Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
RETIFICAÇÃO DE ERRO DE ESCRITA
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
ERRO NA IDENTIDADE DO CITADO
Sumário
I – Proferida a sentença, o juiz só pode voltar a pronunciar-se sobre a questão para retificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar a sentença, devendo observar o disposto, a propósito de cada uma dessas situações, nos arts. 614.º a 617.º do CPC. II – O erro na declaração que permite a retificação da sentença tem de ser manifesto, de modo que quem lê o texto percebe claramente qual o seu efetivo sentido. III – Apenas é concebível a desistência do pedido relativamente àquele contra quem ele foi formulado na petição inicial, assumindo, por isso, a qualidade de réu. IV – A citação de pessoa diferente da efetivamente demandada pelo autor não atribui àquela a qualidade de réu na ação.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I.
1).1. EMP01..., SA, intentou, no dia 30 de outubro de 2022, por apenso aos autos em que foi declarada a insolvência da sociedade EMP02..., Lda., ação contra esta e contra Massa insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., e Credores da Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., pedindo a condenação solidária dos Réus: no pagamento de uma indemnização de € 47 500,00, para ressarcir o dano resultante da privação do uso de um imóvel propriedade da Autora, desde ../../2021; no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor locativo mensal do imóvel propriedade da Autora, nunca inferior a € 2 500,00, até ao momento em que forem removidos pelos Réus os bens que se encontram no seu interior; na remoção dos bens constantes do auto de apreensão de bens que se encontram no interior daquele imóvel; e no pagamento de juros de mora sobre as referidas quantias, calculados à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que: a primeira Ré é proprietária de diversos bens móveis que depositou num prédio que é propriedade da Autora, sem que tivesse qualquer título que a isso a habilitasse; com a declaração de insolvência da primeira Ré, esses bens foram apreendidos para a respetiva massa insolvente, tendo sido mantidos no mesmo local pela administradora de insolvência; a ocupação do prédio impede a Autora de o arrendar e, assim, de obter um rendimento mensal de € 2 500,00.
***
1).2. Na sequência, foram citados, para contestar, para além da EMP02..., Lda., e da Massa insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., esta representada pela administradora de insolvência nomeada, os credores que no processo de insolvência daquela primeira reclamaram e viram reconhecidos créditos sobre a insolvente, entre eles se incluindo EMP03..., LDA., a qual apresentou contestação na qual, entre o mais: alegou que é parte ilegítima, uma vez que na ação está em causa uma dívida da massa insolvente “que, nos termos do artigo 89º do CIRE e decorrido o prazo de moratória consagrado no n.º 1” deve ser reclamada através de ação para a qual apenas a massa tem legitimidade passiva; pediu, em sede reconvencional, a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 25 000,00, a título de compensação pelos danos que sofreu na sua imagem e reputação em consequência da propositura da ação.
***
1).3. No dia 6 de fevereiro de 2023, a Autora apresentou requerimento, subscrito pelo ilustre advogado por si constituído e ao qual atribuiu poderes forenses gerais, nos termos da procuração apresentada com a petição inicial, do seguinte teor (transcrição da parte relevante):
“EMP01..., SA, (…) Autora nos autos de processo comum à margem epigrafados e aí melhor identificada, em que são Rés 1º - EMP02..., Lda., (…) 2º - Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., (…) 3º - Credores da Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., todos melhor identificados nos autos, vem expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
1º - Intentou a autora esta ação com a convicção, errada, da existência de litisconsórcio necessário passivo das três rés.
2º - Nunca foi intenção da autora responsabilizar pessoalmente os credores pelos prejuízos reclamados.
3º - Prejuízos que são da única responsabilidade da massa insolvente.
Em face do exposto, a autora desiste dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda., e contra os credores da insolvente.”
***
1).4. No dia 13 de fevereiro de 2023, foi proferida sentença com o seguinte teor (transcrição):
“EMP01..., S.A., autora melhor identificada nos presentes autos, intentou a presente ação, com processo comum, contra EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda.
Veio agora a autora desistir dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE.
Ora, dispõem os artigos 283º, nº1, e 286º, nº2, do Código de Processo Civil, que o autor pode, em qualquer altura, desistir do pedido e que tal desistência é livre, pois não depende da aceitação do réu.
Assim, julga válida a desistência do pedido (cf. artigos 289º, nº1, “a contrario”, e 290º, nºs 1 e 3, do antigo Código de Processo Civil,), importando, por isso, extinguir o direito que a autora pretendia fazer valer contra os réus a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE (artigo 295º, nº1, do antigo CPC).
Decisão.
Pelo exposto, julgo válida a desistência do pedido apresentada pela autora contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE e declaro extinto o direito que aquela pretendia fazer valer contra estes, nos termos do disposto no artigo 285º, nº1, do antigo Código de Processo Civil.
Custas: pela desistente.
Registe, notifique, sendo a A. pessoalmente nos termos e para os efeitos do artº 291º, nº 3 do C.P. Civil.”
***
1).5. Na mesma data, foi proferido o seguinte despacho:
“EMP03..., L.da. veio apresentar contestação onde deduziu pedido reconvencional indemnizatório com base nos factos alegados na petição inicial, estando assim a apreciação de tal pedido dependente da apreciação dos fundamentos da ação, entretanto extinta quanto à referida ré nos termos sobreditos, bem como o direito que na mesma se pretendia fazer valer, sem prejuízo do disposto no artº 291º, nº 3 do C.P. Civil.
Deste modo, ao abrigo dos artºs 266º, nº 6 e 286º, n.º 2 do C.P. Civil declaro extinta a instância reconvencional por impossibilidade superveniente da lide.
Custas da instância reconvencional pela R. Reconvinte– artº 536º, nº 3, 1ª parte do C.P. Civil.”
