I - Em relação a um veículo automóvel acidentado, sendo a sua reparação integral tecnicamente possível, deve privilegiar-se a sua reconstituição natural, excepto se esta se revelar excessivamente onerosa.
II - Perante um veículo danificado por cuja indemnização deva ser responsabilizada a seguradora, esta, considerando que se está perante uma situação de perda total, deve propor um valor pecuniário para a indemnização, valor esse que é o valor venal ou comercial.
III - Nesse caso, cabe a ela alegar e provar o valor da reparação e o valor venal que corresponderá ao valor de substituição por ela proposto; sobre o lesado recai o ónus de provar que o valor de substituição é superior ao valor venal ou de mercado do veículo danificado.
IV - A privação do uso de veículo danificado em consequência de acidente, pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, i. é, de usar, fruir e dispor do bem de que se viu privado.
V - A determinação do valor do dano haverá de corresponder ao efectivo prejuízo sofrido pelo lesado em consequência da privação do bem que lhe pertence; não podendo ser quantificado esse prejuízo, a sua reparação far-se-á com recurso a critérios de equidade.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
AA propôs acção declarativa de condenação com processo comum contra A..., Companhia de Seguros, SA, pedindo que seja esta condenada a proceder à reparação do automóvel com a matrícula ..-TB-.., que lhe pertence, por ter sido interveniente em acidente de viação, cuja culpa atribui a um segurado na ré, e ainda uma indemnização pela privação do uso desse veículo, no valor diário de € 20,00, desde a data do acidente até à sua reparação.
A ré contestou, pugnando pelo julgamento da causa conforme o que resultasse da audiência.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
O autor ampliou o pedido, alegando que o valor da reparação do automóvel é de € 19.986,20 e não de €12.601,51, conforme referia, o que foi aceite.
Concluído o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência condeno a ré A..., Companhia de Seguros, SA, a pagar ao autor AA a quantia de 9.789€, acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data da citação até integral pagamento, e ainda da quantia de 5€ por dia desde 15/09/2022 até pagamento da indemnização acima fixada, absolvendo do demais peticionado.
As custas correm pelo autor e pela ré, atento o decaimento (artigo 527.º, 1 e 2, do CPC).
Notifique e registe”.
Não se resignando o Autor com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1 - O A. alegou que um veículo do mesmo ano e modelo que o seu tinha um valor médio de mercado nunca inferior a 15.990,00€, mas que o seu, dada a baixa quilometragem e o bom estado geral de conservação, valia, pelo menos, 16.500,00€ (arts.º 18º e 19.º da pi), tendo o Mº juiz a quo dado como provado que aquele tinha 43.612 km e estava em boas condições (facto provado n.º 14).
2 - O Mº juiz a quo fixou o valor de mercado em 15.000,00€, socorrendo-se da consulta de sites especializados, no dia da prolação da sentença (18.01.2024), mas não esclareceu se os veículos que viu tinham o mesmo número de quilómetros que o do A. – manifestamente baixo para um veículo com mais de 5 anos – e se estavam em boas condições.
3 - Qualquer veículo com a idade do do A. à data do acidente (5 anos e 4 meses) desvaloriza, em média, 0,5% ao mês, sendo que desde a data do acidente à data da consulta realizada pelo Mº Juiz a quo decorreram 16 meses, em que o veículo terá desvalorizado 8%.
4 - Ora, se “sites especializados” que o Mº Juiz a quo diz ter consultado em 18.01.2024, apresentavam valores centrados nos 15.000€, indo até 15.990€, e uma vez que está provado que o veículo do A. possuía apenas 43.612 km e estava em boas condições, deveria ter considerado o valor máximo de 15.990€, nessa data de 18.01.2024, acrescido dos 8% de desvalorização dos últimos 16 meses, chegando o valor a 17.269,20€.
5 - Tendo ficado provado que em 07.12.2021 o A. pagou pelo veículo a quantia de 18.240,00€, que dos 48 aos 60 meses de idade de um veículo (a idade que tinha entre a compra e o acidente) este desvaloriza cerca de 0,7% ao mês, e que entre a data da compra e a do acidente decorreram meros 9 meses, teria desvalorizado 6,3% em relação ao preço de aquisição, isto é, 1.150€, ficando no valor de 17.090€!
