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REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ATO INÚTIL
SEGURO DE DANOS
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I – A Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida for inócua para a decisão da causa, ou seja, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inconsequente e inútil que, por isso, lhe está legalmente vedada. II – Sem prejuízo da distinção entre seguros de responsabilidade civil (que visam cobrir valores patrimoniais passivos) e seguros de danos (que visam cobrir activos patrimoniais), nada impede que as partes celebrem contratos de seguro que reúnam ambas as modalidades, como sucede quando celebram seguros de responsabilidade civil automóvel e, simultaneamente, de danos próprios. III – Estando em causa a cobertura relativa ao risco de choque, por ter sido invocado a ocorrência de um sinistro subsumível àquela previsão contratual e pedida a indemnização dos “danos próprios” decorrentes desse evento, apenas releva a parte do contrato qualificável como seguro de danos. IV – Nestes contratos a delimitação do risco é, geralmente, feita da seguinte forma: num primeiro momento, através de cláusulas que definem a chamada “cobertura de base”; num segundo momento, através de cláusulas que descrevem as hipóteses de exclusão daquela cobertura. V – Nestas situações, cabe ao segurado o ónus da prova do evento integrador da cobertura por si invocada (v.g. a ocorrência de danos no veículo seguro resultantes do embate do mesmo num corpo fixo); por sua vez, cabe à seguradora o ónus da prova de qualquer circunstância excludente da garantia (v.g. o dolo do condutor do veículo seguro, ou seja, que os danos foram intencionalmente causados). VI – De acordo com princípio indemnizatório regulado nos artigos 128.º e seguintes do RJCS, a prestação devida pela seguradora está sujeita ao limite do capital seguro e, simultaneamente, do dano. Visa-se, assim, garantir que o lesado seja ressarcido pelo prejuízo efectivamente sofrido e impedir que o seguro constitua fonte de rendimento para aquele. VII – Mas a lei prevê diversas excepções a este regime regra de cálculo da prestação indemnizatória, designadamente as consagradas no artigo 131.º do RJCS e no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto, ambas assentes na autonomia privada.
Texto Integral
Proc. n.º 767/21.2T8PNF.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório A..., Lda., com sede na Travessa ..., Sala ..., ..., Vila Nova de Gaia, intentou a presente acção declarativa comum contra B..., com sede na Av. ..., ... Lisboa.
Alegou, em essência, os danos que sofreu em virtude do acidente de viação ocorrido no dia 02.20.2020, em que foi interveniente o veículo com a matrícula ..-VS-.., de que é dona e possuidora, o qual se traduziu no despiste ou no desvio desta viatura para a berma, para evitar o embate num veículo que seguia em contramão, e na sua colisão num muro baixo de pedra paralelo à estrada. Mais alegou que, mediante contrato de seguro que celebrou com a ré, titulado pela apólice ..., transferiu para esta, entre outros, o risco de choque, colisão e capotamento.
Concluiu pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de 57.420,00 € acrescida de juros, à taxa aplicável aos créditos de que são titulares as empresas comerciais, desde 24.12.2020 até efetivo e integral pagamento, bem como a quantia de 1.150,00 € pela privação do uso da viatura, desde a data do sinistro até 24.12.2020, acrescido de juros de mora à mesma taxa, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
A ré apresentou contestação, onde se defendeu por excepção e por impugnação, concluindo pela procedência das excepções invocadas ou, assim não se entendendo, pela improcedência da acção.
Mediante convite do Tribunal, a autora veio responder às excepções alegadas na contestação.
Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, enunciados os factos já assentes (cuja descrição foi posteriormente rectificada) e os temas de prova e apreciados os requerimentos probatórios.
Depois de produzida a prova pericial admitida, veio a realizar-se audiência de julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu a ré do pedido.
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Inconformada, a autora apelou da sentença, concluindo assim a sua alegação:
«I- O presente recurso tem por objeto a reapreciação da decisão de direito bem como a reapreciação da prova gravada em audiência de julgamento nos termos do n.º 7º do artigo 638º e 640º do CP Civil.
II- A Recorrente sem embargo das conclusões abaixo a seu ver mais nucleares para a decisão do recurso, declara nos termos e para os efeitos do artigo 635º nº 4 do CP Civil que não limita o objeto de recurso às conclusões, que por isso deve considerar-se como abrangendo tudo o que da sentença for desfavorável à recorrente, nomeadamente a matéria supra alegada, para a qual se remete.
III- Quanto à matéria de facto julgada provada e não provada com relevância para a decisão da causa merece revisão a matéria constante dos factos 1º e 4º dos factos não provados, devendo ser dada a resposta de provados.
IV- Deve ainda, quanto ao facto 20 dos fatos provados ser corrigida no sentido que a descrição do modo como ocorreu o acidente, ali referida até pelo uso da primeira pessoa, é feita não pela autora, mas pelo condutor do veículo AA, indicado na participação, conforme resulta claramente do doc 4 da contestação.
V- Quanto ao facto provado 14º, não obstante a posição das partes quanto ao mesmo que merece a correção que a mediadora de seguros junto da ré e da concessionaria indicou como capital seguro a quantia de 73990,00 €, como valor correspondente ao valor comercial da viatura à data de 07/12/2018.
VI- A prova produzida quanto ao facto provado 27 não permite a sua afirmação, resultando o mesmo inverosímil no ano em questão em que houve quebra de produção na industria automóvel e aumento generalizado de preços nos veículos usados, não permitindo os anúncios juntos pela ré quase um ano depois, de outras viaturas que não a dos autos e sem os mesmos extras servir de prova fiável e que muitas vezes são meros anúncios chamariz.
VII- Os factos não provados 1 e 4, merecem a resposta de provados, quer pela resposta dada aos factos provados 18º e 21, quer pela própria fundamentação quer pelas perícias, quer pela avaliação dos danos feita pela ré e por esta junta (carta de comunicação de responsabilidade de 21/12/2020, boletim de perda parcial e avaliação e danos),
VIII- O depoimento da testemunha BB parcialmente transcrito na alegação 10, que aqui se dá por reproduzida, permite concluir com segurança para a afirmação pela positiva dos factos não provados em 1 e 4.
IX- O boletim de perda parcial e estimativa dos danos junto como doc 14 da contestação da ré permite igualmente afirmar com segurança pela positiva do facto não provado em 4.
X- O simples facto do condutor do veiculo objeto do contrato de seguro andar em paradeiro desconhecido e nem o tribunal, nem a autora nem a ré o terem conseguido fazer comparecer para confirmar o acidente e dar as suas explicações ante as reservas apontadas pelos senhores peritos quanto à exatidão da dinâmica do acidente tal como foi apontada com base nas suas declarações, não afasta a segurança de afirmação do acidente, como decorrente da saída da viatura da faixa de rodagem e embate na pedra, facto este incontestável e por todos afirmados e consequências deste na viatura
XI- a inexatidão, normal de uma das declarações, ainda que inconsciente ou involuntária, basta para em termos científicos afastar a dinâmica do acidente tal como descrita, ou seja para afirmar o erro na perceção da realidade ou exatidão do condutor quanto à dinâmica do acidente, mas não afasta o sinistro em si.
XII- A autora/segurada, não pode impedir nem adivinhar, que o condutor da sua viatura possa ter omitido até para proteção pessoal qualquer fator de distração como uso de telemóvel ou, adormecimento ao volante que também não será de excluir até pela sensação de encandeamento com o sol que o mesmo manifesto na sua descrição do acidente, que poderá ser um indício de fotossensibilidade própria do estado de sonolência.
XIII- A estimativa dos danos feita e assumida pela ré seguradora deve prevalecer sobre a dúvida lançada por um dos peritos na sua perícia (contrariada pelo outro) a respeito da compatibilidade dos estragos estimados com a velocidade da colisão.
