LEI DA AMNISTIA
PERDÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - A aplicação das condições previstas no art. 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) opera de forma obrigatória e automática.
II - A aplicação do perdão ao abrigo da referida Lei, implicitamente abarca a condição do não pagamento da quantia em que o beneficiário também tenha sido condenado no prazo fixado.
III - No que concerne à revogação do perdão concedido por verificação da condição prevista no art. 8º, nº 2 não importa indagar das condições de vida do condenado a fim de se concluir se tinha ou não possibilidades de efectuar o pagamento da indemnização fixada no prazo definido.
IV - Na ausência na Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) de norma similar à contida no art. 5º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, o prazo de 90 dias a contar da notificação não é prorrogável.
V - A revogação do perdão não altera a pena, nem quanto à sua natureza, nem quanto à sua duração, nem quanto à sua execução.
VI - A norma prevista no n.º2 do artigo 8.º da Lei nº 38-A/2023, segundo a qual o perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado, não enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição da República.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo nº 849/18.8PWPRT-C.P1

(Comarca do Porto – Juízos Centrais Criminais do Porto – J 7)

Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

1. Nos autos de Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que correm termos no Juízo Central Criminal do Porto - J 7, Comarca do Porto, com o nº 849/18.8PWPRT, foi o arguido AA, por decisão proferida em 29.10.2019, confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.03.2020, condenado nos seguintes termos:

- na pena três anos e dois meses pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal e na pena de um ano de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al. d), do RJAM; em cúmulo jurídico das penas parcelares na pena única de três anos e seis meses de prisão;

- no pagamento da quantia de € 10.000,00 à ofendida/demandante BB, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis e contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento;

- no pagamento da quantia de € 3.710,13 ao lesado/demandante Centro Hospitalar ..., E.P.E., acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis e contados desde a data da notificação do demandado para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento.

2. Em 04-09-2023, o Tribunal Central Criminal do Porto, proferiu despacho declarando perdoado um ano de prisão na pena única de três anos e seis meses de prisão aplicada ao arguido AA, sob a condição resolutiva de não praticar infração dolosa até 01-09-2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada.

3. Entretanto, na sequência de promoção do Ministério Público nesse sentido, em 14-09-2023, foi proferido o seguinte despacho (transcrição parcial, na parte que aqui releva):

«Nos termos e para os efeitos previstos no nº 3 do art. 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, ordeno a notificação do arguido, através da entidade policial competente, para no prazo de 90 dias a contar da notificação vir aos autos comprovar documentalmente, o pagamento das seguintes indemnizações em que foi condenado:

- A quantia de € 10.000,00 à ofendida/demandante BB, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis e contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento;

- A quantia de € 3.710,13 ao lesado/demandante Centro Hospitalar ..., E.P.E., acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis e contados desde a data da notificação do demandado para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento.

Mais advirta o arguido que caso não comprove o pagamento das duas indemnizações nos autos, o perdão de um ano de prisão será revogado.»

4. Depois, em 21-02-2024, a Mmº Juiz do Juízo Central Criminal do Porto proferiu o seguinte despacho (transcrição parcial, na parte que aqui releva):

«Dos presentes autos resulta que, por decisão proferida em 29/10/2019, confirmada por acórdão do TR do Porto de 09/03/2020, o arguido AA, foi condenado na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva, pela prática de um crime de violência doméstica (art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do Código Penal/2018), na pena de 3 anos e 2 meses de prisão e de um crime de detenção de arma proibida (art. 86º, nº 1, al. d), do RJAM [Lei nº 5/2006, de 23-02]), na pena de 1 ano de prisão.

Foi declarado perdoado um ano de prisão, da pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, aplicada ao arguido AA, sob a condições resolutivas previstas no art. 8 da Lei nº 38-A/2023 de 02.08.

O arguido não procedeu ao pagamento a BB, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal anual dos juros civis e contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento.

Dispõe o art. 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02.08:

- O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.

2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.

O arguido foi notificado, nos termos do nº 3 do art. 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, para no prazo de 90 dias a contar da mesma proceder ao pagamento das indemnizações em que foi condenado, sob pena de, não o fazendo, ser o perdão revogado. Já decorreu o referido prazo de 90 dias.

A demandante BB declarou que não foi indemnizada ou reparada (ref: 37796625 de 11.01.2024).

O Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

() não tendo sido satisfeita a condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação da beneficiária BB, promovo se declare resolvido o perdão de ano de prisão, nos termos do art. 8º, nº 1 da Lei nº 38-A/2023 de 02.08.