6 - No entanto, uma vez que o A., apesar de conhecer o bom (ou até excelente) estado do veículo, bem como a sua baixa quilometragem, usou de razoabilidade face aos valores anunciados nas páginas de internet a que o Mº juiz a quo apelidou de “sites especializados”, tendo referido 16.500,00€, deve ser esse o valor a fixar para o veículo.
7 - Pelo que o facto provado n.º 15 deve ser alterado para. “O veículo de matrícula ..-TB-.. tinha, à data do acidente, um valor de mercado de 16.500,00€”.
8 - É pacífico na jurisprudência e doutrina atuais que a norma do art. 41.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 08.21, poderá ser utlizada pelo Tribunal para determinação do montante indemnizatório, mas apenas como auxiliar na aplicação dos critérios previsto no art. 566.º do Cód. Civil, sendo estes que devem ser tidos em conta quando a questão passa para o âmbito judicial, já que aquela não resolve o problema da efectiva indemnização de danos em veículos automóveis com apreciável uso, desatualização e desgaste, danos consistentes na inutilização da respectiva capacidade de uso, por o custo de reparação desses veículos poder ser elevado pela indisponibilidade de peças, dada a idade dos mesmos.
9 - A opção entre mandar reparar o veículo danificado ou optar por receber uma indemnização em dinheiro deve caber ao Autor, pois é o lesado que nenhuma culpa teve na produção dos referidos danos materiais no seu veículo.
10 - In casu, a Ré alegou que o veículo automóvel do autor, na data do acidente, tinha um valor venal de 15.000,00€ e que a reparação importava em 19.986,20€. Mesmo que se aceitasse tais valores encontrados pela Ré, que não se aceita, a reparação seria superior ao valor venal em cerca de 30%, mas apenas em cerca de 21% relativamente ao valor que o A. defende ser o real, não havendo, portanto, excessiva onerosidade da restauração natural.
11 - Na ponderação do interesse do lesado, deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo, a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades, ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo. Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto, de 07-09-2010, Procº 425/09-6TBPFR, de 07-12-2018, Procº 338/17.8YRPRT; de 08-02-2018, Procº 3385/15.0T8PNF; de 16-02-2015, Procº 224/12.8TVPRT, de 09-07-2010, Procº 425/09.6TBPFR, todos em www.dgsi.pt.
12 - Pelo que deve a Ré ser condenada a pagar o valor da reparação do veículo.
13 - O pedido do Autor, relativo à indemnização pela privação do uso do veículo, reporta-se aos os transtornos, esforços e arrelias de quem não pode retirar as vantagens proporcionadas por uma coisa de sua propriedade.
14 - A privação do uso da coisa constitui, só por si, um dano patrimonial indemnizável, visto que envolve, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade, a de usar a coisa quando e como lhe aprouver, utilidade que, considerada em si mesma, tem um valor pecuniário.
15 - Ficou provado que o A. utilizava o veículo a nível profissional, para ir e voltar do trabalho, bem como a nível pessoal, sendo nele que levava os filhos para o infantário (facto 17) tendo-se visto obrigado a recorrer a terceiros para o efeito, no caso, ao pai.
16 - Assim, os incómodos do A. existiram, pois não conduzia diariamente o seu próprio veículo, mas um emprestado, que, eventualmente, não lhe proporcionava a mesma satisfação, e que, com toda a probabilidade, lhe causava transtornos e inquietações por estar a utilizar veículo de terceira pessoa, podendo, até, constrangê-lo nesse uso, para não causar tanto desgaste ao veículo emprestado.
17 - O facto de ter disponível um veículo propriedade de terceiro, não pode justificar que a indemnização pela privação do uso seja drasticamente reduzida a metade dos montantes mínimos encontrados na jurisprudência, pois, nesse caso, quem estava a “indemnizar” era, também e principalmente, o terceiro que emprestou o veículo ao lesado.
18 - Assim, o dano da privação do uso terá de ser indemnizado por um montante mínimo diário de 10,00€.
