INSOLVÊNCIA
CRÉDITOS DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
COIMAS (PORTAGENS NÃO PAGAS)
LEI N.º 27/2023
DE 4 DE JULHO
PRESCRIÇÃO
SUSPENSÃO DE PRAZO
LEGISLAÇÃO COVID-19
Sumário


I. A Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, consagrou um novo mecanismo de cálculo de coimas devidas pela falta de pagamento de portagens, permitindo a redução substancial de valores até então em dívida (nomeadamente, pela fixação de limites máximos às dívidas com essa origem e pelo passar para um mês - em vez de um dia - o período em que o valor máximo da coima é o correspondente ao de uma única contraordenação); e iniciou a produção dos seus efeitos em 01 de Julho de 2024, sendo imediatamente aplicável aos processos de contraordenação ou de execução fiscal pendentes por aquele tipo de infracções.

II. Impondo a aplicação da Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, a comparação do resultado que daí resulte com o resultado que resultaria da aplicação do regime anterior (por forma a que o arguido beneficie do que, em concreto, se apure como mais favorável), depende do conhecimento de plúrimos e cumulativos elementos factuais (v.g. o dia concreto em que um veículo passou na portagem, o veículo correspondente a cada passagem, a infra-estrutura rodoviária concreta em que ocorreu essa passagem, o valor do custo associado ao conjunto das passagens ao longo de um mês).

III. A Autoridade Tributaria só pode liquidar um imposto ou coima não pagos se não estiverem decorridos 5 anos sobre a data da prática do facto tributário ou da contraordenação, prescrevendo depois o procedimento contraordenacional (art.º 33.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias); e liquidado o imposto/a coima, os mesmos prescrevem no prazo de 8 anos a contar da prática do facto do tributário ou da contraordenação (art.º 48.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária).

IV. Por força dos confinamentos ocorridos nos anos de 2020 e 2021 (devido à pandemia COVID-19), os prazos de prescrição estiveram suspensos por um total de 160 dias (86 dias no ano de 2020 e 74 dias no ano de 2021); e, finda essa suspensão, prolongaram-se por idêntico período de tempo.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. Nos autos de insolvência (principais, e de que estes são apenso) pertinentes a AA, foi declarada a insolvência respectiva por sentença de 11 de Maio de 2023 (já transitada em julgado), sendo fixado na mesma o prazo de trinta dias para reclamação de créditos.

1.1.2. Reclamados, foi junta pela Administradora da Insolvência a lista dos créditos reconhecidos (constando, nomeadamente, da mesma créditos reclamados pela Autoridade Tributária, no valor global de € 46.499,11, sendo € 154,47 pertinentes a IUC, € 3.716,51 pertinentes a coimas por passagens não pagas em portagens, € 689,81 pertinentes a IRS, e € 41.938,32 pertinentes a UC, IVA, custas, coimas e encargos) e dos créditos não reconhecidos.

1.1.3. O Insolvente (AA) impugnou parte dos créditos reconhecidos à Autoridade Tributária, defendendo nomeadamente: não ter sido reconhecida a prescrição do valor de € 6.328,01 (invocada por carta registada com aviso de recepção datada de 8 de Maio de 2023 e reiterada no seu requerimento inicial de apresentação à insolvência, carta essa que aqui se dá por integralmente reproduzida); não ter sido reconhecida a condição resolutiva do crédito de € 944,52 (por coima de passagem em portagem não paga), que se encontra a ser por ele impugnado no processo n.º 1440/21.7BEBRG (do Tribunal Administrativo e Fiscal de ... - Unidade Orgânica 2), ou, subsidiariamente (caso se entenda que, mercê dessa impugnação judicial, o dito crédito de € 944,52 ainda não se constituiu), por não ter sido reconhecida a condição suspensiva respectiva; e por não ter sido considerada a condição suspensiva ou resolutiva de parte dos créditos por coimas (por passagens não pagas em portagens), consagrada na Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho (que reduziu substancialmente o valor total que poderá ser cobrado a título de portagem, coimas e quaisquer custos administrativos associados), já então em vigor e com produção de efeitos diferida para 1 de Julho de 2024.

1.1.4. A Administradora da Insolvência respondeu à impugnação apresentada, dizendo: apurando-se não ter sido interrompido o prazo de prescrição de créditos reconhecidos por si (por força da inexistência de qualquer acto - citação e notificação - com o efeito de interrupção duradouro), nada teria a opor ao seu não reconhecimento; sendo o crédito objecto de impugnação judicial litigioso, caberia ao Tribunal decidir se o mesmo deveria, ou não, ser considerado um crédito e sob condição suspensiva (até que sobre ele seja proferida sentença e a mesma transite em julgado); e relativamente à Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, não poderia tê-la considerado por ainda não ter iniciado a produção dos seus efeitos, não tendo igualmente elementos nos autos para os determinar em concreto.

1.1.5. O Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) respondeu à impugnação de créditos de que a Autoridade Tributária foi alvo, afirmando, singela e conclusivamente, não se encontrarem prescritos os créditos fiscais reclamados.

1.1.6. Foi proferida sentença de reconhecimento de créditos, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
O Devedor impugna, ainda, os créditos reconhecidos ao credor Autoridade Tributária, no montante global de € 46.499,11, defendendo que (1) deverá ser deduzido àquele montante global a quantia de € 6.328,01, uma vez que se tratam de (supostas) dívidas que se encontram prescritas, nos termos do artigo 48.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária; (2) devendo ainda declarar-se que parte do crédito da AT, no montante de € 944,52, se encontra sujeito a condição resolutiva, ou, subsidiariamente, suspensiva, uma vez que o processo n.º 1440/21.7BEBRG pende ainda no TAF de ...; (3) pedindo ainda que se julgue parte do crédito reclamado e reconhecido à AT, no montante de € 25.091,45 (€ 7.954,54 + € 17.136,91) extinto ex lege, por efeito da Lei n.º 27/2023 ou, subsidiariamente, sujeito a condição resolutiva, por efeito da mesma lei.

Vejamos.
Desde logo, nos termos do art.º 48.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro), “as dívidas tributárias prescrevem, salvo o disposto em lei especial, no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário”.
Por sua vez, nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias (aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho), “o procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do facto sejam decorridos cinco anos” (art.º 33.º, n.º 1), sendo que “as sanções por contra-ordenação tributária prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data da sua aplicação, sem prejuízo das causas de interrupção e de suspensão previstas na lei geral” (art.º 34.º).