Notificado o arguido para se pronunciar sobre a promoção do Ministério Público, veio comprometer-se a indemnizar a ofendida, alegando para tanto que, neste momento tal afigura-se inviável pois, não tem ainda condições económicas para poder proceder a tais pagamentos e a sua família é bastante pobre e não o consegue auxiliar nesse sentido.

Conforme resulta do disposto no arº 8º, nº 2 e 3, da Lei nº 38-A/2023 de 02.08, o prazo de 90 dias para pagamento de indemnização à demandante é perentório e não depende da aferição da capacidade financeira do arguido para proceder à respetiva indemnização.

Pelo exposto, declara-se resolvido o perdão de um ano de prisão e determina-se o seu cumprimento, nos termos do art. 8º, nº 2 e 3, da Lei nº 38-A/2023 de 02.08.

Notifique. (…)»


*

5. Inconformado com tal despacho, o arguido dele interpôs recurso, apresentando, em abono da sua posição, as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1 - AA, arguido, melhor identificado nos autos à margem referenciados, não se conformando com o despacho que declarou resolvido o perdão de um ano de prisão e determinou o seu cumprimento, apresenta o presente recurso.

2 - Como aqui se demonstrará, tal decisão atenta contra os princípios penais proclamados na Constituição da República Portuguesa, no Código Penal e no Código Processo Penal, concernentes à delimitação da aplicação da prisão, como medida da restrição da liberdade individual, nos casos expressamente previstos na lei, isto é, como restrição aceitável por contraposição ao dever do Estado de perseguir eficazmente o crime.

3 - Operado o cúmulo jurídico, foi o arguido condenado, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/03/2020, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva, no pedido de indemnização civil formulado acrescido de juros de mora e no pedido de indemnização civil formulado pelo Centro Hospitalar do juros civis, contados desde a data do demandado para contestar o pedido cível até efetivo e integral pagamento.

4 - O arguido requereu a aplicação da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto, de forma a beneficiar do perdão de um ano de prisão, tendo sido proferido despacho em 04/09/2023 com o seguinte teor: “ (…) Pelo exposto e ao abrigo dos citados preceitos legais, declaro perdoado um ano de prisão, da pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido AA, sob a condição resolutiva de este não praticar infração dolosa até 01-09-2024, inclusive, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da parte da pena perdoada”.

5 Assim, o arguido foi colocado em liberdade, no dia 05/09/2023, uma vez que, já havia cumprido 2 anos, 8 meses e 1 dia da sua pena de 3 anos e 6 meses, que com o perdão se fixou em 2 anos e 6 meses, tendo assim, cumprido mais dois meses e um dia.

6 - Não obstante, o arguido foi notificado a 18/09/2023 para, em 90 (noventa) dias proceder ao pagamento das indemnizações em que foi condenado, sob pena de, não o fazendo, ser o perdão revogado, tendo a assistente BB, no final de tal prazo, declarado não ter sido indemnizada ou reparada.

7 - Face à promoção do Ministério Público no sentido de declarar resolvido o perdão de um ano, veio o recorrente pronunciar-se, explicando que se encontra integrado em termos sociais, habitacionais e laborais, laborando como cozinheiro a auferir um salário, encontrando-se ainda no período experimental. Mais referiu que se comprometeria a indemnizar a ofendida, justificando que, de momento, tal se afigurava inviável dado não ter ainda condições económicas para poder proceder a tais pagamentos e a sua família ser bastante pobre e não o conseguir auxiliar nesse sentido.

8 - Entendendo não ser relevante a aferição da capacidade financeira do arguido para proceder à respetiva indemnização, foi proferido despacho, do qual aqui se recorre, a declarar resolvido o perdão de um ano de prisão e a determinar o seu cumprimento.

9 - Conforme referido supra, o despacho que aplicou o perdão de um ano de prisão, apenas mencionou que a condição resolutiva era não praticar infração dolosa até 01-09-2024, inclusive, não referindo que existia uma outra condição resolutiva, consistindo a mesma na falta de pagamento de qualquer indemnização no prazo de 90 dias, tendo o aqui recorrente ficado surpreendido com a notificação que recebeu, poucos dias após ser colocado em liberdade, uma vez que, no despacho onde o mesmo havia sido concedido, não advertia para essa cominação.