**
1).6. A Autora apresentou, ainda dia 13 de fevereiro de 2023, um escrito, datado de 10 de fevereiro de 2023, em que a sua administradora declarou, nessa qualidade, constituir “seu bastante procurador[,] com a faculdade de substabelecer”, o ilustre advogado subscritor da petição inicial e do requerimento de 6 de fevereiro de 2023, conferindo-lhe “os mais amplos poderes forenses gerais em direito permitidos, e ainda os poderes especiais para a representar, confessar, desistir ou transigir nos autos de processo 5451/18...., que correm termos pela comarca de Braga, Juízo do Comércio de ..., Juiz ..., em que é Autora a mandante e Réus a massa insolvente EMP02... e outros.”
***
1).7. No dia 15 de fevereiro de 2023, foi proferido despacho do seguinte teor: “Atenta a junção da procuração com poderes especiais (refª ...23) fica prejudicada a notificação pessoal da Autora nos termos e para os efeitos do artº 291º, nº 3 do C. P. Civil.”
***
1).8. No dia 24 de fevereiro de 2023, a EMP03..., L.da. interpôs recurso (apenso I) da sentença de 13 de fevereiro e do despacho de 15 de fevereiro, o qual, depois de ter sido admitido pela 1.ª instância, se encontra a aguardar remessa a esta Relação.
***
1).9. No dia 16 de março de 2023, a Autora apresentou o seguinte requerimento (transcrição):
“EMP01..., S.A., Autora nos autos de processo supra referenciados e aí melhor identificada, vem, muito respeitosamente, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 614.º do CPC, requerer a retificação de Erro Material do segmento decisório, porquanto, o mesmo enferma de erro de escrita:
1.º - Com efeito, a 13/02/2023 foi proferida a seguinte sentença: “Pelo exposto, julgo válida a desistência do pedido apresentada pela autora contra a insolvente EMP02..., Lda., e contra os CREDORES DA INSOLVENTE e declaro extinto o direito que aquela pretendia fazer valer contra estes, nos termos do disposto no artigo 285.º n.º 1do antigo Código de Processo Civil.”
2.º - Ora, com devido respeito, onde consta CREDORES DA INSOLVENTE devia constar “CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., Lda.”, pois resulta assim um lapso de escrita.
3.º - Porquanto, a Autora intentou ação de processo comum contra a EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., lda.
4.º - E, por conseguinte, só poderia ter desistido da ação intentada conta os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., LDA.
(…)
7.º - Face ao exposto, impõe-se proceder à retificação da douta sentença nos moldes sobreditos, passando a constar a “CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., lda”.
***
1).10. A EMP03..., L.da., respondeu dizendo que:
“No dia 13/03/2023, foi junto aos autos pela autora uma procuração com os poderes especiais de representação para desistência, datada de 10/02/2023 e sem ratificação dos atos anteriores (vide peça processual com a referência CITIUS...23).
2. Nessa medida, o requerimento de 06/03/2023 (ref.ª ...13) está ferido de excesso de mandato e é o, enquanto não estiverem sanado, nulo e ineficaz, por violar o disposto nos artigos 44º, 45º e 291º do CPC e no artigo 268º do CC.
3. Não obstante o supra referido (o que de resto é objeto do recurso já interposto pela aqui requerente contra o despacho de 13/02/2023), facto é que inexiste o alegado «lapso de escrita» invocado pela autora.
Senão veja-se
4. A presente ação foi interposta em 30/10/2022.
5. Até ../../2023 a autora nada disse sobre as citações dos vários credores da insolvente, massa insolvente e/ou da própria insolvente, bem como sobre as contestações que entretanto foram sendo oferecidas.
6. Nomeadamente a que a ora requerente apresentou em 19/01/2023.
7. No requerimento de ../../2023 supra consta expressamente que o pedido de a autora desiste dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE.
8. Ainda que seja nulo nos termos alegados, foi este o requerimento que motivou o despacho de 13/02/2023 que agora ardilosamente se pretende alterar.
9. E acresce que esse mesmo requerimento não se encontra ratificado, nem a autora requer a sua retificação-
10. Pelo que autora age em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
11. Tentando de resto obter uma pretensão (a de ratificar os atos processados de modo improprio e não expresso) que sabe não ser legítima.
12. E sabendo já da existência do recurso apresentado pela ora requerente, na medida em que disso foi notificada por esta quando da interposição do recurso.
Termos em que se requer a V.ª Ex.ª que digne admitir o presente requerimento e consequentemente declarar improcedente o pedido da autora quanto à alteração da decisão proferida em 13/02/2023.”
***
1).11. No dia 8 de janeiro de 2024, foi proferido o seguinte despacho:
“A autora veio requerer, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 614.º do CPC, a retificação do que diz ser Erro Material do segmento decisório, alegando que o mesmo enferma de erro de escrita.
Para tanto alega que intentou ação de processo comum contra a EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda. e por conseguinte, só poderia ter desistido da ação intentada conta os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., LDA..
Assim, onde consta CREDORES DA INSOLVENTE devia constar “CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., Lda.”, pois resulta assim um lapso de escrita.
Vejamos.
EMP01..., S.A., autora melhor identificada nos presentes autos, intentou a presente ação, com processo comum, contra EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda..
A autora veio desistir dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE.
Foi proferida decisão que julgou válida a desistência do pedido apresentada pela autora contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE e declarou extinto o direito que aquela pretendia fazer valer contra estes, nos termos do disposto no artigo 285º, nº1, do antigo Código de Processo Civil.
Continuando.
No âmbito do processo de insolvência impõe-se distinguir entre dívidas da insolvência e dívidas da massa insolvente.
As dívidas da insolvência são aquelas que se constituíram antes da declaração da insolvência do devedor e são as únicas que se encontram submetidas ao regime do pagamento fixado nos arts. 173º e ss. do CIRE.
