao possuidor “de ser restituído à posse imediatamente, isto é, antes de ser julgada procedente a ação tem a sua justificação precisamente na violência cometida pelo esbulhador; é por assim dizer, o castigo da violência. É a violência que compensa o facto da falta de característica típica das providências cautelares: o periculum in mora”[9].
De facto, o beneficio que é concedido ao possuidor esbulhado não tem em atenção um perigo de dano eminente, o periculum in mora, mas é concedido como compensação da violência de que foi vitima, pela aplicação da regra spoliatus ante omnia restituendus; por isso, e ao contrário de outros processos cautelares, designadamente do procedimento cautelar comum, o autor não carece de alegar e provar o periculum in mora bastando-lhe alegar e provar os pressupostos desta providência[10].
São por isso pressupostos de que depende o decretamento da providência de restituição provisória da posse, tal como decorre do referido art. 377º do CPC, a posse, o esbulho e a violência, sem que o requerente necessite de invocar a existência de periculum in mora.
De facto, conforme decorre do art. 1279º do CC, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador; no caso de esbulho violento, o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (art. 377º do CPC) sendo que se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador (art. 378º do CPC).
Da leitura destes preceitos conclui-se, por isso, que o decretamento desta providência pressupõe a demonstração pelo requerente da posse da coisa, do esbulho e da violência (sendo certo que não estando em causa uma situação de esbulho violento será sempre de ponderar a possibilidade de optar pelo decretamento de uma providência cautelar comum desde que demonstrados os pressupostos desta tal como decorre do art. 379º do CPC).
O primeiro dos pressupostos será, por isso, a qualidade de possuidor do requerente, qualidade que decorre[11] do exercício de poderes de facto sobre uma coisa, por forma correspondente ao direito de propriedade ou a qualquer outro direito real.
A posse susceptível de fundar as acções possessórias é por regra a posse em nome próprio; no entanto, além dos possuidores em nome próprio outros podem socorrer-se dos meios de defesa da posse, como é o caso dos titulares de direitos pessoais de gozo, designadamente do locatário[12].
A Requerente é dona e legitima possuidora do imóvel aqui em questão, pelo que verificado se encontra este pressuposto.
Quanto ao esbulho será de considerar que existe sempre que alguém é privado, total ou parcialmente, do uso ou fruição do bem possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício, contra sua vontade. Na definição de Manuel Rodrigues[13] “há esbulho sempre que alguém for privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar”, podendo o esbulho ser total ou parcial.
Relativamente à violência, a doutrina e a jurisprudência veem-se dividindo em duas posições distintas: uns defendem que a violência relevante tem de ser a exercida contra a pessoa do possuidor, os outros que basta a violência sobre a coisa, em especial quando esta esteja ligada à pessoa esbulhada, posição que, tanto quanto nos é dado conhecer é hoje largamente maioritária.
Quanto à violência, já Alberto dos Reis[14] defendia que tanto pode exercer-se sobre as pessoas, como sobre as coisas, sendo esbulho violento o que se consegue mediante o uso da força contra a pessoa do possuidor mas também o que se leva a cabo por meio de arrombamento ou escalamento, embora não haja luta alguma entre o esbulhador e o possuidor.
A violência sobre a coisa é relevante, para efeitos de restituição provisória, quando a coisa violada pela actuação do esbulhador era em si um obstáculo ao esbulho que teve de ser vencido ou quando esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado ou ainda quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral; neste caso a violência contra as coisas há de constituir um meio de coacção, de constrangimento físico ou moral sobre as pessoas, designadamente, intimidando o possuidor e limitando a sua liberdade de determinação[15].
Conforme refere Abrantes Geraldes[16] “sendo o esbulho uma das formas através das quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento deve ser o resultado da aplicação do art. 1261 do C.C., com o que somos transportados, por expressa vontade do legislador, para o disposto no art. 255 do C.C., norma que integra na atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do declaratário (leia-se, do possuidor), como a que é feita através do ataque aos seus bens.” Também Marco Carvalho Gonçalves[17] tende a “considerar que, para além, dos casos em que a violência é exercida sobre a própria pessoa do possuidor, o esbulho será igualmente violento quando, sendo exercido por forma direta e imediata sobre uma coisa, atinja de algum modo, ainda que por via indireta e reflexa, designadamente pelo seu cariz ameaçador ou intimidatório, a pessoa do possuidor”.
Como se pode ler no Ac. desta RG de 14-09-2017[18], “sendo hoje pacífico que a violência relevante para efeitos do esbulho tanto pode incidir contra a pessoa do possuidor como contra a coisa esbulhada. (…) Quanto à violência sobre as coisas há a destacar duas posições um pouco divergentes, na medida em que uma apenas exige uma atuação sobre a coisa esbulhada, relacionada com o esbulhado, desde que impeça o exercício do direito por parte deste. A outra impõe ainda que a atuação sobre a coisa esbulhada seja potenciadora de constrangimento ou intimidação físico ou psíquico sobre o esbulhado.
O STJ, ultimamente, no acórdão datado de 19/10/2016, relatado pela Conselheira Fernanda Isabel Pereira, e publicado em www.dgsi.pt, defende a posição mais lata, expressando-se nas conclusões da seguinte forma:
“O conceito de violência encontra-se plasmado no art. 1261.º, n.º 1, do CC, que define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do art. 255.º do mesmo Código. VI - A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia – pelo que se sufraga a aceção mais lata de esbulho violento. VII - A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, atuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa. VIII - Não pode deixar de se considerar esbulho violento a vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50m executada pelos requeridos como um obstáculo que constrange, de forma reiterada, a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam, merecendo, por conseguinte, tutela possessória cautelar no âmbito do procedimento de restituição provisória de posse”.