10 - A indemnização que a assistente declarou não ter recebido no final do prazo estipulado fixava-se em 10.000.00 (dez mil euros)

11 - O ora Recorrente esteve preso desde outubro de 2018 a junho de 2021, sendo certo que, durante este intervalo de tempo, não exerceu qualquer profissão remunerada, pelo que, não conseguiu, em três meses de liberdade, obter avultada quantia, apesar de ter recorrido a amigos e familiares, os quais, infelizmente, dadas as suas extremas dificuldades económicas, não o conseguiram ajudar.

12 - O Recorrente está ciente que tem que pagar a indemnização à assistente e até já expressou no processo a intenção de o fazer, não o tendo feito no prazo de 90 (noventa) dias apenas por impossibilidade e não por algo que dependesse de algum tipo de culpa sua.

13 - Uma coisa é o perdão ser resolvido por ter sido praticada uma infração dolosa que depende da vontade do agente, outra, totalmente diferente, é ser resolvido com base na falta de pagamento de durante quase três anos e que acaba de sair do estabelecimento prisional.

14 - Consagra o art. 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que “ Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”, fundamentando o nº 2 do mesmo artigo que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de situação económica (…)”.

15 - No entanto, no que toca à situação em apreço, só se o Recorrente tivesse possibilidades económico-financeiras suficientes para em 90 (noventa) (dez mil euros) é que beneficiaria do perdão.

16 - O que acaba por incorrer contra a norma constitucional, uma vez que, o aqui Recorrente, no presente caso, está a ser prejudicado e privado de beneficiar do perdão de um ano, em razão da sua situação económica.

17 - Apesar das dificuldades em encontrar uma atividade laboral nos tempos que correm e que acrescem para ex-reclusos, a verdade é que o recorrente conseguiu, em tão pouco tempo de liberdade, estando atualmente a trabalhar como cozinheiro.

18 - O Recorrente é uma pessoa esforçada e trabalhadora que já se encontra integrada, quer a nível social, quer laboral.

19 - Ser novamente colocado em estabelecimento prisional depois de ter estado em liberdade, fará com que, socialmente, seja visto como se tivesse cometido um novo crime, o que levará a um maior julgamento por parte da comunidade, desistindo de lhe dar oportunidades. Atentando, deste modo, contra as finalidades da pena.

20 - Refere o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal que: “A aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Quer isto dizer que o fundamento das penas é a prevenção na sua dupla dimensão geral e especial, as quais foram atingidas.

21 - Neste momento, colocar o aqui recorrente novamente na cadeia poderá gerar até alguma revolta no mesmo, pois tudo o que conquistou em tão pouco tempo de liberdade seria perdido, comprometendo as finalidades já atingidas com a pena cumprida. Com o devido respeito, seria muito injusto que o recorrente voltasse a ser preso, quando já está ressocializado.

22 - Pelo que, deverá pensar-se em alternativas à pena de prisão, pois, tal como reforça Figueiredo Dias in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime pág. 500: “O tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas”.

23 - Remetendo para o Princípio da Proporcionalidade, consagrado no art.º 18º, da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.

24 - Assim e atendendo ao exposto, entende-se, que o recorrente não deverá ser privado novamente da sua liberdade, pelo que, deverá salvo melhor opinião em contrário, ser-lhe concedido um prazo adicional para pagamento da quantia fixada a título indemnizatório.

25 - Sem prescindir e para o caso de assim não se entender, o que não se concede, apenas se admitindo por mera hipótese de raciocínio, cumpre referir que o arguido já cumpriu dois anos, oito meses e um dia da pena de três anos e seis meses em que foi condenado, ou seja, mais de dois terços da pena.

26 - Deste modo, encontrando-se preenchidos os pressupostos legais, existe a possibilidade de o recorrente manter-se em liberdade ainda que de forma condicional, nos termos do artigo 61.º, n.º 3 do Código Penal, o que deverá ser concedido, caso não venha a ser deferido prazo adicional para pagamento da indemnização.

27 - O que é certo é que o aqui recorrente não poderá ser colocado em prisão efetiva, pois tal decisão seria extremamente severa, desadequada, desproporcional e desnecessária. Sendo que, atendendo ao supramencionado, a prisão repentina, neste momento da sua vida, iria colocar em causa todos os seus esforços e a sociedade iria sair prejudicada, pois o arguido já cumpriu pena de prisão e aprendeu a lição, tendo a pena de prisão executada cumprido o efeito ressocializador que lhe é inerente.

28 - Face ao exposto, é de considerar que a condenação do caso sub judice para além de se apresentar contrária aos princípios e aos fundamentos legais e constitucionais expostos, constituiu uma opressão desnecessária do direito à liberdade do arguido, pelo que, se apresenta manifestamente severa, excessiva e injusta.