Já as dívidas da massa insolvente encontram-se enunciadas a título exemplificativo, no art. 51º do CIRE e correspondem, grosso modo, a dívidas que se constituíram após a declaração da insolvência do devedor e o respetivo pagamento apenas se encontra submetido ao regime da pontualidade previsto no art. 172º, n.º 3 do CIRE, cumprindo ao administrador de insolvência pagá-las mal se vençam com os rendimentos provenientes da massa insolvente e, na insuficiência destes, com o produto da venda dos bens que integram a massa insolvente, incluindo, derradeiramente, os bens onerados com garantia real, posto que a massa insolvente destina-se em primeiro lugar, à satisfação dos credores da massa insolvente e, apenas em segundo lugar, à satisfação dos credores da insolvência.
Os artigos 47º e 51º do CIRE aludem a duas diversas categorias de dívidas: o primeiro, reporta-se às dívidas da insolvência (a que correspondem os denominados créditos sobre a insolvência) e, o segundo, às dívidas da massa insolvente (a que correspondem os créditos sobre a massa insolvente).
O artigo 47º do CIRE, refere que:
1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
O artigo 51º, n.º 1 do CIRE elenca algumas das dívidas da massa insolvente. Já o n.º 2 do referido preceito refere que os créditos correspondentes a dívidas da massa insolvente e os titulares desses créditos são neste Código designados, respetivamente, por créditos sobre a massa e credores da massa.
Assim, os credores da massa insolvente são os titulares dos créditos resultantes de dívidas da massa (alegadamente como a autora).
Isto posto, vista a ação em causa, afigura-se-nos que ainda que a mesma não configure uma ação a que se refere o n.º 1 do art. 146º do CIRE, a menção na mesma aos credores da massa insolvente se tratou de um lapso, o qual teria sido sanado através do requerimento de desistência, onde se faz alusão aos credores da insolvência.
Na verdade, não resulta dos autos que existam outros credores da massa insolvente, além de que caso a ação se dirigisse aos mesmos, nem sequer estariam identificados.
Assim, o Tribunal assumiu que a ação era dirigida aos credores da insolvente,
Pelo exposto, notifique a autora para esclarecer a que credores da massa insolvente se referia na ação.”
***
1).12. Em resposta, a Autora disse que:
“1.º - Foi a aqui Autora notificada para esclarecer a que credores da massa insolvente se referia na ação.
Posto isto,
2.º - A Autora intentou a ação contra EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda.
3.º - Ora, a pretensão da Autora foi intentar a ação contra os Credores da Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., embora desconheça quem são os mesmos.
4º - Com o objetivo de obter a condenação da massa insolvente, decisão a ser respeitada pelos demais credores da massa.
5.º - Porquanto, nos presentes autos estará em causa dívidas da massa insolvente, só podendo assim a ação ser contra a Insolvente, Massa Insolvente e credores da Massa Insolvente, e não contra os credores da insolvente.
6.º - Embora, desconheça quem são os credores da massa insolvente, era contra estes que foi intentada a ação e não contra os credores da insolvente.
7.º - Nestes termos, mantém tudo o quanto alegado no requerimento de retificação de sentença por erro de escrita.”
***
1).13. Notificada, a EMP03..., Lda., disse que:
“1. Salvo o devido respeito e sem prejuízo do recurso já apresentado e só agora admitido, o facto é que inexiste o alegado «lapso de escrita» invocado pela autora.
Senão veja-se
2. A presente ação foi interposta em 30/10/2022.
3. Até ../../2023 a autora nada disse sobre as citações dos vários credores da insolvente, massa insolvente e/ou da própria insolvente, bem como sobre as contestações que entretanto foram sendo oferecidas.
4. Nomeadamente a que a ora requerente apresentou em 19/01/2023.
5. No requerimento de ../../2023 supra consta expressamente que o pedido de a autora desiste dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE.
6. Pelo que a Autora sabia efetivamente que estava nos autos a litigar contra os credores da Insolvência e quis fazê-lo.
7. Pelo que autora age em claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
8. Tentando de resto obter uma pretensão (a de ratificar os atos processados de modo improprio e não expresso) que sabe não ser legítima.
9. E sabendo já da existência do recurso apresentado pela ora requerente, na medida em que disso foi notificada por esta quando da interposição do recurso.
Termos em que se requer a V.ª Ex.ª que digne admitir o presente requerimento e consequentemente declarar improcedente o pedido da autora quanto à alteração da decisão proferida em 13/02/2023.”
***
1).14. No dia 23 de fevereiro de 2024, foi proferido o seguinte despacho:
“A autora veio requerer, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 614.º do CPC, a retificação do que diz ser Erro Material do segmento decisório, alegando que o mesmo enferma de erro de escrita.
Para tanto alega que intentou ação de processo comum contra a EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda. e por conseguinte, só poderia ter desistido da ação intentada conta os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., LDA..
Assim, onde consta CREDORES DA INSOLVENTE devia constar “CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., Lda.”, pois resulta assim um lapso de escrita.
Vejamos.
EMP01..., S.A., autora melhor identificada nos presentes autos, intentou a presente ação, com processo comum, contra EMP02..., Lda., MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda., e CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda..
A autora veio desistir dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE.
Foi proferida decisão que julgou válida a desistência do pedido apresentada pela autora contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE e declarou extinto o direito que aquela pretendia fazer valer contra estes, nos termos do disposto no artigo 285º, nº1, do antigo Código de Processo Civil.
Continuando.
No âmbito do processo de insolvência impõe-se distinguir entre dívidas da insolvência e dívidas da massa insolvente.
As dívidas da insolvência são aquelas que se constituíram antes da declaração da insolvência do devedor e são as únicas que se encontram submetidas ao regime do pagamento fixado nos arts. 173º e ss. do CIRE.
Já as dívidas da massa insolvente encontram-se enunciadas a título exemplificativo, no art. 51º do CIRE e correspondem, grosso modo, a dívidas que se constituíram após a declaração da insolvência do devedor e o respetivo pagamento apenas se encontra submetido ao regime da pontualidade previsto no art. 172º, n.º 3 do CIRE, cumprindo ao administrador de insolvência pagá-las mal se vençam com os rendimentos provenientes da massa insolvente e, na insuficiência destes, com o produto da venda dos bens que integram a massa insolvente, incluindo, derradeiramente, os bens onerados com garantia real, posto que a massa insolvente destina-se em primeiro lugar, à satisfação dos credores da massa insolvente e, apenas em segundo lugar, à satisfação dos credores da insolvência.