Neste sentido, exemplifica?vamente, Ac. RP de 14-12-2022, Procº 510/21.6T8ALB; RP de 07-11-2023, Procº 252/23.8YRPRT; RP de 11-01-2021, Procº 1080/19.0T9GDM; RC de 10-09-2013, Procº 438/11.8TBTND, e acórdão do STJ de 08-11-2022, Procº 168/18,0T8FVN, todos em www.dgsi.pt.
TERMOS EM QUE DANDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA”.
A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;
- valores indemnizatórios para reparação dos danos causados ao veículo sinistrado e do dano emergente da privação do uso do mesmo.
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) No dia 15-09-2022, pelas 18 horas, na A1, ao ..., em ..., atento o sentido Porto-Lisboa, ocorreu um embate entre os veículos ligeiros de passageiros de matrículas ..-IA-.., ..-TB-.., de marca e modelo ... de 2017, e ..-ZD-...
2) Sendo na altura o primeiro conduzido por BB e pertencendo a B..., Lda., o segundo conduzido pelo autor, a quem pertence, e o terceiro por CC, sendo propriedade de C... – Aluguer e Gestão Automóvel, SA.
3) O local do embate é uma autoestrada composto por um conjunto de três faixas de rodagem no sentido Porto/Lisboa e de outras duas no sentido contrário, estando divididas por um separador de betão.
4) Nas circunstâncias supra descritas, os três veículos circulavam na fila mais à direita atento o sentido Porto/Lisboa, uns atrás dos outros, circulando o veículo de matrícula ..-IA-.. atrás dos outros dois e o veículo de matrícula ..-TB-.. atrás do veículo de matrícula ..-ZD-...
5) Por força do muito trânsito existente, os veículos circulavam lentamente, em “para/arranca”.
6) Numa altura em que, por força do trânsito existente, o veículo de matrícula ..-TB-.. estava completamente imobilizado, foi embatido na sua retaguarda pela parte dianteira do veículo de matrícula ..-IA-...
7) Que não parou no espaço livre e visível que tinha à sua frente, acabando por embater.
8) Com a força do embate, o veículo de matrícula ..-TB-.. foi projetado para a frente, tendo colidido com a sua parte dianteira na parte traseira do veículo de matrícula ..-ZD-...
9) À data do embate, a responsabilidade civil pela circulação do veículo de matrícula ..-IA-.. havia sido transferida para a ré Companhia de Seguros A..., SA, através da apólice n.º ...43, conforme termos do documento junto com ao requerimento de 11/07/2023, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
10) O veículo de matrícula ..-TB-.. sofreu extensos danos, tanto à frente, como na parte traseira, mas sobretudo nesta.
11) O valor da sua reparação ascende a 19.19.986,20€, conforme termos do primeiro relatório de danos junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
12) O veículo de matrícula ..-TB-.. data de Maio de 2017.
13) O veículo de matrícula ..-TB-.. foi adquirido a 07/12/2021, pelo valor de 18.240€, encontrando-se em bom estado de conservação e de funcionamento.
14) Tendo, na altura do embate, 43.612 quilómetros percorridos e continuando a estar em boas condições.
15) O veículo de matrícula ..-TB-.. tinha um valor de mercado de 15.000€.
16) O valor em que ficou após o embate ascende a 5.211€, tendo a ré comunicado ao autor, por carta datada de 3 de outubro de 2022, a existência de comprador para o salvado por esse valor.
17) O veículo de matrícula ..-TB-.. era utilizado pelo autor no sua dia-a-dia, tanto na sua actividade profissional, para se deslocar para o trabalho, como na sua vida pessoal, sendo nele que levava os filhos ao infantário.
18) O pai do autor emprestou-lhe um outro veículo, tendo o autor passado a utilizar esse veículo desde a data do acidente.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Note-se que a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[2], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
O recorrente discorda da decisão proferida em primeira instância ao considerar prova que “O veículo de matrícula ..-TB-.. tinha um valor de mercado de 15.000€” – ponto 15.º dos factos provados.
Reclama o recorrente a alteração do referido segmento decisório, de forma a que o mesmo passe a ter a seguinte redacção: “O veículo de matrícula ..-TB-.. tinha, à data do acidente, um valor de mercado de 16.500,00€”.