XIV- Violou a decisão recorrida entre outros o disposto nos artigos 483º do Código Civil e 1º do DL 72/2008.
XV- Deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que julgue procedente a ação».
A ré respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso interposto.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes as questões a decidir:
- O erro na apreciação da matéria de facto no que respeita aos pontos 1.º e 4.º dos factos provados e aos pontos 14.º, 20.º e 27.º dos factos não provados;
- A verificação dos pressupostos da obrigação da ré de indemnizar os prejuízos invocados pela autora;
- Verificando-se esses pressupostos, a quantificação da indemnização devida.
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III. Fundamentação A. Os Factos 1. Factos julgados provados pelo Tribunal a quo
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1- O direito de propriedade plena sobre a viatura Audi ..., matrícula ..-VS-.., acha-se registado a favor da Autora, conforme documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2- A Ré celebrou com a Autora, a pedido desta, um contrato de seguro do ramo AUTOMÓVEL, titulado pela apólice n.º ..., tendo por objeto o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Audi, Modelo ..., versão 2.0 TDI S Tronic, com a matrícula ..-VS-...
3- O referido contrato de seguro encontrava-se válido e em vigor, à data de 02/12/2020, regendo-se pelas Condições Particulares, Especiais e Gerais da Apólice juntas com a contestação sob os documentos n.ºs 1 e 1-A, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4- Tal contrato de seguro foi celebrado pela Autora por exigência da sociedade C... Unipessoal, Lda., a favor de quem foram ressalvados os direitos emergentes do mesmo, tal como decorre, de forma expressa, das Condições Particulares da Apólice.
5- No âmbito do referido contrato de seguro, a Autora subscreveu a Condição Especial intitulada “Choque, Colisão e Capotamento”, subordinada ao regime previsto e estabelecido nas respetivas Condições Especiais da Apólice.
6- Para efeito da referida Condição Especial foi igualmente acordado com a Autora que se considera:
“CHOQUE: Danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado;
COLISÃO: Danos no veículo seguro resultantes do embate com qualquer outro corpo em movimento;
CAPOTAMENTO: Danos no veículo seguro resultantes de situação em que este perca a sua posição normal e não resulte de Choque ou Colisão.”
– vide Cláusula 1ª da Condição Especial intitulada “Choque, Colisão e Capotamento”.
7- A Autora e a Ré acordaram, bem assim, para além das exclusões previstas nas cláusulas 5.ª e 40.ª das Condições Gerais, que não ficam garantidas ao abrigo da referida Condição Especial as seguintes situações:
“a) Danos provenientes do mau estado das estradas ou caminhos, quando deste facto não resulte choque, colisão ou capotamento;
b) Danos nas capotas de lona, jantes, câmaras de ar e pneus, exceto se resultarem de choque, colisão ou capotamento e quando acompanhados de outros danos ao veículo;
c) Danos resultantes da circulação em locais reconhecidos como não acessíveis ao veículo;
d) Causados por objetos transportados ou durante operações, de carga e descarga;
e) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o teto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares;
f) Danos diretamente produzidos por lama ou alcatrão ou outros materiais utilizados na construção das vias;
g) Danos causados exclusivamente pelo veículo rebocado ao veículo rebocador ou por este àquele, ainda que se aplique a Cláusula Particular de “Inclusão do Serviço de Reboque”, exceto se a presente cobertura tiver sido subscrita em relação a ambas as unidades;
h) Danos que consistam em riscos, raspões, fendas ou ocorram em consequência de operações de montagem ou desmontagem ou instalação defeituosa.” - vide Cláusula 3ª da Condição Especial intitulada “Choque, Colisão e Capotamento”.
8- Nos termos estipulados na alínea b) do n.º 1 da cláusula 40.ª das Condições Gerais da Apólice, foi ainda acordado com a Autora que o contrato de seguro também não garante, ao abrigo das respetivas coberturas facultativas, os “…danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis, ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro.” – vide alínea b) do n. 1 do artigo 40.º das Condições Gerais da Apólice.
9- Nos termos estabelecidos na Cláusula 38.ª das Condições Gerais da Apólice, foi também expressamente acordado com a Autora que:
“Para efeitos do presente Contrato e em relação às coberturas facultativas que a seguir se indicam, entende-se por:
Veículo Seguro: O veículo automóvel abrangido pela presente apólice de seguro Automóvel e como tal designado nas Condições Particulares;
Valor em Novo: Preço total de venda ao público, incluindo encargos legais e impostos, do veículo seguro, em estado novo, na data de registo da primeira matrícula, inscrita no respetivo livrete;
Valor de Substituição em Novo: Preço total de venda ao público, incluindo encargos legais e impostos, do veículo seguro em novo, na data do sinistro. Caso o veículo seguro já não seja comercializado nessa data, considerar-se-á o preço do veículo de características análogas mais aproximadas;
Valor de Substituição: Valor necessário à aquisição de outro veículo, de características iguais às do veículo seguro, ou de características análogas, se aquele já não for comercializado, tendo sempre em conta nessa avaliação a idade, o uso e o estado de conservação do veículo sinistrado;
Idade do Veículo: O número de meses ou anos contados da data de registo da primeira matrícula inscrita no livrete, considerando para o efeito qualquer fração de mês como um mês completo;
Valor Venal: Valor de venda do veículo seguro imediatamente antes da ocorrência de um sinistro;
Extras: Componentes ou equipamentos não integrados de origem no veículo seguro, devidamente identificados e valorizados pelo Tomador do Seguro, nomeadamente:
- Todos os equipamentos ou componentes incorporados no veículo por decisão do adquirente e em data posterior à sua saída de fábrica;
- Quaisquer letras, desenhos, emblemas, dísticos alegóricos, reclamos ou propaganda, pintados, apostos ou fixados no veículo seguro. Locais de Guarda do Veículo: Locais onde o veículo seguro pernoita e que para efeitos do presente Contrato serão os Concelhos de residência do Tomador do Seguro e/ou do Condutor indicados nas Condições Particulares.”
10- Mais acordaram a Autora e a Ré que:
“1. Com exceção das coberturas com capitais próprios, a determinação dos valores seguros para cada cobertura facultativa contratada, devidamente identificados nas Condições Particulares, será da responsabilidade do Tomador do Seguro e/ou do Segurado.
2. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro para as coberturas previstas nas alíneas b), c), d), g) e h) do n.º 1. da cláusula 39.ª corresponde ao valor atual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas:
a) Por indicação do respetivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veículo for usado, do coeficiente de desvalorização constante na tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares;
b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação de valor seguro.
3. Salvo estipulação em contrário prevista nas Condições Particulares, o valor dos extras seguros indicado pelo Segurado no momento da celebração do contrato, deverá corresponder ao respetivo valor em novo.”
11- Nos termos previstos na Cláusula 43ª das Condições Gerais da Apólice, a Autora e a Ré acordaram também que:
“1. Após a determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável.
2. Se no mesmo contrato de seguro, conjuntamente com o veículo estiver garantido um reboque, a menos que em sentido contrário seja acordado e expresso nas Condições Particulares, as regras de desvalorização aplicáveis serão autónomas, aplicando-se em relação a cada objeto seguro as respetivas tabelas identificadas nas Condições Particulares.
3. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro dos extras, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com os fatores de desvalorização aplicados ao veículo seguro.”
12- Mais acordaram a Autora e a Ré que:
“1. Em caso de sinistro, o Segurador pode optar pela reparação do veículo, pela sua substituição, ou pela atribuição de uma indemnização em dinheiro, sem prejuízo da aplicação do disposto na cláusula seguinte.