Os artigos 47º e 51º do CIRE aludem a duas diversas categorias de dívidas: o primeiro, reporta-se às dívidas da insolvência (a que correspondem os denominados créditos sobre a insolvência) e, o segundo, às dívidas da massa insolvente (a que correspondem os créditos sobre a massa insolvente).
O artigo 47º do CIRE, refere que: 1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio. O artigo 51º, n.º 1 do CIRE elenca algumas das dívidas da massa insolvente. Já o n.º 2 do referido preceito refere que os créditos correspondentes a dívidas da massa insolvente e os titulares desses créditos são neste Código designados, respetivamente, por créditos sobre a massa e credores da massa. Assim, os credores da massa insolvente são os titulares dos créditos resultantes de dívidas da massa (alegadamente como a autora). Isto posto, vista a ação em causa, afigura-se-nos que ainda que a mesma não configure uma ação a que se refere o n.º 1 do art. 146º do CIRE, a menção na mesma aos credores da massa insolvente se tratou de um lapso, o qual teria sido sanado através do requerimento de desistência, onde se faz alusão aos credores da insolvência. Na verdade, não resulta dos autos que existam outros credores da massa insolvente, além de que caso a ação se dirigisse aos mesmos, nem sequer estariam identificados. Assim, o Tribunal assumiu que a ação era dirigida aos credores da insolvente.
Notificada a autora para esclarecer a que credores da massa insolvente se refere a mesma veio dizer que a sua pretensão foi intentar a ação contra os Credores da Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., com o objectivo de obter a condenação da massa insolvente, decisão a ser respeitada pelos demais credores da massa. Porquanto, nos presentes autos estará em causa dívidas da massa insolvente, só podendo assim a ação ser contra a Insolvente, Massa Insolvente e credores da Massa Insolvente, e não contra os credores da insolvente.
Embora, desconheça quem são os credores da massa insolvente, era contra estes que foi intentada a ação e não contra os credores da insolvente.
EMP03..., LDA. veio dizer inexistir o alegado lapso de escrita invocado pela autora, pelo que se deverá indeferir o requerido.
Vejamos.
Pese embora o supra referido quanto à diferença entre credores da massa insolvente e credores da insolvência, o certo é que é o autor quem decide como configurar a ação e contra quem intenta a mesma.
Assim, a autora intentou a ação contra CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda. e, por conseguinte, só poderia ter desistido da ação intentada conta os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., LDA.. Na verdade, ainda que no requerimento onde veio apresentar a desistência não tivesse sido clara ao referir, na parte final, os CREDORES DA INSOLVENTE EMP02..., o certo é que não efetuou nenhum pedido de retificação e, portanto, não o tendo feito só poderia desistir contra quem constasse como parte no processo.
Assim, defere-se o requerido e na sentença proferida, na parte decisória, onde consta “CREDORES DA INSOLVENTE” deverá passar a constar “CREDORES DA MASSA INSOLVENTE EMP02..., Lda.”
***
2) Inconformada com o despacho acabado de transcrever, a EMP03..., Lda. (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“I. Em 30/10/2022, a recorrida deduziu a petição inicial contra a sociedade EMP02..., Lda a MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02... Lda e os CREDORES DA MASSA INSOLVENTE DA SOCIEDADE EMP02..., Lda, pedindo que os réus fossem solidariamente condenados nos pedidos que formulou (vide peça processual com a referência CITIUS 13676665).
II. Por despacho liminar de 21/11/2020 o douto Tribunal a quo ordenou a alteração da qualificação dos presentes autos para ACÇÃO DE PROCESSO COMUM e não um procedimento no âmbito do CIRE.
III. Em 24/11/2022 foram expedidas diversas citações da ação, dirigidas à insolvente, à sua massa e aos credores conhecidos nos autos
IV. A partir de 18/01/2023 foram apresentadas contestações por alguns dos credores, incluindo a ora recorrente.
V. Até ../../2023 a autora nada disse sobre as citações dos vários credores da insolvente, massa insolvente e/ou da própria insolvente, bem como sobre as contestações que entretanto foram sendo oferecidas.
VI. Em ../../2023, o mandatário (sem poderes especiais para confessar e desistir) da recorrida apresentou um requerimento onde informou que «desiste dos pedidos apresentados contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE» (sic) – vide peça processual com a referência CITIUS 141226613.
VII. A recorrente foi notificada do requerimento de desistência do pedido da recorrida em 09/02/2023 - vide peça processual com a referência CITIUS 141226613.
VIII. Em 13/03/2023, foi proferido a sentença que julga «válida a desistência do pedido apresentada pela autora contra a insolvente EMP02..., Lda. e contra os CREDORES DA INSOLVENTE e declaro extinto o direito que aquela pretendia fazer valer contra estes, nos termos do disposto no artigo 285º, nº1, do antigo Código de Processo Civil.»; que declara «extinta a instância reconvencional por impossibilidade superveniente da lide» e que condena a recorrente nas custas da instância reconvencional (vide despacho com a referência CITIUS 1183390749).
IX. Em 13/03/2023, foi junto aos autos pela recorrida uma procuração com os poderes especiais de representação para desistência, datada de 10/02/2023 e sem ratificação (vide peça processual com a referência CITIUS 14158623).
X. A recorrente foi notificada da junção da referida procuração com alegados poderes especiais em 16/03/2023 (idem peça processual com a referência CITIUS 14158623)
XI. O douto Tribunal a quo proferiu, em 15/02/2023 o despacho com a referência CITIUS 183563274 no qual decide que «atenta a junção da procuração com poderes especiais (refª ...23) fica prejudicada a notificação pessoal da Autora nos termos e para os efeitos do artº 291º, nº 3 do C. P. Civil».