A decisão relativa à matéria objecto de impugnação recursiva surge assim fundamentada: “As partes referem que o valor do veículo à data do embate seria de 15.990€ (refere o autor), o máximo de 15.000€ (refere a ré), sendo que por consulta de sites especializados, designadamente o standvirtual e o autouncle, é possível encontrar diversos automóveis da mesma marca, modelo e ano à venda, cujos preços variam entre 12.990€ e 15.990€, embora se centrem sobretudo em valores na casa dos 15 mil euros, pelo que a decisão do tribunal considera esta realidade, tomando ainda em consideração que a consulta foi feita no dia de hoje, mais de um ano depois do acidente de viação, daí ter-se considerado os 15.000€”.
Alegou, com efeito, a Ré na sua contestação (artigos 26.º e 27.º) que o veículo do Autor - um Opel ..., versão ..., do ano de 2017, com 43.612 quilómetros percorridos - tinha um valor venal não superior a 15.000,00 euros, determinado por consultas de mercado e pelos serviços de peritagem da Ré.
Na petição inicial, alega, por sua vez o Autor que o valor médio de mercado para um veículo da mesma marca e ano do seu é de, pelo menos de 15.990,00, com base na cópia de um anúncio extraído do site Standvirtual, que junta aos autos, acrescentando, todavia, que dado o baixo número de quilómetros percorridos pelo TB e o seu estado de conservação, este valeria, pelo menos, € 16.500,00.
Seguramente, não é tarefa fácil determinar o valor real de um concreto veículo no momento que precedeu um acidente de que resultou a sua destruição, total ou parcial.
Daí o recurso aos valores praticados no mercado da compra/venda de veículos usados para apurar o preço pelo qual são comercializados veículos com características similares.
O próprio Autor socorre-se desse critério para indicar o valor do seu veículo antes do sinistro que o danificou, juntando cópia de um anúncio extraído de uma plataforma virtual de venda de veículos usados, referindo ser de € 15.990,00 o valor médio de um veículo da mesma marca e ano, sendo que o seu valeria, pelo menos, € 16.500,00 dado o seu bom estado de conservação a baixa quilometragem percorrida.
Em contrapartida, o Sr. Juiz para determinar o valor do veículo recorreu a idênticos instrumentos, consultando, para o efeito, pelo menos os dois sites que identifica, os quais, para veículos da marca, modelo e ano do do Autor indicavam, à data dessa consulta, preços que variavam entre €12.990,00 e €15.990,00, “embora se centrem sobretudo em valores na casa dos 15 mil euros”.
Tendo por base essa constatada realidade e o confronto dos valores em causa, ponderando ainda que a consulta foi efectuada na data em que a sentença foi proferida, ou seja, mais de um ano após o acidente, foi atribuído ao veículo do Autor, à data do acidente, o valor de € 15.000,00, que, à míngua de outros elementos, se considera equilibrado.
Adiante-se que os valores constantes dos anúncios das referidas plataformas são os preços indicados pelos vendedores dos veículos nelas colocadas à venda e, como é natural nestas circunstâncias, normalmente sobrevalorizados, tanto mais que alguns desses preços acabam, de resto, por ser objecto de negociação.
Assim, não tendo o Autor facultado outros critérios objectivos que permitam atribuir, com um mínimo de segurança exigível, valor distinto ao seu veículo, à data do acidente, não se vê fundamento para alterar a decisão no que concerne à matéria constante do ponto 15.º dos factos provados, objecto de impugnação.
Como tal, mantém-se inalterado o referido segmento decisório, assim, e nesta parte, improcedendo o recurso.
2. Do mérito da decisão recorrida.
Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Da simples leitura do preceito, resulta que, no caso de responsabilidade por facto ilícito, vários pressupostos condicionam a obrigação de indemnizar que recai sobre o lesante, desempenhando cada um desses pressupostos um papel próprio e específico na complexa cadeia das situações geradoras do dever de reparação.