2. As reparações serão feitas de maneira a repor a parte danificada do veículo seguro no estado anterior ao sinistro.
3. Quando as reparações exijam substituição de peças ou sobressalentes e o Segurado não queira sujeitar-se à demora para a sua obtenção, o Segurador não será responsável pelos prejuízos direta ou indiretamente daí resultantes, limitando-se à obrigação de indemnizar pelo custo das peças ou sobressalentes, na base dos preços fixados na última tabela de venda ao público.”
13- Nos termos estabelecidos na Cláusula 47ª das Condições Gerais da Apólice, foi ainda acordado entre a Autora e a Ré que:
“1. O montante da indemnização será abatido ao capital seguro, ficando disponível a parte restante, desde a data do sinistro até ao vencimento anual do contrato.
2. Havendo acordo do Segurador, o Tomador do Seguro pode repor o capital através do pagamento de um prémio suplementar correspondente ao capital reposto e ao período de tempo não decorrido, até ao vencimento anual do contrato.”
14- Aquando da celebração do contrato de seguro e no que tange à condição especial intitulada de “Choque, Colisão e Capotamento”, a Autora indicou como capital seguro a quantia de € 73.990,00, como valor correspondente ao pretenso valor venal/comercial da viatura, à data de 07/12/2018. Irrelevante
15- À data de 2 de dezembro de 2020, o capital seguro estava reduzido a € 67.989,46.
16- Entre a Autora e a Ré foi acordado que a cobertura intitulada “Choque, Colisão e Capotamento” ficava sujeita à franquia estipulada nas Condições Particulares da Apólice, no valor de € 250,00, a suportar pela tomadora do seguro, ou seja, a aqui Autora – vide Condições Particulares da Apólice.
17- Ficaram expressamente excluídos das garantias da Apólice invocada, nos termos do artigo 40.º, n.º 2, alínea d), das suas Condições Gerais, os “Lucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais”.
18- No dia 2 de dezembro de 2020, pelas 14h/14h30m, na Rua ... (EN ...) em ..., Lousada, a viatura identificada em 1 e 2, no momento em que circulava na berma paralelamente ao eixo da via, colidiu num muro baixo de pedra, paralelo à estrada, de proteção do fosso e conduta de linha de água, que atravessa a estrada.
19- O condutor do VS não chamou ao local agentes de autoridade.
20- Em 3 de dezembro de 2020, a Autora fez chegar à Ré uma participação de sinistro, datada desse mesmo dia, por via da qual lhe deu conhecimento da alegada ocorrência de um sinistro que supostamente se teria verificado, pelas 16:10h, do dia 02/12/2020, na localidade de ..., no concelho de Felgueiras, envolvendo o VS e que a mesma descreveu do seguinte modo: “IA NA DIRECÇÃO ... - ... N CURVA ANTES D CHEGAR AS D... DESPISTEI-ME AO DESVIAR-ME D 1 CAMEAO K VINHA N MINHA DIRECÇÃO E EMBATI NUMA CAIXA DE ÁGUAS FLUVIAIS QUE NÃO ESTÁ SINALIZADA”. – vide documento n.º 4 com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
21- Após aquela data a viatura apresentava, como verificado pericialmente em 07/12/2020, diversos estragos ao nível da chapa e motor, cujo custo de reparação orçava em € 53.112,78, sendo que o valor do salvado era de € 16.320,00.
22- Os valores referidos foram aceites e estimados pela Ré em peritagem condicional que, por via disso, declarou a reparação inviável e, consequentemente, a perda total, conforme documento n.º 3 junto com a petição, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
23- A Ré propôs, por isso, condicionalmente à Autora a indemnização de € 44.394,72 entregando à Autora o salvado no valor de € 16.320,00, considerando o valor do seguro à data do sinistro em € 60.964,72 (mesmo documento).
24- Em 27/10/2020, a Ré remeteu à Autora uma comunicação, por via da qual lhe fez saber que não lhe era possível renovar o contrato de seguro em causa nos autos, na anuidade seguinte, isto é, na anuidade de 2020/2021, que se iria iniciar em 08/12/2020 – vide documento n.º 9 junto com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
25- A Ré remeteu à Autora a carta junta sob o documento n.º 12 junto com a contestação, por via da qual lhe fez saber que declinava qualquer responsabilidade pelos danos decorrentes do “acidente” participado.
26- O veículo de matrícula ..-VS-.. foi totalmente pago pela Autora à C..., Unipessoal, Lda., conforme cópia das condições particulares do contrato n.º ..., relativo à aludida viatura, comprovativo da liquidação de todos os pagamentos relativos ao contrato e comprovativo de aquisição da viatura juntos por aquela sociedade em 25/11/2021.
27- À data em que ocorreu o sinistro, o valor venal/comercial do “VS” situava-se entre os € 40.000,00 e os € 45.000,00.
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2. Factos julgados não provados pelo Tribunal a quo
O tribunal recorrido julgou não provados os seguintes factos:
1- No dia 2 de dezembro de 2020, na Rua ... (EN ...) em ..., Lousada, pelas 16h10 horas, ocorreu o despiste da viatura identificada em 1 dos factos provados para a berma e colisão num muro baixo de pedra, paralelo à estrada, de proteção do fosso e conduta de linha de água, que atravessa a estrada;
2- O condutor da viatura ..-VS-.., AA, seguia no sentido ... - ..., quando de frente lhe apareceu uma viatura desconhecida em contramão e, para evitar o embate, desviou para a berma embatendo em cheio no muro supra referido;
3- O referido condutor não viu o obstáculo onde embateu e para onde teve de desviar o veículo em consequência de um veículo que vinha fora de mão e da luz do sol;
4- Foi em consequência deste evento que o veículo sofreu os danos referidos na matéria assente;
5- O “VS” foi, propositadamente, conduzido de forma a aproximar-se, gradualmente, do limite direito da E.N. ..., atento o sentido ... / ... e, de seguida, a galgar a berma e, finalmente, a embater numa laje em granito, tendo em vista a voluntária produção de danos nesse carro, para sua posterior reclamação à Ré no âmbito da apólice em causa nos autos;
6- À data da celebração do contrato de seguro em apreço nos autos, o valor venal/comercial do “VS” não era superior a € 59.000,00;
7- Caso a Ré tivesse tido conhecimento do real valor comercial do “VS”, aquando da celebração do ajuizado contrato de seguro, não teria aceite segurar tal veículo por um valor superior a € 59.900,00;
8- O veículo sofreu uma desvalorização não inferior a 20% do seu valor normal como viatura sinistrada reparada, em face da dimensão dos danos.
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3. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso vertente, o cumprimento destes ónus pela recorrente não suscita dúvidas nem foi questionado pela recorrida, a qual se limitou a alegar que «a recorrente em lado algum do corpo das suas alegações se refere à alteração da redação do ponto 20», mas sem razão, visto que tal questão é suscitada logo do artigo 2.º daquelas alegações. Nestes termos, do ponto de vista formal, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC), designadamente o artigo 396.º no que respeita à força probatória dos depoimentos das testemunhas.
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, a recorrente pugnou pela alteração da decisão no que respeita à factualidade descrita nos pontos 14.º, 20.º e 27.º dos factos provados e nos pontos 1.º e 4.º dos factos não provados.
É jurisprudência pacífica que a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida for inócua para a decisão da causa, ou seja, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inconsequente e inútil que, por isso, lhe está legalmente vedada (artigo 130.º do CPC). Neste sentido, a título de mero exemplo, vide os acórdãos do TRC de 16.02.2017 (proc. n.º 52/12.0TBMBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde pode ser consultada a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), do TRL de 26.09.2019 (proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2) e do STJ de 14.07.2021 (proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1).
É, precisamente, esta a situação relativamente à generalidade da matéria de facto aqui impugnada pela recorrente.