In casu, atendendo à factualidade apurada e aplicando os dispositivos legais supra referenciados, verifica-se que dos valores reclamados ao Insolvente pela AT, € 4.162,35 correspondem a dívidas com mais de oito anos, e € 2.165,66 correspondem a dívidas com menos de oito anos, mas provenientes de processos contra-ordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram há mais de cinco anos, termos em que um total de € 6.328,01 corresponde a dívida prescrita e, como tal, deverá ser reduzido ao montante global reclamado.
Acresce que, ainda de acordo com a factualidade apurada, nos termos do processo n.º 1440/21.7BEBRG, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de ... (Unidade Orgânica 2) e no qual não foi ainda proferida decisão, o ora Insolvente impugnou judicialmente coimas aplicadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante de € 944,52, com fundamento na referida impugnação judicial na falta de notificação da AT para apresentar defesa ou proceder ao pagamento das portagens e coimas pelo mínimo legal e com as reduções previstas pelo RGIT. Tal montante deverá, assim, ser reconhecido sob condição suspensiva.
Por fim, verifica-se que parte substancial desta dívida do Insolvente à AT refere-se a alegadas passagens em estradas concessionadas.
Ora, neste ponto defende o Devedor que se julgue parte do crédito reclamado e reconhecido à AT, no montante de € 25.091,45 (€ 7.954,54 + € 17.136,91), extinto ex lege, por efeito da Lei n.º 27/2023, ou, subsidiariamente, que se considere aquele sujeito a condição resolutiva, por efeito da Lei n.º 27/2023.
A este respeito, diga-se que, em 4 de Julho de 2023, foi publicada a Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, que “altera o valor das coimas aplicáveis às contra-ordenações ocorridas em matéria de infra-estruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagens, alterando a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho” (cfr. Diário da República, 1.ª série, n.º 128, de 4 de Julho). Esta lei produzirá efeitos a 1 de Julho de 2024 (cfr. artigo 4.º) e aplicar-se-á “aos processos de contra-ordenação e aos processos de execução pendentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime que, nos termos da lei geral, se afigura mais favorável ao arguido ou ao executado” (cfr. artigo 3.º), sendo que “a absolvição ou a condenação apenas parcial do arguido pelo serviço de finanças determina a anulação, total ou parcial, do processo de execução fiscal instaurado contra o mesmo nos termos do artigo 17.º-A, excepto quando a mesma tenha apenas como fundamento a falta de verificação do elemento subjectivo do tipo contra-ordenacional, sendo os respectivos custos e encargos suportados pela entidade fiscalizadora que tenha emitido o auto de notícia” (cfr. artigo 15.º, n.º 6 da Lei n.º 25/2006, conforme alterado pelo artigo 2.º da Lei n.º 27/2023).
Sucede que, pese embora os argumentos trazidos a juízo pelo Devedor quanto à pretendida extinção ex lege, ou, subsidiariamente, sujeição a condição resolutiva de parte do crédito reclamado pela AT, por efeito da Lei n.º 27/2023, entende o Tribunal que a mesma se não pode suportar em legislação que, apesar publicada, não produz ainda os seus efeitos, sob pena de se desvirtuar precisamente tal figura.

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores explanações, não poderá ser outra a decisão senão a de parcial procedência da impugnação apresentada quanto aos créditos reconhecidos ao credor Autoridade Tributária, termos em que se decide que:
a) deve o crédito reconhecido ser reduzido em € 6.328,01;
b) deve o montante de € 944,52 ser reconhecido sob condição suspensiva, a aguardar o desfecho do processo n.º 1440/21.7BEBRG do TAF de ...;

Custas da impugnação pelo Devedor e pela massa insolvente, na proporção do respectivo decaimento.

*
Registe e notifique, sendo a AI com vista a juntar aos autos lista de créditos reconhecidos devidamente rectificada, acompanhado da respectiva proposta de graduação, do que deverá dar conhecimento aos credores.
(…)»
*
1.2. Recursos
1.2.1. Recurso do Insolvente
Inconformado com a sentença de reconhecimento de créditos, o Insolvente (AA) interpôs recurso de apelação, pedindo que se revogasse parcialmente a mesma (quando julgou parcialmente improcedente a sua impugnação aos créditos da Autoridade Tributária), sendo nessa parte substituída por decisão que reconhecesse os efeitos da Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho, no âmbito da verificação de créditos a realizar nos presentes autos.
*
1.2.1.1. Fundamentos
O Insolvente (AA) concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

50 - A Exma. Senhora Administradora da Insolvência reconheceu os créditos da AT relativos a alegadas passagens em estradas concessionadas sem os ter sujeitado a condição resolutiva.

51 - O Insolvente apresentou nos autos uma impugnação de créditos reconhecidos, inter alia, à AT.

52 - Em 4 de Julho de 2023, foi publicada a Lei n.º 27/2023, que “altera o valor das coimas aplicáveis às contra-ordenações ocorridas em matéria de infra-estruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagens, alterando a Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho”.

53 - A referida lei “entra em vigor com o Orçamento do Estado subsequente à sua publicação”, “produz efeitos a 1 de Julho de 2024” e aplicar-se-á aos processos e às dívidas do Insolvente.

54 - O Orçamento do Estado de 2024 foi aprovado pela Lei n.º 28/2023, de 29 de Dezembro, e entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2024.

55 - Por outras palavras: a Lei n.º 27/2023 entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2024 e produz efeitos em 1 de Julho de 2024.

56 - A Lei n.º 27/2023 ordena a anulação/extinção parcial das dívidas do Insolvente à AT.

57 - Ou seja: o crédito que a AT tem perante o Insolvente reduzir-se-á em conformidade com a Lei n.º 27/2023, aprovada, promulgada e publicada, que entrou em vigor com o Orçamento do Estado subsequente à sua publicação.

58 - Ora, a Lei n.º 27/2023 estabelece um mecanismo de cálculo que visa reduzir substancialmente os valores em dívida, estabelecendo limites máximos às dívidas com origem na falta de pagamento de portagens.

59 - Sucede que, da reclamação de créditos da AT não é possível para o Insolvente extrair todos os factos necessários para realizar esses cálculos.

60 - Foi neste contexto que o Insolvente impugnou os créditos reconhecidos à AT, peticionando que, na parte dos créditos da AT sujeita à Lei n.º 27/2023 (dívidas com origem nas portagens), o Tribunal a quo julgasse esses créditos extintos ou, subsidiariamente, sujeitos a condição resolutiva.

61 - Na Sentença recorrida, o Tribunal veio julgar improcedente a impugnação apresentada pelo Insolvente. Não se conformando, o Insolvente vem dela recorrer.

62 - Primeiro, o objectivo do apenso de reclamação de créditos e das normas que o regulam é assegurar a correcta identificação, quantificação e qualificação dos créditos.

63 - Ao reconhecer os créditos da AT nos termos em que o fez, a Sentença desconsiderou os efeitos jurídicos da Lei n.º 27/2023, violando assim os artigos 128.º a 140.º do CIRE.

64 - Ao omitir um facto certo que, em menos de dois meses, extinguirá parcialmente créditos que está a verificar, a Sentença está a interpretar erradamente as normas respeitantes à verificação de créditos no processo de insolvência (artigos 128.º a 140.º CIRE).

65 - Segundo, os artigos 128.º, n.º 1 e 129.º, n.º 2, do CIRE contêm um conjunto de elementos para identificar, quantificar e qualificar os créditos, os quais não são exaustivos.

66 - Por exemplo, se para verificar correctamente um crédito é necessário identificar factos futuros e incertos aos quais o mesmo está sujeito, por maioria de razão é necessário identificar os factos futuros e certos aos quais o mesmo está sujeito.

67 - Pelo que devia a Sentença ter verificado os créditos da AT, identificando os factos futuros e certos que incidem sobre esses créditos (como é o caso da produção de efeitos da Lei n.º 27/2023, em 1 de Julho de 2024, que extinguirá parcialmente os créditos da AT).

