Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
HOMICÍDIO TENTADO
INTENÇÃO DE MATAR
PROVA
Sumário
I - A intenção de matar, tal como a fixação dos elementos subjetivos do crime, pertence ao âmbito da matéria de facto, e tal matéria de facto tem, necessariamente, de resultar da valoração global da prova sobre as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o crime foi cometido, para o que relevam os conhecimentos gerais, e, sempre que necessário, os conhecimentos específicos, científicos ou técnicos, através da prova pericial, e todos os que se integram nas regras da experiência comum, da lógica e normal acontecer, uma vez que a intenção de matar se integra nos factos subjetivos, que, não sendo confessados pelo arguido, resultam provados através das inferências dos factos objetivos provados relacionados com o modo de execução do crime (a chamada prova indireta). II - O local onde os factos ocorreram é um espaço pequeno. O arguido retira a arma do interior da bolsa onde a mantinha pronta a disparar, isto é, carregada e sem que se encontrasse em segurança. De imediato aponta a arma ao ofendido, empunhando-a com a sua mão direita e já com o dedo no gatilho, apoiando esta mão no braço esquerdo (ou seja, em posição de disparo). Não apontou para uma perna ou o pé ou até para o ar, como se apenas pretendesse assustar o ofendido, sendo que o poderia fazer (e tinha capacidade para o fazer, dada a sua experiência e habilitação relativamente a armas de fogo). Apontou de imediato, após retirar a arma da bolsa onde a guardava, em direção à pessoa do ofendido. Este, perante tal atitude e tentando defender-se, procura alcançar a arma a fim de evitar que o arguido disparasse. Mas o arguido não largou a arma em momento algum. A arma nunca cai da sua mão, e vem efetivamente a ser disparada. Para que isto acontecesse o dedo do arguido teve que se manter sempre no gatilho e este teve que fazer força suficiente. III - O arguido quis disparar a arma contra a pessoa do ofendido e quis tirar-lhe a vida, tendo premido o gatilho de forma voluntária, ou seja, o disparo da arma de fogo por parte do arguido não foi acidental, mas intencional.
Texto Integral
I - RELATÓRIO
Por acórdão proferido em 12 de junho de 2024, foi decidido, além do mais, o seguinte: A- Condenar A, pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 22.º, n.º 1 e 2, alínea b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, agravado pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a a d), 3.º, n.º 4, alínea b), e 86.º, n.º 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), numa pena de 7 anos e 6 meses de prisão. B- Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente, por provado, e, em consequência, condenar A no pagamento da quantia de 200,00€, a título de danos patrimoniais, e da quantia de 20.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescidas dos respetivos juros de mora às respetivas taxas legais, contados desde a data da notificação do pedido cível e da data trânsito em julgado da decisão, respetivamente, tudo até efetivo e integral pagamento. (…)
*
O arguido interpôs recurso do acórdão, tendo resumido as suas motivações nas seguintes conclusões: 1.º O recorrente foi condenado pela prática, e na forma tentada, de um crime de homicídio, pº e pº pelo art.º 131.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 22.º, n.º 1 e 2, al. b) e 73.º do CP, agravado pelas disposições dos art.s 2.º, n.º 1, al. a a d), 3.º, n.º 4, al. b), e 86.º, n.º 3 e 4, do RJAM, numa pena de 7 anos e 6 meses de prisão. 2.º No âmbito da matéria de facto e por via do consignado no art.º 412, n.º 3, especifica-se que deverão aditados 4 factos, como provados: (Que o recorrente não pretendia tirar a vida a V; Que o recorrente quando disparou, não foi porque quis disparar; Que o recorrente não efectuou os seis disparos; Que o recorrente quis que fosse prestado socorro à vítima), factos esses essenciais nos termos dos art.ºs 339.º, n.º 4 e 368.º, n.º 2, als. c) e e) do CPP e advindos de fls. 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 (auto de visionamento de vídeo e extração de fotogramas) e das declarações a fls. 181. 3.º No âmbito da matéria de direito, o crime de ofensa à integridade física cometido, está tipificado no art.º 143, n.º 1, do CP e deve o arguido face aos art.ºs 70.º e 71.º do CP, ser pelo mesmo condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, pelo que se mostram violados os art.ºs 131.º, 14.º, 26.º, 23.º e 73.º do CP. 4.º Na realidade a utilização de arma de fogo não configura por si só o previsto nos art.ºs 131.º e 23.º, pelo que a haver prática pelo crime previsto, seria o mesmo por via de dolo de matar, por parte do recorrente. 5.º Sem conceder, ainda que fosse condenado pelo crime de homicídio na forma tentada, deveria a condenação cifrar-se em pena não superior a 2 anos de prisão, atento o vertido no art.º 71.º do CP, disposição legal violada. 6.º A pena no âmbito do crime cometido com arma, deverá ser reduzida aos seus limites mínimos. 7.º Feito o cúmulo jurídico com as penas aplicadas parcelarmente, nos crimes de ofensa à integridade física simples e de crime cometido com arma, deverá o mesmo cifrar-se em 2 anos de prisão, atenta a conjugação dos art.ºs 77.º e 71.º do CP, disposições, por isso violadas. 8.º Sem conceder, ainda que o homicídio na forma tentada seja atendido, as penas parcelares deverão ser reduzidas nos seus termos, por força do art.º 71.º do CP, e por via disso, ser operado cúmulo jurídico, gerando a pena unitária de 2 anos de prisão, por via dos art.ºs 77.º e 71.º, do CP, por isso, violados. 9.º Haja ou não alteração da matéria de facto nos termos preconizados ao abrigo do art.º 412.º, n.º 3 e na matéria de direito, nos termos do art.º 412, n.º 2, ambos do CPP, encontram-se reunidos os pressupostos e os requisitos para que seja suspensa a execução da pena a aplicar, nos termos do art.º 50.º do CP, disposição legal violada. 10.º Nessa conformidade, deve o acórdão proferido, ser alterado nessa conformidade, julgando-se o recurso provido. É, pois e em suma, quanto nos parece. V. Excelências, decidindo, Farão JUSTIÇA.
*
Admitido o recurso por despacho de 19 de julho de 2024, a ele respondeu o M. P. concluindo nos termos que se seguem: 1ª – O arguido veio interpor recurso do Acórdão proferido nos autos, que o condenou nos termos acima indicados, pois, no seu entender, considera que a prova produzida foi incorretamente apreciada pelo tribunal, que os factos provados apontam para a prática de um crime de ofensa à integridade física e não para a prática de um crime de homicídio, na forma tentada, e agravado pelo uso de arma, que a pena concreta a aplicar deveria ser de 2 anos de prisão, a qual deveria ser suspensa na sua execução, com sujeição a deveres ou regime de prova, pelo que, sustenta que a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 131º, 14º, 26º, 23º, 70º, 71º e 73º, do CP. 2ª – Ao invés, entendemos que em qualquer das matérias não assiste razão ao recorrente. 3ª – No que respeita à impugnação da matéria de facto dada como provada, o Tribunal de recurso só pode alterar a mesma quando as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impuserem manifestamente uma decisão diversa da decisão recorrida. 4ª – Com efeito, o mecanismo previsto no art.º 412º, n.ºs 3 e 4, do CPP, destina-se tão só a corrigir aquilo que se verifica serem erros manifestos de julgamento e que resultam ostensivos da leitura do registo da prova, mas sem nunca fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção (v. Ac. do TRL de 18-02-2014 – processo n.º 1426/12.2GLSNT.L1). 5ª - Só é possível controlar a convicção do julgador quando ela se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e, em determinadas situações, dos conhecimentos científicos, dado que, a livre apreciação da prova não exclui, antes exige, que sejam observadas as regras da experiência e critérios de lógica. 6ª - Lido que foi o teor do segmento da decisão recorrida respeitante à motivação da factualidade relevante, constata-se que o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido, que não negou ter efetuado dois disparos e que um deles terá atingido Vítor Marques. 7ª - Por sua vez, neste segmento, para além do mais, também é referido que as imagens colhidas no interior do espaço não exibem dúvida ou equivoco, quando conciliadas com as declarações do Assistente. 8ª - Mais é dito que o arguido sabia, pela instrução de tiro que teve, que uma arma quando é sacada é com o objetivo de disparar. E mais sabia que o empunhar seguro de uma arma não é efetuado com dedo no gatilho, mas antes afastado do guarda mato, a não ser que o objetivo – como ocorreu no caso em apreço – fosse favorecer um disparo imediato. 9ª - É ainda mencionado neste segmento que da visualização do vídeo identificado e da sua análise, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas relativamente a considerar como provados os factos enunciados a I) e II) do segmento dos factos provados. 