XII. Da ausência de poderes para a desistência resulta uma nulidade nos termos do artigo 291º n.º 3 do CPC,
XIII. Mas, para que a nulidade se considere sanada, à ratificação não basta a junção de procuração emitida em data ulterior à dos atos praticados, pois ela tem de ser expressa e obedecer aos requisitos do artº 268º do Código Civil (CC).
XIV. In casu o pedido de desistência feito pela recorrida é nulo por excesso de mandato, não se encontra ratificado de forma expressa e é ineficaz para com a recorrida, violando o disposto nos artigos 44º, 45º e 291º do CPC e no artigo 268º do CC.
XV. A verdade é que a Autora quis intentar uma ação com vista a uma verificação ulterior de créditos sobre a insolvente e Autora sabia efetivamente que estava nos autos a litigar contra os credores da Insolvência e quis fazê-lo.
XVI. E nada fez para obstar a que o processo se desenrolasse como se desenrolou.
XVII. Agindo de novo em claro abuso de direito quando e volvido mais de ano e meio sobre a apresentação da sua petição inicial e sempre mais de um ano sobre o despacho proferido, invocando um suposto lapso de escrita, que em rigor nunca existiu.
XVIII. Tentando de resto obter uma pretensão (a de ratificar os atos processados de modo improprio e não expresso) que sabe não ser legítima.
XIX. E sabendo já da existência do recurso apresentado pela ora requerente, na medida em que disso foi notificada por esta quando da interposição do recurso.
XX. Querendo de forma ilegítima e ilegal, esvazia-lo de conteúdo, arguindo um suposto lapso de escrita que, na realidade nunca existiu.
XXI. Sendo certo que o digno Tribunal a quo, ao invés de zelar pelo cumprimento da ilegalidade, acaba por ignorar a apresentação de uma desistência sem que o Ilustre Mandatário tivesse poderes para tanto, sem que a Autora tivesse ratificado tais poderes.
XXII. E acaba, de forma encapotada, pretender sanar o evidente vício da dita desistência declarando procedente um suposto lapso de escrita argumentado por quem, hoje, possui mandato para desistir, mas que à data da desistência os não tinha e cuja atuação não foi ratificada pela Autora.
XXIII. Pelo que, salvo o devido, respeito, o despacho ora recorrido é nulo, por força 44º, 45º e 291º do CPC e no artigo 268º do CC.”
Pediu que, na procedência do recurso, este Tribunal ad quem declare “nulo[s][,] por violação do disposto nos artigos 44º, 45º e 291º do CPC e no artigo 268º do CC, os despachos recorridos[,] por versarem sobre um pedido de desistência do pedido, apresentado por mandatário sem poderes para o efeito e não ratificado pela recorrida” (sic)
***
3) Não foi apresentada resposta.
***
4) O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
***
5) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
***
II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, a questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a decisão recorrida – que é o despacho de 24 de fevereiro de 2024 – incorreu em erro de direito ao deferir o pedido de retificação da sentença homologatória da desistência do pedido proferida no dia 13 de fevereiro de 2023.
Não se coloca, portanto, qualquer questão relacionada com a sentença de 13 de fevereiro de 2023, em si mesma, nem com o despacho de 15 de fevereiro do mesmo ano, ambos objeto de um outro recurso, oportunamente interposto pela aqui Recorrente e que se mostra pendente.
***
III.
1) Os factos a considerar na resposta à questão enunciada são os descritos no ponto 1) do relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão, os quais resultam do iter processual da ação, evidenciado pela certidão com que foi instruído o presente recurso, esta complementada pela consulta dos autos através da aplicação informática de apoio à atividade dos tribunais (Citius).
***
2).1. De acordo com a tese da Recorrente, a decisão recorrida, sob a capa de uma retificação da sentença de 13 de fevereiro de 2023 no segmento em que homologou a desistência do pedido quanto aos credores da insolvente, substituindo-o por outro em que aquela desistência foi homologada quanto aos credores damassa insolvente, tem um conteúdo verdadeiramente inovador.
Para sustentar esta tese, a Recorrente afirma que aquele segmento da sentença de 13 de fevereiro de 2023 não enfermava de qualquer erro de escrita, pressuposto necessário da sua retificação, ato este que, acrescentamos, não passando disso mesmo, nunca poderá ter um conteúdo inovador.
De acordo com esta tese, a decisão recorrida apenas se apresenta como desfavorável para a Recorrente na medida em que da natureza inovadora que lhe é atribuída resulta a revogação da sentença de 13 de fevereiro de 2023, no que tange à homologação da desistência do pedido na parte relativa aos credores da insolvente, entre os quais se inclui a Recorrente, fazendo, assim, ressurgir o direito que a Autora, através da ação, supostamente pretende fazer valer quanto a eles e conferindo-lhes, novamente, a qualidade de réus.
Isto evidencia que a decisão recorrida é inócua em relação à Recorrente na parte em que, sempre segundo a sua tese, importou a homologação da desistência do pedido quanto aos credores da massa insolvente. Por uma singela razão: a Recorrente não se inclui nesta categoria (credores da massa insolvente). Aliás, acaso fosse um credor da massa insolvente, teria de negar-se a respetiva legitimidade para a interposição do recurso. Estaríamos então perante uma decisão que, importando a homologação da desistência do pedido formulado relativamente à Recorrente, com os efeitos que lhe são próprios, seja no plano substantivo (extinção do direito subjetivo: art 285/1 do CPC), seja no plano processual (extinção da instância: art. 277, d), do CPC), se apresentaria como favorável para ela.
O conhecimento do recurso pressupõe, portanto, aquela primeira dimensão da decisão recorrida – a alegada revogação da sentença homologatória de 13 de fevereiro de 2023 no segmento em que nesta foi declarada a homologação da desistência do pedido quanto aos credores da insolvente, assim eliminando ex tunc um efeito favorável à Recorrente.
***
2).2.1. Tomando como mote as considerações que antecedem, tudo está em saber se o Tribunal a quo escreveu, na sentença de 13 de fevereiro de 2023, credores da insolvente quando queria escrever credores da massa insolvente e se o erro assim cometido se apresentava como manifesto.
