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INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL COMPETENTE
REMESSA DO PROCESSO
Sumário
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC 1.Afirmada a incompetência do tribunal em razão da matéria, o legislador no n.º 2 do art.º 99.º do CPC vem admitir o aproveitamento dos articulados das partes, com a remessa do processo para o tribunal competente, desde que: (i) a incompetência tenha sido julgada quando findos os articulados; (ii) a decisão tenha transitado em julgado; (iii) o A. venha requerer a remessa do processo para o tribunal competente no prazo de 10 dias; (iv) o R. não ofereça oposição justificada. 2. A oposição do R. à remessa do processo ao tribunal competente com o aproveitamento dos articulados será justificada se vai de algum modo limitar as suas garantias de defesa, sendo esse o motivo substantivo que se sobrepõe a razões de simplificação e economia processual, a que aquela norma procura atender. 3. Tendo presente o pedido e a causa de pedir apresentados pela A. na petição inicial e avaliando a contestação deduzida pelo R. e a defesa por exceção e por impugnação que apresentou, não se consegue prever, em termos razoáveis, que outra defesa poderia aquele apresentar se o processo tivesse sido intentado no tribunal da jurisdição laboral, nem o R. o concretiza, sem esquecer ainda que o tribunal tem ao seu dispor as ferramentas necessárias para fazer a adequação processual que tenha por necessária ou conveniente, precisamente por forma a salvaguardar as garantias de defesa do R. 4. Não obstante o regime algo diverso do processo declarativo comum regulado no Código de Processo e Civil e no Código de Processo do Trabalho, considera-se que a remessa do presente processo para a jurisdição laboral, considerada competente, com o aproveitamento dos articulados das partes, não comprime as garantias de defesa do R., não se apresentando como justificada ou razoável a oposição que o mesmo apresenta a essa decisão.
Texto Integral
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Vem a sociedade A …, intentar a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra B …, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 6.015,67 acrescida de juros de mora civis à taxa de 4% desde 04/08/2023 até integral e efetivo pagamento.
Alega, em síntese, para fundamentar o seu pedido que se dedica à concessão de seguros, exercendo a sua atividade na Suíça, tendo no âmbito da sua atividade celebrado com a então entidade patronal do R. um contrato de seguro de risco de acidentes de trabalho, tendo-lhe sido participado um sinistro ocorrido em 20/07/2020 o que levou a A. a atribuir-lhe as prestações do seguro, tendo suportado os pagamentos com subsídios correspondentes aos períodos de incapacidade temporária. Não obstante as interpelações da A. para que o R. comparecesse a exame médico em diferentes datas e enviasse informações complementares, o mesmo não o fez, nem justificou a falta, o que levou a A. a pedir-lhe a restituição das quantias pagas indevidamente, no valor de 5225,00 francos suíços, sendo ainda devida a quantia de 13,30 francos suíços, a titulo a despesas de processo, nomeadamente com o envio de cartas de interpelação, o que corresponde a um total de € 5.468,52 que o R. está obrigado a restituir ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa.
Devidamente citado, o R. veio apresentar contestação. Começa por invocar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses e a não aplicação da lei portuguesa, bem como a incompetência do tribunal em razão da matéria, por entender que estando em causa uma questão emergente de acidente de trabalho é o Juízo Misto de Família e Menores e do Trabalho da Praia da Vitória e não o Juízo de Competência Genérica da Praia da Vitória o competente para a presente ação. Mais invoca a exceção perentória do abuso de direito e impugna os factos alegados pela A. Termina pedindo a condenação da A. como litigante de má fé.
Foi determinada pelo tribunal a notificação da A. para se pronunciar sobre as exceções invocadas, o que a mesma veio fazer, concluindo pela competência do internacional do tribunal e em razão da matéria.