10ª - Constata-se assim que inexiste qualquer erro manifesto de julgamento e que resulte do registo da prova, ou que a convicção do julgador se mostra contrária às regras da experiência, da lógica ou da razão. 11ª - Por sua vez, tendo em conta tais regras da experiência comum, consideramos que a decisão recorrida se mostra manifestamente plausível. 12ª – Assim, segundo estamos em crer, o que se verifica no caso, é tão só uma apreciação divergente dos factos e da prova por parte do recorrente. 13ª - Só que, o recorrente não pode pretender substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, pois se o fizesse, por via de uma apreciação divergente dos factos e prova, sem estar em causa um erro manifesto de julgamento, conforme entendemos ser o caso, então estaria a usurpar a competência do julgador. 14ª – Donde, não tendo as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, a virtualidade de imporem uma decisão diversa, afigura-se-nos que o Tribunal de recurso não poderá alterar a matéria de facto que foi fixada. 15ª – É que o recurso da matéria de facto é tão só um remédio para reparar eventual erro cometido na definição dos fatos provados e não provados e que tenham relevância para a boa decisão, não sendo assim um novo julgamento. 16ª - Daí que, tendo o Tribunal fundamentado a matéria de facto provada nos termos que o fez, e que acima se indicou, afigura-se-nos que a decisão da matéria de facto é inatacável, não podendo o recorrente opor a sua convicção e sustentar que o Tribunal de recurso deve optar por ela. 17ª - Pelos motivos já indicados a conduta do arguido integra os elementos objetivos e subjetivos de crime de homicídio, na forma tentada, agravado pelo uso de arma e não do crime de ofensa à integridade física. 18ª - Na verdade, atendendo aos fundamentos que constam do segmento da motivação da matéria de facto, é manifesta a conclusão que o arguido atuou com intenção de tirar a vida a V, bem sabendo que a natureza do meio utilizado e a zona do corpo que pretendia atingir poderiam causar lesões suscetíveis de provocar a morte deste, resultado esse que quis e que representou. 19ª - Por isso, a conclusão a tirar é que a conduta do arguido integra, conforme referido, a prática de um crime de homicídio, na forma tentada, e não de um crime de ofensa à integridade física. 20ª - Por sua vez, o princípio do in dubio pro reo alegado, para além de ser uma garantia subjetiva, é também uma imposição dirigida ao próprio julgador, no sentido de que este se deve pronunciar favoravelmente ao arguido, quando não tiver formado uma certeza sobre os factos que são determinantes para a decisão da causa. Ou seja, em caso de dúvida, deve esta ser sempre valorada em favor do arguido, para além de que, este princípio é apenas aplicável em matéria de decisão de facto (v. Acórdão do STJ de 02-05-2002 – Processo n.º 611/02 – 3ª Secção). 21ª - Ora, atento o teor do segmento da Motivação de Facto da decisão recorrida, é de concluir que o Tribunal a quo não ficou com dúvidas de que os factos integradores da prática do crime de homicídio, na forma tentada, ocorreram e de que o arguido foi o seu autor. 22ª - Logo, alcançada que foi uma certeza, baseada no cumprimento das regras processuais, que se encontra inserida no segmento da motivação da matéria de facto dada como provada, não tinha, no caso, que aplicar o princípio do in dubio pro reo. 23ª – No que respeita à determinação da medida concreta da pena, é de atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal. 24ª - Por outro lado, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal. 25ª - Para além disso, as finalidades das penas visam a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme determina o disposto no artigo 40º, n.º 1, do Código Penal. 26ª - Assim, a medida da pena há de ser dada tendo por base a necessidade de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias (prevenção geral positiva ou de integração), sem, contudo, poder ultrapassar a medida da culpa, atuando depois e em última instância a prevenção especial de socialização como forma de determinar a medida da pena. 27ª - Por isso mesmo, na determinação da medida da pena, deverá atender-se às exigências de prevenção que satisfaçam as necessidades comunitárias de se punir o crime e, bem assim, de se realizarem as finalidades das penas, e será dentro da moldura de prevenção geral de integração que a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização (neste sentido cf. Acórdão do STJ de 20-09-2006, - processo n.º 03P4425, acessível em www.dgsi.pt). 28ª - No caso, se atendermos ao teor da decisão recorrida referente ao segmento que trata das consequências jurídicas do crime e escolha e determinação da medida da pena, e a toda a fundamentação que ali é indicada, temos que concordar que a pena de prisão que foi aplicada ao arguido, tendo como ponto de partida o tipo legal do crime e a respetiva agravação, se mostra justa e adequada a prevenir a prática de crimes de igual natureza, quer por parte do arguido, quer por parte da comunidade em geral. 29ª - Na verdade, convém sublinhar, que ao crime cometido pelo arguido corresponde, abstratamente, uma pena de prisão entre 2 anos, 1 mês e 18 dias, e 14 anos, 2 meses e 20 dias. 30ª – Por sua vez, face às necessidades de prevenção geral que se faziam sentir, bem como às necessidades de prevenção especial, relativamente diminutas, e ponderando ainda o grau de ilicitude dos factos, as condições pessoas do arguido, de estabilidade familiar e profissional, a sua personalidade e grau de culpa, e a modalidade dolo direto com que atuou, entendemos, como o Tribunal a quo entendeu, que se afigura justa, adequada e razoável, a pena de 7 anos e 6 meses de prisão que foi fixada. 31ª – O arguido parte do pressuposto, errado no nosso entendimento, que a prova que foi produzida aponta para a prática de um crime de ofensa à integridade física e não para a prática de um crime de homicídio, na forma tentada, agravado pelo uso de arma. E, por isso, sustenta a verificação de cúmulo jurídico e a aplicação das regras de punição do concurso de crimes, estabelecidas no art.º 77º, do CP. 32ª – Todavia, mesmo que por mera hipótese, se considerasse que se verificava a prática de crime de ofensa à integridade física, nunca existiria uma situação de concurso efetivo com o crime de detenção de arma proibida, pois o arguido é titular de licença de uso e porte de arma. 33ª – Para além disso, o art.º 86º, n.º 3, do RJAM, citado pelo arguido, não respeita a qualquer situação que possa determinar uma situação de concurso de crimes, mas sim uma gravação resultante do crime imputado ter sido cometido com arma. 34ª–Relativamente à eventual suspensão da pena, é de notar, pelos motivos já indicados, que consideramos que a pena de 7 anos e 6 meses de prisão que foi aplicada ao arguido se mostra justa, adequada e proporcional e em conformidade com as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir no caso concreto, pelo que, face do estabelecido no art.º 50º, n.º 1, do Código Penal, nunca a mesma poderia ser suspensa na sua execução. 35ª - Mas para a hipótese da pena se vir a fixar em medida não superior a 5 anos de prisão, como pretende o arguido, o que em abstrato seria possível, face à moldura penal abstrata aplicável, basta atender ao que consta da decisão recorrida relativa à fundamentação da pena concreta que lhe foi aplicada, para sustentarmos que não seria possível suspender essa mesma pena, considerando, entre o mais, as necessidades de prevenção geral intrinsecamente ligadas ao facto de se tratar de um crime contra a vida, conjugado com a situação de perigo resultante da detenção de armas, bem como, da responsabilidade advinda do facto do arguido ser titular de licença e uso e porta de arma, o que aumenta a sua responsabilidade face ao reconhecimento público da idoneidade que tutela a detenção de arma, bem como, o grau de ilicitude dos factos e a modalidade do dolo, no caso direto. 36ª – Por isso, não conseguimos encontrar justificação e fundamento para que, caso a pena de prisão viesse a ser fixada em medida concreta não superior a 5 anos de prisão, pudesse, ainda assim, haver lugar à formulação de um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido. 37ª – É que atendendo aos factos provados e à natureza e gravidade dos mesmos, afigura-se-nos que não será possível assumir um juízo de prognose favorável, em nome da ressocialização do arguido e que integra os fins das penas. 38ª - Justamente por tudo isso, entendemos que a simples censura do facto e a ameaça de prisão não realizavam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Por tudo o que vai exposto, consideramos que a decisão recorrida não violou qualquer das disposições legais invocadas pelo recorrente. Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida. Contudo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA.
*
Distribuído e autuado o processo neste Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Exmº. Sr. Procurador Geral Adjunto pronunciou-se pela improcedência do recurso e pela manutenção integral do acórdão recorrido
*
Cumprido o art. 417º nº 2 do CPP, nada tendo sido dito.