Se a resposta a uma destas questões for negativa, então teremos de concluir que não havia fundamento para a retificação. A decisão recorrida apresentar-se-á como modificativa da sentença de 13 de fevereiro de 2023, assumindo um caráter verdadeiramente inovador quanto a uma questão em relação à qual o Tribunal a quo não podia emitir nova pronúncia por o seu poder jurisdicional se encontrar já esgotado.
Explicando melhor, lembramos que, com a sentença, o juiz deixa de poder pronunciar-se sobre o objeto da causa. É o que se designa por “esgotamento do poder jurisdicional” (art. 613/1 do CPC).
A sentença atinge o primeiro nível de estabilidade. Trata-se de uma estabilidade interna, restrita ao órgão que a proferiu (Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 174). O segundo nível, já alargado, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (art. 620), ou mesmo, fora dele, outros tribunais (art. 619), apenas será atingido quando a sentença transitar em julgado, nos termos do art. 628/1.
Aquele primeiro nível de estabilidade significa que, prolatada a sentença, o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais, fundada nos princípios da segurança jurídica e da imparcialidade do juiz. Como explica Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 127, “[q]ue o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão.”
De acordo com Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp. 329-330, nota 38), a prolação de nova decisão fora dos casos dos casos contemplados no n.º 2 do art. 613 (retificação de erros materiais, supressão de nulidades e reforma da sentença) constitui uma nulidade processual, sanável pela falta de tempestiva arguição.
Este entendimento não é, porém, consensual na doutrina e na jurisprudência.
Assim, de acordo com Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum de Declaração, II, 2.ª ed., Braga, 1944, pp. 358-359, estamos perante uma verdadeira inexistência jurídica. Já para João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, Lisboa: AAFDL, 1978/79, p. 300), trata-se antes de um caso de ineficácia, por aplicação analógica da norma do art. 675/2 do CPC de 1961, semelhante à do CPC de 2013, atualmente em vigor.
Na jurisprudência, considerou-se que a sentença proferida quando o poder jurisdicional estava esgotado é ineficaz em RC 24.04.2018 (3639/09.5TJCBR-A.C1), RG 16.05.2019 (838/12.6TBGMR-F.G1) e RG 14.09.2023 (120/16.0T8MGD.G2), este último relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, tendo como 2.ª adjunta as Juízas Desembargadoras Maria Gorete Morais e Maia João Marques Pinto de Matos. Em RG 2.03.2023 (120724/15.0YIPRT.1.G1-A) e em RL 23.03.2023 (10693/14.6T8LSB.L1-8) entendeu-se que a sentença é inexistente.
A nosso ver, conforme escrevemos, a necessidade de evitar a insegurança e a incerteza que está na base do primeiro grau de estabilidade das decisões judiciais justifica a exclusão da tese que reconduz o vício a uma simples nulidade processual, dependente de arguição. Esta não se coaduna nem com a gravidade do vício e o seu potencial de lesão para o sistema de administração da justiça nem com a letra do art. 613/1 que, através do advérbio de tempo imediatamente, vinca bem a relevância do princípio.
Por outro lado, sem entrar na discussão sobre se a inexistência constitui uma figura autónoma (inter alia, no domínio do negócio jurídico, Carlos Ferreira de Almeida, “Invalidade, inexistência e ineficácia”, Católica Law Review, I, n.º 2, maio de 2017, pp. 9-33), sempre notamos que subjacente a tal vício está a ideia de que sem sequer na aparência se verifica o corpus de um determinado ato ou, existindo embora a aparência, a realidade contradiz essa noção. Será o caso da sentença proferida por quem, pura e simplesmente, não é titular do poder jurisdicional ou da sentença que crie um estado de coisas impossível.
Não é o que sucede quando a sentença é proferida por um juiz, investido do poder jurisdicional de administrar a justiça em nome do povo, conforme diz o art. 202 da Constituição da República, mas que, por ter cumprido já essa sua obrigação (Alberto dos Reis, Código cit., p. 127), viu exaurido, na concreta situação, aquele seu poder.
Daí que nos pareça mais adequada a solução proposta no citado RC 24.04.2018 no sentido de considerar que a sentença proferida em tais circunstâncias é ineficaz nos mesmos termos em que o é a sentença proferida em afronta a uma outra, já transitada, que decidiu a mesma questão, por aplicação do disposto no art. 625/1 do CPC.
Como se escreve no aresto, “se a lei determina a ineficácia entre duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, no referido art. 625º do NCPC, paralisando a que transitou em segundo lugar, afigura-se-nos que semelhante raciocínio e consequência jurídica, pode ser feito e há de ser tirada em relação à situação processual imediatamente antecedente, isto é, quando embora ainda não haja trânsito em julgado de nenhuma das decisões, tivessem sido proferidas duas, de seguida, de sinal contrário. Ou seja, perante a intangibilidade da primeira decisão a defesa da sua eficácia faz-se a montante, num momento anterior, em vez de se esperar que tal ineficácia se produza a jusante, num momento posterior.”
***
2).2.2. A regra do esgotamento do poder jurisdicional comporta, todavia, ressalvas, conforme resulta, claramente, do n.º 2 do art. 613, onde se diz que “[é] lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.”
Estão em causa, portanto, as situações em que o juiz pode retificar erros materiais (art. 614), suprir nulidades (art. 615) e reformar a sentença (art. 616). Este regime, previsto para as sentenças, é aplicável aos despachos (art. 613/3 do CPC).