Reconduzindo esses pressupostos à terminologia técnica assumida pela doutrina, podem destacar-se os seguintes requisitos da mencionada cadeia de factos geradores de responsabilidade por factos ilícitos: a) o facto; b) a ilicitude; c) imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso aqui apreciado não se discute a verificação dos pressupostos em causa, aceite por ambos os litigantes.
A divergência reporta-se tão somente aos valores devidos pelos danos causados na viatura sinistrada do Autor, reclamando este o valor correspondente à reparação do veículo, e o quantum indemnizatório devido pela privação do uso do veículo, reputando o Autor de escasso o valor atribuído a esse título na sentença de que recorre.
O artigo 562.º do Código Civil, que consagra o princípio da reconstituição natural, preceitua que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Por dano deve entender-se “a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito viola ou a norma infringida visam tutelar”[3].
Podendo os danos ser patrimoniais ou não patrimoniais, os primeiros compreendem, por sua vez, o dano emergente e o lucro cessante, abrangendo este último “os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que ainda não tinha direito à data da lesão”[4].
Não sendo possível a reconstituição natural, não reparando ela integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro[5].
Importa sempre salientar, como faz notar o Acórdão da Relação do Porto de 20.03.2012[6] que “os Tribunais, na fixação das indemnizações por danos decorrentes de sinistros rodoviários, não estão sujeitos ao regime previsto na Portaria n.º 377/2008, de 26/05, por este diploma não ter por objectivo a fixação definitiva dos valores indemnizatórios mas, apenas e só o estabelecimento de regras/princípios que visam agilizar a apresentação de propostas razoáveis numa fase pré-judicial”.
É, de resto, pacífico, o entendimento quanto à não aplicação, em fase judicial, do estatuído no artigo 41.º do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto. Como se anota no acórdão desta Relação do Porto de 7.09.2010[7] o referido preceito valerá para os “procedimentos a adoptar pelas empresas de seguros na fixação de prazos com vista à regularização rápida de litígios e do estabelecimento de princípios base na gestão de sinistros”. Assim “mediante a apresentação de uma proposta razoável de indemnização apresentada pela seguradora, fundada nos critérios estabelecidos nesse diploma (291/2007), pode o segurado ou o terceiro aceitá-la, resolvendo-se em definitivo o litígio”. No entanto, como salienta o mesmo acórdão, “se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e do quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do DL 291/2007, designadamente o artigo 41º”.
Vem sendo discutido na doutrina e na jurisprudência até que ponto se deve optar pela reparação, caso esta tenha um custo superior ao do valor do veículo a reparar.
Segundo Antunes Varela[8], “a reconstituição natural deve […] considerar-se um meio impróprio ou inadequado, quando for excessivamente onerosa para o devedor, isto é, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável”.
Refere-se no acórdão do STJ de 12.01.2006[9] que “a reconstituição natural é inadequada se for manifesta a desproporção entre o interesse do lesado e o custo para o lesante que ela envolva, em termos de representar para o último um sacrifício manifestamente desproporcionado quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património”, acrescentando que “não basta para se aferir da onerosidade da reparação in natura de um veículo automóvel a consideração do seu valor venal ou de mercado, antes se impondo o seu confronto com o valor de uso que o lesado dele extrai pelo facto de dele dispor para a satisfação das suas necessidades”, concluindo que se “justifica, por não ser inadequada, a reparação do veículo automóvel matriculado em 1983, melhorado, bem conservado, com 111.410 quilómetros andados, cujo custo excede o seu valor de mercado em 1.247,00 €”.
De acordo com a jurisprudência do acórdão do STJ de 21.04.2010[10], “em relação a um veículo automóvel acidentado, sendo a sua reparação integral possível, deve privilegiar-se a sua reconstituição natural, excepto se se revelar excessivamente onerosa, o que corresponde a que o encargo seja exagerado, desmedido, desajustado para o obrigado, transcendendo-se os limites de uma legítima indemnização”, porquanto “um veículo de valor comercial reduzido pode estar em excelentes condições e satisfazer plenamente as necessidades do dono”, acrescentando: “nestas circunstâncias a quantia equivalente ao valor de mercado do veículo (muitas vezes ínfima) não conduzirá à satisfação dessas mesmas necessidades, o que equivale a dizer-se que não reconstituirá o lesado na situação que teria se não fosse o acidente, pelo que a situação inicial do lesado só será reintegrada com a reparação do veículo”. Propõe que “a indagação sobre a restauração natural ou a indemnização equivalente, deve fazer-se casuisticamente, sem perder de vista que se deve atender à melhor forma de satisfazer o interesse do lesado, o qual deve prevalecer sobre o do lesante, sendo pouco relevante, para os fins em análise, que o valor da reparação do veículo seja superior ao seu valor comercial”[11].