*
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
*
II - O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP[1] sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
*
Questões a decidir:
i) Impugnação da matéria de facto, art.º 412.º, n.º 2 e 3 CPP.
ii) Da qualificação jurídica dos factos;
iii) Pena aplicada
iv) Suspensão da execução da pena;
*
III – Fundamentação: A - É do seguinte teor da decisão de facto, e respetiva motivação, impugnada por via do presente recurso: I) 1.No dia 24 de junho de 2023, pelas 11 horas e 47 minutos, A, funcionário de V (sócio-gerente da sociedade comercial S, Lda), desempenhando funções de caixa no posto de abastecimento de combustível existente no estabelecimento comercial Intermarché, explorado pela S, Lda, sito na Quinta da Pinheiroca, Estrada do Rego, em Salvaterra de Magos, encontrando-se no interior da cabine de pagamento das bombas de combustível do aludido estabelecimento quando V aí compareceu, e por motivos relacionados com a cessação da prestação de trabalho, dirigiu-se a uma bolsa que aí se encontrava, junto ao seu posto de trabalho, de onde retirou o revólver marca TAURUS, calibre .32, com o n.º de série EY47564. 2.(…) ato contínuo, empunhando o referido revólver, devidamente municiado, apontou-o na direção de V, a cerca de um metro de distância deste. 3.(…) em seguida, V segurou o braço do arguido, tentando retirar-lhe o revólver da mão, envolvendo-se em confronto físico com este. 4.(…) nessa sequência, o arguido, mantendo sempre o revólver empunhado na direção de V, efetuou seis disparos, tendo um atingido a hemiface direita de V, junto ao olho. 5.(…) após, abandonou o local ao volante do seu veículo Opel Corsa com a matrícula (…..), deixando o revólver anteriormente utilizado. 6.A é titular de licença de uso e porte de arma da classe B1, e trazia consigo 9 (nove) munições de calibre .32, vindo a ser apreendido no local: um revólver marca TAURUS, calibre .32, com o n.º de série EY47564, contendo 6 (seis) cápsulas percutidas no interior do tambor e cinco projéteis deformados no interior da cabine de pagamento do posto de combustível. II) 7. A atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente. 8.(…) ao atuar da forma supra descrita, disparando uma arma de fogo em direção a V e a uma distância curta, quis tirar-lhe a vida, bem sabendo que a natureza do meio utilizado e a zona do corpo que pretendia atingir poderiam causar lesões suscetíveis de provocar a morte daquele, resultado esse que quis e representou, só não o tendo conseguido por razões alheias à sua vontade. 9.(…) mais sabia que a arma de fogo utilizada era suscetível de provocar, com um único disparo, danos corporais extensos. 10.(…) conhecia as caraterísticas do revólver que trazia consigo, bem sabendo que não a podia utilizar nas circunstâncias em que o fez, com o propósito de tirar a vida a Vítor Marques. 11.(…) sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. III) 12.Em consequência do disparo efetuado por A, V sofreu traumatismo na hemiface direita, com alojamento de fragmentos metálicos nos tecidos moles epicranianos da região periauricular e na hemiface à direita, com fratura afetando o arcozigmático direito e a cavidade glenoide com edemas, hematomas e enfisema dos tecidos moles regionais. 13.(…) estas lesões provocaram um período de doença fixável em 190 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral (190 dias) e profissional (190 dias). 14.(…) como consequências permanentes, resultaram para V a presença de múltiplos fragmentos metálicos subcutâneos na hemiface direita, cicatrizes, alterações sensitivas da hemiface direita e perturbações da audição ipsilateral, bem como dor intercostal à esquerda. 15.(…) tendo sido transferido para o Hospital de São José, em Lisboa, onde foi sujeito a cirurgia facial, com extração do projétil do interior da sua face direita. 16.A partir de dia 24/06/2023, o demandante teve de se deslocar inúmeras vezes ao hospital e centro de saúde, de modo a poder ser acompanhado e observado clinicamente. 17.No dia 02/07/2023, o demandante dirigiu-se ao Hospital de São José para retirar os pontos da cirurgia. 18.No seguinte dia 04/07/2023, o demandante teve uma consulta de reavaliação, também no Hospital de São José. 19.No dia 05/07/2023, o demandante compareceu a uma consulta no Hospital CUF Santarém, da qual resultou a sua colocação numa situação de tratamento em regime de incapacidade temporária absoluta (ITA). 20.No dia 18/07/2023, o demandante foi submetido a um exame de audiometria, no Hospital de São José, bem como a exames de timpanograma e tomografia computorizada aos ouvidos, no Hospital Cruz Vermelha. 21.Entretanto, a situação de tratamento em ITA do demandante transitou para tratamento com incapacidade temporária parcial (ITP) de 30%, no dia 20/07/2023. 22.(…) tendo importado um custo em deslocações de 200,00€. 23.V passou a viver com medo, inquietação e ansiedade, o que afetou diretamente a sua liberdade. 24.(…) deixou de conseguir descansar normalmente e, por vezes, tem insónias causadas pelo sucedido, bem como pesadelos e sobressaltos noturnos. 25.(…) começou a ter receio de andar sozinho na rua. 26.(…) com tendência para o isolamento, deixando de conviver com os amigos e colegas de trabalho, e estando revoltado mesmo no interior do seu seio familiar. 27.(…) com reflexos na sua autoestima, a qual ficou afetada pelas lesões sofridas. 28.(…) (…) começou a sentir dores no ouvido e na cabeça desde a data em que foi atingido pelo tiro, o que lhe retira igualmente uma certa qualidade de vida, uma vez que está sempre dependente de medicamentos para controlar as suas dores. 29.(…) não tem a mesma capacidade auditiva, porque o canal auditivo ficou estreitado, mas com tímpano íntegro, havendo perda auditiva de perceção. IV) 30.A mantém há 50 anos uma relação amorosa análoga à de cônjuge com D com quem tem 2 filhos, atualmente autónomos. 31.(…) optaram sempre por viver fisicamente separados, residindo D em Loures com os filhos, na residência dos seus pais, passando os fins de semana juntos. 32.(…) o contexto familiar é coeso, harmonioso e estruturado, existindo interajuda entre todos os elementos da família nuclear e alargada. 33.(…) o espaço residencial é uma moradia térrea composta por três assoalhadas, inserida na Casa Cadaval, quinta onde o recluso reside há cerca de 30 anos, desempenhando funções de guarda noturno, em troca de habitação, com eletricidade e água incluídos. 34.(…) desde outubro de 2015, desempenhava funções de caixa no posto de abastecimento de combustível sito no intermarché em salvaterra de magos, propriedade de V, desempenhando ainda como prestador de serviços para o ofendido a função de vigilante noturno de dois espaços comercias. 35.(…) atualmente vive com a sua mulher e subsistem da prestação social de rendimento social de inserção, no valor de 403€, recebendo ajuda alimentar da Associação de Beneficência Casas de S Vicente de Paulo e ajuda para aquisição de medicamentos por parte da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos. 36.(…) tem o 9.º ano de escolaridade e não efetuou qualquer formação profissional, tendo trabalhado nos últimos 30 anos como guarda noturno na Casa Cadaval. 37.(…) local onde granjeou estima, consideração e apreço de todos os que com ele se relacionaram. 38.(…) tem problemas de saúde associados à coluna (desloca-se com apoio de muletas) e aguarda consulta de neurocirurgia, por sofrer de dores incapacitantes; é hipertenso e tem excesso de ácido úrico, caracterizado por inchaço, inflamação, dor e sensibilidade nas juntas, afetando as articulações dos pés, base dos dedos, joelhos, tornozelos, pulsos e dedos das mãos. 39.(…) padece de apneia do sono, grave, dormindo com o apoio de um concentrador de oxigénio. 40.(…) assumiu alguns cargos de direção associativa como presidente da assembleia geral dos bombeiros voluntários de Salvaterra de Magos, presidente da assembleia geral dos guardas noturnos, foi fundador de uma cooperativa de habitação e de uma banda de música na localidade de Catujal, de onde é natural. 41.(…) foi ainda presidente de direção da sociedade recreativa catujense e presidente da associação de pais de uma escola frequentada pelos filhos também naquela localidade. 42.(…) assumia um cumprimento escrupuloso da função de guarda noturno, entregando a arma de serviço, no posto territorial de Marinhais, de manhã e levantando à noite. 43.(…) é visto pelos militares da GNR com quem se relacionou no posto, como uma pessoa cooperante, empenhado e disponível. 44.(…) não tem antecedentes criminais. §3.2 6E não se provaram os seguintes factos: 45.V deixou de auferir o seu salário mensal base, no valor de 1.200,00€ (mil e duzentos euros). 46.(…) além da retribuição base, o demandante auferia ainda, entre outros subsídios, um subsídio de alimentação no valor de 6,00€ (seis euros), subsídio este que o demandante também deixou de auferir por conta da conduta criminosa do demandando, e que perfaz a quantia de 540,00€ (quinhentos e quarenta euros). §3.3 7Visando a motivação da factualidade relevante, o Tribunal baseou a sua convicção na conjugação e análise crítica da prova produzida devidamente descrita na acusação, carreada documentalmente para os autos e resultante das atas de julgamento, gerada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo e, salvaguardadas as presunções legais e naturais, valorada em harmonia com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com as regras da experiência. 