Coexistindo as duas teses, parece ser prevalecente na jurisprudência a que entende que a violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas, e que a violência no esbulho se concretiza na simples colocação de um obstáculo físico ao acesso ou utilização pelo possuidor à coisa esbulhada, consubstanciado, por exemplo, na colocação de um portão ou cadeado, sem fornecimento das respetivas chaves[19].
Assim, numa perspectiva mais ampla entende-se que a violência directamente exercida sobre as coisas constitui meio indirecto de atingir as pessoas.
Como afirma Lebre de Freitas[20] “que a coação tem de ser sempre, em última análise, exercida sobre uma pessoa, não é duvidoso; mas a construção ou a destruição duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos atos de exercício do direito correspondente. (…) é, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador”.
Será de considerar o esbulho como violento se o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa em face dos meios usados pelo esbulhador, se a acção física exercida sobre a coisa se traduz num meio de coagir a pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade.
Em face dos factos alegados, não podemos, assim, concordar com a posição defendida pelo Tribunal a quo, que não acompanhamos, pois, tendo a Requerente alegado que as Requeridas rebentaram a fechadura da porta do seu imóvel, que a tinha fechado à chave, invadindo-o e mudando a fechadura, tendo tratado de solicitar o fornecimento de água e electricidade para o mesmo, junto dos respectivos serviços com recurso a expedientes menos legítimos, se nos afigura constituir tal um acto de esbulho violento por parte das Requeridas, estando verificados os pressupostos necessários para o decretamento da providência e o acesso à pretendida tutela cautelar nominada.
Como assim, não se mostrava em falta a alegação dos factos integradores do esbulho com violência, como se pronunciou o Tribunal a quo na decisão recorrida, convolando, em consequência, a providência, conforme resulta do preceituado no art. 376º/3 do CPC, por não estar o tribunal adstrito à providência concretamente requerida.
Pelo que, e sem necessidade de mais considerações, dúvidas não temos que deve ser revogada a decisão proferida, que deve ser substituída por outra que não considere não terem sido alegados todos os factos necessários à verificação dos requisitos do procedimento cautelar de restituição provisória da posse e, assim, dado prosseguimento aos autos.
Procede, pois, a apelação.
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6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela requerente EMP01.... Ldª, e consequentemente, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que não considere não terem sido alegados todos os factos necessários à verificação dos requisitos do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, e, assim, dado prosseguimento aos autos.
Custas a fixar oportunamente, que deverá atender ao disposto no art. 539º do CPC.
Notifique.
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Guimarães, 10-10-2024
(José Cravo)
(Joaquim Boavida)
(Paulo Reis)
[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Guimarães - JC Civel - Juiz ... [2] Com o seguinte teor:
Antes de mais, atendendo ao já alegado na ação principal e para aferir da eventual necessidade de citação prévia das Requeridas, notifique a Requerente para juntar aos autos comprovativos de arrendamentos por si celebrados desde a compra e ainda pelo menos 3 recibos de água, luz ou gás dos últimos anos. [3] E fê-lo nos seguintes termos:
Por a decisão ser recorrível, por ser tempestivo e ter sido apresentado por quem tem legitimidade e interesse em agir para o efeito e, ainda, ter sido autoliquidada a respectiva taxa de justiça, admite-se o recurso interposto pelos AA da sentença proferida a 27.06.2023, que não mereceu resposta (contra-alegações) dos Réus, recurso esse que é de apelação, com subida diferida, em separado e com efeito devolutivo, pois que a providência requerida – defesa da posse – não foi liminarmente indeferida nem não ordenada, tudo nos termos e ao abrigo do disposto nos art.ºs 629.º, n.º 1, 638.º, 644.º, n.º 3, 645.º, n.º2, e 647.º, n.º1, do Código de Processo Civil.
Mais considera-se não haver nulidades a suprir à decisão em crise.
Notifique.
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Oportunamente, subam os autos ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães para apreciação da instância recursiva. [4] Cfr. a decisão recorrida [5] Vd. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 23. [6] Cfr. António Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, Volume III, pág. 91 e ss. e Marco Gonçalves Carvalho, Providências Cautelares, 2015, pág. 90 e ss. [7] Vd. António Abrantes Geraldes, Ob. Cit., pág. 92. [8] In BMJ n.º 477, pagina 506. [9] Cfr. Ac. do STJ de 14-11-1994, in BMJ nº 441, pág. 202. [10] Vd. Marco Gonçalves Carvalho, Ob. Cit., pág. 262, António Abrantes Geraldes, Ob. Cit., Volume IV, pág. 28 e ss. e Moitinho de Almeida, Restituição da Posse e Ocupação de Imóveis, 5ª Edição, pág. 134. [11] Cfr. art. 1251º do CC. [12] Vd. Ac. da RL de 27-06-2019, proferido no Proc. nº 43/06.0TBCDV-B.L1-2 e disponível inwww.dgsi.pt. [13] Vd. A Posse, 4ª Edição, 1996, pág. 363. [14]In Código de Processo Civil Anotado, volume I, pág. 670. [15] Vd. Acs. do STJ de 07-07-1999, in BMJ n.º 489, pág. 338 e da RG de 03-11-2011 e de 23-11-2017, respectivamente proferidos nos Procs. nºs 69/11.2TBGMR-B.G1 e 777/17.4T8FAF.G1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [16]In Temas da Reforma do Processo Civil, volume IV, pág. 48. [17] Ob. Cit., pág. 265. [18] Proferido no Proc. nº 99/17.0T8AMR.G1 e acessível in www.dgsi.pt. [19] Cfr. o supra citado Ac. desta RG de 03-11-2011, mencionando a este propósito, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2ª edição, pág. 363. [20]In Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 2001, pág. 74.