Foi designada e realizada audiência prévia na qual veio a ser proferido despacho que afirmou a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciar a presente ação, mais conhecendo da exceção da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria, concluindo nos seguintes termos que se reproduzem: “E, a questão que é colocada no caso dos autos, embora não seja um acidente de trabalho, é, precisamente emergente de acidente de trabalho, pois os pagamentos feitos pela autora, e cuja restituição pretende a título de enriquecimento sem causa, ocorreram fruto de participação de acidente de trabalho. Assim, a apreciação da eventual inexistência de causa para o enriquecimento do Réu passa, necessariamente, pela apreciação do sinistro comunicado, qualificando-o como acidente de trabalho ou não, implicando a apreciação de normas jurídicas específicas de direito laboral, cuja apreciação se encontra subtraída à competência deste Tribunal. Em consequência, este tribunal é materialmente incompetente para a apreciação do pedido formulado, pois este emerge de situação que importa qualificar como sendo ou não acidente de trabalho. Nesta conformidade, estamos perante uma situação de incompetência material, que é uma incompetência absoluta (art. 96.º, al. a), do Código de Processo Civil) e insanável (art. 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), consubstanciando uma excepção dilatória (arts. 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, al. a), do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (art. 578.º, do Código de Processo Civil) e motivadora da absolvição do Réu da instância (art. 278.º, n.º 1, al. a), e 99.º, n.º 1, do CPC). * Pelo exposto, ao abrigo das supra mencionadas disposições legais, decide-se julgar procedente a excepção dilatória insanável da incompetência absoluta material do presente tribunal e, em consequência, absolver o Réu da instância. Custas pela Autora (art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Notifique, sendo, atento o estado dos autos, a Autora, ainda, da possibilidade contida no art. 99.º, n.º 2, do CPC.”.
Notificadas as partes, nenhuma veio interpor recurso desta decisão, pelo que após o seu trânsito em julgado a A. veio requerer a remessa do processo para o Juízo Misto de Família e Menores e do Trabalho da Praia da Vitória.
O R. veio manifestar a sua oposição ao envio do processo para aquele tribunal, alegando, em síntese, que tal irá coartar os seus direitos de defesa, atenta a tramitação especial do processo emergente de acidente de trabalho, ou mesmo do processo comum em sede laboral.
Sobre a questão veio a ser proferido o seguinte despacho: “Não configurando a oposição apresentada como justificação para a não remessa do processo, competindo, antes, aquele tribunal extrair as eventuais consequências de erro na forma do processo, remeta o processo ao Juízo Misto de Família e Menores e do Trabalho da Praia da Vitória (art. 99.º, n.º2, do CPC).”
É com esta decisão que o R. não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua revogação, apresentando para o efeito, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a) O Tribunal a quo deveria ter aceite a justificação da oposição à remessa por parte do Recorrente, uma vez que ficou demonstrado por este que certamente a defesa por este apresentada no Juízo Misto de Família e Menores e do Trabalho da Praia da Vitória seria substancialmente diferente da que foi apresentada ao Tribunal a quo.
b) E teria sempre o Recorrente ao seu dispor prerrogativas e garantias legais próprias do processo laboral, que necessariamente determinariam uma marcha processual muito diferente daquela que teve lugar no Tribunal a quo.
c) O Recorrente logrou assim demonstrar, junto do Tribunal a quo, que caso a Recorrida tivesse – como lhe competia – intentado a acção junto do Tribunal competente para a apreciar, teria, certamente, apresentado uma defesa substancialmente diferente da que foi ali apresentada.
d) Mas, na sequência, veio o douto Tribunal a quo, estranhamente, concluir que a fundamentação adiantada pela Recorrente não era, afinal, suficiente para sustentar, nos termos do n.º 2 do artigo 99.º do CPC, uma oposição à remessa.
e) Acontece que o Tribunal a quo, ao ter acolhido esta justificação, não só contrariou o entendimento que tem sido pacificamente perfilhado pela nossa Doutrina e pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores em torno do conceito de «oposição justificada» constante do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, como extravasou, manifestamente, a margem de apreciação que lhe é reconhecida ao abrigo daquele preceito.
f) É entendimento pacífico na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que a oposição a que se refere o n.º 2 do artigo 99.º do CPC, tem de ser uma oposição justificada, i.e., que forneça motivos plausíveis e atendíveis, não podendo traduzir-se, em caso algum, numa oposição meramente arbitrária, que equivalha a uma recusa imotivada – vd. Jurisprudência e doutrina citadas supra.
g) A exigência de justificação fica-se, precisamente, pela necessidade da sua alegação, dela não decorrendo qualquer ónus de pormenorização dos motivos acarreados pelo réu para a oposição à remessa, nem qualquer prerrogativa de escrutínio, pelo Tribunal incompetente, da sua idoneidade – cfr. jurisprudência citada supra.