8 O Arguido prestou declarações. Ouviu-se o ofendido e assistente V e as testemunhas (P, T, S, C, N). Considerou-se a seguinte prova documental: relatório de exame pericial n.º 2023012272-CLC, do LPC da Polícia Judiciária – de fls. 115-154, relatório da perícia de avaliação do dano corporal – de fls. 310-312, relatório de exame pericial n.º 202305536-BBG, do LPC da Polícia Judiciária – de fls. 348-350, relatório da perícia de avaliação do dano corporal – de fls. 368-370, relatório de urgência – de fls. 9-10, auto de apreensão – de fls. 11-12v, disco externo com registos de videovigilância – de fls. 16, auto de visionamento de vídeo e extração de fotogramas – de fls. 18-40, auto de inspeção judiciária – de fls. 91-104, auto de apreensão – de fls. 105, informação de saúde do Hospital Distrital de Santarém relativa a V – de fls. 162-171, informação da Polícia de Segurança Pública – de fls. 187, documentação clínica referente, de fls. 189-195, fls. 329-338, fls. 339-342, fls. 351-356 e fls. 363-364. 9 Os elementos circunstanciais e de contexto espácio-temporal não são controvertidos. Tanto as declarações do Arguido, como as do Assistente descrevem essencialmente a mesma ambiência, espoletada pela cessação dos serviços de segurança que A prestava a V. Desagradado com a situação, o Arguido, detentor de licença de uso e porte de arma e deslocando-se habitualmente com uma, resolveu interpelar o Assistente. 10 A explica o contexto, explica a motivação para ter retirado o revólver do interior de uma bolsa, procura acentuar (ou mesmo hiperbolizar) o uso de expressões como “aleijado” ou “deficiente” por parte de V como forma de justificar a sua reação perante a humilhação sofrida, mas não explica, pois que diz que não sabe o que lhe passou pela cabeça, o que ocorreu entretanto, designadamente os disparos. Pese embora admita ter efetuado dois, crê que os outros quatro terão sido efetuados pelo próprio V, vista a direção assumida pelos tiros e documentada pela PJ. Com efeito, não negando o Arguido os dois disparos e que um deles terá atingido o V, impetra, ao cabo e ao resto, que não o pretendia matar, pois que não foi essa a sua intenção. 11 Acontece que as imagens colhidas no interior do espaço (conferir folhas 16, 18-40) não exibem dúvida ou equívoco, ademais quando conciliadas com as declarações do Assistente. 12 Primeiro, cumpre evidenciar a experiência que o Arguido possui no manuseamento de armas, quer por ser titular de licença, quer, sobretudo, pelo número de anos que exerceu a profissão de guarda noturno. E, portanto, sabe manusear e sabe o potencial lesivo que uma arma possui. Mais, sabe, pela instrução de tiro que teve, que uma arma quando é sacada é com o objetivo de disparar. E, mais ainda, sabe que o empunhamento seguro de uma arma não é efetuado com o dedo no gatilho, mas antes afastado do guarda mato, a não ser que o objetivo – como ocorre no caso em apreço – seja favorecer um disparo imediato. 13 Segundo, resulta patente da visualização do vídeo [ficheiro: portaria_20230624113259(001)] que A desloca-se, sem hesitação, à bolsa para retirar a arma. E retira-a sem hesitação. Até exibe, apesar da sua difícil mobilidade, um passo mais apressado. 14 Terceiro, quando a retira, não se limita a empunhar a arma. Empunha-a, logo com o dedo junto ao gatilho, e na direção de V, o qual está inclusivamente com uma das mãos no bolso (numa atitude perfeitamente indefesa). 15 Quarto, quando V esboça uma reação, natural e instintiva, e caminha na direção do Arguido, este, imediatamente, procura puxar o ofendido para junto de si e, permanecendo com o dedo no gatilho, coloca a sua mão direita (que empunhava o revólver) por cima do seu braço esquerdo, servindo este de apoio, num gesto de quem não pretende falhar o disparo. Mais, sabe que está a apontar na direção da cabeça da vítima e, como tal, a probabilidade de um disparo letal é sobremaneira incrementada. 16 Quinto, bem se sabe que o peso do gatilho de um revólver é de vários quilogramas e, por isso, diminui a hipótese de disparo acidental, sendo certo que resulta patente das imagens que o cão não está armado. Isto é, A quando disparou foi porque quis disparar. Em circunstância alguma se denota que o disparo possa ter sido provocado pela “refrega” com V. 17 Sexto, em momento algum, à exceção daquele em que fica na posse do revólver (quando o Arguido abandona as instalações), se percebe que V tem domínio sobre a arma, de modo que pudesse ter sido ele a efetuar os quatro disparos, como sustenta A. Diga-se que tal aspeto seria por demais irrelevante, pois que não muda a intenção e vontade do Arguido. 18 Sétimo, o Arguido só não concretizou os seus intentos, porque o disparo que atingiu a face de V não foi fatal. E, em seguida, quando o ofendido cai no chão, consegue segurar o cano do revólver e, assim, evitar que os quatro disparos seguintes, os quais só podem ter sido efetuados por A, não o atingissem. 19 Oitavo, a posição corporal exibida pelo Arguido, enquanto V está deitado de costas no chão, não é de alguém que não sabe o que lhe está a passar pela cabeça. É, precisamente, o gesto de alguém que mantém a intenção de tirar a vida a outrem, pretendendo imobilizar a vítima e continuando a apontar o revólver à zona da cabeça. Tanto assim que abandona o local sem prestar o socorro à vítima ou contactar a emergência médica, pese embora se tenha apresentado de imediato no posto territorial da GNR, dando conta do sucedido (conferir auto de notícia de folhas 3). 20 Pelas sobreditas razões, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas relativamente a considerar como provados os factos enunciados a I) e II). 21 Quanto aos factos enunciados a III) resultam da documentação clínica e relatórios de avaliação de dano corporal, das declarações do Assistente, bem como – escassamente – do depoimento da testemunha P. Concretamente, relativamente às lesões no canal auditivo, o Tribunal optou por dar como reproduzido o teor do relatório de consulta junto com o pedido de indemnização civil. Por outro lado, é certo que o Demandante não concretizou os gastos com as deslocações, mas crê-se que o valor de 200,00€ é perfeitamente ajustado ao número de deslocações efetuadas e devidamente articuladas no pedido. Ainda a propósito dos factos atinentes ao pedido de indemnização civil, importa referir que não foi esboçada qualquer prova quanto aos salários que deixou de auferir, ou mesmo quanto ao salário que auferia. 22 Quanto aos factos enunciados sob o ponto IV, resultam das declarações do Arguido, dos depoimentos das testemunhas por ele arroladas, as quais revelaram conhecimento acerca de alguns aspetos da vivência pessoal e profissional de A, do relatório social [10485108], cujo teor é em boa parte reproduzido nos factos, bem como do certificado do registo criminal [10672951]. 23 E mais não foi levado à matéria de facto por não oferecer relevo, por ser de teor conclusivo ou por configurar juízos de Direito.
*
Apreciação do mérito do recurso
i) Impugnação da matéria de facto:
O recorrente defende existir erro de julgamento incidente sobre a intenção de matar, já que contrariamente ao que foi considerado provado pelo tribunal a quo, o disparo não foi intencional, mas sim acidental.
Defende que este tribunal de recurso deve considerar provados os factos que enuncia: - Que o recorrente não pretendia tirar a vida a V; - Que o recorrente quando disparou, não foi porque quis disparar; - Que o recorrente não efectuou os seis disparos; - Que o recorrente quis que fosse prestado socorro à vítima,
Indica para tanto as imagens que identifica na sua motivação, que interpreta a avalia e donde retira a conclusão que verteu nos referidos factos transcritos.
O recurso da matéria de facto não está previsto na lei como um direito ilimitado tendente à reapreciação do julgamento ou repetição do julgamento na segunda instância. Este recurso foi concebido e deve ser usado como remédio jurídico quando o julgamento realizado seja manifestamente erróneo. Deste modo, o tribunal de recurso apenas intervém de forma a corrigir erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, devendo proceder à sua correção se for caso disso. Não se trata, pois, de um novo julgamento da matéria de facto, antes sendo a forma de sanar os vícios de julgamento em primeira instância, como sejam, erro manifesto no julgamento no caso em que se dê como provado facto com base em depoimento de testemunha que não o afirmou, ou com base em depoimento de testemunha que declarar algo que apenas lhe foi relatado por terceiro, ou ainda com base em valoração de prova proibida, etc. Sobre o erro de julgamento, conceito e limites, o Ac. da Relação de Lisboa de 04-02-2016, Proc. n.º 23/14.2PCOER.L1-9, Relator Antero Luís[2], disponível in www.dgsi.pt.