68 - Terceiro, ao não reconhecer um facto extintivo certo, a interpretação dos artigos 128.º a 140.º CIRE feita pela Sentença viola os princípios da igualdade e da tutela jurisdicional efectiva (i.e., os artigos 13.º e 20.º da CRP).

69 - Na interpretação dos artigos 128.º a 140.º CIRE feita pela Sentença, pelo mero facto de a Sentença (de verificação e graduação de créditos) ter sido proferida no curto espaço temporal (entre o momento em que deixou de haver uma condição suspensiva e a nova lei que já entrou em vigor, mas cujo efeito anulatório das dívidas ainda não produziu efeitos), o Insolvente deixaria de poder ver reconhecidos, no processo de insolvência, os efeitos extintivos das suas dívidas promovidos pela Lei n.º 27/2023.

70 - Com o devido respeito, nada mais iníquo. Outro cidadão insolvente, em iguais circunstâncias, apenas pelo facto da respectiva sentença de verificação e graduação de créditos: ter sido proferida antes de 1 de Janeiro de 2024, veria tais créditos da AT reconhecidos sob condição resolutiva e, nessa medida, após 1 de Julho de 2024, essas dívidas seriam anuladas por efeito da Lei n.º 27/2023; ter sido proferida após 1 de Julho de 2024, veria tais créditos da AT extintos por efeito da Lei n.º 27/2023,

71 - ao passo que o Insolvente, nas mesmas exactas circunstâncias, apenas por ter uma sentença proferida entre 1 de Janeiro e 1 de Julho, não poderia ter as suas dívidas à AT por falta de pagamento de portagens nem extintas, nem sujeitas a condição resolutiva - situação manifestamente violadora do princípio da igualdade e bem assim do princípio da tutela jurisdicional efectiva.

72 - Por fim, na impugnação dos créditos da AT apresentada, o Insolvente pugnou pela extinção ex lege dos créditos da AT, por efeito da Lei n.º 27/2023.

73 - O facto dessa extinção ocorrer a partir de 1 de Julho de 2024, não prejudica o facto dessa extinção ser um facto futuro e certo, como qualquer outro direito ou obrigação que se extingue numa determinada data. Por mera cautela e a título subsidiário, o Insolvente requereu que os créditos fossem reconhecidos sob condição resolutiva.

74 - Quanto ao valor dos créditos da AT por efeito da Lei n.º 27/2023, esta estabelece um mecanismo de cálculo que visa reduzir substancialmente os valores em dívida, estabelecendo limites máximos às dividas com origem na falta de pagamento de portagens.

75 - No entanto, a AT não carreou para os autos elementos suficientes para calcular com precisão os efeitos da Lei n.º 27/2023 nos presentes autos. Em boa verdade, apenas por esse facto, o Insolvente está impedido de exercer plenamente o contraditório, nos termos e para os efeitos do artigo 130.º do CIRE.

76 - Não obstante a falta destes elementos, o Insolvente procurou colaborar com o Tribunal a quo, tendo consultado os valores em dívida, a fim de tentar distinguir dívidas com origem na falta de pagamento de portagens, pelo que, com esforço e sem todos os elementos necessários, impugnou parte do crédito reclamado e reconhecido à AT, no montante de € 25.091,45 (apenas por efeito da Lei n.º 27/2023), sem prejuízo de ter requerido subsidiariamente que o Tribunal a quo declarasse o crédito extinto (ou sujeito a condição resolutiva) noutro montante.

77 - Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência:

i. Deve a Sentença recorrida, na parte em que julgou parcialmente improcedente a Impugnação dos créditos da AT, ser revogada, e ser substituída por outra que reconheça os efeitos da Lei n.º 27/2023 no âmbito da verificação de créditos a realizar nos presentes autos (designadamente, reconhecendo que os créditos da AT com origem na falta de pagamento de portagens deverão ser parcialmente extintos, com efeitos em 1 de Julho de 2024; subsidiariamente, reconhecidos sob condição resolutiva).

ii. Devendo essa extinção parcial corresponder ao montante de € 25.091,45 (montante que o Insolvente tentou apurar, apesar da falta de informação), ou outro que se venha apurar em função da aplicação da Lei n.º 27/2023 ao caso concreto (com os elementos que a AT não carreou para os autos).
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1.2.1.2. Contra-alegações
O Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) contra-alegou, pedindo que se negasse provimento ao recurso e se confirmasse a sentença na parte recorrida pelo Insolvente (AA).

Alegou para o efeito, em síntese: inexistir na previsão da Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho, «qualquer condição suspensiva ou resolutiva dos créditos por coimas aplicadas às contraordenações ocorridas em matéria de portagens»; e  não se reportar «a facto futuro e certo» a «extinção parcial de créditos que a referida lei prevê», uma vez que tal lei, ainda que já se encontre em vigor, apenas produzirá os seus efeitos a partir de 1 de Julho de 2024 e poderia «mesmo vir a ser revogada (como se verificou recentemente com a aprovação de legislação específica relativamente a SCUTS, no seio da A.R) antes de (…) produzir os seus efeitos pelo que tal revogação implicaria a cessação dos sues efeitos jurídico».
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1.2.1.3. Início da produção de efeitos da Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho
Veio posteriormente o Insolvente (AA), face ao início em 01 de Julho de 2024 da produção de efeitos da Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho, pedir a sua consideração nos autos (nomeadamente, por revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra, que a considerasse quanto aos créditos reconhecidos à Autoridade Tributária).

O Ministério Público veio responder, reconhecendo que «a Lei nº 27/2023 tem efeitos nos créditos da AT, com origem nas coimas por falta de pagamento de portagens»; e defender que, impondo-se «considerar os efeitos da Lei nº 27/2023 nos créditos em causa, afigurando-se-nos, porém, que cabe à primeira instancia, apreciar tais efeitos».
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1.2.2. Recurso do Ministério Público 
Igualmente inconformado com sentença de reconhecimento de créditos, o Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) interpôs recurso de apelação, pedindo que se revogasse parcialmente a mesma (quando julgou parcialmente procedente a impugnação do Insolvente aos créditos da Autoridade Tributária, declarando-os prescritos), sendo nessa parte substituída por decisão considerando tempestiva a reclamação por si apresentada em relação às dívidas fiscais.
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1.2.2.1. Fundamentos
O Ministério Público concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1 -  O MºPº, neste caso intervém como Reclamante em nome da A.T, tendo sido apresentada a Reclamação de créditos de acordo com o disposto no artº 128º do C.P.P.T..

2 - Em função de impugnação de tais créditos pela insolvente, foi proferida sentença atribuindo razão parcial à impugnação, no que se refere a matéria de prescrição de dívidas.

3 - A sentença em crise e de que se recorre não considerou in casu, os prazos de suspensão e interrupção relativos às dívidas, aplicando serenamente o regime decorrente do artº 48º da LGT, sem mais.

4 - Como se verifica e em função de várias circunstâncias, como a sentença de declaração de insolvência e a legislação extraordinária nos anos de 2020 e 2021 relativa a confinamento por motivos de saúde pública, tais prazos ficaram suspensos e, neste último caso, por um período que atingiu 182 dias.