No que concerne ao ponto 14 dos factos provados, as alterações que a recorrente pretende ver aí introduzidas, para além de respeitarem a matéria de facto que não foi oportunamente alegada por nenhuma das partes, mostram-se totalmente irrelevantes para a decisão deste recurso. Não estando em casa a validade do contrato de seguro celebrado entre as partes, nomeadamente a estipulação do capital seguro, e estando provado que à data de 02.12.2020 esse capital estava reduzido a 67.989,46 € (cfr. ponto 15 dos factos julgado provados, não impugnado neste recurso), é absolutamente inócuo apurar se foi a autora quem «indicou como capital seguro a quantia de € 73.990,00, como valor correspondente ao pretenso valor venal/comercial da viatura, à data de 07/12/2018» ou se foi a mediadora de seguros junto da ré e da concessionária quem «indicou como capital seguro a quantia de 73990,00 €, como valor correspondente ao valor comercial da viatura à data de 07/12/2018».
O mesmo sucede relativamente à correcção do ponto 20 dos factos provados pretendida pela recorrente. Saber se a descrição do acidente constante da participação que a autora apresentou à ré é da autoria daquela autora ou do condutor do veículo, AA, é questão que diz respeito à análise da prova produzida e, por conseguinte, à motivação da decisão da matéria de facto. Mas não configura um facto relevante para a apreciação da causa, à luz do artigo 5.º do CPC: não configura um facto essencial (um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da autora) oportunamente alegado, nem um facto que seja complemento ou concretização de algum desses factos, não configurando, sequer, um facto instrumental (caso em que teria a sua sede própria na motivação da decisão sobre a matéria de facto e não na descrição desta matéria – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, p. 29), mas tão só a descrição de um meio de prova.
Quanto ao ponto 27 dos factos provados, a própria recorrente admite a sua irrelevância, por força da «cláusula de não desvalorização nos 3 primeiros anos proposta pela ré à autora». E na verdade, como melhor veremos quando analisarmos o recurso da matéria de direito, o apuramento do valor venal do veículo VS à data em que ocorreu o sinistro é irrelevante para a decisão deste recurso, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa.
Por fim, no que concerne ao ponto 1 dos factos não provados, onde se considera indemonstrada a dinâmica que precedeu o embate descrita pela autora, assim como ao ponto 4 dos factos não provados, na parte em que considera não demonstrado o nexo de causalidade entre o evento assim descrito e os danos assinalados no ponto 21 dos factos provados, embora configurem factos constitutivos do direito da autora, o seu apuramento revele-se, no caso concreto, inócuo para a decisão deste recurso, tendo em conta que os factos apurados são suficientes para demonstrar a existência do direito da autora a ser indemnizada, como melhor se explicará quando apreciarmos o recurso sobre a matéria de direito.
Ainda assim, uma questão se suscita relativamente ao ponto 4 dos factos não provados.
Não restam dúvidas de que o tribunal a quo quis julgar não provada a relação de causalidade entre o evento descrito nos pontos 1 a 3 dos factos não provados e os danos descritos no ponto 21 dos factos provados.
Poderemos questionar se pretendeu julgar igualmente não provada a relação de causalidade entre estes danos e o evento descrito no ponto 18 dos factos provados [no qual julgou provado que no dia 2 de dezembro de 2020, pelas 14h/14h30m, na Rua ... (EN ...) em ..., Lousada, a viatura identificada em 1 e 2, no momento em que circulava na berma paralelamente ao eixo da via, colidiu num muro baixo de pedra, paralelo à estrada, de proteção do fosso e conduta de linha de água, que atravessa a estrada], sendo certo que este concreto nexo causal não decorre dos factos julgados provados.
Mas a própria sentença recorrida revela que o tribunal a quo não pretendeu julgar não provada a relação causal entre o embate descrito no ponto 18 dos factos provados e os referidos danos. Pelo contrário, a convicção sobre a demonstração desse nexo causal decore da própria motivação daquele ponto 18, onde afirma o seguinte: «No que respeita à colisão do veículo num muro baixo de pedra paralelo à estrada, quando circulava na berma paralelamente ao eixo da via, foi tido em consideração o teor dos Relatórios Periciais juntos aos autos, dos quais resulta, pela posição em que se encontrava o veículo seguro e pelos danos verificados no mesmo, que o veículo, no momento em que circulava na berma paralelamente ao eixo da via, colidiu num muro baixo de pedra, paralelo à estrada, de proteção do fosso e conduta de linha de água, que atravessa a estrada». Ao fundamentar a prova do embate do veículo VS no muro de pedra paralelo a estrada, para além do mais, nos próprios danos registados nesse veículo, o tribunal a quo está a reconhecer que estes danos decorreram daquele embate.
Mas certamente porque, no momento em que descreveu os factos provados e não provados, aquele tribunal já estava comprometido com o enquadramento jurídico dos factos que veio a preconizar – de acordo com a qual o embate descrito no ponto 18 dos factos provados não é suficiente para se falar de um sinistro, por falta de demonstração da sua fortuitidade – acabou por não incluir nos factos provados qualquer matéria reveladora do nexo de causal que efectivamente apurou.
Como também veremos melhor infra, este é um facto constitutivo do direito da autora e assume uma relevância decisiva no âmbito deste recurso. Estamos, assim, perante uma omissão que importa suprir, sob pena de nulidade por falta de pronúncia sobre um facto essencial para a decisão da causa.
O sentido de tal suprimento afigura-se evidente, pois conhecemos o juízo probatório do tribunal a quo e concordamos inteiramente com a análise que lhe está subjacente: toda a prova produzida, com especial destaque para os relatórios periciais juntos aos autos, demonstram que os danos materiais descritos no ponto 21 dos factos provados foram causados pelo embate do veículo VS no muro de pedra, descrito no ponto 18 dos factos provados, o que não foi infirmado por qualquer outra prova e é corroborado pelas regras da experiência comum.
Atento tudo quanto ficou exposto, entendemos que está prejudicado o conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela recorrente, mas, suprindo omissão antes assinalada, decidimos alterar a descrição do ponto 21 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção: 21- Em virtude do embate descrito no ponto 18, a viatura apresentava, como verificado pericialmente em 07/12/2020, diversos estragos ao nível da chapa e motor, cujo custo de reparação orçava em € 53.112,78, sendo que o valor do salvado era de € 16.320,00.
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B. O direito 1. A recorrente pretende que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que julgue procedente a acção. Porém, limita-se a invocar o disposto no artigo 483.º do Código Civil (CC), relativo à responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, e no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril (diploma que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, doravante RJCS), onde se define o conteúdo típico do contrato de seguro.
Perante o pedido e a causa de pedir formulados nesta acção, é inquestionável que a mesma tem como o objecto a obrigação (da ré) de indemnizar (a autora) com fundamento na responsabilidade civil. Todavia, afigura-se igualmente de linear clareza e, por isso, importa desde já clarificar que o litígio entre as partes não se inscreve no âmbito da responsabilidade extracontratual, mas sim no âmbito da responsabilidade contratual.
Tanto a responsabilidade civil contratual como a responsabilidade civil extracontratual são fontes do direito de indemnizar. Como ensina Antunes Varela, «[n]a rubrica da responsabilidade civil cabe tanto a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei (responsabilidade contratual), como a resultante da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízos a outrem (responsabilidade extracontratual). (…) Apesar da nítida distinção conceitual existente entre as duas variantes da responsabilidade civil (uma, assente na violação de deveres gerais de abstenção, omissão ou não ingerência, correspondentes aos direitos absolutos; a outra resultante do não cumprimento, lato sensu, dos deveres relativos próprios das obrigações, incluindo os deveres acessórios de conduta, ainda que impostos por lei, no seio da complexa relação obrigacional), a verdade é que elas não constituem, sobretudo, na prática da vida, compartimentos estanques» (Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., pp. 519 e ss.). Por isso mesmo, a doutrina vem repetidamente apontando a necessidade de ultrapassar esta distinção e as diferenças de regime, alertando para a natureza conjectural desta dicotomia.