O recurso da matéria de facto não se destina, assim, a postergar o princípio da livre apreciação da prova, com consagração expressa no artigo 127º do C. Processo Penal.
A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade e imediação com que decorre o julgamento em primeira instância. Aquela tem por limites as regras da experiência comum e a obediência à lógica, sendo que, se face à prova produzida, for possível mais do que uma conclusão, a decisão do Tribunal a quo que, devidamente fundamentada, se basear numa das possíveis, é válida.
Ora, o erro de julgamento pode suscitar dois tipos de recurso[3], embora com alcances diferentes e não confundíveis[4]:
- Um com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o art.º 410º/2 do C.P.P (impugnação em sentido estrito);
- E outro que visa a reapreciação da prova produzida, ao abrigo do art.º 412º/3 do C.P.P (impugnação em sentido lato).
O recorrente indica lançar mão da impugnação alargada ou em sentido lato já que se refere expressamente ao disposto no art.º 412.º, n.º 3 do CPP, pelo que cumpre iniciar a apreciação e decisão do recurso por esta questão, donde, aliás, derivam algumas das outras suscitadas.
Dispõe o nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, relativo à impugnação em sentido lato “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.
Da análise deste preceito legal resulta que o recorrente, quando impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do art.º 412º do C.P.P, tem que especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como indicar as provas que, no seu entendimento, impunham decisão diversa da recorrida e aquelas que devem ser renovadas.
Por sua vez a norma indicada, dispõe no seu n.º 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens[5] em que se funda a impugnação.
Por sua vez, determina o 364.º, n.º 3 - Quando houver lugar a registo áudio ou audiovisual devem ser consignados na ata o início e o termo de cada um dos atos enunciados no número anterior.
No presente caso, o recorrente fez referência aos concretos factos que em seu entender devem ser julgados provados e inseridos no elenco dos provados, não indicando, contudo os factos do elenco dos provados que foram erradamente julgados, como deveria, já que como se verifica da análise dos factos provados e daqueles que o arguido pretende ver assim considerados, alguns são a antítese dos outros, embora o arguido os descreva de forma mais assertiva ou conclusiva se quisermos. Isto é ao invés da indicação dos factos erradamente julgados limita-se a indicar os como deveriam ter sido julgados determinados factos, sendo certo que a mera introdução dos que indica no elenco dos provados sem que daqueles se retirassem os que estão em oposição com estes enfermaria a decisão de contradição insanável. É que de acordo com o disposto no artigo 412.º, n.º 3 o recorrente deve indicar os factos erradamente julgados e como o deveriam ter sido, não sendo suficiente a indicação da segunda e última parte.
Contudo, não obstante o correto e devido corresponder à concreta indicação dos factos constantes do elenco dos provados que erradamente assim foram julgados e concretização do modo como deveriam ter sido, não se rejeita a impugnação dado que se alcançam os que, por contraposição, o recorrente entende terem sido julgados provados erradamente.
O recorrente indica as imagens de onde retira a conclusão que o disparo que atingiu o ofendido não foi intencional, mas acidental, já que durante 7 segundos poderia ter disparado e não o fez, só o tendo feito, envolvido com o ofendido, em desequilíbrio.
Pese embora se perceba a interpretação que o arguido/recorrente faz das imagens a verdade é que as imagens indicadas como prova determinante do julgamento dos factos que indica nos termos em que defende, não impõem tal valoração/leitura/interpretação.
É sabido que a intenção de matar, tal como a fixação dos elementos subjetivos do dolo pertencem ao âmbito da matéria de facto (v. Acs. do STJ de 07-03-2002, Processo n.º 2358/01-5, de 11-02-1993, Processo n.º 43146, de 21-04-1994, Processo n.º 46310, de 21-04-1994, Processo n.º 46310, de 02-10-1996, Processo n.º 46679, de 13-11-1996, Processo n.º 48510, de 21-01-1999, Acs STJ ano VII Tomo I, p. 198, por seu turno, citados no Ac. do STJ de 07.11.2002, in http://www.dgsi.pt).
Esta matéria de facto tem necessariamente de resultar da valoração global da prova sobre as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o crime foi cometido, para o que relevam os conhecimentos gerais, e sempre que necessário os conhecimentos específicos científicos ou técnicos, através da prova pericial, e todos os que se integram nas regras da experiência comum, da lógica e normal acontecer, uma vez que a intenção de matar se integra nos factos subjetivos, que, não sendo confessados pelo arguido, resultam provados através das inferências dos factos objetivos provados relacionados com o modo de execução do crime – a chamada prova indireta.
Como se explica no Ac. do TR Lisboa de 18-05-2022, Proc. 101/17.6SULSB.L1-3, O juízo de inferência converter-se-á em verdade convincente se a base indiciária, plenamente reconhecida mediante prova directa, foi integrada por uma pluralidade de indícios (embora excepcionalmente possa admitir-se um só se o seu significado for determinante), que no confronto outros possíveis contraindícios, estes não neutralizem a eficácia probatória dos factos indiciantes e que a associação de uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum sustente uma conclusão inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano ( neste sentido, Euclides Dâmaso Simões, em «Prova indiciária», na Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss., José Santos Cabral, «Prova indiciária e as novas formas de criminalidade», na Revista Julgar, n.º 17, 2012, pág. 13, Marta Sofia Neto Morais Pinto, em «A prova indiciária no processo penal, na Revista do Ministério Público, n.º 128, out.-dez. 2011, pp. 185-222; Paulo de Sousa Mendes, A prova penal e as Regras da experiência, Estudos em Homenagem ao prof. Figueiredo Dias, III, p.1002). Tal como o Tribunal Constitucional vem decidindo, o artigo 127º do Código de Processo Penal permite o recurso a presunções judiciais, é compatível com a presunção de inocência, consagrada no artigo 32º nº 2 da Constituição, e ainda com o dever de fundamentar as decisões judiciais, imposto pelo artigo 205º nº 1 da Constituição ( Ac. Tribunal Constitucional nº 391/2015, em DR nº 224, II Série, de 16/11/2015, e Ac. do TC nº 521/2018 de 17 Out. 2018, Processo 321/2018 http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20180521.html).
Para este efeito há que ter conta todo o circunstancialismo relacionado com os factos, local, desenvolvimento dos acontecimentos, comportamento do arguido, anterior e posterior aos factos, factos básicos e do conhecimento comum relacionados com o manuseamento e disparo de uma arma.
Deste modo, há que ter atenção que o local onde os factos ocorreram é um espaço pequeno. O arguido retira a arma do interior da bolsa onde a mantinha pronta a disparar, isto é, carregada e sem que se encontrasse em segurança, o que, é perfeitamente visível das imagens de vídeo, faz de forma bastante ágil tendo em conta a sua limitação física (também visível de um dos vídeos do exterior quando se encaminha para o seu veículo automóvel). De imediato aponta a arma ao ofendido, empunhando-a com a sua mão direita e já com o dedo no gatilho, apoiando esta mão no braço esquerdo! Ou seja, em posição de disparo.
Não apontou para uma perna ou o pé ou até para o ar, se apenas pretendesse assustar o ofendido, sendo que o poderia e tinha capacidade para o fazer dada a sua experiência e habilitação relativamente a armas de fogo. Apontou de imediato, após retirar a arma da bolsa onde a guardava, em direção à pessoa do ofendido. Este perante tal atitude e tentando defender-se, procura alcançar a arma a fim de evitar que o arguido disparasse. Mas o arguido não largou a arma em momento algum. A arma nunca cai da sua mão e vem efetivamente a ser disparada. Para que isto acontecesse o dedo do arguido teve que se manter sempre no gatilho e este teve que fazer força suficiente, já que como bem se refere acórdão recorrido o peso do gatilho de um revólver é de vários quilogramas, exatamente para evitar disparos acidentais, carecendo de ser impressa força para ser acionado e arma disparada.
Isto dito, e analisadas as imagens indicadas pelo arguido, não é possível concluirmos pela verificação do erro de julgamento de facto indicado, já que as mesmas não impõem a conclusão que o arguido invoca. Antes pelo contrário, das mesmas retira-se que o arguido podia ter-se arrependido de ter sacado e apontado a arma, ao ver que o ofendido se defendida e lha tentava tirar, e não o fez. Após 7 segundos de envolvimento disparou, quando teve oportunidade para abandonar a resolução de atirar, caso esta intenção se devesse a um mero impulso. Mas não. As imagens acabam por criar a convicção sólida de que o arguido efetivamente quis disparar a arma contra a pessoa do ofendido e quis tirar-lhe a vida, tendo premido o gatilho de forma voluntária, premindo a necessária força para o efeito.