O citado artigo 41.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do Decreto-Lei nº 291/2007, veio considerar que se deve optar pela indemnização em dinheiro, reportada ao valor venal do veículo (valor de substituição do mesmo à data do acidente) sempre que “se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respectivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”[12], preceito que, como supra se deixou claro, aqui não pode ser atendido, por não se aplicar à fase judicial.
Como sustenta o acórdão desta Relação do Porto de 19.02.2015[13], subscrito, enquanto adjunta, pela aqui relatora, “...não há hoje qualquer dúvida de que o valor a considerar, para os vários efeitos que estão aqui em causa, deve ser o valor de substituição e não o valor venal do veículo. Ora, com isto já se está a acolher a ideia de que a indemnização deve reparar não o valor abstracto, objectivo, do dano, que é aquilo que resultaria de se tomar em conta o valor que o lesado conseguiria apenas com a venda do veículo, mas sim o valor concreto, subjectivo, do dano, tomando-se em conta, por isso, o valor que seria necessário ao lesado, para adquirir um veículo com as mesmas características do anterior, ou seja, que tivesse o mesmo valor no seu património, isto é, o valor de substituição, aquilo que ele teria de gastar para adquirir um veículo semelhante (repara-se que foi isso que o TRP determinou no caso que foi confirmado pelo ac. do STJ anotado favoravelmente por Júlio Gomes; naquele acórdão não se indemnizou o lesado pelo valor da reparação mas sim pelo valor de substituição).
Assim sendo, quando se pretere a reparação (ou o custo da reparação) por haver uma manifesta desproporção com o valor de substituição - e só nesse caso é que pode haver essa preterição -, está-se já perante uma situação em que se considera que o valor de substituição, pelo qual será indemnizado o lesado, lhe permitirá adquirir um veículo semelhante ao seu (da mesma marca, modelo, ano de construção, equipamento, estado de conservação, quilometragem, etc.) e que, por isso, esse veículo lhe permitirá satisfazer todas as necessidades que o anterior satisfazia”.
E acrescenta o mesmo acórdão: “Perante um veículo danificado por cuja indemnização deva ser responsabilizada a seguradora, esta, considerando que se está perante uma situação de perda total, deve propor um valor pecuniário para a indemnização, valor esse que é o valor venal ou comercial mas que, sendo calculado como é (com base na marca, modelo, ano e mês de construção, equipamento básico, quilometragem), corresponde também ao valor de substituição por um veículo semelhante (porque é semelhante para todos os veículos com estas mesmas características); cabe ao lesado, para que lhe seja pago um valor maior, ou para que seja reconhecido que tem direito à reparação do veículo, alegar e provar os factos necessários ao aumento desse valor. Se o valor da reparação for pouco superior (não mais do que cerca de 20%) ao valor de substituição, o lesado tem direito à reparação (ou ao valor dela); caso contrário tem apenas direito ao valor da substituição que ele conseguiu provar, em contraponto ao valor indicado pela seguradora.
Por tudo isto, quando o valor da reparação for superior ao valor de substituição há, em princípio, um excesso em relação ao valor que deveria ser indemnizado, não se estando, por isso, nessa parte, perante um valor indemnizatório, pelo que não será correcto estar a responsabilizar a seguradora por ele, pois que já não se estaria no domínio da função desta de indemnizar danos. A reparação será excessivamente onerosa porque vai para além do valor necessário à reparação dos danos e será excessivamente onerosa para a seguradora porque esta tem por função indemnizar danos e o valor em excesso vai para além dessa função”.