5 - Essas circunstâncias impedem que se considerem prescritas as dívidas, uma vez que foram reclamadas dentro do prazo legal, tempestivamente.

6 - A decisão em recurso violou por isso normas elencadas: o disposto nos - artº 5º nº 2 al. b) e 411º do C.P.C; artº 791º do C.P.C. e artº 574º nº 2 do C.P.C
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1.2.2.2. Contra-alegações
O Insolvente (AA) contra-alegou, pedindo que se negasse provimento ao recurso e se confirmasse a sentença recorrida.

...........
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto da sentença de reconhecimento de créditos - quer pelo Insolvente (BB), quer pelo Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) -, duas questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

1.ª - Deverá ser aplicada aos créditos por coimas devidas por passagens não pagas em portagens (incluindo taxas e encargos), reclamados e reconhecidos à Autoridade Tributária, a Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho (reduzindo e/ou extinguindo parte deles) ?

2.ª - Deverão ser aplicadas à prescrição dos créditos fiscais as suspensões de prazos consagradas em legislação COVID-19 (nomeadamente, na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na Lei n.º 16/2020, de 20 Maio, no Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de Janeiro, e na Lei n.º 4-B/2001, de 1 de Fevereiro), não se verificando por isso a mesma nos autos ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação das questões enunciadas, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e ainda os seguintes, constantes da sentença de reconhecimento de créditos e dos documentos para que a mesma remete (nomeadamente, certidão que instruiu a reclamação de créditos da Autoridade Tributária), documentos que aqui se consideram nos termos do art.º 607.º, n.º 4, II parte, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC:

1 - BB apresentou-se à insolvência, tendo sido a mesma declarada por sentença datada de 11 de Maio de 2023.

2 - A Autoridade Tributária reclamou créditos nos autos (conforme certidão junta com a sua reclamação, que aqui se dá por integralmente reproduzida), tendo-lhe sido reconhecido um crédito global de € 46.499,11, sendo: € 154,47 (€ 150,85 de capital + € 3,62 de juros), de natureza garantida, por dívida de Imposto Único de Circulação; € 3.716,51, de natureza garantida, como crédito constituído há menos de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência; € 689,81, de natureza privilegiada, por dívida de Imposto Sobro o Rendimento de Pessoas Singulares referente aos últimos 12 meses; e € 41.938.32, de natureza comum.

3 - Dos valores reclamados ao Insolvente (BB) pela Autoridade Tributária, € 4.162,35 correspondem a dívidas com mais de oito anos, já decorridos em 08 de Maio de 2023; e € 2.165,66 correspondem a dívidas com menos de oito anos, mas provenientes de processos contra-ordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram há mais de cinco anos, por referência a 08 de Maio de 2023 (conforme certidão já dada por reproduzida no facto provado anterior).

4 -  O montante de € 25.091,45 (€ 7.954,54 + € 17.136,91) das dívidas reclamadas pela Autoridade Tributária têm origem na falta de pagamento de portagens às entidades concessionárias ..., ... e ... (IP).
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Aplicação aos autos da Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho
4.1.1. Regime legal
Lê-se no art.º 1.º da Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, que a mesma «altera o valor das coimas aplicáveis às contraordenações ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem, procedendo à nona alteração à Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, que aprova o regime sancionatório aplicável às transgressões ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o pagamento de taxas de portagem».

Mais se lê, no art.º 2.º do mesmo diploma, que por ele ficam alterados os arts. «7.º, 10.º, 11.º e 15.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho».
Precisando, e quanto ao art.º 7.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, alteraram-se os valores das coimas, lendo-se doravante no seu: n.º 1, que as «contraordenações previstas na presente lei são punidas com coima de valor mínimo correspondente a 5 vezes o valor da respetiva taxa de portagem, mas nunca inferior a 25 (euro), e de valor máximo correspondente ao dobro do valor mínimo da coima, com respeito pelos limites máximos previstos no Regime Geral das Infrações Tributárias»; e no seu n.º 4, que caso «as infrações previstas na presente lei sejam praticadas pelo mesmo agente, no mesmo mês, através da utilização do mesmo veículo e na mesma infraestrutura rodoviária, o valor máximo da coima é o correspondente ao de uma única contraordenação, sendo o valor mínimo a que se refere o n.º 1 correspondente ao cúmulo das taxas de portagem, não podendo ser cobradas custas de valor superior às correspondentes a uma única contraordenação».
Estabeleceu-se, assim, um novo mecanismo de cálculo de coimas devidas pela falta de pagamento de portagens (permitindo a redução substacncial de valores até então em dívida), nomeadamente: pela fixação de limites máximos às dívidas com essa origem; e pelo passar para um mês (em vez de um dia) o período em que o valor máximo da coima é o correspondente ao de uma única contraordenação.
 Precisando novamente, e agora quanto ao art.º 15.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho, consagram-se no mesmo os efeitos da absolvição ou condenação parcial pelo serviço de finanças no ulterior prosseguimento do processo de execução fiscal, lendo-se doravante no seu n.º 6 que a «absolvição ou a condenação apenas parcial do arguido pelo serviço de finanças determina a anulação, total ou parcial, do processo de execução fiscal instaurado contra o mesmo nos termos do artigo 17.º-A, exceto quando a mesma tenha apenas como fundamento a falta de verificação do elemento subjetivo do tipo contraordenacional, sendo os respetivos custos e encargos suportados pela entidade fiscalizadora que tenha emitido o auto de notícia».

Lê-se ainda, na Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, no seu art.º 5.º, que a mesma «entra em vigor com o Orçamento do Estado subsequente à sua publicação».
O dito Orçamento de Estado foi aprovado pela Lei n.º 28/2023, de 29 de Dezembro; e entrou em vigor em 01 de Janeiro de 2024.
Contudo, determinou-se ainda na mesma Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, no seu art.º 4.º, que a «presente lei produz efeitos a 1 de julho de 2024». Logo, não obstante a sua prévia entrada em vigor, só a partir de 01 de Julho de 2024 iniciaria a produção dos seus efeitos (resultantes, precisamente, da respectiva aplicação aos factos/casos concretos).

Por fim, lê-se no art.º 3.º da Lei n.º 27/2023, de 4 de Julho, que aos «processos de contraordenação e aos processos de execução pendentes à data da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime que, nos termos da lei geral, se afigura mais favorável ao arguido ou ao executado».
Impor-se-ia assim, e relativamente a todos os processos pendentes (de contraordenação e de execução), proceder à comparação dos resultados da aplicação do regime legal anterior e do novo regime; e aplicar aquele que, em concreto, se revelasse mais favorável ao arguido.
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, verifica-se a Autoridade Tributária reclamou um crédito global de € 25.091,45 (€ 7.954,54 + € 17.136,91) sobre o Insolvente (BB), resultante de passagens não pagas em estradas concessionadas; e que o mesmo lhe foi reconhecido.
Mais se verifica que em 01 de Julho de 2024 entrou em vigor um novo regime legal, imediatamente aplicável aos processos de contraordenação e de execução fiscal pendentes por aquele tipo de infracções, que terá de ser comparado com o que resultaria da aplicação do regime anterior, por forma a que o aqui Insolvente (BB) beneficie do que, em concreto, se apure como mais favorável.
Verifica-se ainda que essa aplicação depende do conhecimento de plúrimos e cumulativos elementos factuais (v.g. o dia concreto em que um veículo passou na portagem, o veículo correspondente a cada passagem, a infra-estrutura rodoviária concreta em que ocorreu essa passagem, o valor do custo associado ao conjunto das passagens ao longo de um mês).
Por fim, verifica-se que os mesmos não constam dos autos, conforme unanimemente reconhecido nos mesmos [3].