Aqui chegados, concluímos que o disparo da arma de fogo por parte do arguido não foi acidental, mas intencional e que o modo como a situação ocorreu, quer o antes no que ao estado da arma diz respeito – carregada com os correspondentes projeteis e sem estar travada-, quer ao durante - no que ao envolvimento com o arguido diz respeito, quer ao depois dos tiros, porquanto o arguido sai do espaço onde se encontrava com o ofendido, entra no seu veículo e abandona o local (o que é perfeitamente visível nos vídeos que se encontram nos autos), querendo o arguido retirar a vida ao ofendido.
No que ao número de disparos diz respeito e à vontade de o arguido os realizar nada mais há a acrescentar relativamente ao que se expendeu sobre o tiro com que acertou no ofendido. Para que uma arma seja disparada é necessário que o gatilho seja acionado, premido, com força suficiente para o efeito, não sendo adequado um empurrão ou um qualquer desequilíbrio. Toda e qualquer ação de disparo com uma arma como a usada pelo arguido, carece de uma ação forte para o efeito e por isso, nada resultando em contrário da prova produzida, as regras da experiência, da lógica e do conhecimento sobre o manuseamento de armas, intencional.
Finalmente no que ao facto indicado pelo arguido - Que o recorrente quis que fosse prestado socorro à vítima – igualmente o mesmo falece perante toda a prova produzida. Note-se que no vídeo do exterior, e assim identificado na pen drive junta aos autos, é perfeitamente visível o arguido a sair do local onde se encontrava com o ofendido e onde ocorreu a contenda e os disparos, entrar no seu veículo e abandonar o local, sem que em momento algum tenha pegado em qualquer objeto de comunicação móvel – telemóvel – a fim de chamar assistência. Sabemos, está documentado nos autos, que o arguido voluntariamente se dirigiu à GNR, mas este facto não pode ser entendido como tendo diligenciado por assistência ao ofendido, o que o arguido acaba por reconhecer quando apenas alega que (…) que se afastou de V, dirigiu-se e imediato às autoridades, contando o sucedido e entregando-se a estas (pág. 4 do seu recurso).
Assim, nada mais nos resta que julgar improcedente esta questão.
*
Vício de julgamento previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.
Improcedendo a impugnação da matéria de facto, apesar de cumprido minimamente o disposto no art.º 412º nºs 3 e 4 do C. P. Penal, pode ainda este Tribunal de Relação proceder à modificação da decisão proferida em sede de matéria de facto se se verificarem os vícios a que alude o nº 2 do art.º 410º do C. P. Penal.
Resulta da letra do art.º 410.º do CPP que, qualquer dos vícios a que alude o seu nº 2, tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, sendo que, por regras da experiência comum deverá entender-se as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece.
Analisada a decisão recorrida é seguro que a mesma não enferma dos vícios previstos nas al.s a) e b) do n.º 2 do art.º 410.º, a saber: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Analisemos o vício de julgamento do erro notório na apreciação da prova, art.º 410.º, n.º 2, al. c) do CPP.
Verifica-se este vício quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum ou quando se aponta como justificador do facto julgado uma prova enunciada e descrita no texto da própria decisão de onde se pode retirar que não pode servir de prova ao dito facto. E este erro de julgamento, que tem que ser notório tem que resultar impreterivelmente do próprio teor da sentença; existe ainda este erro, quando considerado o texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras de experiência comum se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal.
Ou seja, ocorre este vício quando se dão por provados factos que face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzem uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e por isso incorreta, quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do “in dúbio” (cf. Ac. do S.T.J de 24.3.2004 proferido no processo nº 03P4043 em www.dgsi.pt, Ac. do S.T.J 3.3.1999 in Proc. 98P930 e Ac. da Rel. Guimarães de 27.4.2006 in proc. 625/06) ou quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de “leges artis” (cf. Ac. da Rel. Porto de 2.2.2005 no proc.0413844 e da Rel. Guimarães de 27.6.2005 no proc. 895/05-1ª).
Da leitura atenta do texto da sentença recorrida em especial da matéria de facto provada e não provada e da sua fundamentação, o que se pode constatar com clareza e desde já, é que a análise crítica da prova e a decisão de facto constante da decisão e a sua motivação/justificação está bem assente nas regras da experiência comum e da lógica, fazendo uma leitura integrada e conjugada de todos os meios de prova contraditados em audiência e respeitantes a cada um dos ilícitos identificados e sobre os quais recaiu a atividade judicial.
Não houve da parte do Tribunal a quo qualquer falha ou desrespeito das regras legais e dos princípios gerais de direito na valoração da prova, não padecendo, por isso, a decisão de qualquer erro na apreciação da prova.
Os factos resultaram provados porque o Tribunal, analisando a prova produzida de harmonia com a lei se convenceu que eles assim ocorreram.
Deste modo, a convicção do Tribunal a quo afigura-se-nos ter sido uma convicção racional, que foi formada de acordo com os critérios lógicos e objetivos, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado no art.º 127º do C.P.P – ao abrigo do qual toda a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Dito de outro modo, o Tribunal ao valorar como valorou a prova produzida em audiência, mais concretamente as declarações do arguido e depoimentos das testemunhas em conjugação com os documentos expressamente indicados na motivação de facto, não violou qualquer regra da experiência ou da lógica. Valorou livremente as declarações e depoimentos, revelando que uns lhe mereceram maior credibilidade que outros. E está tudo conforme com o princípio da livre convicção do julgador consagrado no art.º 127.º do CPP, uma vez que o valor da prova não depende da sua natureza, mas sobretudo da credibilidade que se confere às mesmas, credibilidade que, no caso, está conforme com a restante prova produzida e as regras da experiência comum.
Como se disse já, resulta claramente da leitura das motivações do recurso do MP e das suas conclusões, que este no fundo, tal como já acima se disse, discorda é da convicção do Tribunal a quo e pretende fazer vingar a sua visão sobre a prova produzida e os factos que se devem dar como provados e como não provados.
De acordo com o princípio da livre apreciação da prova que domina o nosso sistema (por oposição ao regime da prova legal) não existem normas que determinam o valor ou a eficácia probatória a atribuir a cada meio probatório, com exceção da prova pericial.
Nessa medida a atribuição de maior força a um meio de prova depende apenas da convicção do julgador, desde que se mostre de acordo com a experiência comum.
O Tribunal a quo é sempre o que se encontra mais apto para apreciar a prova, pois é este que ouve e vê as testemunhas, as suas reações, as suas pausas, os seus gestos.
O local e o momento onde por excelência se aferem e podem ser apreciadas valorativa e criticamente as provas, é a audiência e julgamento em que o julgador dispõe de melhores condições para apreciar de perto a prova que se vai produzindo (princípio da imediação da prova), ou a falta dessa prova.
No caso em apreço, dissemos já, porque assim consideramos, a decisão recorrida, encontra-se bem fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e percetível, não se vislumbrando qualquer incorreta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que lhe mereceram as declarações e depoimentos prestados em conjugação com a análise das demais provas e regras da experiência comum.
Como é do conhecimento geral e já acima ficou dito, a prova é apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consignado no art.º 127º do C.P.P onde claramente se pode ler “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Estamos, pois, em sede de um certo poder discricionário do Juiz, que “só pode ser atacado em função de vícios típicos endógenos da sentença ou erros de direito, ou claros erros de julgamento”, os quais no caso presente não existem.
Nada, pois, a apontar ao processo de valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, já que o mesmo não se baseou em provas proibidas ou a métodos proibidos de prova, violando qualquer das regras que disciplinam esta matéria nos artigos 124º a 139º do C.P.P e conduzindo por essa via a uma prova ilegal.
Aqui chegados e em jeito de conclusão sobre esta questão se conclui sem qualquer margem para dúvidas que a decisão de facto não está ferida de qualquer dos vícios de julgamento, mormente do vício do erro notório na apreciação da prova, antes existe e resulta do recurso uma discordância por parte do recorrente relativamente à formação da convicção do juiz. Contudo, de acordo com a jurisprudência e a doutrina desde que seja possível mais do que uma leitura ou avaliação da prova em conformidade com as regras da experiência e da lógica, a realizada pelo tribunal a quo, desde que conforme com tais regras, cf. art.º 127.º e 410.º, n.º 2 do CPP, é válida e deve ser mantida.
Os depoimentos, vídeos, imagens, e documentos não são avaliados de forma desgarrada. São analisados e avaliados tendo em conta a restante prova produzida, pelo que muitas vezes um depoimento apenas é relevante em parte, não porque a pessoa em causa esteja a mentir, mas porque o que relata não se coaduna com a restante prova produzida que se mostra mais conforme com factos objetivos já adquiridos, prova pericial e ou regras da experiência e da lógica. Ou seja, a análise e valoração da prova é uma operação complexa realizada de forma conjugada à luz das regras da experiência comum e da lógica.