Atendendo a todos os elementos suprarreferidos, é de crer que o adequado, perante a situação em concreto, será conceder ao recorrente um prazo adicional para pagamento da indemnização à assistente BB. Em alternativa, caso não seja esse o entendimento seguido pelo douto Tribunal, deverá o arguido manter-se em liberdade, ainda que, de forma condicional.»


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6. O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.

*

7. O Ministério Público junto do tribunal da 1ª instância respondeu ao recurso interposto, concluindo nos termos seguintes (transcrição):

«1. O tribunal a quo, decorrido o prazo de 90 dias legalmente previsto para pagamento de indemnização à demandante, sem que o mesmo ocorresse, declarou resolvido o perdão de um ano de prisão e determinou o seu cumprimento, nos termos do art. 8º, nº 2 e 3, da Lei nº 38-A/2023 de 02.08.

2. O recorrente alega que, por o incumprimento ter decorrido da sua incapacidade económica para fazer face ao pagamento da indemnização à demandante, o tribunal a quo deveria ter-lhe concedido prazo adicional para pagamento da mesma.

3. Sucede que inexiste base legal que suporte tal pretensão.

4. Mais entende o recorrente que, em alternativa, o tribunal deveria tê-lo mantido em liberdade, ainda que de forma condicional.

5. Esta pretensão apresenta-se como irrealista, por um lado por carência de suporte legal e, por outro, por o tribunal a quo não possuir sequer competência para tanto, competindo materialmente a concessão ou denegação da liberdade condicional, de forma exclusiva, ao Tribunal de Execução das Penas.

Nestes termos e nos demais de direito, que V. Exas. Venerandos Desembargadores suprirão, deve ser considerado improcedente o recurso, mantendo-se inalterada a douta decisão recorrida.»

8. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, em sede de parecer a que alude o art. 416°, do Código de Processo Penal, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta aderiu aos fundamentos da resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, pugnando pela improcedência do recurso.


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9. Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

*

Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência.

***

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Questões a decidir

Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a tratar:

a) manutenção, ou não, das razões legais que fundamentaram o despacho determinativo da revogação do perdão aplicado ao arguido nestes autos pelo não pagamento da indemnização;

b) inconstitucionalidades da condição prevista no art. 8º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude – LAJMJ).


*

II.2. Apreciação das questões acima enunciadas

Considerando as circunstâncias processuais com relevância para a apreciação das questões acima enunciadas, vertidas no relatório supra e transcrito que já está o despacho recorrido, importa conhecer o mérito do recurso.

Insurge-se o arguido contra a revogação do perdão de um ano de prisão que lhe foi concedido, por incumprimento da condição constante do nº 2 do art. 8º, da Lei n.º 38-A/2023 (doravante designada como Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude – LAJMJ).

Entende o recorrente que por o incumprimento ter decorrido da sua incapacidade económica para fazer face ao pagamento da indemnização à demandante, o tribunal a quo deveria ter-lhe concedido prazo adicional para o respetivo pagamento. Mais considera o recorrente que, em alternativa, o tribunal deveria tê-lo mantido em liberdade, ainda que de forma condicional.

Invoca ainda a inconstitucionalidade do art. 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ), sustentando que a condição resolutiva prevista no tocante ao pagamento, no prazo de 90 dias, da indemnização arbitrada viola o princípio da igualdade, ínsito no art. 13º da C.R.P., uma vez que não permite distinguir os arguidos de fraca condição económica daqueles que possuem plena capacidade de pagar a indemnização arbitrada.

Apreciemos a primeira questão.

Preceituam os art.s 1º, 2º e 3º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ), para o que aqui releva:

Artigo 1.º

Objeto

A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Artigo 2.º

Âmbito

1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º

Artigo 3.º

Perdão de penas

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

(…)

Artigo 8º

Condições resolutivas

1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.

2 - O perdão é concedido sob condição resolutiva de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado.

3 - A condição referida no número anterior deve ser cumprida nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito.

4 - Considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 caso o titular do direito de indemnização ou reparação não declare que não foi indemnizado ou reparado.

5 - Quando o titular do direito de indemnização ou da reparação for desconhecido, não for encontrado ou ocorrer outro motivo justificado, considera-se satisfeita a condição referida no n.º 2 se a reparação consistir no pagamento de quantia determinada e o respetivo montante for depositado à ordem do tribunal.” (sublinhado nosso).