h) O Recorrente apresentou uma justificação para a sua oposição à remessa dos autos para o Tribunal competente, não se tendo bastado – pese embora tal tivesse sido suficiente, à luz do entendimento perfilhado pacificamente pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores – com uma enunciação meramente genérica dos argumentos que poderia vir a aduzir na sua defesa junto do Tribunal competente; diferentemente, procedeu à concretização de tais argumentos – a saber, (i) se os factos relatados pela Recorrida tivessem sido apresentados perante o Tribunal materialmente competente, para apreciação do sinistro, como tendo sido de acidente de trabalho, a Recorrida teria que lançar mão de um processo especial emergente de acidente de trabalho e de doença profissional, arts. 99º e ss. do CPT, o que pura e simplesmente não fez!; (ii) o Recorrente ao abrigo do favor laboratoris e pelo disposto nos arts. 99º e ss. do CPT teria à sua disposição todos os meios que lhe seriam proporcionados por esse processo especial, nomeadamente as várias fases processuais que o Código de Processo de Trabalho colocaria à disposição do ora Recorrente aí na qualidade de Sinistrado, tais como a fase conciliatória, arts. 99º e ss. do CPT, o exame médico, arts. 105º e ss. do CPT, a tentativa de conciliação, arts. 108º e ss. do CPT; (iii) e caso não se lograsse acordo teria ainda o ora Recorrente, aí na qualidade de Sinistrado à sua disposição na fase contenciosa, arts. 117º e ss. onde poderá requerer uma junta médica, arts. 117º/1 b) e 138º e ss., todos do CPT, a qual poderia lançar mão caso não concorde com a opinião médica da fase conciliatória; e (iv) por mera cautela de patrocínio, ainda que não se considerasse os factos do pedido como passiveis de serem litigados mediante processo especial emergente de acidente de trabalho e de doença profissional, mas apenas como processo comum, ao abrigo do favor laboratoris, teria o Recorrente, aí na qualidade de R., à sua disposição as fases processuais próprias do processo laboral, nomeadamente, a tentativa de conciliação, art. 51º e ss. do CPT e as prerrogativas dos arts. 54º e ss. do CPT.
i) O que o Tribunal a quo não aceitou foi a qualificação dos argumentos aduzidos pela Recorrente para se opor à remessa dos autos para o Tribunal competente, como justificação; mas fê-lo exorbitando, de forma manifesta, a margem de apreciação que lhe é reconhecida ao abrigo do artigo 99.º, n.º 2 do CPC.
j) Cumpre esclarecer que, salvo o devido respeito que é muito, como é do mais elementar bom senso, não recai sobre o Tribunal materialmente incompetente – no caso sub judice, sobre o Tribunal a quo – a competência para apreciar o mérito da argumentação de que o oponente à remessa pretende fazer uso junto do Tribunal
materialmente competente para conhecer da ação.
k) Diferentemente, cabe-lhe apenas garantir que a possibilidade de remessa dos autos não esbarra em motivos arbitrários, que a mais não se reconduzam do que a uma oposição meramente imotivada, visando-se assim impedir que uma oposição abusiva constitua um entrave ao princípio da economia processual – o que, como ficou comprovado, não é, de perspetiva alguma, o caso da Oposição à Remessa – vd. jurisprudência citada supra.
l) Não se entende, por isso, por que razão o Tribunal a quo – em manifesto desalinhamento com o entendimento da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores – indeferiu a Oposição à Remessa, constatando-se que esta, não só observou todas as exigências que se lhe impunham, como foi mesmo – por excesso de zelo da Recorrente – além destas, ao ter-se nela procedido à concretização dos diversos argumentos que seriam pela Recorrente explorados na sua defesa junto do Tribunal competente.
m) Mas, salvo o devido respeito, a interpretação do artigo 99.º, n.º 2 do CPC levada a cabo pelo Tribunal a quo é ainda grosseiramente violadora da sua letra.
n) No entendimento do Tribunal a quo, não há margem para, num processo que corra sob a forma comum, o Réu se opor ao aproveitamento dos articulados. Esta interpretação não encontra, na letra do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, o mínimo de suporte, porquanto nele não se prevê que o aproveitamento dos articulados deva ocorrer inevitavelmente – mesmo quando o Réu tenha justificação para a ele se opor – quando o processo em causa tenha corrido sob a forma comum.
o) Pelo contrário, a letra do preceito aponta, precisamente, no sentido da sua aplicabilidade a todo o tipo de processos. Ao criar uma exceção não comportada pela letra do artigo 99.º, n.º 2 do CPC, o Tribunal a quo enveredou, isso sim, por uma interpretação contra legem, o que lhe era vedado pelo disposto nos artigos 8.º, n.º 2 e 9.º do Código Civil e que, no limite, poderia ser considerada inconstitucional por violação dos direitos de defesa do Recorrente.