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, julgando procedente o recurso de apelação do Insolvente (BB) e, em conformidade, revogando a sentença recorrida na parte que reconheceu os créditos reclamados pela Autoridade Tributária relativos a coimas (taxas e demais encargos) por passagens não pagas em portagens (no valor global de € 25.091,45), por forma a que se lhes aplique o regime previsto na Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho; e, por falta de elementos nos autos, devolvendo-os para esse efeito à 1.ª Instância.
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4.2. Aplicação aos autos da legislação COVID-19 (relativa à suspensão de prazos)
4.2.1.1. Prazos de prescrição de dívidas fiscais
Lê-se na Lei Geral Tributária [4], no seu art.º 48.º, n.º 1, que «as dívidas tributárias prescrevem, salvo o disposto em lei especial, no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, excepto no imposto sobre o valor acrescentado e nos impostos sobre o rendimento quando a tributação seja efectuada por retenção na fonte a título definitivo, caso em que aquele prazo se conta a partir do início do ano civil seguinte àquele em que se verificou, respectivamente, a exigibilidade do imposto ou o facto tributário».
Logo, em «conformidade com o artigo 48.º da LGT, e ressalvada lei especial, as dívidas tributárias prescrevem no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu» (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 428).
Compreende-se que assim seja, já que nas relações jurídico-civis o instituto da prescrição tem como objectivo a penalização da inércia do credor em obter o cumprimento da obrigação pelo devedor [5]. Por isso, a regra geral é a de que, não só o prazo de prescrição apenas começa a correr a partir do momento em que o direito possa ser exercido (art.º 306.º, n.º 1, do CC), como o mesmo corresponde a um período de 20 anos (art.º 309.º do CC).
Já nas relações jurídico-tributárias, sendo os créditos tributários indisponíveis [6], a prescrição visa, não só incentivar a actuação expedita e diligente da Autoridade Tributária, como, sobretudo, impedir a eternização de uma situação de indefinição e insegurança em torno das obrigações tributárias [7]. Por isso, não só o evento relevante para o início do decurso do prazo de prescrição é a ocorrência do facto tributário, como o mesmo corresponde hoje a um período de 08 anos (por redução dos 10 anos anteriores ao actual regime [8]).

Mais se lê, no Regime Geral das Infracções Tributárias [9], no seu art.º 33.º, n.º 1, que «o procedimento por contra-ordenação extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do facto sejam decorridos cinco anos»; e no seu art.º 34.º, que «as sanções por contra-ordenação tributária prescrevem no prazo de cinco anos a contar da data da sua aplicação, sem prejuízo das causas de interrupção e de suspensão previstas na lei geral».
Logo, a Autoridade Tributaria só pode liquidar o imposto ou a coima se não estiverem decorridos 5 anos sobre a data da prática do facto tributário ou da contraordenação; e liquidado o imposto/a coima, os mesmos prescrevem no prazo de 8 anos a contar da prática do facto tributário ou da prática da contraordenação.

Lê-se ainda, no art.º 100.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [10], que a «sentença de declaração da insolvência determina a suspensão de todos os prazos de prescrição e de caducidade oponíveis pelo devedor, durante o decurso do processo».

Por fim, lê-se no art.º 300.º do CC que o «tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público».
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4.2.1.2. Consagração legal da suspensão de prazos mercê da pandemia de COVID-19
4.2.1.2.1. Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março
Lia-se na primeira versão da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, no seu art.º 7.º:
  «1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excepcional.
3 - A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional. (...)
6 - O disposto no presente artigo aplica-se ainda, com as necessárias adaptações, a: (...)
c) Prazos administrativos e tributários que corram a favor de particulares.
7 - Os prazos tributários a que se refere a alínea c) do número anterior dizem respeito apenas aos atos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como aos prazos para a prática de atos no âmbito dos mesmos procedimentos tributários».

Mais se lia, no art.º 10.º do mesmo diploma, que a «presente lei produz efeitos à data da produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março».
Esta produção de efeitos ocorreu, porém, a partir do dia 9 de Março de 2020, ao abrigo do art.º 6.º, n.º 2, do Decreto da Assembleia da República 6/XIV de 3 de Abril.
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O Decreto da Assembleia da República 6/XIV de 3 de Abril, procedeu à primeira alteração à Lei 1-A/2020, de 19 de Março, ao nomeadamente: renumerar o n.º 6, al. c), do art.º 7.º, passando então a n.º 9, al. c), do mesmo art.º 7.º; e renumerou e alterou ligeiramente a redacção do anterior n.º 7 do dito art.º 7.º, que passou então a n.º 10 do mesmo art.º 7.º:
Passou a ler-se, então, no dito art.º 7.º:
«9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de actos em:
(...)
c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de actos por particulares.
10. A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os actos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os actos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles».
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A Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, veio alterar novamente o art.º 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, que passou a ter a seguinte redacção:

«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte.
2 - O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excepcional
3 - A situação excepcional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excepcional.
(...)
9 - O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de actos em:
(...) c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de actos por particulares.
10 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os actos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os actos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles».

Esclareceu ainda a data de produção de efeitos do art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, fazendo-a coincidir com 09 de Março de 2020, lendo-se nomeadamente, no seu art.º 5.º, que o «artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março».
Já no seu art.º 6.º dispôs-se que, sem «prejuízo do disposto no número seguinte, a presente lei produz efeitos à data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março» (n.º 1); e o «artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela presente lei, produz os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produzem efeitos na data da entrada em vigor da presente lei» (n.º 2).
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A Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, veio depois revogar o art.º 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, no seu art.º 8; e entrou em vigor no dia 03 de Março de 2021 [11].

Contudo, dispôs no seu art.º 6.º que, sem «prejuízo do disposto no artigo 5.º, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a suspensão».

Logo, cessado o período de suspensão (isto é, deixando o mesmo de ser aplicável na contagem de qualquer prazo), alargaram-se, porém, os prazos de prescrição pelo período correspondente àquele em que a dita suspensão tinha vigorado [12], isto é, desde 09 de Março de 2020 a 02 de Junho de 2020 (já que a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, coincidiu com o dia 03 de Junho de 2020).
Estão, assim, em causa 86 dias.
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4.2.1.2.2. Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de Janeiro
Seria depois publicado o Decreto-Lei n.º 6-E/2021, de 15 de Janeiro, que veio expressamente consagrar a suspensão dos prazos de execução fiscal no período entre 1 de Janeiro e 31 de Março de 2021.

Com efeito, lia-se no seu art.º 6:
«1 - São suspensos, entre 1 de janeiro e 31 de março de 2021, os processos de execução fiscal em curso ou que venham a ser instaurados pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), segurança social e outras entidades.
(…)
4 - A suspensão prevista no n.º 1 determina ainda:
a) A suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos no âmbito das execuções em curso ou instauradas no período em referência;
(…)».