Sobre as primeiras (retificação de erros materiais) – as únicas que relevam neste recurso – diz o art. 614/1 que “[s]e a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do art. 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”
Deixando de lado a omissão de custas ou da indicação da proporção a que se refere o n.º 6 do art. 607 do CPC, constatamos que a lei inclui no perímetro possível de retificações: o suprimento da omissão de indicação do nome das partes; a correção de erros de escrita ou de cálculo ou de quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
O erro material é habitualmente caracterizado como uma divergência entre a vontade real e a vontade declarada do juiz, o que o aproxima, em termos conceptuais, da figura do erro-obstáculo própria do direito civil (STJ 12.02.2009, 08A2680; RP 2.06.2014, 3953/12.2TBVNG-B-P1). Ocorre assim quando “o juiz escreveu uma coisa diversa daquela que queria escrever” (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2). Distingue-se do erro de julgamento que ocorre quando há uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão. Nestes, o erro reside na própria vontade do juiz, sendo o remédio o recurso destinado a uma modificação ou alteração substancial da decisão (art. 627/1) ou, quando este não seja admissível, a reforma (cf. art. 616/2).
Reconhecendo a dificuldade em apurar a vontade real do juiz, a lei impõe um requisito para que o erro material releve qua tale: a sua natureza manifesta. Erro manifesto é aquele que facilmente se deteta e evidencia por si próprio e no contexto em que a declaração é exarada, à semelhança do que sucede com os erros de cálculo ou de escrita dos atos das partes (art. 146/1). Neste sentido, STJ 26.11.2015 (706/05.6TBOER.L1.S1), onde se conclui que “[n]ão pode ser qualificada como retificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detetava da leitura do respetivo texto.” E evidencia-se não apenas para o juiz que proferiu na decisão, mas também para quem a lê (RC 10.03.2015, 490/11.6TBOHP-D.C2).
Isto transmite claramente a ideia de que, não obstante o erro, quem lê a decisão percebe claramente qual o seu sentido, de modo que as alterações introduzidas não podem, por definição, assumir natureza inovatória (RG 30.11.2022, 2273/07.9TBBCL-N.G1). Só assim se compreende, de resto, que a retificação possa ter lugar a qualquer momento, oficiosamente ou a requerimento das partes, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão (RG 22.11.2018, 56/18.0T8BRG.G1).
***
2).3. Isto dito, importa agora atentar na sentença de 13 de fevereiro de 2023.
Esta desdobra-se em três segmentos: o relatório (1.º e 2.º §§); a fundamentação (3.º e 4.º §§) e a decisão (5.º §).
No primeiro segmento, é dito que a Autora propôs a ação contra a insolvente EMP02..., Lda., a massa insolvente da Sociedade EMP02..., Lda., e os Credores da Massa Insolvente da Sociedade EMP02..., Lda. Acrescenta-se, depois, que a Autora veio desistir do pedido deduzido contra a insolvente e os credores da insolvente.
No segundo segmento, é dito que a desistência do pedido tem como consequência a extinção do direito que a Autora pretendia fazer valer “contra os Réus a insolvente EMP02..., Lda., e contra os credores da insolvente” (destacado nosso).
No terceiro, julga-se válida a desistência do pedido e declara-se extinto o direito “que a Autora pretendia fazer valer contra os Réus a insolvente EMP02..., Lda., e contra os credores da insolvente” (destacado nosso).
Logo aqui se percebe, sem margem para tergiversações, que a expressão credores da insolvente foi utilizada, na sentença retificada, ainda que impropriamente, como sinónimo de credores da massa insolvente, estes sim os destinatários dos pedidos formulados na petição inicial e, portanto, os únicos em relação aos quais fazia sentido a desistência e a sua homologação. Dito de outra forma, é manifesto, para qualquer leitor, que a desistência foi considerada válida no que tange aos Réus credores da massa insolvente e não quanto credores da insolvente, que nem sequer tinham sido demandados pela Autora, resultando a menção a estes de um erro de escrita.
Se assim é, então temos de concluir que a decisão recorrida não tem qualquer caráter inovador; ela limita-se a retificar uma declaração escrita que qualquer leitor logo percebia padecer de um erro – de resto, importado do requerimento de desistência do pedido que havia sido apresentado pela Autora.
Deste modo, concluímos que a homologação da desistência quanto aos credores da massa insolvente – e não quanto aos credores da insolvente – resultava já da sentença de 13 de fevereiro de 2023. Como tal, apesar da expressão verbal, não podia retirar-se desta sentença a homologação da desistência contra os credores da insolvente – nem tal faria qualquer sentido, uma vez que estes não eram (rectius, não são) réus.
***
2).4. As considerações acabadas de fazer compreendem-se facilmente se tivermos presente a diferença estabelecida pela lei entre credor da massa insolvente e credor da insolvente. Os primeiros são os titulares ativos das dívidas da insolvência; os segundos são os titulares ativos das dívidas da massa insolvente.
A distinção entre estas duas categorias de dívidas e a sua relevância é feita em RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, nos termos que aqui respigamos:
“(…) em sede de processo de insolvência, para efeitos de pagamento, impõe-se distinguir entre dívidas da insolvência (que são unicamente as que se constituíram antes da declaração da insolvência do devedor e que por força do princípio da exclusividade são exclusivamente as que foram reconhecidas no âmbito do processo de insolvência, isto é, que tenham sido nele julgadas verificadas e graduadas na sentença de verificação e graduação de créditos, por sentença transitada em julgado – art. 173º), as quais serão pagas de acordo com as regras prevista nos arts. 173º a 182º CIRE, ou seja, tendo em conta as garantias de pagamento que lhes assistem e em função do princípio da igualdade entre as diversas categorias de créditos, e, por outro lado, as dívidas da própria massa insolvente, as quais se constituem, por norma, após a declaração da insolvência do devedor e que serão liquidadas/pagas pelo administrador de insolvência de acordo com as regras enunciadas no art. 172º do CIRE.
Precise-se que a massa insolvente destina-se em primeiro lugar à satisfação dos credores da massa insolvente, e em segundo lugar, à satisfação dos credores da insolvência.
Na verdade, nos termos do n.º 1 do art. 46º, “a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
Assim, conforme se lê no n.º 21 do Preâmbulo do CIRE, o legislador distingue expressa e claramente entre «dívidas da insolvência» e «dívidas da massa insolvente», delimitando aquelas no art. 47º e dedicando a estas o art. 51º.