p) Mas diga-se mais: se o Despacho Recorrido não for revogado, dando-se assim guarida ao excessivo intervencionismo judicial do Tribunal a quo, o Recorrente fica impossibilitado de desenvolver plenamente a sua estratégia de defesa junto do Tribunal competente, quando: (i) a forma como condicionou – coartando-a – a preparação da sua contestação se ficou a dever a um erro exclusivamente imputável à Recorrida, que intentou a ação num Tribunal incompetente para a apreciar; (ii) a Recorrida em nada fica prejudicado com o não aproveitamento dos articulados, porquanto lhe assiste sempre o direito de propor uma nova ação, com os mesmos fundamentos, ainda que, desta vez, perante o tribunal competente.
q) Uma decisão do Tribunal ad quem que não passe pela revogação do Despacho Recorrido equivalerá, em bom rigor, à atribuição de uma «benesse» ao Recorrido, correspondente à possibilidade de, depois de um erro seu, litigar junto do Tribunal competente contra uma defesa que foi condicionada, «enfraquecida» e deduzida de forma redutora pela Recorrente: este é, naturalmente, um resultado que favorece o infrator e que não se pode aceitar!
r) Assim, sendo e salvo o devido respeito, que é muito, uma decisão legalmente correta, e acima de tudo justa, implica que a oposição à remessa deduzida pelo recorrente deverá ser considerada procedente e em consequência não se admitir a remessa do processo para o Juízo Misto de Família e Menores e do Trabalho da Praia da Vitória, nos termos do art. 99º/2 do CPC.
s) Em face de tudo o que antecede, impõe-se a conclusão de que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogado pelo Venerando Tribunal ad quem o Despacho Recorrido.
A A. não veio responder ao recurso.
II. Questões a decidir
É apenas uma a questão a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso - art.º 608.º n.º 2 in fine:
- do (in)justificado envio do processo ao tribunal competente.
III. Fundamentos de Facto
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito - do (in)justificado envio do processo ao tribunal competente
Insurge-se o Recorrente contra a decisão que deferiu a remessa do processo requerida pela A. para o tribunal competente em razão da matéria, por entender que dessa forma ficam coartados os seus direitos de defesa, designadamente em razão das fases processuais próprias do processo laboral.
O tribunal a quo entendeu não ser justificada a oposição apresentada pelo R. para obstar à remessa do processo para o tribunal competente, referindo caber àquele tribunal extrair as consequências de um eventual erro na forma do processo.
Salienta-se que não importa aqui apreciar a decisão do tribunal de 1ª instância que afirmou a incompetência do tribunal judicial de competência genérica para apreciar e decidir a presente ação, e competente o tribunal da jurisdição laboral, já que tal decisão transitou em julgado, mas tão só saber se o processo deve ser remetido ao tribunal considerado competente.
O art.º 99.º do CPC rege sobre os efeitos da incompetência absoluta, nos seguintes termos: “1-A verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar. 2 - Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada. 3 - Não se aplica o disposto no número anterior nos casos de violação de pacto privativo de jurisdição e de preterição do tribunal arbitral.”
Quando da constatação da incompetência absoluta do tribunal após os articulados, a regra é que tal decisão obsta a que o processo que veio a ser intentado no tribunal que não é o competente tenha qualquer efeito, embora não impeça que o A. venha a propor outra ação com o mesmo objeto, como estabelece o art.º 279.º n.º 1 do CPC.
O legislador, no n.º 2 do art.º 99.º do CPC vem estabelecer uma exceção a esta regra, ao admitir o aproveitamento dos articulados das partes, com a remessa do processo para o tribunal competente, desde que se verifiquem os seguintes requisitos: (i) a incompetência ter sido julgada quando findos os articulados; (ii) a decisão tenha transitado em julgado; (iii) o A. venha requerer a remessa do processo para o tribunal competente no prazo de 10 dias; (iv) o R. não ofereça oposição justificada.
Na situação em presença, é pacífico que se verificam os três primeiros pressupostos que admitem a remessa do processo para o tribunal competente, já que a incompetência foi decidida pelo tribunal a quo findos os articulados, a decisão transitou em julgado e a A. veio requerê-lo no prazo de 10 dias. A questão está apenas em saber se a oposição que o R. apresentou para obstar à remessa do processo para o tribunal competente é justificada, o que passa por saber se com isso vê de algum modo diminuídas as suas garantias de defesa.