E o que podemos dizer sobre a análise da prova realizada pela primeira instância é que o tribunal indica os depoimentos e em que parte lhe mereceram credibilidade analisando a prova de forma conjugada com apelo às regras da experiência e da lógica.
Assim, não podemos, por esta via, alterar a matéria de facto considerada provada pela primeira instância dado que não nos encontrarmos perante um erro de julgamento nos termos expostos[6].
Não padece, pois, a decisão recorrida do vício previsto na alínea c) do nº 2 do art.º 410º do C. P. Penal (erro notório na apreciação da prova).
*
ii) Da qualificação jurídica dos factos:
O arguido defende que não praticou qualquer crime de homicídio na forma tentada, mas tão somente um crime de ofensa à integridade física simples, já que defende não existe intenção de matar.
É necessário ter em linha de conta que esta qualificação jurídica dos factos realizada pelo arguido pressupõe a procedência do que defende quanto à não existência de intenção de matar, e como resulta do que se expôs supra, a impugnação da decisão de facto naufragou, mantendo-se na íntegra o julgamento de facto nos exatos termos constantes da decisão recorrida, e por conseguinte está demonstrada a intenção de matar.
Na verdade, o arguido não alega em momento algum do seu recurso que os factos considerados provados não são suscetíveis de preencher os elementos constitutivos do tipo legal de crime de homicídio na forma tentada. O que defendia é que não se havia demonstrado, até porque não teve, qualquer intenção de matar, o que não se apurou.
Assim, nada mais há que apreciar no que à qualificação jurídica dos factos diz respeito já que pressuponha a procedência da impugnação de facto incidente sobre a intenção do arguido na prática dos factos.
*
iii) Medida da Pena:
Defende o arguido que colaborou ativamente na descoberta da verdade, invocando o teor da motivação para demonstração do que alega, a inexistência de antecedentes criminais, o que impõe que as penas sejam fixadas no mínimo legal, embora na sequência da qualificação jurídica que o mesmo efetuou no pressuposto da procedência da impugnação de facto que apresentou: Preconizada que fica a tipificação do art.º 143, n.º 1 e art.º 86.º, n.º 3 do RJAM, temos que tal cúmulo deverá cifrar-se nos mínimos legais.
A referência ás penas parcelares e pena única deve apenas a lapso por parte do arguido, uma vez que o arguido vinha acusado da prática de um crime de em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 22.º, n.º 1 e 2, alínea b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, agravado pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea aad), 3.º, n.º 4, alínea b), e 86.º, n.º 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), assim tendo sido condenado, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Na verdade, vejamos a qualificação jurídica dos factos e a determinação da pena concretamente aplicada ao arguido, sendo certo que sempre haveria que apreciar se esta ultrapassou o limite da culpa e se violou os comandos consagrados no art.º 71.º do CP, invocado pelo arguido. 24 Assente que está a factualidade relevante, cumpre avançar na subsunção ao Direito, adquirida a imputação ao arguido A da prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 22.º, n.º 1 e 2, alínea b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, agravado pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea aad), 3.º, n.º 4, alínea b), e 86.º, n.º 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro). 25 O tipo criminal de homicídio previsto no artigo 131.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe o seguinte: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”. 26 Por seu turno, vislumbra-se uma tentativa quando o agente praticar atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se, como sejam os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os idóneos a produzir o resultado típico, ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam atos das espécies indicadas nas alíneas anteriores (conferir artigo 22.º, do Código Penal). Tal tentativa é punível se ao crime consumado respetivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão, e sempre que não for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime (conferir artigo 23.º, do Código Penal). 27 Cumpre ainda notar o disposto no artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, quando refere que as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma. Sofre, ainda, a mesma agravação quem se encontrar autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente quanto ao uso da arma – conferir artigo 86.º, n.º 4, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições. 28 A arma usada está catalogada como arma da classe B1 nos artigos 2.º, n.º 1, alínea aad) e 3.º, n.º 4, alínea b), do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro). 29 Ora, resultou provado que A disparou uma arma de fogo na direção de V, a cerca de um metro de distância deste, atingido-o na hemiface direita, junto ao olho. Mais resultou que, com essa ação, pretendeu tirar-lhe a vida, bem sabendo que a natureza do meio utilizado e a zona do corpo que pretendia atingir, poderiam causar lesões suscetíveis de provocar a morte, o que quis e representou, só não o tendo conseguido por razões alheias à sua vontade. Desta forma, está perfectibilizada a prática do crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, n.º 1, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, agravado pelo uso de arma, conforme previsto no artigo 86.º, n.º 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições. 30 Em face do exposto, considerada a matéria de facto que resultou provada, verificados que estão os elementos objetivo e subjetivo do tipo, e não havendo quaisquer causas que excluam a ilicitude ou a culpa, forçoso se torna concluir que o arguido A incorreu na prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 22.º, n.º 1 e 2, alínea b), 23.º e 73.º, todos do Código Penal, agravado pelas disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea aad), 3.º, n.º 4, alínea b), e 86.º, n.º 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro). §5 31 Os critérios a observar para as consequências jurídicas do crime, escolha e determinação da medida da pena impõem, à luz do disposto no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida de qualquer pena terá como pressuposto inicial alcançar a finalidade a que a pena criminal se reconduz na sua intrínseca realidade ambivalente, avultando a prevenção geral positiva ou de integração, como traduzindo uma ideia de que a pena aplicada ao agente deve manter e reforçar a confiança da comunidade de paz na validade e eficácia das normas jurídico-penais como instrumentos de tutela de bens jurídicos, assim se aferindo um limite mínimo para restabelecer tal confiança e um limite máximo como ponto ótimo da estabilização das expectativas comunitárias, antevendo a culpa sempre enquanto limite inultrapassável e redutor de tal ponto ótimo, assumida a necessidade de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), através da sua adesão aos valores e princípios da comunidade, como pêndulo aritmético da antedita moldura de prevenção – conferir JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo II, Coimbra Editora, 2009, pp. 238/45 e MARIA JOÃO ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, 41/8. 32 Como já acima se deixou expresso, à prática do crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, n.º 1, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, agravado pelo uso de arma, conforme previsto no artigo 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, corresponde uma pena de prisão entre 2 anos, 1 mês e 18 dias e 14 anos, 2 meses e 20 dias. 33 As necessidades de prevenção geral demandadas pelo crime estão, intrinsecamente, ligadas ao facto de ser um crime que atenta contra a vida, conjugado com a situação de perigo demandada pela detenção de armas, o que não é atenuado pelo facto de se possuir licença de uso e porte de arma, pois que tal circunstância antes incrementa a responsabilidade advinda do reconhecimento público da idoneidade que tutela a sua detenção. 34 As necessidades de prevenção especial são relativamente diminuídas, face à ausência de antecedentes criminais, embora sopesada pela personalidade espelhada pelos factos e que demanda cuidado e atenção na intervenção punitiva. 35 Importa ponderar, outrossim, (i) o grau de ilicitude dos factos, relevado o modo de perpetração do crime, nomeadamente a forma como A resolve, motivado por um sentimento de incompreensão perante um ato legítimo do seu empregador, empunhar uma arma, disparar a menos de um metro, na tentativa de tirar a vida ao mesmo, manifestando uma total indiferença perante o próximo. Ademais, abandona o local, certo que se entrega no posto da GNR logo de seguida, sem um contacto para a emergência médica. Na detenção das armas ressalta a perigosidade sempre associada à sua detenção, bem como o uso instrumental para a perpetração do crime de homicídio na forma tentada; (ii) a intensidade dos respetivos elementos subjetivos, cumprindo salientar as circunstâncias já referenciadas quanto ao dolo direto; (iii) os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos determinantes devem ser devidamente valorados, assumindo aqui relevância e atenção a circunstância, não atenuante, que rodeou a prática do crime e já anteriormente evidenciada. Além disso, cabe salientar a postura exibida em audiência, designadamente quando procura escamotear a forma como os factos ocorreram e, bem assim, intenta uma justificação para a conduta com o desespero de ver cessada a prestação de serviços e a humilhação inerente; (iv) as condições pessoais do Arguido são de inegável estabilidade familiar e profissional, importando, ainda, relevar a idade do Arguido de 66 anos; (v) a conduta anterior e posterior revela traços de personalidade adequados à vivência em sociedade. 36 Tudo visto e ponderado, afigura-se justo, adequado e razoável, em face da personalidade, da culpa do arguido A e bem assim das invocadas razões de natureza preventiva, porque só a estas finalidades deve o julgador recorrer em sede de escolha e preferência por uma ou outra pena, fixar a pena em 7 anos e 6 meses de prisão. 37 No que tange à eventual pena acessória, dispõe o artigo 90.º, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições: “1 - Pode incorrer na interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas quem for condenado pela prática de crime previsto na presente lei ou pela prática, a título doloso ou negligente, de crime em cuja preparação ou execução tenha sido relevante a utilização ou disponibilidade sobre a arma. 2 - O período de interdição tem o limite mínimo de um ano e o máximo igual ao limite superior da moldura penal do crime em causa, não contando para este efeito o tempo em que a ou as armas, licenças e outros documentos tenham estado apreendidos à ordem do processo ou em que o condenado tenha estado sujeito a medida de coação ou de pena ou execução de medida de segurança. 3 - A interdição implica a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado. 4 - A interdição é decretada independentemente de o condenado gozar de isenção ou dispensa de licença ou licença especial. 5 - A decisão de interdição é comunicada à PSP e, sendo caso disso, à entidade pública ou privada relevante no procedimento de atribuição da arma de fogo ou de quem o condenado dependa. 6 - O condenado que deixar de entregar a ou as armas no prazo referido no n.º 3 incorre em de crime de desobediência qualificada.”. 38 No caso em apreço, relevadas as circunstâncias já mencionadas, percebendo-se que as mesmas são reveladoras da perda de idoneidade do Arguido para a detenção e uso de armas, pois que defrauda o uso da arma enquanto instrumento de defesa, o Tribunal entende que se mostra adequado e proporcional a aplicação da pena acessória prevista no mencionado artigo 90.º, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, razão pela qual se condena A na interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas durante o período de 10 anos, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado, sob pena de incorrer em crime de desobediência qualificada. 39 Considerada a condenação imposta ao arguido A, os pressupostos e caráter imperativo a que obedece o disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, o Tribunal ordena a recolha de amostra de perfil de ADN, a fim de ser incluída na base de dados de perfis de ADN, com finalidades de investigação criminal – conferir acórdão do Tribunal Constitucional número 333/2018, Relator: MARIA DE FÁTIMA MATA-MOUROS.