Vigora, em sede judicial, o primado da reparação in natura, competindo ao lesado demonstrar, entre o mais, os danos sofridos na sua viatura e o respectivo montante e à seguradora a prova da excessiva onerosidade, susceptível de afastar tal princípio, tendo em conta dois factores: o preço da reparação e o valor patrimonial do veículo, não o seu valor venal.
A jurisprudência unanimemente afasta o conceito de valor venal do veículo, que no tradicional entendimento das seguradoras correspondia ao valor comercial do mesmo, considerando-se que este não é justo, posto que o dano sofrido consiste, essencialmente, na diminuição da faculdade de uso do veículo e não na perda do seu valor de troca.
Também a doutrina critica esse conceito considerando que atender-se estritamente ao valor de mercado do bem, no sentido do seu valor de venda, seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado.
Cabe à seguradora alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas», sendo que, de acordo com o acórdão desta Relação de 19.02.2015, “é o lesado que tem o ónus de provar e alegar que o valor de substituição é superior ao invocado pela seguradora”.
No caso aqui em discussão, o autor reclamou, a título indemnizatório, o valor correspondente à reparação dos danos do seu veículo danificado em consequência do acidente.
De acordo com a prova recolhida nos autos, o veículo do Autor, em consequência do acidente sofreu extensos danos, ascendendo o valor da sua reparação a € 19.986,20,
O veículo em causa data de Maio de 2017, foi adquirido pelo Autor a 07/12/2021, pelo valor de 18.240€, encontrando-se em bom estado de conservação e de funcionamento.
Na altura do embate tinha 43.612 quilómetros percorridos, continuando a estar em boas condições.
Tinha, à data do acidente, um valor de mercado de €15.000,00.
O valor em que ficou após o embate ascende a €5.211,00, tendo a ré comunicado ao autor, por carta datada de 3 de Outubro de 2022, a existência de comprador para o salvado por esse valor.
Sendo certo é sobre o lesado que recai o ónus de provar que o valor de substituição é superior ao valor venal ou de mercado do veículo danificado, como sustenta o referido acórdão desta Relação de 19.02.2015, e também, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 14.12.2010[14], no caso concreto não logrou o Autor demonstrar, até porque não o alegou, ser o valor de substituição do veículo sinistrado superior ao seu valor de mercado.
Ora, ponderando, no caso em apreço, os dados factuais em confronto [valor de mercado do veículo antes do acidente, valor da reparação dos danos causados pelo acidente e valor do salvado], inevitavelmente terá de se concluir que a reparação in natura dos danos causados no veículo do Autor se mostra excessivamente onerosa para a Ré seguradora, obrigada a indemnizar esses danos, pelo que se justifica a indemnização em dinheiro[15], nos termos decididos pela sentença recorrida.
Improcede, nesta parte, o recurso.
Formulou ainda o Autor pedido de indemnização a título de compensação pela privação do uso do seu veículo, danificado em consequência do acidente, à razão diária de € 20,00, desde a data do sinistro.
Embora se reconhecendo não ser tratada de forma uniforme a questão da ressarcibilidade do dano pela privação do uso do veículo, havendo quem a negue, tem vindo, todavia, a consolidar-se opinião favorável à reparabilidade deste tipo de dano[16].
Não importando tanto definir a natureza do dano em causa, patrimonial ou não patrimonial, que sempre dependerá da natureza do bem afectado, não podemos deixar de considerar que a privação de um bem patrimonial, designadamente um veículo, constitui fonte da obrigação de reparar, na medida em o seu titular se confronta com a impossibilidade de dele dispor e de o usufruir[17].
A privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. Ela é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito[18].
Esta posição jurisprudencial traduz-se numa das duas correntes que vêm sendo seguidas nos tribunais, incluindo no Supremo Tribunal de Justiça, a que não tem sido alheia a influência de certa doutrina, designadamente a que foi desenvolvida por Abrantes Geraldes[19], assim sintetizada:
Em vista do disposto nos artigos 562.º a 564.º e 566.º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente pode resultar:
a) Um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como seria o aluguer de outro veículo;
b) Um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma atividade lucrativa;
c) Um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artigo 1305.º do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender[20].