Sobre a avaliação do conceito de oposição justificada, dizem-nos Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in. Código de Processo Civil anotado, Vol. 1, pág. 230 em anotação a este mesmo artigo: “Essa oposição tem de ser justificada, o que se harmoniza com o direito de defesa e o principio da economia processual; será injustificada se, na contestação, o réu utilizou todos os meios que lhe seriam proporcionados se a ação tivesse sido proposta no tribunal competente, é discutível se continuará a sê-lo se o réu não utilizou todos esses meios, embora os pudesse utilizar.”
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil anotado, Vol. I, em anotação a este art.º 99.º dizem o seguinte: “Ocorre fundamento bastante para a oposição à remessa do processo para o tribunal competente quando, por exemplo, o Réu não deduziu reconvenção pelo facto do tribunal também ser materialmente incompetente para a apreciação do pedido reconvencional (RG 23-11-17, 2089/16). Neste caso, a eventual remessa do processo, com o referido aproveitamento dos articulados, determinaria uma restrição nas garantias do réu, assim se justificando a recusa. Noutros casos os motivos poderão não ser relevantes (RL 10-10-17, 16/10) ou menos evidentes, devendo ser feita uma apreciação global da defesa que foi ou poderia ter sido apresentada, como se decidiu em STJ 15-1-2019, 1021/16 e Cj. t.I, p. 39 e RP 11-10-17, 1974/16 e Cj. t. IV. P. 176 (cf. No entanto as dúvidas suscitadas por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot. vol. I, 4ª ed. p. 230). (…) Pode ocorrer que o tribunal que for declarado competente para a apreciação do litígio esteja sujeito a regras que não coincidam com as que foram observadas no outro tribunal. Tal será mais frequente no caso de se tratar de tribunal administrativo e fiscal, mas não está afastada a diversidade de requisitos formais ou de tramitação, em face das regras aplicáveis, por exemplo, à resolução de casos do foro laboral, (sendo significativa a diferença no que respeita ao processo especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento). Nestes casos, poderá justificar-se o exercício dos poderes de adequação formal, nos termos do arts. 6º e 547º.”
A oposição do R. à remessa do processo ao tribunal competente com o aproveitamento dos articulados será justificada se vai de algum modo limitar as garantias de defesa do R., sendo esse o motivo substantivo que se sobrepõe a razões de simplificação e economia processual, a que aquela norma procura atender.
Como bem refere o Acordão do TRL 10-10-2017 no proc. 16/10.9TBPST.L2-7 in www.dgsi.pt : “Esta oposição justificada dá guarida ao direito de defesa do R. que não pode ser restringido por via do aproveitamento dos articulados. O início de uma nova instância no tribunal competente, com aproveitamento dos articulados e dos actos processuais que eles impliquem (citação do réu, notificações, eventual despacho liminar ou pré-saneador), feita ao abrigo do princípio da economia processual, não podem bulir com o direito de defesa do R., caso em que lhe assiste a possibilidade de deduzir oposição justificada. Não basta, todavia, ao R. opor-se; Esta oposição tem que ser justificada, ao abrigo, ainda, do princípio da cooperação e da boa-fé processual, que convocam uma intervenção no processo pelas partes concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio (artigos 7º, nº 1, e 8º do CPC).”
O R. fundamentou a sua oposição à remessa do processo para o tribunal do foro laboral, na diferente tramitação prevista no CPT quer para o processo especial de ação emergente de acidente de trabalho, quer para o processo comum.
Em face do pedido e da causa de pedir apresentada pela A., afigura-se que não estamos perante um processo especial de acidentes de trabalho, cuja tramitação vem prevista nos art.º 99.º ss. do CPT, processo este que tem em vista o exercício de direitos laborais com a fixação de uma pensão ou de uma indemnização ao sinistrado, em razão da incapacidade e prejuízos dela decorrentes em virtude de acidente de trabalho.
O processo declarativo comum regulado no CPT apresenta algumas especificidades relativamente ao processo declarativo comum regulado no CPC, não obstante seja esta a legislação aplicável subsidiariamente, como expressamente estipula o art.º 49.º n.º 2: “Nos casos omissos, e sem prejuízo do disposto no artigo 1.º, aplicam-se subsidiariamente as disposições do Código de Processo Civil sobre o processo comum de declaração.”.