Contudo, tais diferenças mantêm-se no plano do direito positivo, com relevantes consequências práticas. Nuno Pinto de Oliveira [Ilicitude e culpa na responsabilidade médica, in (I) Materiais para o Direito da Saúde, n.º 1, Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2019, p. 24] enuncia cinco diferenças: «a primeira relaciona-se com a ressarcibilidade dos danos patrimoniais primários (art. 483.º, n.º 1, vs. art. 798.º); a segunda, com o ónus da prova da culpa (art. 487.º, n.º 1, vs. art. 799.º, n.º 1); a terceira, com o regime da obrigação de indemnizar em caso de pluralidade de devedores (arts. 497.º e 507.º vs. art. 513.º); a quarta, com a responsabilidade por actos de auxiliares (art. 500.º vs. art. 800.º); e a quinta, com os prazos de prescrição (na responsabilidade contratual, o prazo de prescrição é em regra de vinte anos — art. 309.º —; na responsabilidade extracontratual, o prazo de prescrição é de três anos — art. 498.º do Código Civil)».
Para sabermos se estamos perante a violação de deveres especiais assentes numa relação creditícia ou de deveres gerais de conduta que a ordem jurídica impõe aos indivíduos com vista à protecção de direitos, importa caracterizar a concreta relação jurídica em que se inscreve tal violação, de modo a apurar se os factos praticados convocam o regime da responsabilidade contratual ou o regime da responsabilidade extracontratual (ou, eventualmente, ambos, caso em que importa igualmente definir os termos deste “concurso de títulos de aquisição da prestação”, na expressiva terminologia de Miguel Teixeira de Sousa).
Para o efeito, importa ter em consideração os factos que alicerçam a causa de pedir, ou seja, o facto jurídico de onde emerge a pretensão formulada.
No caso concreto, facilmente constatamos que a autora não baseia o seu pedido na violação, por terceiros, dos seus direitos subjectivos ou de normas destinadas a proteger os seus interesses, ou seja, não se fundamenta na responsabilidade extracontratual de terceiros pelos danos que afirma ter sofrido e cuja obrigação de indemnizar tenha sido assumida pela ré, por via contratual, mais concretamente por via do contrato de seguro, como sucederia se estivéssemos no âmbito do seguro automóvel de responsabilidade civil. A autora baseia o seu pedido na obrigação, assumida pela ré, de indemnizar a autora pelos danos decorrentes dos riscos abrangidos nas coberturas facultativas estipuladas no contrato de seguro que celebraram.
O que está aqui em causa é, portanto, a responsabilidade proveniente da falta de cumprimento de deveres especiais emergentes deste contrato, e não a violação de deveres gerais de abstenção correspondentes a algum direito absoluto.
Nestes termos, não são aqui invocáveis as normas relativas à responsabilidade extracontratual, maxime a norma do artigo 483.º do CC, mas antes as normas gerais relativas ao cumprimento e não cumprimento das obrigações, as normas especiais relativas ao contrato de seguro e as próprias estipulações contratuais. 2. A definição do contrato de seguro, cujo conteúdo típico está actualmente descrito no citado artigo 1.º do RJCS, não suscita divergências relevantes na doutrina ou na jurisprudência.
Podemos defini-lo como o acordo escrito entre uma entidade autorizada a exercer a actividade de seguros (seguradora), que se obriga, mediante recebimento de determinada quantia (prémio), a garantir um determinado risco (situação coberta) e, caso o mesmo se verifique, a pagar à outra parte no contrato ou a terceiro (tomador, pessoa segura ou beneficiário) um determinado montante, a título de indemnização, capitalização ou renda. Neste sentido pode ler-se, na doutrina, Moitinho de Almeida, «O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado», Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, pág. 23; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, vol. I, Coimbra, Almedina, p. 544; Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros, Principia, p. 51; José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra, 1999, p. 94; Francisco Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, vol. I, p. 271, apud Clara Lopes, Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, Lisboa 1987, p. 15. Na jurisprudência veja-se, a título de exemplo, o ac. do STJ, de 17.11.2005 (CJ STJ, XXX, 3º, p. 120), o ac. do TRL, de 14.04.2005 (CJ, XXX, 2°, p. 95 e ss), o ac. do TRL, de 13.05.2004 (proc. n.º 3329/2004-6) e o ac. do TRP, de 31.05.2004 (proc. n.º 0452838).
O contrato de seguro compreende, portanto, duas prestações: a da seguradora, de conteúdo complexo, consistente na assunção do risco e na obrigação de pagar um determinado capital se esse sinistro se verificar; a do segurado, consistente na obrigação de pagamento do prémio.
Através do “seguro” pretende-se satisfazer necessidades futuras dos segurados que sofram os inconvenientes resultantes de um evento incerto desfavorável (o risco). Ao contrato de seguro é, pois, essencial a transferência do risco de uma pessoa para outra, «assumindo-se, portanto, o risco como o elemento determinante do objecto do contrato de seguro». (Cfr. Luís Poças, Estudos de Direito dos Seguros, Almeida e Leitão, Lda, p. 13).
Desta forma, como refere Carlos Ferreira de Almeida, a «função económico-social do contrato de seguro é uma função de garantia completada com um elemento de troca (prémio), sempre que a finalidade global e típica do contrato se destine a compensar pecuniariamente a perda ou a desvalorização de um bem (coisa ou crédito) ou a frustração de uma expectativa (diminuição, não realização ou não-aumento do património activo; aumento ou não diminuição do património passivo; afectação da capacidade de trabalho e/ou emergência de danos morais). (Cfr. «Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico», Almedina, 1992, p. 565/566).
Entre as várias classificações possíveis de contratos de seguro importa aqui destacar a já antes aludida distinção entre seguros de responsabilidade civil e seguros de danos. Os seguros de responsabilidade civil visam cobrir valores patrimoniais passivos; as seguradoras obrigam-se a pagar indemnizações a terceiros. Já os seguros de danos visam cobrir activos patrimoniais, têm como efeito colocar o segurado numa situação igual (não superior) àquela em que se encontrava antes do evento.
Esta classificação, de natureza essencialmente dogmática, não impede que as partes celebrem contratos de seguro que reúnam ambas as modalidades, como sucede quando celebram seguros de responsabilidade civil automóvel e, simultaneamente, de danos próprios. É, precisamente, este o caso do contrato de seguro em apreço nestes autos, como decorre das coberturas discriminadas na respectiva apólice.
Contudo, tendo a autora accionado apenas a cobertura relativa ao risco de choque, invocando a ocorrência de um sinistro subsumível a essa previsão e pedindo a indemnização desse “dano próprio”, nestes autos apenas releva a parte do contrato qualificável como seguro de danos. 3. E o que importa decidir é, antes de mais, se efectivamente ocorreu um sinistro enquadrável nas coberturas estipuladas no referido contrato (e, sendo a resposta afirmativa, qual o valor dos prejuízos indemnizáveis).
O tribunal a quo entendeu que não, por considerar que os factos provados não são suficientes para se considerar verificada a ocorrência de um sinistro, visto não estar demonstrada a sua natureza fortuita, súbita e imprevista.