De acordo com este último entendimento, o dano resultante da simples privação do uso do veículo é susceptível de indemnização, a fixar com recurso à equidade.
Como esclarece o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.2011[21], “a avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no artigo 566º, nº 3, do CC”.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007, citando o Prof. Gomes da Silva, lê-se: “o bem só interessa, quer económica quer juridicamente (...) pela utilidade, isto é, pela aptidão para realizar fins humanos”; e nos casos de perda ou deterioração de um bem, o dano consiste “no malogro dos fins realizáveis por meio do bem perdido ou deteriorado, isto é, consiste menos na perda do próprio bem do que em ser-se privado da utilidade que ele proporcionava”. No dano haverá sempre, portanto, a frustração de um ou mais fins, resultante de se haver colocado o bem, por meio do qual era possível atingi-los, em situação de não poder ser utilizado para esse efeito.
Para Abrantes Geraldes[22] “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização”.
No seu acórdão de 8.05.2013[23], o Supremo Tribunal de Justiça mostra-se alinhado com tal posição ao sustentar: “Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc, nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)”.
A determinação do valor do dano haverá de corresponder às despesas realizadas pelo lesado em consequência da privação do veículo sinistrado, se elas existiram e se se apurou o seu montante, ou através do recurso à equidade, caso não se apurem quaisquer despesas ou a sua quantificação, devendo, nesta última hipótese, a medida da indemnização ser ajustada aos transtornos e incómodos resultantes da impossibilidade de utilização do veículo, nomeadamente em deslocações profissionais, para satisfação de necessidades básicas, ou meramente de lazer.
A estas quantias acrescerão os juros legais contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Diz-se na sentença aqui sindicada: “...o autor utilizava o veículo acidentado na sua vida pessoal e profissional.
Provando-se então a privação do uso do veículo, mas não se conseguindo quantificar objetivamente o valor deste dano que pela sua própria natureza é impossível de ser quantificado com rigor, deverá recorrer-se à equidade para fixar a respetiva compensação (cfr., acórdãos da Relação de Guimarães de 15/06/2021 (processo n. º 2125/18.7T8VNF.G2) e de 24/03/2022 (processo n.º 2093/20.5T8VNF.G1) e da Relação do Porto de 14/12/2022 (processo n.º 510/21.6T8ALB.P1) e de 18/05/2023 (processo n.º 5560/20.7T8PRT.P1), todos consultados em www.dgsi.pt).
Porém, há aqui ainda um elemento decisivo a considerar. Sabe-se que o pai do autor disponibilizou-lhe um veículo para que pudesse substituir o veículo acidentado, o que não conduzindo a que deixa de ter direito ao dano de privação do uso, leva a considerar que as consequências e incómodos da falta do veículo foram bastante atenuadas, o que na fixação do montante diário, à luz da equidade, deve ser considerado.
Para estes efeitos, julga-se adequado e equilibrado o valor de 5€ diários, correspondendo a metade do valor que se julga que se começa a afirmar na jurisprudência a este propósito, sendo devido entre a data do acidente e a do pagamento do valor indemnizatório fixado”.
É certo que se apurou que o pai do autor lhe emprestou um outro veículo, que o Autor passou a utilizar desde a data do acidente.
Essa circunstância, porém, não justifica a redução do montante indemnizatório nos moldes determinados na sentença recorrida.
Ainda que ao Autor tenha sido disponibilizada uma outra viatura, por empréstimo de terceiro, que aquele passou a utilizar após o acidente, não se pode negar que o mesmo se viu ilicitamente privado de continuar a dispor e a usufruir da sua própria viatura, ficando, deste modo, impossibilitado de, em relação à mesma, continuar a exercer os poderes inerentes ao direito de propriedade de que é titular.
Justifica-se, assim, que com recurso a critérios de equidade, a indemnização pela privação do uso do veículo do Autor seja fixada em € 10,00/dia, desde a data do acidente até ao pagamento do valor indemnizatório fixado pela perda da mesma.
Procede, nesta parte, a apelação.
……………………….
……………………….
……………………….
Custas: por apelante e apelada, na proporção do respectivo decaimento - (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Isabel Silva
Paulo Duarte Teixeira