A primeira diferença, verifica-se na fase inicial do processo, prevendo o art.º 54.º do o CPT uma apreciação liminar da petição inicial pelo juiz e havendo o processo que prosseguir, seja logo designada uma audiência de partes.
Como se refere no Preâmbulo do DL n.º 480/99, de 09 de novembro, que aprova o Código de Processo do Trabalho: “institui-se uma única forma de processo, com tramitação simplificada, mas em termos suficientemente maleáveis para, sem quebra de garantias, permitir adequação às situações de diversa complexidade colocadas perante o tribunal, deixando-se ao critério do juiz a escolha daquelas que, em razão de maior complexidade, exijam um ritualismo de conformação mais ampla. (…) pode afirmar-se que a verdadeira novidade do processo comum consiste na introdução de uma audiência de partes, logo após a apresentação da petição inicial e antes da contestação, tendente a permitir uma mais fácil conciliação mediante acordo equitativo, visto o litígio ainda não se ter verdadeiramente sedimentado nem radicalizado e, desse modo, ser previsível uma maior disponibilidade das partes para o consenso, tanto mais que tudo se desenrolará já na presença mediadora do juiz. Não se pense, contudo, que se trata de qualquer recuperação de experiências antigas, de resultados nefastos, designadamente da tentativa prejudicial de conciliação, ou que essa audiência tem como único objectivo a tentativa de conciliação das partes. Ao invés, ela visa também contribuir para a simplificação da tramitação e para a rápida definição do verdadeiro objecto do processo, funcionando como primeira e decisiva fase de saneamento e como factor de diminuição da trama burocrática inerente a qualquer processo, permitindo, na maioria dos casos, estabelecer praticamente ab initio o agendamento de todos os posteriores actos processuais, com conhecimento imediato de todos os intervenientes, assim se evitando a necessidade de múltiplos despachos de simples expediente do juiz e minorando a intervenção da secretaria. Só assim não acontecerá, em princípio, nos casos residuais em que, em função da complexidade da causa, o juiz venha a decidir pela efectivação de uma audiência preliminar, a realizar em termos e com objectivos idênticos aos previstos na lei processual civil.”
Da diferente tramitação processual do processo declarativo comum delineado no CPC e em sede laboral, não decorre só por si uma qualquer compressão dos direitos de defesa do R., nem se vislumbra em que medida é que são coartados os seus meios de defesa, que o Recorrente embora afirmando verificar-se também não concretiza, já que não adianta qual a nova ou diferente defesa que fica inibido de apresentar pelo facto dos articulados serem aproveitados e o processo não ter seguido desde o início a tramitação prevista no CPT.
Tendo presente o pedido e a causa de pedir apresentados pela A. na petição inicial e avaliando a contestação deduzida pelo R. e a defesa por exceção e por impugnação que apresentou, não se consegue prever, em termos razoáveis, que outra defesa poderia aquele apresentar se o processo tivesse sido intentado no tribunal da jurisdição laboral, o que o R. também não concretiza, ou em que termos o seu direito de defesa fica prejudicado com a remessa do processo para o tribunal competente e aproveitamento dos articulados.
Além do mais, é preciso não esquecer que o tribunal tem ao seu dispor as ferramentas necessárias para fazer a adequação processual que tenha por necessária ou conveniente, precisamente por forma a salvaguardar as garantias de defesa do R. - veja-se neste sentido o Acórdão do TRL de 04-03-2009 in Col. Jur. 2009, 2º Vol., Pág. 158, de cujo ponto I do sumário consta: “Se o Processo foi iniciado no Tribunal Administrativo de Círculo como recurso contencioso de anulação e tendo por força do Acórdão do Tribunal Central Administrativo, aquele tribunal sido declarado materialmente incompetente para o conhecer, com a consequente remessa para o Tribunal do Trabalho, importa nos termos do art.º 10.º n.º 2 do CPC fazer-se a correspondente adequação processual, aproveitando-se os articulados, bem como as respetivas citações e notificações.”
Em conclusão, não obstante o regime algo diverso do processo declarativo comum regulado no Código de Processo e Civil e no Código de Processo do Trabalho, considera-se que a remessa do presente processo para a jurisdição laboral, considerada competente, com o aproveitamento dos articulados das partes, não comprime as garantias de defesa do R., não se apresentando como justificada ou razoável a oposição que o mesmo apresenta a essa decisão, que assim se mantém.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelo R. mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente que ficou vencido – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
*
Lisboa, 10 de outubro de 2024
Inês Moura
Susana Gonçalves
Pedro Martins