Neste sentido, afirma-se o seguinte na sentença recorrida: «considerando que o choque é o resultado final de um processo dinâmico em que se traduz o acidente, e que este deve traduzir-se num acontecimento fortuito, súbito e imprevisto, uma vez acordada a cobertura facultativa por choque, compete ao segurado alegar e demonstrar, enquanto facto constitutivo do direito à indemnização pelos danos próprios decorrentes do embate do veículo com um objeto fixo, não apenas o embate, mas todo o processo dinâmico que terminou com os danos verificados no veículo. Ora, no caso vertente, não logrou a Autora demonstrar, tal como lhe competia, à luz do disposto no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, todo o processo dinâmico em que se traduziu o alegado acidente, acontecimento fortuito, súbito e imprevisto do qual resultaram os danos no veículo de matrícula ..-VS-..».
Fundamenta-se o tribunal a quo na jurisprudência expressa no ac. do TRL, de 06.02.2020 (proc. n.º 12543/16.0T8LSB.L1-2, rel. Arlindo Crua), no qual se afirma, para além do mais, o seguinte: «cremos, que a fortuitidade do evento, ou seja, a ocorrência de um acidente, que se transmuta em sinistro, enquanto realizador do risco previsto no contrato de seguro, que desencadeia a garantia subjacente a este, ainda se configura como facto constitutivo do direito do segurado, cujo ónus probatório lhe incumbe. Ou seja, não basta ao segurado, neste tipo de pretensão indemnizatória por danos próprios, alegar e provar apenas a ocorrência de um embate/choque e consequentes danos, de forma a fazer funcionar o âmbito de cobertura contratado. Deve antes igualmente exigir-se uma prova, por mínima que seja, do processo dinâmico que, in casu, levou ao choque, donde se extraia a sua natureza fortuita, aleatória e não dependente da vontade. (…) Por fim, a Ré seguradora pode alegar o dolo na conduta do condutor do veículo, situação em que lhe incumbirá a prova do mesmo. Todavia, impor-lhe tal obrigação ou ónus para que possa afastar a sua responsabilidade, parece não se enquadrar com as regras de repartição probatória expostas, pois deve admitir-se que apenas possa alegar factualidade capaz de afastar a fortuitidade do evento participado, em virtude deste enformar-se como facto constitutivo do direito do segurado».
Não podemos subscrever este entendimento.
No excerto transcrito são enunciadas duas teses contraditórias: por um lado, que cabe à autora segurada o ónus da prova da fortuitidade do embate (e, por conseguinte, da sua natureza involuntária, não dolosa), porque esta ainda se configura como facto constitutivo do direito do segurado; por outro lado, que cabe à ré seguradora o ónus da prova do dolo do condutor do veículo por si alegado, porque este, enquanto causa de exclusão da garantia, se configura como um facto impeditivo do referido direito. De seguida é refutada esta segunda tese, com o único argumento de que não é consentânea com a primeira. Ou seja, a conclusão baseia-se na veracidade de uma das teses sob escrutínio.
Mas os argumentos esgrimidos em defesa da primeira tese não merecem o nosso acolhimento, ao contrário do que sucede com os argumentos usualmente esgrimidos em defesa da segunda.
A tese sufragada na decisão recorrida assenta, essencialmente, na seguinte argumentação: cabendo à autora o ónus da prova do acidente, passível de configurar o sinistro que realiza o risco previsto no contrato, e devendo este traduzir-se num acontecimento fortuito, súbito e imprevisto, cabe à autora o ónus da alegação e da prova, não apenas a ocorrência do embate/choque e dos danos consequentes, mas também do processo dinâmico que levou a esse choque e de onde possa extrair a sua natureza fortuita.
Porém, a circunstância de o sinistro em que se materializa o risco garantido dever ser fortuito não significa que caiba ao segurado o ónus da prova dessa fortuitidade, tal como não significa que a seguradora esteja dispensada de provar as causas de exclusão por si alegadas, inclusivamente a natureza intencional do evento em que se baseia o pedido indemnizatório.
O ónus da prova (de natureza material, distinto do ónus da alegação, de natureza processual) está previsto e regulado nos artigos 342.º e seguintes do CC.
Sob a epígrafe Ónus da prova, dispõe assim a primeira dessas disposições legais: 1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Determinar quais sejam os factos constitutivos do direito do autor, por contraposição aos factos impeditivos, modificativos e extintivos, é algo que só com recurso ao direito substantivo se pode fazer. Como diz Anselmo de Castro (Processo Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982,, pp. 353-354), «não há por natureza factos constitutivos, impeditivos ou extintivos. Seria, por isso, erro dar invariavelmente a um facto uma outra natureza. O que para um direito ou no domínio de uma relação jurídica é facto impeditivo, para outro bem pode ser facto constitutivo. É, pois, à respectiva norma ou normas aplicáveis e só a elas, que há que recorrer. Assim, mais do que de factos constitutivos, impeditivos ou extintivos, se deve falar de normas constitutivas, impeditivas, ou extintivas».
Subjacente a esta construção está a teoria das normas de Rosenberg, generalizadamente aceite entre nós, que Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora (Manual de Processo Civil, p. 455) expressivamente sintetizam da seguinte forma: «Cada uma das partes terá assim (o ónus) de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção. Cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável».
No seu acórdão de 10.03.2016 (proc. n.º 4990/12.2TBCSC.L1.S1, rel. Tomé Gomes), o STJ analisa exaustivamente e descreve com uma clareza cristalina os termos em que as normas reguladoras dos contratos de seguro de danos determinam a repartição do ónus da prova nas acções indemnizatórias baseadas nestes contratos.
Com apoio na doutrina, na jurisprudência e na lei vigente, o referido acórdão começa por analisar o próprio conceito de contrato de seguro, em termos que não se afastam dos já expostos supra, concluindo que o risco constitui um elemento essencial ou típico do mesmo e que, por isso, «deve existir quer aquando a celebração do contrato quer durante a sua vigência».
Enuncia, depois, a noção de risco, como a «possibilidade de ocorrência de um evento ou facto futuro e incerto de natureza fortuita com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato», acrescentando que «o risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos, nos termos dos artigos 24.º e 37.º, n.º 2, alínea d), da citada LCS, estando o tomador do seguro ou o segurado obrigado, mesmo antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador (citado art.º 24.º, n.º 1)».
Prosseguindo a sua análise, refere que, «[n]a prática negocial, a delimitação do risco, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares: primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base”; subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base. Em suma, a delimitação do risco no contrato consubstancia-se na configuração de uma factispecies contratual, ou seja, num tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro».
De seguida, novamente em linha com o exposto supra, define sinistro como «a ocorrência concreta do risco assim previsto no contrato, devendo, pois, reunir as mesmas características com que é ali configurado», acrescentando que «a qualificação de um evento ou facto como sinistro terá de ser feita em função dos contornos tipológicos do risco tal como foram desenhados no clausulado contratual».
Por fim, depois de analisar o teor do contrato de seguro concretamente em causa naquela acção, designadamente das cláusulas onde são descritas as coberturas e as exclusões em discussão, conclui que «a referida cláusula de cobertura contempla tipos de ocorrência futura e incerta, em que está ínsita a natureza fortuita, súbita ou inesperada, do risco garantido pelo contrato. Tal natureza terá de defluir da especificidade factual do evento, sendo que os qualificativos expressos nos vocábulos “súbitos” e “inesperados”, traduzem-se, no contexto em foco, em termos meramente valorativos ou conclusivos do conceito de fortuitidade, não podendo, por isso, servir como enunciado de teor factual. Nessa medida, a definição de sinistro dada no capítulo I não se reconduz a qualquer característica qualificativa adicional dos factos configurados na cláusula de base de cobertura do risco, significando simplesmente que tais factos, na configuração que ali lhes é dada, são assumidos como eventos ou série de eventos súbitos e inesperados garantidos pelo contrato. Nessa conformidade recai sobre o segurado o ónus de provar tais ocorrências como factos constitutivos que são do direito de indemnização invocado, nos termos do n.º 1 do art.º 342.º do CC. Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC».