Tal diploma veio assim estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infracções, por ocasião da realização da Jornada Mundial da Juventude em Portugal.

Como já acima relatamos, o perdão de um ano de prisão foi concedido ao arguido no âmbito do art. 3º, nºs 1 e 4 da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ).

Antes de mais, importa referir que apesar de no despacho que aplicou o perdão, proferido em 04-09-2023, não se ter consignado que o mesmo era concedido sob a condição prevista no art. 8º, nº 2, veio, no entanto, por despacho subsequente, proferido em 14-09-2023 expressamente sujeitar-se a concessão do perdão da pena à condição do pagamento das indemnizações aos lesados, a que o arguido também foi condenado.

E nessa sequência, ordenou-se a notificação do condenado da condição do pagamento, no prazo de 90 dias a contar dessa notificação, vindo o mesmo a ser expressamente notificado para o efeito.

Realce-se, entretanto, que a prolação dos supra referidos despachos não motivou por parte do recorrente a arguição de qualquer irregularidade e/ou nulidade ou impugnação por via recursiva.
Consequentemente, no descrito contexto processual, dúvidas não se suscitam de que o recorrente foi expressamente notificado para, no prazo de 90 dias a contar da notificação, proceder ao pagamento das indemnizações aos lesados, sob pena de não o fazendo, ser o perdão revogado.
Mas independentemente disso, a aplicação das condições previstas no art. 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) opera de forma obrigatória e automática.

Por isso, a aplicação do perdão ao abrigo da referida Lei, implicitamente abarca a condição do não pagamento da quantia em que o beneficiário também tenha sido condenado no prazo fixado (isto mesmo veio o Tribunal da Relação de Coimbra a considerar, embora a propósito da Lei 29/99, de 12 de Maio, no Ac. de 25-10-2006, proferido no Processo nº 1043/01.2TBVIS-B.C1, consultável in www.dgsi.pt - como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação).

Sustenta o recorrente que devia o tribunal a quo ter ponderado as suas dificuldades económicas que, segundo alega, o impossibilitam de pagar no prazo definido a indemnização fixada, pugnando ainda pelo alargamento do prazo concedido.

Afigura-se-nos que não.
Tal como já aconteceu noutras Leis de Amnistia anteriores, o legislador na Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ), em nome da necessidade de proteção das vítimas dos crimes, que o perdão da pena não deve olvidar, voltou a prever a sujeição do perdão concedido à condição de pagar a indemnização em que o arguido foi condenado.
E no que concerne à revogação do perdão concedido por verificação da condição prevista no art. 8º, nº 2 [não pagamento da indemnização ou reparação do lesado a que o beneficiário também tenha sido condenado], ao contrário do defendido pelo recorrente, não importa indagar das condições de vida do condenado a fim de se concluir se tinha ou não possibilidades de efectuar o pagamento da indemnização fixada no prazo definido.
Desde logo, dado que a Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) não prevê tal exigência.

Assim, a interpretação que o recorrente propõe do art. 8º da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) carece do apoio na letra da lei.