Contudo, o art.º 6.º, n.º 1 e n.º 4, al. a), do Decreto-Lei n.º 6-E/2021), de 15 de Janeiro, veio a ser declarado inconstitucional [13], por se ter entendido que, ao estabelecer uma nova causa de suspensão do prazo de prescrição das dívidas tributárias, incidia sobre as garantias dos contribuintes; e estando esta matéria na reserva relativa de competência da Assembleia da República, apenas poderia  ter sido objecto do exercício da competência legislativa do Governo mediante prévia autorização daquela, o que, porém, não sucedeu.

Tem-se aqui, e por isso, inaplicável a suspensão de 90 dias nele prevista, nomeadamente para efeitos de prescrição de dívidas tributárias.
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4.2.1.2.3. Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro
A Lei 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, veio, porém, reintroduzir a suspensão dos prazos procedimentais tributários e processuais. Com efeito, o seu art.º 2.º aditou à Lei n.º 1-A/2000, de 19 de Março, dois novos artigos, o 6.º-B e o 6.º-C.

Passou, então, a ler-se no art.º 6.º- B, Lei n.º 1-A/2000, de 19 de Março:
«1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de actos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - O disposto no número anterior não se aplica aos processos para fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os processos e procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
5 - O disposto no n.º 1 não obsta:
a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de actos presenciais;
b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;
c) À prática de actos eà realização de diligências não urgentes quando todas as partes oaceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via electrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da rectificação ou reforma da decisão.
6 - São também suspensos:
a) O prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
b) Quaisquer actos a realizar em sede de processo executivo, com excepção dos seguintes:
i) Pagamentos que devam ser feitos ao exequente através do produto da venda dos bens penhorados; e
ii) Atos que causem prejuízo grave à subsistência do exequente ou cuja não realização lhe provoque prejuízo irreparável, prejuízo esse que depende de prévia decisão judicial.
7 - Os processos, actos e diligências considerados urgentes por lei ou por decisão da autoridade judicial continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, observando-se quanto a estes o seguinte:
a) Nas diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, a prática de quaisquer atos processuais e procedimentais realiza-se, se não causar prejuízo aos fins da realização da justiça, através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;
b) Quando não for possível a realização das diligências que requeiram a presença física das partes, dos seus mandatários ou de outros intervenientes processuais, nos termos da alínea anterior, pode realizar-se presencialmente a diligência, nomeadamente nos termos do n.º 2 do artigo 82.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, competindo ao tribunal assegurar a realização da mesma em local que não implique a presença de um número de pessoas superior ao previsto pelas recomendações das autoridades de saúde e de acordo com as orientações fixadas pelos conselhos superiores competentes».

Passou, ainda, a ler-se no art.º 6.º- B, Lei n.º 1-A/2000, de 19 de Março:
«1 - São suspensos os prazos para a prática de actos em: (...)
c) Procedimentos administrativos e tributários no que respeita à prática de atos por particulares.
2 - A suspensão dos prazos em procedimentos tributários, referida na alínea c) do número anterior, abrange apenas os actos de interposição de impugnação judicial, reclamação graciosa, recurso hierárquico, ou outros procedimentos de idêntica natureza, bem como os atos processuais ou procedimentais subsequentes àqueles.
3 - São igualmente suspensos os prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os procedimentos identificados no n.º 1.
4 - O disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, aos quais acresce o período de tempo em que vigorar a suspensão.
(...)
7 - Aos procedimentos a que não se aplique a suspensão de prazos é aplicado, com as devidas adaptações, o previsto no n.º 7 do artigo 6.º-B».

Determinou ainda, no seu art.º 4.º, que o «disposto nos artigos 6.º-B a 6.º-D da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, produz efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados».
Logo, no dia 22 de Janeiro de 2021 iniciou-se um novo período de suspensão de prazos de prescrição.
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4.2.1.2.4. Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril
Finalmente, a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, veio revogar o art.º 6.º-B aditado à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.

Contudo, dispôs no seu art.º 5.º que, sem «prejuízo do disposto no artigo anterior, os prazos de prescrição e caducidade cuja suspensão cesse por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período correspondente à vigência da suspensão».

Logo, cessado o período de suspensão (isto é, deixando o mesmo de ser aplicável na contagem de qualquer prazo), alargaram-se, porém, os prazos de prescrição pelo período correspondente àquele em que a dita suspensão tinha vigorado [14]: desde 22 de Janeiro de 2021 a 05 de Abril de 2021 (já que a entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, coincidiu com o dia 06 de Abril de 2021, conforme seu art.º 7.º).
Estão, assim, em causa 74 dias.
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No total, terá resultado um alargamento de prazos de prescrição de 160 dias (86 em 2020 + 74 em 2021) [15].
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.2.1. Termo final do prazo de prescrição (reconhecida pelo Tribunal a quo)
Concretizando, verifica-se que, na parte da sentença recorrida pelo Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) se lê que, «atendendo à factualidade apurada e aplicando os dispositivos legais supra referenciados, verifica-se que dos valores reclamados ao Insolvente pela AT, € 4.162,35 correspondem a dívidas com mais de oito anos, e € 2.165,66 correspondem a dívidas com menos de oito anos, mas provenientes de processos contra-ordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram há mais de cinco anos, termos em que um total de € 6.328,01 corresponde a dívida prescrita e, como tal, deverá ser reduzido ao montante global reclamado».
Verifica-se ainda que, no seu recurso, o Ministério Público começa por sustentar que «as quantias reclamadas e julgadas prescritas por o terem sido para além dos oito anos previstos na LGT (artº 48º) ainda o não tinham sido na altura de declaração de insolvência por sentença que suspendeu o decurso de tal prazo, atentas as datas indicadas como sendo a de ocorrência das mesmas, aliás contabilizadas na sentença, na importância de € 6 328,01».
Contudo, e salvo devido respeito, não lhe assiste razão.