Esta conclusão é inteiramente aplicável ao nosso caso, no qual surge ainda com mais clareza, na medida em que os qualificativos fortuito, súbito e inesperado nem sequer constam da definição de sinistro dada pelo contrato de seguro.
Na verdade, da cláusula 1.ª, al. f), das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes destes autos consta a seguinte definição de sinistro: a verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato, considerando-se como um único sinistro o evento ou série de eventos resultante de uma mesma causa.
A cobertura do risco em discussão nestes autos é a prevista na cláusula 39.º, n.º 1, al. b), das condições gerais, assim definida na Cláusula 1.ª das condições especiais: CHOQUE: Danos no veículo seguro resultantes do embate contra qualquer corpo fixo ou sofrido por aquele quando imobilizado.
Por sua vez, a exclusão expressamente invocada pela ré recorrida é a prevista na Cláusula 40.ª, n.º 1, al. b), das condições gerais: Danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro.
Deste modo, à semelhança do que conclui o aresto que vimos citando, nem sequer se afigura que recaia sobre a segurada o ónus de provar a causa específica que esteve na origem da ocorrência configurada no contrato como integradora do risco – o embate do veículo seguro contra qualquer corpo fixo (ou sofrido pelo mesmo quando imobilizado), causador de danos nesse veículo. «O que se lhe impõe, nos n.º 2 do artigo 100.º da LCS, é que explicite as circunstâncias do sinistro e as eventuais causas da sua ocorrência com vista a permitir à seguradora, precisamente, fazer tal indagação por via pericial». E é sobre a seguradora que recai o ónus de provar que «a ocorrência de facto integrador de qualquer das situações contratualmente previstas em sede de delimitação do risco foi causado dolosamente pelo tomador do seguro ou do segurado, o que se traduz num facto impeditivo do efeito jurídico potenciado por aquele ocorrência, nos termos conjugados do art.º 46.º da LCS e do n.º 2 do art.º 342.º do CC».
Seguindo o mesmo raciocínio (indo talvez mais longe), conclui-se o seguinte no ac. do STJ, de 03.10.2013 (proc. n.º 2212/09.2TBACB.L1.S1, rel. Fernando Bento) a respeito de uma situação similar à que aqui nos ocupa: «I – Em contrato de seguro automóvel com cobertura facultativa de danos próprios, causados entre outros, por choque, a seguradora responde perante o seu segurado por quaisquer danos causados pelo embate do veículo, em circulação, em qualquer corpo fixo, desde que se não prove qualquer actuação dolosa do segurado (ou de pessoas por quem ele responde) na eclosão de tal embate. (…) III – Pela própria natureza das coisas deve ser presumida a natureza acidental de qualquer choque, colisão ou capotamento do veículo em circulação, incumbindo à seguradora demandada, o ónus de alegação e de prova de factos descaracterizadores do acidente».
Voltando ao caso concreto, está provado que no dia 2 de Dezembro de 2020, quando circulava pela berma da Rua ... (EN ...), em ..., Lousada, paralelamente ao eixo da via, o veículo seguro colidiu num muro baixo de pedra, paralelo à estrada, de proteção do fosso e conduta de linha de água, que atravessa a estrada (cfr. ponto 18 dos factos provados). Pese embora o uso do vocábulo “colidiu”, é manifesto que está aqui descrito um “choque”, para os efeitos da cobertura prevista na cláusula 39.ª, al. b), das condições gerais, e da cláusula primeira das condições especiais, ambas do contrato de seguro celebrado entre as partes, ou seja, um embate do referido veículo num corpo fixo (e não noutro corpo em movimento).
Assim, sem prejuízo do exposto supra, importa assinalar que não ficou apenas demonstrada a ocorrência de um embate no muro, mas também a dinâmica que imediatamente o antecedeu, ou seja, que esse embate ocorreu quando o veículo circulava na berma da estrada, paralelamente ao eixo da via, o que acaba por tornar ainda menos consistente a argumentação aduzida na sentença recorrida.
Está igualmente provado que, em virtude deste embate, o referido veículo sofreu danos na chapa e no motor (cfr. ponto 21 dos factos provados).
Nestes termos, afigura-se incontestável que a autora recorrente logrou fazer prova do evento integrador da cobertura por si invocada – a ocorrência de danos no veículo seguro resultantes do embate do mesmo num corpo fixo.
Em contrapartida, a ré seguradora não logrou demonstrar qualquer circunstância excludente da garantia, nomeadamente o dolo do condutor do veículo seguro por si alegado na contestação, ou seja, não logrou demonstrar que os danos foram intencionalmente causados. Na verdade, não ficou provado que o referido veículo VS tenha sido, propositadamente, conduzido de forma a aproximar-se, gradualmente, do limite direito da E.N. ..., atento o sentido ... / ... e, de seguida, a galgar a berma e, finalmente, a embater numa laje em granito, tendo em vista a voluntária produção de danos nesse carro, para sua posterior reclamação à ré no âmbito da apólice em causa nos autos (cfr. ponto 5 dos factos não provados).
Nestes termos, impõe-se concluir pela verificação dos pressupostos de que depende a obrigação da ré de indemnizar os danos abrangidos pelo risco de choque contratualmente coberto, não podendo subsistir a decisão recorrida. 4. Perante esta conclusão, importa determinar a quantum indemnizatório.
Partindo da premissa de que estamos perante uma situação de perda total, a autora considera que lhe é devida a quantia de 57.420,00 €, correspondente ao capital seguro (73.990,00 €) deduzido do valor do salvado (16.320,00 €) e da franquia estipulada (250,00 €).
Semelhante raciocínio foi adoptado pela seguradora quando propôs condicionalmente à autora a indemnização de 44.394,72 €, correspondente ao valor do seguro à data do sinistro, que afirmou ser de 60.964,72 €, deduzido do valor do salvado e da franquia (cfr. ponto 23 dos factos provados).
Sucede que, embora o capital seguro inicialmente estipulado fosse de 73.990.00 € (cfr. ponto 14 dos factos provados), provou-se que na data do sinistro em apreço nestes autos (02.12.2020) estava reduzido a 67.989,46 € (cfr. ponto 15 dos factos provados).
É certo que na carta junta como documento n.º 3, da petição inicial, para onde remete o citado ponto 23 dos factos provados, a ré seguradora afirma que o valor seguro à data do sinistro é de 60.964,72 €, nos termos do Decreto-Lei nº 214/97, de 16 de Agosto, diploma que regulada a alteração automática do valor do seguro dos veículos para determinação do valor da indemnização em caso de perda total.
Porém, como a própria ré reconheceu na contestação que apresentou, tendo o veículo VS menos de 5 anos de matrícula na data da celebração do contrato de seguro (de acordo com a própria apólice, este contato foi celebrado em 07.12.2019 e o referido veículo tem como data da primeira matrícula Dezembro de 2018), não havia lugar à redução automática do capital seguro, por via da aplicação da tabela de desvalorização prevista no artigo 4.º daquele diploma legal, durante as 3 primeiras anuidades do contrato, sem prejuízo da aplicação das cláusulas relativas à Redução e/ou Reposição de Capital em caso de Sinistro. E como também foi esclarecido pela ré na sua contestação, a redução do capital seguro para 67.989,46 € ocorreu por força da ocorrência de um anterior sinistro e do estipulado no artigo 47.º, n.º 1, das Condições Gerais da Apólice, nos termos do qual, em caso de sinistro, o montante da indemnização será abatido ao capital seguro, ficando disponível a parte restante, desde a data do sinistro até ao vencimento anual do contrato (sem que a autora tenha solicitado a reposição do capital do contrato, nos termos permitidos pelo n.º 2, da mesma cláusula 47.ª).