E aqui, importa referir, conforme constitui jurisprudência reiterada e consolidada, que o direito de graça assume uma natureza excepcional que, como tal, não comporta aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo as normas que o enformam ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas [neste sentido cfr. o Acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência nº 2/2023, de 01-02-2023, que se pronunciou sobre o art. 2º da Lei nº 9/2020, de 10 de abril - cf. DR nº 23/2023, série I de 01-02-2023, e, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2024, proferido no Processo nº 628/08.0PAPVZ-C.P1, do Tribunal da Relação de Évora de 16-12-2023, proferido no Processo nº 401/12.1TAFAR-E.E1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-02-2024, proferido no Processo nº 555/15.5GAEPS-B.G1), prolatados já na vigência e a respeito da Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude].
Além disso, como se afirma no Tribunal da Relação de Coimbra de 25-10-2006, proferido no Processo nº 1043/01.2TBVIS.B.C1, a propósito da Lei 29/99, de 12 de Maio [1]:
«Como já acima referimos a condição resolutiva opera de forma obrigatória e automática.
Os tribunais estão impedidos de, verificada a condição resolutiva, recusar a revogação do perdão, num determinado caso concreto, com base em juízos sobre a inconveniência (na consideração, designadamente, dos fins das penas) da revogação (Ac RE nº 1334/04-1 em dgsi.pt).
Desta forma, sendo a revogação do perdão obrigatória e automática, não tem razão o recorrente quando sustenta que devia ter sido ponderada a culpa do agente na verificação da condição resolutiva.
A revogação do perdão não se pauta pelos critérios da determinação da medida da pena. A exigência de ponderação da culpa do agente na verificação da condição resolutiva de reparação ao lesado não são aqui aplicáveis, por se tratar de exigência não prevista na Lei 29/99. Na verdade, não se está aqui perante uma decisão em que releve a ponderação da culpa do agente (como, por exemplo, na revogação da suspensão da execução da pena).
O legislador tratou de forma igual o que é essencialmente igual. As dificuldades económicas que o agente possa ter ou qualquer outro facto que o impossibilite de pagar a indemnização, preexistem á Lei nº 29/99, não é esta Lei que as gera ou potencia. Aliás se não tivesse sido decretado perdão genérico o recorrente teria que cumprir a pena de prisão na sua totalidade. Esta Lei veio beneficiar o arguido, perdoando um ano da pena de prisão. Mas o legislador, além do benefício que quis dar aos arguidos, procurou não esquecer as vítimas, muitas vezes esquecidas. Assim, para acautelar os interesses das vítimas condicionou o perdão ao pagamento da indemnização.»
Deste modo, no caso da revogação do perdão pela prática do não pagamento da indemnização ou reparação, não importa indagar das condições de vida do condenado a fim de averiguar e concluir se tinha ou não possibilidade de efectuar o referido pagamento.
A revogação tem como pressuposto formal o não pagamento da indemnização arbitrada, no prazo de 90 dias imediatos à notificação que para o efeito foi feita ao arguido – sobre esta circunstância não é suscitada qualquer dúvida pelo recorrente -, cuja verificação importa obrigatoriamente a revogação automática do perdão.
Também, não tem razão o recorrente, por ausência de fundamento legal, quando sustenta que devia ter sido alargado o prazo para satisfazer a condição de pagamento da indemnização à ofendida.
Realmente, como se pronuncia o Ex.mo Desembargador José Esteves de Brito (Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Julgar online, agosto de 2023, pág. 43), na ausência na Lei da Amnistia por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude (LAJMJ) de norma similar à contida no art. 5º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio [Nas situações previstas no número anterior ou quando a situação económica do condenado e a ausência de antecedentes criminais o justifique, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, concede novo prazo de 90 dias para a satisfação da condição referida no n.º 1.], o dito prazo de 90 dias a contar da notificação não é prorrogável.
Porque, como se viu, «a amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições que nelas não venham expressas, estando vedada qualquer aplicação analógica a interpretação extensiva» [cfr. Cruz Bucho no Estudo «Amnistia e perdão (Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo), pág. 36, disponível, em texto integral na página do Tribunal da Relação de Guimarães – https://www.trg].
Relativamente à pretensão apresentada pelo recorrente de se manter “em liberdade, ainda que, de forma condicional”, com o devido respeito, não se afigura ter a construção jurídica qualquer fundamento legal, sendo evidente que o recurso também neste segmento está votado ao insucesso.
Como já acima afirmámos, os tribunais estão impedidos de, verificada a condição resolutiva, recusar a revogação do perdão, num determinado caso concreto, com base em juízos sobre a inconveniência da revogação.
Ora, como fundamentou o despacho recorrido, estando preenchidos os pressupostos para que deva ser declarado revogado o perdão de que o arguido beneficiou nos presentes autos, decidiu-se pela revogação.
Como é sabido, a revogação do perdão determina a execução da pena de prisão perdoada e ainda não cumprida, desde que ainda não tenha decorrido o prazo de prescrição da pena inicialmente fixada.
Logo, haverá o arguido que cumprir a pena perdoada uma vez que que a revogação do perdão, não determina a modificação da pena, quer na sua espécie quer na sua medida, quer na sua exequibilidade.
Para além disso, quanto a esta concreta questão, subscrevemos a posição do Ex.mo Procurador da República, que realça que o tribunal recorrido não tem sequer poderes para decidir tal pretensão, pois, como é consabido, a concessão da liberdade condicional constitui, nos termos do art. 138º, nº 4, al. c), do CEPMPL, competência material exclusiva do Tribunal de Execução das Penas.

*
Passemos à segunda questão.
O arguido recorrente suscitou ainda a inconstitucionalidade do art. 8º da Lei nº 38-A/2023 de 02-08 por considerar que a condição resolutiva prevista no tocante ao pagamento, no prazo de 90 dias, da indemnização arbitrada viola o princípio da igualdade, visto que que não permite distinguir os arguidos de fraca condição económica daqueles que possuem plena capacidade de pagar a indemnização arbitrada, levando, assim, a que, na prática, um arguido pobre não possa beneficiar em pé de igualdade de perdão da pena como um arguido com plena capacidade financeira.