No nosso sistema jurídico, na aplicação da pena o juiz está vinculado à aplicação do regime que se mostrar mais adequado às circunstâncias do caso, do arguido e à realização das razões de prevenção subjacentes à incriminação, devendo, por imperativo legal, ponderar e optar pela aplicação de penas não privativas da liberdade, ou substitutivas destas, sempre que preenchidos os necessários pressupostos. Estes comandos fundam-se na dignidade e essência da pessoa humana. Livre em toda a sua dimensão: física, emocional, política, religiosa, amorosa… Por isso, a pena de prisão será sempre excecional devendo apenas ser aplicada quando as outras medidas não se mostrem adequadas, em conformidade com as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas da Liberdade, conhecidas por “Regras de Tóquio” (Regra 6.1).
Operada a escolha sobre a natureza da pena ou não havendo lugar tal escolha, o juiz determina a pena concreta, observando o que estabelece o art.º 71.º, n.º 1, do C. Penal: «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Culpa e prevenção constituem o binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena.
Como afirma o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, § 280 e ss., através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária de punição do facto concretamente praticado pelo agente e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena; com a consideração da culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.
A culpa constitui, pois, o pressuposto-fundamento da validade da pena e tem, ainda, por função estabelecer o limite máximo da pena concreta.
Não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (art.º 40.º, n.º 2, do C. Penal).
A pena concreta tem, assim, de ser fixada entre um limite mínimo e um limite máximo, adequados à culpa do agente, tendo como referencial as exigências de prevenção geral e especial, bem assim como a necessidade de punição que o caso em concreto requer.
Ainda nas palavras de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, § 302 e ss., toda a pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral positiva ou de integração e de prevenção especial de socialização.
Quer isto dizer que a pena tem uma finalidade de prevenção especial dirigida àquele agente em concreto, assumindo uma função dissuasora da prática de novos crimes, bem como uma finalidade de prevenção geral, no sentido pedagógico, servindo como exemplo para os restantes membros da sociedade.
Nos ensinamentos da Prof.ª Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal (1998), AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda a prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Deste modo a pena deverá intimidar e desencorajar todos os membros da sociedade, dignificando o bem jurídico protegido pela incriminação e violado pelo facto ilícito e ainda integrar e ressocializar o delinquente.
Estabelece ainda o art.º 71º, n.º 2, do C. Penal que, na determinação da medida concreta da pena, haverá que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso em apreço, o Tribunal a quo ponderou todos os aspetos que devia ponderar, nos termos previstos no citado art.º 71.º do C. Penal.
Foram analisadas corretamente as exigências de prevenção geral, o grau de ilicitude do facto, intensidade do dolo, e as circunstâncias posteriores são facto, nomeadamente a circunstância de não ter chamado assistência, não se mostrando a falta de ponderação de qualquer facto que devesse ter sido nem a valoração deficiente de facto que valorado.
No que à invocada colaboração do arguido concerne importa deixar claro que o mesmo não confessou os factos, pelo que a circunstância de a sua versão dos factos ter coincidido em alguns pontos com a do ofendido em caso algum constitui fundamento para uma qualquer valoração autónoma a seu favor que deva ser ponderada na medida da pena.
Consideramos, ao contrário do defendido pelo arguido, que na pena fixada o tribunal a quo teve em consideração todos factos relativos ao crime, modo de execução e demais aspetos já referidos, à sua pessoa e acima de tudo à culpa revelada, sendo que o tribunal com base nesta e nas exigências de prevenção gerais e especiais (quanto a estas diminutas como classificou) fixou a que lhe pareceu adequada, dentro do limite da culpa.
Seguimos a jurisprudência segundo a qual o Tribunal de recurso, também a nível da determinação das penas concretas e da pena única em caso de concurso de crimes, como no presente caso, apenas deve intervir quando a pena fixada pela primeira instância se revele desajustada, por violação dos comandos a que se fez referência, e por isso injusta.
É que também no que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser cautelosa e seguir a jurisprudência exposta, quanto à intervenção do STJ é certo, mas aplicável às Relações, no Ac. do mesmo Tribunal Superior de 27/05/2009, relatado por Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, no qual se considera: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta.
Ora, no caso dos autos, a pena fixada mostra-se dentro da medida da culpa, não sendo por isso ilegal, e adequadas às circunstâncias do caso vertidas nos factos provados e ponderadas na sua determinação.
Termos em que igualmente improcede esta questão.
*
iv) Suspensão da execução da pena art.º 50.º CP.
Nos termos do art.º 50.°, n.º 1, do Código Penal, sempre que o arguido seja condenado em pena de prisão não superior a cinco anos o tribunal determina que a execução da mesma fique suspensa se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O arguido pugna pela suspensão da execução da pena de prisão partindo do pressupostos da procedência das questões que suscitou no início do seu recurso: impugnação de facto, qualificação jurídica dos factos como crime de ofensa à integridade física simples. Mas estas questões não mereceram provimento, do mesmo modo que o não mereceu a pena fixada pelo crime de homicídio na forma tentada.
Assim, sendo a pena superior a 5 anos de prisão não se verifica o primeiro dos pressupostos de que depende a aplicação desta pena de substituição.
*
IV - Decisão:
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Évora, em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido.
Custas pelo arguido fixando em 4 UC a taxa de justiça.
*
Évora, 8 de outubro de 2024
Maria Perquilhas
Fátima Bernardes
Beatriz Marques Borges
__________________________________________________
[1] Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respectivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col Acs. do STJ, Ano VII, Tomo 1, pág. 247 o Ac do STJ de 3/2/99 (in BMJ nº 484, pág. 271); o Ac do STJ de 25/6/98 (in BMJ nº 478, pág. 242); o Ac do STJ de 13/5/98 (in BMJ nº 477, pág. 263);
SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES, in Recursos em Processo Penal, p. 48; SILVA, GERMANO MARQUES DA 2ª edição, 2000 Curso de Processo Penal”, vol. III, p. 335;
RODRIGUES, JOSÉ NARCISO DA CUNHA, (1988), p. 387 “Recursos”, Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, p. 387 DOS REIS, ALBERTO, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp. 362-363.
[2] O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
II. A diferente valoração da prova não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.
[3] O que a arguida bem refere no seu recurso.
[4] Como se esclareceu no Ac. STJ de 15/09/2010, proc. n.º 173/05.6GBSTC.E1.S1, Relator Fernando Fróis: O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então, o inverso e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova, constante do art. 127.º do CPP.
XII - Os vícios do nº 2 do art. 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo – art. 127.º do CPP.
XIII - Não incidindo o recurso sobre prova documentada nem se estando perante prova legal ou tarifada, não se pode sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, esquecendo a citada regra. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
XIV - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
[5] Sublinhado nosso.
[6] Ac. STJ de 15/09/2010, proc. n.º 173/05.6GBSTC.E1.S1, Relator Fernando Fróis.