Pelo exposto, o valor a atender na determinação da indemnização devida pela perda total do veículo na sequência do choque apurado é de 67.989,46 €.
Importa ainda acrescentar que o valor venal/comercial do veículo “VS” à data em que ocorreu o sinistro (que o tribunal a quo fixou entre os 40.000,00€ e os 45.000,00 €, facto que a autora recorrente veio impugnar) se mostra, para este efeito, irrelevante.
De harmonia com o disposto no artigo 128.º do RJCS, que inaugura a secção intitulada Princípio indemnizatório, a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Dispõe, por sua vez, o artigo 130.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que, no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro. Nos termos do artigo 132.º, n.º 1, do referido RJCS, se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no artigo 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato.
O princípio indemnizatório assim regulado na lei constitui o regime regra de cálculo da prestação indemnizatória no âmbito do seguro de danos. De acordo com esse princípio, a prestação devida pela seguradora está sujeita ao limite do capital seguro e, simultaneamente, do dano. Visa-se, assim, garantir que o lesado seja ressarcido pelo prejuízo efectivamente sofrido e impedir que o seguro constitua fonte de rendimento para aquele
Contudo, como se alerta no ac. do STJ, de 03.05.2023 (proc. n.º 4280/21.0T8VIS.C1.S1, rel. António Barateiro Martins), «sendo tal “princípio indemnizatório” uma regra matricial do seguro de danos, comporta derrogações – podendo até dizer-se que, hoje, vale mais como declaração de princípios impeditiva de abusos, de enriquecimento excessivo e, no limite, de fraudes».
E assim é, desde logo, por força do artigo 131.º do RJCS, em cujo n.º 1 se preceitua que, sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no artigo 130.º, n.º 1, as partes podem acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado. Ressalvadas as situações em que o valor se mostra manifestamente infundado, prevê-se expressamente que a autonomia privada prevaleça sobre o princípio indemnizatório, assim obstando a uma aplicação estrita dos regimes de sobresseguro e subseguro previstas na lei.
Também o já citado Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto consagra derrogações ao princípio do indemnizatório, designadamente quando, no seu artigo 3.º, dispõe que a cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da alteração automática regulada nos artigos 2.º e 4.º, constitui a seguradora na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.
Mas também quando, no seu artigo 5.º, preceitua que o disposto nos artigos 2.º e 3.º não impede as partes contratantes de estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável.
Cremos ser esta a situação em apreço: a seguradora, no uso da sua liberdade contatual, não só aceitou que o valor inicial do capital seguro fosse fixado em 73.990,00 €, como acordou expressamente que o mesmo não seria, durante os três primeiros anos, sujeito às actualizações automáticas previstas na tabela de desvalorização que faz parte das condições particulares do contrato celebrado entre as partes.
Por conseguinte, depois de ter aceitado expressamente não desvalorizar durante 3 anos o valor seguro do veículo e de ter cobrado o prémio correspondente a um capital seguro de 73.990,00 € (entretanto reduzido para 67.989,46 € por força da utilização parcial daquele capital), não pode agora pretender responder por um valor inferior, alegadamente correspondente ao valor venal do veículo na data do sinistro.
De resto, a alegada “desvalorização” do veículo para 40 ou 45 mil euros nem sequer corresponderia à incidência das taxas de desvalorização previstas na referida tabela sobre o valor inicial do capital seguro, parecendo pressupor um valor inicial inferior ao efectivamente acordado.
Ora, como se afirma no ac. do STJ, de 03.05.2023, antes citado, «não tem lógico/racional que, no início do contrato, se possa aceitar acriticamente o valor ou capital que o tomador do seguro indica e, depois, as “desvalorizações periódicas automáticas” serem por referência ao ano e/ou ao valor de aquisição em novo: se, no início do contrato, o veículo já não é novo há logo que proceder, por aplicação da “tabela de desvalorização”, à determinação do valor da indemnização em caso de perda total, sendo este o capital seguro e cobrando-se o prémio correspondente». Como se acrescenta no mesmo aresto, a seguradora, «no âmbito dos seguros que confiram coberturas facultativas a danos próprios de veículos automóveis, não pode/deve aceitar acriticamente o valor ou capital indicado pelo tomador de seguro, cabendo-lhe, a partir dos elementos fornecidos pelo tomador de seguro, a determinação do valor da indemnização em caso de perda total e, em consequência, do valor do capital seguro», seja no início do contrato ou nas sucessivas renovações.
Em suma, o valor a atender para a determinação da indemnização devida pela perda total do veículo é o valor do capital seguro na data do sinistro: 67.989,46 €.
A este valor importa deduzir o valor do salvado, que a própria recorrente aceitou como indemnização, e o valor da franquia acordada, assim se fixando a indemnização em causa em 51.419,46 €.
Sobre esta indemnização, a autora entende que se vencem juros de mora, contados desde 24.12.2020 até efetivo e integral pagamento, à taxa aplicável aos créditos de que são titulares as empresas comerciais.
Resulta do documento n.º 23 da petição inicial, para o qual remetem os pontos 2 e 23 dos factos provados, que no dia 21.12.2020 a ré comunicou à autora a situação de perda total do veículo seguro, mas declarou não lhe ser possível assumir uma posição quanto à respectiva responsabilidade. Resulta, por sua vez, do documento n.º 12 da contestação, para o qual remete o ponto 25 dos factos provados, que no dia 29.01.2021 a ré comunicou à autora que, após averiguação, concluiu que o sinistro não ocorreu nos moldes participados e, por isso, declinou a sua responsabilidade. Na falta de outros elementos fatuais, apenas podemos concluir que, pelo menos nesta última data, a ré confirmou a ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências.
Assim, a sua obrigação de indemnizar os respectivos danos venceu-se 30 dias depois, nos termos do disposto nos artigos 102.º e 104.º do RJCS. Consequentemente, à quantia indemnizatória acima referida acrescem juros de mora, contados desde 01.03.2021 até integral pagamento, por força do artigo 804.º do CC.
Tais juros são calculados à taxa supletiva civil, prevista no artigo 806.º do CC, e não à taxa aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais, visto não estar em causa um acto comercial da autora, conforme exige o corpo do artigo 102.º do Código Comercial. 5. A autora recorrente pediu ainda a condenação da ré seguradora a pagar-lhe a quantia de 1.150,00 € pela privação do uso da viatura, desde a data do sinistro até 24.12.2020, acrescido de juros de mora à mesma taxa, desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Independentemente da posição que se adopte no debate que se vem travando na jurisprudência nacional a respeito da privação do uso de veículo automóvel enquanto dano indemnizável, é manifesto que este pedido não pode proceder no caso concreto.
Como vimos, não está aqui em causa o seguro obrigatório de responsabilidade civil por danos causados a terceiros, mas sim o seguro facultativo de danos próprios. Ora, a cobertura do dano de privação do veículo foi expressamente excluída desse seguro, como decorre da cláusula 40.ª, n.º 2, al. d), das condições gerais.
Nestes termos, impõe-se julgar improcedente este pedido.
Na procedência parcial da acção e, consequentemente, da apelação, as custas em ambas as instâncias são da responsabilidade da autora/recorrente e da ré/recorrida na proporção dos respectivos decaimentos, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, na procedência parcial do recurso, os juízes desta 2.ª secção judicial do Tribunal da Relação do Porto revogam a sentença recorrida e condenam a ré/recorrida a pagar à autora/recorrente a quantia de 51.419,46 €, acrescida de juros de mora, contados desde 01.03.2021 até integral pagamento, à taxa supletiva civil.
Custas da acção e da reconvenção por ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento.
Registe e notifique.
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Porto, 8 de Outubro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Raquel Lima
Lina Baptista