Dispõe o art. 13º da C.R.P. que:

(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

No entanto, o tratamento diferenciado de um determinado conjunto de pessoas só será violador do princípio da igualdade quando o mesmo se mostre arbitrário, destituído de racionalidade e de um fundamento materialmente justificado.

É nessa acepção que a jurisprudência do Tribunal Constitucional vem interpretando o sentido e alcance de tal princípio, enfatizando que igualdade perante a lei, e na lei, não significa igualitarismo.

Assim se esclareceu no Acórdão n.º 488/2008 do Tribunal Constitucional (Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues), do qual, pela sua clareza, se transcreve o seguinte excerto:

O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C.VIEIRA DE ANDRADE – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cfr., a este propósito, GOMES CANOTILHO, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; ALVES CORREIA, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da "diferença" de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.

“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.

E, concretamente, pronunciando-se sobre a constitucionalidade de semelhante condição suscitada a propósito da Lei n.º 29/99 de 12 de Maio (Lei que estabelece perdão genérico e amnistia de certas infracções), no acórdão nº 488/2008, de 07-10-2008 (Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues), consignou-se que:
«Ora, a imposição da analisada condição resolutiva não se afigura destituída de fundamento material ou racional bastante, de modo algum podendo ser tida como medida irrazoável ou arbitrária.
A indemnização encontra a sua justificação na prática do crime. É a prática do acto ilícito criminalmente que constitui causa ou fundamento jurídico da condenação do arguido no pagamento da indemnização ao ofendido.
Nesta medida, ela é também um efeito jurídico da prática do crime, tal como o é a condenação na pena criminal.
É claro que a pena visa satisfazer, essencialmente, interesses do Estado, de reconstituição da paz jurídica entre a comunidade social e o criminoso, conseguida através de medida funcionalizada para a prevenção geral e para a sua ressocialização, e que a indemnização pretende “reparar um dano” provocado ao ofendido, procurando reconstituir a situação que existiria se não fora a verificação do “evento que obriga à indemnização” (cf. art.ºs 483.º e 562.º do Código Civil).
Nesta perspectiva, trata-se de efeitos jurídicos autónomos.
Só que a condenação em indemnização não deixa de corresponder a uma concreta decorrência, ainda, da ilicitude (criminal) do facto praticado e de reacção do sistema jurídico, aqui, em protecção ou favor do lesado.
Ela mantém uma conexão íntima com a prática do crime.
(…)
Nessa medida, bem se compreende que o órgão competente (Assembleia da República) do titular do poder de clemência e, simultaneamente, do “ius puniendi” – o Estado – possa considerar que a paz jurídica só ficará, em caso de perdão de pena, totalmente satisfeita se o condenado também em indemnização pela prática do crime reparar efectivamente o dano provocado ao lesado.
Sendo o perdão uma medida de clemência que extingue, total ou parcialmente, a pena do crime pelo qual o arguido foi condenado, mas não extinguindo a ilicitude criminal e a ilicitude civil dos factos praticados, bem se justifica que o legislador da clemência, dentro da sua discricionariedade ponderativa de todos os bens jurídicos ofendidos (penais e civis) entenda não ser ela de conceder quando existam efeitos civis indemnizatórios que tornam ainda presente a necessidade de paz jurídica com o lesado.
Existe, pois, razão material bastante para justificar a irrelevação, na concessão da graça do perdão genérico, da situação económica em que se encontra o seu beneficiário.
Não se verifica, por isso, a violação do princípio da igualdade.
E também não ocorre a alegada violação do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que foi condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo sentenciado seja titular que caiba na previsão dos referidos preceitos.
Mas independentemente disso, acresce que o condicionamento se mostra feito de forma geral e abstracta, aplicando-se a todos os abrangidos pelo perdão que tenham sido também condenados no pagamento de indemnização ao lesado, e que o mesmo tem fundamento material.»