Com efeito, não resulta em parte alguma da sentença proferida nos autos (quer da sua fundamentação de facto, quer da sua fundamentação de direito, quer do seu dispositivo final) que a aludida prescrição de dívidas fiscais e/ou de procedimentos contraordenacionais tivesse ocorrido apenas em momento posterior ao da prolação dela própria.
Acresce que resulta documentalmente dos autos precisamente o contrário, já que, por carta registada com aviso de recepção, datada de 08 de Maio de 2023 (logo, anterior à apresentação à insolvência) o Insolvente (BB) invocou junto da Autoridade Tributária a mesmíssima prescrição reconhecida pela sentença (nesta parte) recorrida (o que reiterou no seu requerimento inicial de apresentação à insolvência), lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Verifica-se que parte substancial dos valores (alegadamente) em dívida, referidos na aludida Certidão: (i) Correspondem a (putativas) dívidas do Requerente com mais de oito anos. Em concreto, somando todas as dívidas constantes da Certidão cuja data de vencimento seja superior a oito anos, alcança-se um valor de €4.162,35.
(ii) Correspondem a (putativas) dívidas do Requerente com menos de oito anos, mas provenientes de processos contra-ordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram há mais de cinco anos. Em concreto, somando todas as dívidas constantes da Certidão provenientes de processos contra-ordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram mais de cinco anos, alcança-se um valor de €2.165,66.
Assim, designadamente nos termos das disposições conjugadas do artigo 48.º,n.º 1 daLei Geral Tributária, artigos 33.º e 34.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e do artigo 303.º do Código Civil, o Requerente invoca, para todos os devidos efeitos, a prescrição das (putativas) dívidas supra referidas, i.e., um total de dívidas prescritas de € 6.328,01 (correspondendo à soma daquelas parcelas, supra referidas, de €4.162,35 e de €2.165,66).
(…)»
Ora, a dita sentença reproduz nos seus exactos termos a alegação feita da dita excepção pelo Insolvente (BB); e esta foi-o em 08 de Maio de 2023, sendo a sentença de declaração de insolvência de 11 de Maio de 2023.
Ficou, por isso, definitivamente assente nos autos que a prescrição reconhecida pelo Tribunal a quo, na sentença recorrida, foi por ele tida como verificada antes de 11 de Maio de 2023.
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4.2.2.2. Verificação da prescrição
Concretizando novamente, veio ainda o Ministério Público sustentar no seu recurso que, além «de tal circunstância [a acabada de afastar] também esses prazos foram suspensos entre 9 de Março e 2 de Junho de 2020, em função da Lei 1-A/2020 de 19 de Março e artº 6º da Lei nº 16/2020 de 20 Maio e ainda no Dec-Lei nº 6-E/2021 de 15 de Janeiro e ainda a Lei nº 4-B/2001 de 1 de Fevereiro que aditou o artº 6º-B à Lei 1-A/2020».
Defendeu, por isso, que em «função de tal legislação os respectivos prazos de prescrição e caducidade das dívidas reclamadas, no segmente julgado prescrito, na sentença em crise, não foram ultrapassados, uma vez que houve um total de 182 dias de suspensão dos mesmos relativamente às mesmas (e que respeitam a dois confinamentos em matéria de saúde pública por efeito COVID)».
Contudo, e salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Com efeito, e independentemente da discussão que se possa fazer quanto à aplicabilidade, ou não aplicabilidade (por alegada inconstitucionalidade material, como defende o Insolvente), às dívidas tributárias da suspensão dos prazos de prescrição consagrada  na legislação COVID-19 [16], certo é que o Ministério Público, no recurso que interpôs, não alegou um único facto que permita concluir que as dívidas em causa não estariam prescritas, à data da declaração da insolvência (sendo que, não obstante não lhe caber qualquer ónus de prova da não prescrição - cabendo antes ao Insolvente o ónus da prova da sua verificação, quando a alega em benefício próprio -, estando essa excepção peremptória já reconhecida pelo Tribunal a quo, seria expectável que o Ministério Público alegasse fundamentos de facto e/ou de direito que permitissem fundar o seu recurso, na pretendida infirmação daquele juízo).
Precisando, estando já assente que a prescrição invocada pelo Insolvente (BB) e reconhecida pela Tribunal a quo ocorreu antes da declaração da respectiva insolvência, em  11 de Maio de 2023, e que eventualmente (e ao contrário do que alegadamente o Tribunal a quo teria feito), importaria considerar um alargamento de 160 dias no prazo de prescrição em causa, para que a mesma se verificasse, o termo final do dito prazo teria que ter coincidido: com o dia 02 de Dezembro de 2017, no que diz respeito ao prazo de prescrição de 05 anos do procedimento por contraordenação, acrescido de 160 dias; e com o dia 02 de Dezembro de 2014, no que diz respeito ao prazo de prescrição de 08 anos das dívidas tributárias, acrescido de 160 dias.
Ora, nada nos diz o Ministério Público, no seu recurso, sobre os factos concretos que permitiriam sufragar a sua conclusão, nomeadamente: quando é que se constituiu a dívida tributária ou se iniciou o procedimento por contraordenação respectivo, relativamente a cada um dos créditos reclamados, reconhecidos e declarados prescritos na sentença nesta parte recorrida; ou que período de tempo já se encontrava decorrido, e qual o remanescente que faltava decorrer, para a prescrição em curso, quando entrou em vigor a legislação COVID-19 em causa [17], de novo relativamente a cada um dos créditos reclamados, reconhecidos e declarados prescritos na sentença nesta parte recorrida. 

Dir-se-á ainda que, compulsada a documentação junta aos autos (nomeadamente, a certidão de dívida que instruiu a reclamação de créditos da Autoridade Tributária), e quanto aos créditos da Autoridade Tributária considerados prescritos na sentença recorrida, verifica-se efectivamente que os mesmos, ou correspondem a dívidas do Insolvente (BB) com mais de 08 anos, ou com menos de 08 anos, mas provenientes de processos contraordenacionais cujos factos subjacentes ocorreram há mais de cinco anos (considerando em ambos os casos os termos finais referidos supra,  de 02 de Dezembro de 2014 e de 02 de Dezembro de 2017).

Deverá, assim, decidir-se em conformidade, julgando totalmente improcedente o recurso de apelação do Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária).
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em

i) Julgar totalmente procedente o recurso de apelação do Insolvente (BB) e, em conformidade, revogar a sentença recorrida na parte que reconheceu o crédito global de € 25.091,45 reclamado pela Autoridade Tributária relativo a coimas (taxas e demais encargos) por passagens não pagas em portagens, por forma a que se lhe aplique o regime previsto na Lei n.º 27/2023, de 04 de Julho, e ordenar a devolução dos autos à 1.ª Instância para esse efeito (por falta de elementos nos mesmos que aqui permitissem substituir por outra a decisão revogada).

ii) Julgar totalmente improcedente o recurso de apelação do Ministério Público (em representação da Autoridade Tributária) e, em conformidade, confirmar a parte da sentença por ele recorrida (que declarou prescrito um crédito total de € 6.328,01 reclamado pela Autoridade Tributária).
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As custas de ambos os recursos seriam pelo Ministério Público (por ter ficado vencido no primeiro, onde contra-alegou, e ter decaído no segundo, onde recorreu, conforme art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC), estando, porém, isento delas (conforme art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
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Guimarães, 19 de Setembro de 2024.

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.ª Adjunta - Maria Gorete Roxo Pindo Baldaia de Morais.