Em sede de pagamento das dívidas da insolvência, tendo em consideração que a massa insolvente se destina, em primeiro lugar a satisfazer as dívidas da massa insolvente, compreende-se que o n.º 1 do art. 52º determine que “antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, terá o administrador da insolvência de deduzir da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo”, posto que apenas uma vez satisfeitas as dívidas da massa insolvente é que se houver remanescente é que se procederá ao pagamento das dívidas da insolvência, de acordo com as regras impostas nos arts. 173º e segs., do CIRE.
As dívidas da massa insolvente são liquidadas, em primeira linha, com os rendimentos gerados pela própria massa insolvente, mas se esses rendimentos não forem suficientes para honrar as dívidas da massa, são os próprios bens, móveis e imóveis, que integram a massa insolvente que têm de suportar esse pagamento. Porém, quanto aos créditos garantidos sobre a insolvência, porque os respetivos credores são aqueles que são pagos em primeiro lugar no confronto com os demais credores da insolvência, compreende-se que o n.º 2 do art. 172º estatua que a imputação não deverá exceder 10% do produto de bens objeto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos, o que significa que se o valor dos rendimentos da massa insolvente e o valor dos bens que integram a massa insolvente que se encontram desonerados de garantias reais não for suficiente para satisfazer as dívidas da massa insolvente e se for necessário recorrer ao produto da venda dos bens que integram a massa insolvente onerados com garantias reais, que exceda esses 10%, não exista qualquer impedimento a esse recurso, posto que as dívidas da massa insolvente é que têm de ser satisfeitas, mesmo que para tal se tenha de recorrer à totalidade do produto da venda de bens onerados com garantias reais.
Quanto ao momento do pagamento dos créditos que incidem sobre a massa insolvente, nos termos do n.º 3 do art. 175º, vigora quanto a eles o princípio da pontualidade, em função do qual impende sobre o administrador de insolvência a obrigação de proceder ao pagamento das dívidas da massa insolvente mal estas se vençam, não obedecendo, portanto, o pagamento das dívidas da massa insolvente às mesmas regras que presidem ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, que se encontram enunciadas nos arts. 173º e ss. do CIRE.
Aliás, uma vez vencidas as dívidas da massa insolvente, caso o administrador de insolvência não disponha de meios líquidos que lhe permitam efetuar o pagamento de tais débitos, “deve, com a maior diligência possível, promover a venda dos bens desonerados, exatamente por virtude das regras da imputação que resultam do n.º 2” do art. 172º e se, ainda assim o produto destes for insuficiente para liquidar as dívidas da massa insolvente que se venceram, terá de promover a célere venda de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo os bens onerados com garantias reais.”
***
2).5. Por outro lado, importa precisar que a afirmação de que os credores da insolvente não são parte na ação assenta na constatação de que a Autora apenas demandou, para além da insolvente e da respetiva massa, um conjunto de Réus que identificou, de forma clara e expressa, como fazendo parte da categoria de credores da massa insolvente, o que se apresenta como coerente com a causa de pedir gizada na petição inicial, conforme, de resto, é salientado pela Recorrente na contestação que apresentou ao arguir a respetiva ilegitimidade precisamente por, estando em causa uma dívida da massa insolvente, ser mera credora da insolvente.
Tal afirmação tem ainda em consideração que o conceito de parte assume natureza estritamente formal: é parte quem propõe a ação (autor), aquele contra quem ela é proposta (réu), o sucessor da parte primitiva, depois de devidamente habilitado, e quem subsequentemente intervier no processo em resultado da decisão de um dos incidentes de intervenção de terceiros previstos na lei adjetiva, independentemente de o ser para o direito material. A propósito, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – Conceito e Princípios Gerais, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, pp. 60-61.
Esta conclusão não se altera pelo facto de terem sido citados, por iniciativa da secretaria, para contestar, os credores da insolvente e de alguns deles, designadamente a Recorrente, terem mesmo contestado. Na verdade, o que aqui se evidencia é uma situação de erro na identidade do citado. Esta não é meio adequado a atribuir ao citado a qualidade de parte: como escreve Miguel Teixeira de Sousa (CPC Online, CPC: art. 130.o a 361.o Versão de 2024/07, p. 71), “[a] citação não pode ter a função nem de determinar quem é réu numa ação, nem de impor a alguém que se torne réu numa ação; essa função só pode incumbir ao autor.” O único efeito do erro na identidade do citado é aquele que é consequência do seu reverso: a nulidade decorrente da falta de citação do verdadeiro réu (arts. 187/1, a), e 188/1, b), do CPC).
***
2).6. Perante o que antecede, concluímos que a decisão recorrida não tem qualquer conteúdo inovador; limita-se a retificar um erro de escrita manifesto constante da sentença de 13 de fevereiro de 2023.
Foi, para além do mais, proferida antes da remessa ao Tribunal ad quem do recurso interposto da sentença retificada, sendo tempestiva (art. 614/2 do CPC).
Não configura, portanto, qualquer infração à regra do esgotamento do poder jurisdicional.
Por outro lado, como resulta implícito do que escrevemos, essa decisão não convocou a aplicação das normas jurídicas identificadas nas conclusões do recurso como tendo sido violadas pelo Tribunal a quo. Essas normas terão sido aplicadas antes na sentença de 13 de fevereiro e no despacho de 15 de fevereiro de 2023, que foram objeto de um outro recurso interposto pela Recorrente. Esse outro recurso será a sede própria para discutir se as decisões em causa enfermam de error in iudicando em qualquer uma das suas modalidades (cf. arts. 616/2, a), e 639/2, c).
***
3) Sendo de concluir pela improcedência do recurso, a Recorrente deve ser condenada no pagamento das custas respetivas: art. 527 do CPC.
***
IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
(i) julgar o presente recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida;
(ii) condenar a recorrente no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
*
Guimarães, 19 de setembro de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2.ª Adjunta: Maria Gorete Morais