Seguindo este entendimento, e ainda a propósito do art. 5º nº 1 da Lei nº 29/99, de 12-05, pronunciou-se o Acórdão do S.T.J. de 14-12-2005, proferido no Processo nº 3561/03-03, (Relator: Conselheiro Oliveira Mendes), citado por Cruz Bucho [Ibidem, pág. 32], cujo sumário transcrevemos parcialmente:
«IV - A concessão de perdão subordinada à condição resolutiva prevista no art. 5.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12-05, não viola o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado - art. 13.° da CRP.
V - Na verdade, a referida condição está directamente relacionada com o mal do crime, tendo em vista a sua reparação ou compensação, pelo que é ditada por razões de justiça e de política criminal, condição que, por isso, não pode deixar de se considerar plenamente justificada, de acordo com os princípios gerais de direito; a lei limita-se a exigir ao condenado, para que beneficie do perdão genérico, que restitua aquilo com que criminosamente se locupletou ou que compense o lesado dos prejuízos criminosamente causados».

Aliás, é também neste mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-01-2024, proferido no Processo n.º 75/20.6GCGMR-K.G1:

«Todavia, uma lei de amnistia que condiciona o perdão ao pagamento da indemnização em que o arguido já havia sido condenado a pagar dentro de certo período de tempo não viola a nosso ver – e como infra veremos também no entendimento do Tribunal Constitucional – o princípio da igualdade porquanto a norma em causa visa um universo de arguidos nas mesmas condições (terem sido condenados também no pagamento de uma indemnização) e visa salvaguardar os legítimos e concorrentes interesses das vítimas.

Afirma, contudo, o arguido que dentro desse universo de condenados, nem todos têm a mesma capacidade económica e, portanto, sujeitar todos os condenados a efectuar um pagamento dentro de tão curto espaço de tempo – 90 dias – é na prática discriminar os arguidos de fraca condição económica.

Salvo o devido respeito, não concordamos com esta leitura pelo simples facto de que as leis de amnistia e perdão, bem como de indulto, são, como vimos supra, leis excepcionais que se inserem numa prerrogativa do Estado, as chamadas leis de graça.

Como leis excepcionais que são, podem ser condicionadas pelo legislador que, procurando prosseguir em determinado momento, por ocasião, por exemplo, da vinda de um Papa a Portugal, ou em virtude das Jornadas Mundiais de Juventude, aliviar certos condenados, contudo não pode esquecer-se dos fins das penas e dos princípios do sistema penal implementado.

Ora, essa prorrogativa traduz uma benesse – uma graça – concedida ao condenado que não pode ser concretizada a qualquer custo, mas, antes, deve ser mitigada com os interesses das vítimas, bem como da política criminal vigente, mormente no que tange às exigências de prevenção especial pois, se o perdão levar a que, no futuro, o arguido entenda ser possível continuar numa vida dedicada ao crime porque, na prática, “o crime compensa” pois nem sequer teve de ressarcir o ofendido para poder beneficiar do perdão, então esse perdão não está conforme com os princípios basilares e estruturantes do sistema penal português.
Nestes termos, sufragando o entendimento vertido nos arestos citados, afigurando-se-nos, por desnecessárias, quaisquer considerações adicionais, não se vislumbra a invocada inconstitucionalidade do art. 8º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto.
E, pelas considerações acima expostas, também não ocorre a alegada violação de quaisquer princípios político-criminais, constitucionalmente consagrados, designadamente, os das finalidades das penas, da necessidade, proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão, invocados pelo recorrente.
Na verdade, a sujeição da concessão do perdão à condição resolutiva de pagamento da indemnização em que o arguido foi também condenado, dentro de certo prazo, não contende com qualquer direito, liberdade ou garantia fundamental de que o mesmo seja titular.

Assim, improcede também neste segmento a argumentação do recorrente, pelo que, nenhuma outra questão havendo que conhecer, o presente recurso improcede na sua totalidade.


*

II.3. Das custas

Uma vez que o recorrente decaíu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua atividade deu lugar - artigo 513º do Código de Processo Penal.

Nos termos do disposto nos art.º 8º, nº 9, Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III a ele anexa, a taxa de justiça varia entre 3 a 6 UC, devendo ser fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III.

Tendo em conta a complexidade mediana do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC`s.


***

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando o despacho recorrido.

Custas do recurso a cargo do recorrente, fixando-se em três U.C.s a taxa de justiça devida (art. 513º/1 do Código de Processo Penal, art. 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa), sem prejuízo do apoio judiciário de que eventualmente beneficie.

Notifique.


Porto, 25 de Setembro de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)

Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)

Assinado digitalmente pela relatora e pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos
Amélia Carolina Teixeira
Paula Guerreiro
Pedro Vaz Pato
______________
[1] No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27-09-2004, Processo nº 1334/04-1 consultável in www.dgsi.pt., sendo também esta a posição do Ex.mo Desembargador José Esteves de Brito (Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Julgar online, agosto de 2023, pág. 43.