[1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3] Afirmou-se reiteradamente nos autos:
i) Impugnação de créditos do Insolvente - «No entanto, da reclamação de créditos da AT e documentos juntos não é possível para o Insolvente extrair todos os factos necessários para realizar esses cálculos. A título de exemplo, é preciso saber, cumulativamente, (i) o dia concreto em que um veículo passou na portagem; (ii) o veículo correspondente a cada passagem; (iii) a infra-estrutura rodoviária concreta em que ocorreu essa passagem, (iv) o valor das custas associado ao conjunto das passagens ao longo de um mês, etc.».
«Estes elementos factuais apenas poderão ser carreados para os autos por quem os detém em sua posse: a AT»; pelo que, «em face da aprovação, promulgação e publicação da Lei n.º 27/2023, não é possível – com os elementos carreados para os autos pela AT – saber qual o valor em dívida à AT».
ii) Resposta da Administradora da Insolvência - «Acresce que, a AI não tem, como não tinha à data da apresentação da lista de créditos nos termos do art.º 129.º CIRE, elementos que permitam elaborar o reconhecimento de créditos da AT de forma diferente da que efectuou, além de que não lhe cabe presumir factos que não resultam dos autos».
iii) Alegações de recurso do Insolvente - «No entanto, como se referiu na Impugnação, da reclamação de créditos da AT e documentos juntos não é possível para o Insolvente extrair todos os factos necessários para realizar esses cálculos». «Daqui se extrai outra conclusão importante que o Insolvente referiu na Impugnação: por falta de elementos carreados para os autos pela AT, o Insolvente não pode (está impedido) de exercer plenamente o contraditório, nos termos e para os efeitos do artigo 130.º do CIRE».
iv) Resposta do Ministério Público - A «Lei nº 27/2023 tem efeitos nos créditos da AT, com origem nas coimas por falta de pagamento de portagens, em causa no recurso interposto pelo insolvente»; e, impondo-se «considerar os efeitos da Lei nº 27/2023 nos créditos em causa, afigurando-se-nos, porém, que cabe à primeira instancia, apreciar tais efeitos».
[4] A Lei Geral Tributária - doravante LGT - foi aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro.
[5] Neste sentido, Ac. do STJ, de 04.03.2010, Serra Baptista, Processo n.º 1472/04.OTVPRT-C.S1, onde se lê que o «fundamento último da prescrição situa-se na negligência do credor em não exercer o seu direito durante um período de tempo razoável, em que seria legítimo esperar que ele o exercesse, se nisso estivesse interessado. Compreendendo-se que razões de certeza e de segurança nas relações jurídicas imponham que a inércia prolongada do credor envolva consequências desfavoráveis para o exercício tardio do direito, nomeadamente em defesa da expectativa do devedor de se considerar libero de cumprir e até da dificuldade que ele poderia ter de, passado muito tempo, fazer prova de um cumprimento que, porventura, tivesse feito».
[6] Lê-se, a propósito, no art.º 30.º da LGT:
«1 - A relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário.
2 - Os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes.
3 - A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei.
4 - A qualificação do negócio jurídico efectuada pelas partes, mesmo em documento autêntico, não vincula a administração tributária.
5 - A administração tributária pode subordinar a atribuição de benefícios fiscais ou a aplicação de regimes fiscais de natureza especial, que não sejam de concessão inteiramente vinculada, ao cumprimento de condições por parte do sujeito passivo, inclusivamente, nos casos previstos na lei, por meio de contratos fiscais».
[7] Neste sentido, J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 261, onde se lê que a «formação de uma dívida fiscal cria um dever de cumprimento ao sujeito passivo, é certo, mas trata-se de um dever de pagamento que não se pode manter por tempo indefinido. É por isso que os prazos de prescrição, tal como os prazos de caducidade, criam um limite temporal para a manutenção dos direitos, como forma de garantir a segurança e a paz jurídica».
[8] Foi, precisamente em nome dos princípios da certeza e segurança jurídicas, conjugados com a necessidade de se responder à «celeridade da vida económica e as acrescidas necessidades da certeza e segurança jurídicas», que se procedeu à redução do inicial prazo de 10 anos de prescrição das obrigações tributárias para os actuais 8 anos (conforme António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Rei dos Livros, Lisboa, 2000, pá. 227).
 [9] O Regime Geral das Infracções Tributárias - doravante RGIT - foi aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.
[10] O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[11] Recorda-se que se lê no art.º 2.º, n.º 2, da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, que, na «falta de fixação do dia, os diplomas referidos no número anterior entram em vigor, em todo o território nacional e no estrangeiro, no quinto dia após a publicação».
[12] Neste sentido, Ac. da RG, de 16.03.2023, Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício, Processo n.º 41/21.4T8CLB.G1, com detalhada explicitação, apoiada em plúrima doutrina e jurisprudência. 
[13] Essa declaração de inconstitucionalidade consta do Ac. do TC n.º 209/2024, de 13.03.2024, Joana Fernandes Costa, Processo n.º 868/2023.:
[14] De novo, e quanto à explicitação e aplicação deste prolongamento de prazos de suspensão, se remete para o Ac. da RG, de 16.03.2023, Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício, Processo n.º 41/21.4T8CLB.G1. 
[15] Dando conta da dificuldade de aplicação da legislação COVID-19 em matéria de suspensão de prazos, Ac. do STJ, de 11.05.2023, Maria da Graça Trigo, Processo n.º 16107/21.8YIPRT-A.G1.S1.
[16] Pronunciando-se aparentemente sobre a aplicabilidade às dívidas tributárias da suspensão de prazos de prescrição consagrada na legislação COVID-19:
. Ac. do TCAN, de 31.03.2022, Paulo Moura, Processo n.º 02035/21.0BEBRG - onde se lê que, no «âmbito dos dois confinamentos da pandemia COVID19, acresce ao prazo de prescrição, no âmbito da execução fiscal, um total de 182 dias, sendo de 86 dias no primeiro e de 96 dias no segundo».
. Ac. do STA, de 11.10.2023, Joaquim Condesso, Processo n.º 0210/22.0BEFUN - onde se lê que todos «os prazos de prescrição relativos a todos os tipos de processos estiveram suspensos entre 9 de Março de 2020 e 3 de Junho de 2020 (cfr.artº.7, nº.3, da Lei 1-A/2020, de 19/03; artºs.2, 5 e 6, da Lei 4-A/2020, de 6/04; artº.8, da Lei 16-A/2020, de 29/05)».
.  Ac. do TCAN, de 12.10.2023, Rosário Pais, Processo n.º 00440/23.7BEBRG - onde se lê que, na «contagem dos prazos prescricionais de dívidas já em processo de execução fiscal, há que atender às suspensões legais, num total de 181 dias, que decorrem da Lei nº 1-A/2020, de 19 de março, e ainda das Leis nº 4-A/2020, de 06 de abril, nº 16/2020, de 29 de maio, nº 4-B/2021, 01 de fevereiro, nº 13-B/2021, de 05 de abril e do Decreto-Lei nº 6-E/2021, de 15/01».
[17] No sentido que a suspensão dos prazos de prescrição prevista na legislação COVID-19 apenas se aplica aos prazos que estivessem em curso no momento da produção de efeitos das normas que a consagraram:
. Ac. da RP, de 30.10.2023, Nelson Fernandes, Processo n.º 2459/22.6T8MTS.P1 - onde se lê que o «regime estabelecido nos artigos 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, é apenas aplicável aos prazos de prescrição que já se encontravam em curso no momento em que entraram em vigor, pois é tal solução que resulta da respetiva interpretação».
. Ac. da RL, de 07.03.2024, Maia João Ferreira Lopes, Processo n.º 7/24.2YTLSB.L1-9 - onde se lê  que a «aplicação imediata desta causa de suspensão a processos em curso [prevista «quer no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, quer o artigo 6.º-B, n.º 3 da Lei 4-B/2021»] não colide com as garantias asseguradas pelo princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal, quando, como é o caso, no momento da sua entrada em vigor, o prazo de prescrição já se tinha iniciado e, apesar de se encontrar em curso, não se havia ainda extinto, solução que cremos mais adequada e compreensiva da realidade e das especificidades que determinaram as ditas “Leis Covid”, crendo que tal solução não colide, com qualquer normativo legal».